Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20/11.0PASJM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Nº do Documento: RP2014043020/11.0PASJM-A.P1
Data do Acordão: 04/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A audição do condenado é obrigatória em caso de revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, e a sua falta constitui uma nulidade insanável [artigo 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal].
II – A audição deve ser pessoal e presencial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 20/11.0 PASJM-A.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
No âmbito do processo especial sumário que, sob o n.º 20/11.0 PASJM, corre termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de S. João da Madeira, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal previsto e punível pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Realizada a audiência, foi proferida sentença, já transitada em julgado, condenando o arguido pela prática do referido ilícito penal na pena de 240 dias de prisão, substituída por 240 horas de trabalho a favor da comunidade.
Não tendo cumprido, na íntegra, aquela pena de substituição, em 14.11.2013, a Sra. Juiz proferiu o seguinte despacho:
Tendo em conta que o arguido não obstante ter aceite a pena de substituição e ter iniciado o seu cumprimento, se ausentou depois sem qualquer justificação e sem comunicar a sua actual morada, sendo desconhecido o seu paradeiro, revelando assim o completo desrespeito pelo cumprimento da pena, determina-se como promovido e nos termos do disposto no artigo 59.º, n.ºs 2 e 4 do Código Penal, o cumprimento de 104 dias de prisão.
Notifique-se e comunique-se.
Oportunamente, dever-se-ão emitir mandados para detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional”.
Inconformado, o condenado B… interpôs recurso desse despacho para este Tribunal da Relação, com os fundamentos que expõe na respectiva motivação e que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “A decisão de revogação da pena de trabalho a favor da comunidade e a consequente condenação a cumprir prisão efectiva mostra-se desproporcionada, violando assim o princípio da proporcionalidade e adequação.
2. Face à intensidade da violação de deveres verificada, a ponderação da proporcionalidade daquela revogação não pode conduzir, sem mais, a consideração de existência de uma violação grosseira do dever de prestar trabalho.
3. O arguido não deixou de estar disponível para prestar trabalho a favor da comunidade, sendo bem verdade que especiais circunstâncias da sua vida em família, o nascimento de mais um filho, a obrigatoriedade de mudar de residência, a manutenção do trabalho de “biscates” que vem exercendo no ramo de montagens eléctricas na construção civil, concorreram decisivamente para algumas interrupções na prestação do trabalho comunitário a que estava vinculado.
4. A inexistência da intenção de se furtar ao cumprimento da pena de trabalho a favor da comunidade manifesta-se desde logo na informação prestada aos autos pelos serviços de reinserção social, fls. 95, 98, e bem assim, o oferecido pelo recorrente após lhe ter sido participado, por autoridade policial, o douto despacho de fls. 119 e o douto despacho de audiência prévia que o antecedeu.
5. O arguido atravessou uma fase bastante conturbada da sua vida com a necessidade de acompanhar regularmente a sua companheira ao hospital antes e após o parto, situações que vieram a despoletar a cessação das prestações de RSI, pelo que se viu na necessidade imperiosa de procurar trabalho, só o tendo conseguido de forma precária, ainda que em maior volume, no ramo da montagem de componentes eléctricos em obras de construção civil.
6. À conjugação daqueles factos acresceu a obrigatoriedade que lhe foi imposta de despejar o imóvel que havia tomado de arrendamento e todos eles se vieram a mostrar determinantes na omissão do dever processual de informar os autos da alteração de residência e na dificuldade evidenciada esporadicamente no cumprimento contínuo do trabalho comunitário.
7. Ainda assim, nunca o arguido deixou do estar disponível para prestar trabalho a favor da comunidade, o que vem fazendo com particular afinco e com uma periodicidade quase diária no presente mês de Dezembro de 2013, pelo que não pode o tribunal considerar vagamente que houve um completo desrespeito pelo cumprimento da pena, sendo certo que, eventualmente, a conduta pode, até, ser enquadrada na situação prevista no n.º 6, do artigo 59.º, do Código Penal, em que o condenado não pode prestar o trabalho por causa alheia à sua vontade.
8. Dos autos, não resultam provas inequívocas que o arguido tenha infringido, grosseiramente, os deveres da pena em que foi condenado ou o invocado completo desrespeito pelo cumprimento da pena sendo certo que a manutenção da decisão recorrida provocará danos irreversíveis no futuro do arguido, seja a nível social, familiar e, acima de tudo a nível do desenvolvimento profissional.
9. Entre outras normas, foram violadas as disposições constantes dos artigos 58° e 59° do Código Penal, pelo que deve conceder-se provimento ao presente recurso, substituindo-se a pena de prisão em que o aqui recorrente foi condenado por outra, que defira e tenha em conta a continuidade do plano de trabalho a favor da comunidade iniciado, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA”.
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Admitido o recurso e notificado o Ministério Público, veio este oferecer resposta à respectiva motivação, que sintetizou assim:
1. “Por sentença proferida nos presentes autos, datada de 17 de Fevereiro de 2011, o arguido foi condenado na pena de 240 dias de prisão, que foi substituída por igual período de horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
2. O arguido apenas cumpriu 135h 30 durante 32 meses, não apresentando explicações sérias para tal desleixo, nem sequer quando foi notificado pelo Tribunal para esclarecer os motivos porque não cumpriu integralmente a dita pena.
3. Se atendermos a que, entre a decisão que condenou o arguido na pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a decisão que revogou essa suspensão mediaram quase três anos, sem que nunca o arguido tenha demonstrado qualquer atitude de colaboração, que revelasse que ele tinha intenção de cumprir a pena em que foi condenado, deve-se considerar que o comportamento do arguido infringiu grosseiramente o dever que lhe foi imposto.
4. Ora, considerando o disposto no art° 59°, n° 2, al. b) do Código Penal só podia ter sido decidida a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinado o cumprimento de 104 dias de prisão, ou seja, o tempo remanescente, considerando as 135h 30 horas de trabalho já prestado”.
Por isso considera não merecer provimento o recurso interposto, antes devendo ser confirmada a decisão recorrida.
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Já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que suscita, como questão prévia, a falta de notificação do condenado “para comparecer à diligência prevista no art. 495º, n.º 2 do CPP, aplicável «ex vi» art. 498º, n.º 3 do mesmo diploma”, pelo que o tribunal incorreu “na nulidade insanável, prevenida no art. 119º, alínea c) do CPP, de que cumpre conhecer”.
Por essa razão, em dessintonia com a posição do Ministério Público na 1.ª instância, pronuncia-se pela procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.
Mas, sendo esta a regra, nada obsta a que (antes se impõe que) o tribunal aprecie outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis.
Decorre do disposto no artigo 59.º do Código Penal que a execução da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade tem de estar concluída no prazo máximo de 30 meses, mesmo quando razões ponderosas do condenado tenham determinado a suspensão da prestação de trabalho.
Como se extrai da certidão com que foram organizados os autos do recurso, a sentença condenatória transitou em julgado em 21.03.2011.
Por isso, face ao disposto no artigo 496.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o condenado devia ter iniciado a execução da pena, no máximo, em 21.06.2011 e concluí-la em 21.12.2013.
Por requerimento que deu entrada em tribunal no dia 04.12.2013 (portanto, quando estava prestes a esgotar-se o aludido prazo máximo de 30 meses), veio o condenado manifestar a sua disponibilidade para cumprir o remanescente (104) das horas de trabalho.
Porém, já então o tribunal havia proferido a despacho supra transcrito, a determinar o cumprimento de 104 dias de prisão.
Embora não o tenha feito expressamente, ao determinar o cumprimento de 104 dias de prisão, o tribunal revogou (implicitamente) a prestação de trabalho a favor da comunidade imposta ao arguido.
Assim, a questão fundamental deste recurso consiste em saber se ocorria algum ou alguns dos fundamentos determinantes dessa revogação, que o n.º 2 do artigo 59.º do Código Penal enuncia assim:
● colocar-se o condenado, intencionalmente, em condições de não poder trabalhar;
● recusa, sem justa causa, a prestar trabalho;
● infracção grosseira dos deveres decorrentes da pena (deveres laborais e regras de conduta inerentes à prestação de trabalho);
● cometimento de crime durante no período de prestação de trabalho, pelo qual venha a ser condenado.
No entanto, a apreciação dessa questão que constitui o objecto deste recurso pode ficar prejudicada se for procedente a questão prévia suscitada pelo Ex.mo PGA.
É por aí que terá, então, de começar a nossa apreciação.
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Sendo a prestação de trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição, o seu incumprimento (culposo) conduz, como acontece com outras penas de substituição, à sua “revogação”, fazendo ressurgir a pena de prisão directamente aplicada e que havia sido substituída por aquela. É o que, expressa e inequivocamente, resulta do n.º 2 do art. 59.º: «o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença…».
A partir do momento em que o tribunal - constatado o incumprimento da pena de substituição sem que o condenado, para tanto, apresente justificação atendível - ordena a execução da prisão directamente imposta, a pena substitutiva deixa de existir.
Não há, em simultâneo, duas penas – a pena de prisão aplicada directamente e a pena substitutiva de prestação de trabalho – que o condenado possa cumprir em alternativa, segundo a sua livre opção. Em caso de incumprimento (culposo) da pena de substituição, o condenado já não pode evitar, total ou parcialmente, o cumprimento da pena de prisão.
Por isso, esteve bem o tribunal ao indeferir a pretensão formulada no já aludido requerimento de 04.12.2013 (em que, já depois de ser notificado da decisão que determinou o cumprimento de 104 dias de prisão, o condenado veio manifestar a sua disponibilidade, que antes não revelou, para cumprir o remanescente da pena de prestação de trabalho) e ao fazer notar que só por via de recurso aquela decisão poderia ser revogada.
Por aqui se vê quão importante é que se garanta o contraditório, a audição do condenado, podendo a sua omissão constituir nulidade insanável[1], susceptível de levar à anulação do despacho recorrido e dos actos dele dependentes.
Dispõe o artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ao caso de prestação de trabalho ex vi do artigo 498.º, n.º 3, da mesma Codificação, que o tribunal decide por despacho (da eventual revogação) “…depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento…”.
Vejamos qual foi, no caso, o procedimento seguido:
Depois de ultrapassadas dificuldades várias, nomeadamente as provocadas pela mudança de local de residência do condenado, este iniciou o cumprimento da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade em 18.10.2011.
Em 23.03.2012, a Direcção-Geral de Reinserção Social (DGRS) remeteu para os autos informação dando conta de que o condenado havia prestado, apenas, 3 horas de trabalho no local onde fora colocado.
Por conveniência do condenado, este passou, então, a cumprir a pena no Centro Social de …, Santa Maria da Feira.
Em 30.10.2012, nova informação da DGRS indicava que o condenado, até essa data, apenas tinha cumprido 42 das 240 horas de trabalho, apesar de advertido para a irregularidade no cumprimento.
Em 24.01.2013, tinha cumprido, apenas, 65 horas e em 25.09.2013 faltavam cumprir 104 horas e 30 minutos.
Deferindo promoção do Ministério Público, a Sra. Juiz ordenou a notificação do condenado para, em 10 dias, vir aos autos informar o motivo da falta de cumprimento da prestação de trabalho.
A notificação foi feita ao ilustre defensor do condenado, mas a carta para notificação dirigida à morada do condenado (que estes autos não revelam se é a morada indicada no termo de identidade e residência, mas é de presumir que assim seja) veio devolvida com a menção de que este “mudou-se”.
Solicitada a colaboração da GNR para notificação por contacto pessoal, a autoridade policial informou que o notificando tinha deixado de residir na morada indicada e era desconhecido o seu paradeiro.
O Ministério Público promoveu, então, que, face ao “manifesto incumprimento” da pena de prestação de trabalho, se determinasse o cumprimento de 104 dias de prisão e assim veio a ser decidido, conforme despacho supra transcrito.
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São conhecidas as divergências existentes na jurisprudência sobre esta matéria, que se situam, quer ao nível da obrigatoriedade, ou não, da audição do condenado, quer quanto a saber se, sendo obrigatória, tem de ser presencial, ou seja, se o juiz (titular do processo respectivo) tem de ouvi-lo pessoalmente ou se, apenas, tem de ser proporcionada àquele a possibilidade de se pronunciar sobre a revogação.
Encurtando razões, sendo inquestionável que, actualmente[2], a revogação da suspensão da execução da pena nunca é uma consequência automática da conduta do condenado, exigindo sempre um juízo de ponderação negativo, no sentido da constatação de que se frustraram as finalidades que estiveram na base da suspensão, também é para nós claro que se impõe sempre, independentemente do(s) motivo(s) da eventual revogação, a audição do condenado.
É a propósito da revogação da suspensão da execução da pena de prisão que esta questão tem sido, frequentemente, colocada e apreciada nos tribunais superiores, mas o problema coloca-se, mutatis mutandis, também em relação à revogação da prestação de trabalho.
A jurisprudência mais recente tem, reiterada e uniformemente, considerado que a audição do condenado é obrigatória e que a sua falta constitui uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal.
Não temos dúvidas em perfilhar esse entendimento, pois as razões em que se sustenta tal orientação são claras e convincentes: a revogação da suspensão (ou, no caso, da prestação de trabalho) configura uma alteração da sentença condenatória, já que, sendo aquela uma verdadeira pena (uma pena de substituição), a sua revogação traduz-se sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena - a pena de prisão.
Por isso, a revogação é um acto decisório que contende com a liberdade do arguido, que o atinge na sua esfera jurídica, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e de audiência.
O direito ao contraditório é uma das mais importantes manifestações das garantias de defesa do arguido em processo penal, constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 5, da CRP), e para os seus destinatários significa, além do mais, a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das “partes” (acusação e defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contrariar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, 523).
Apesar da sua especial incidência na audiência de discussão e julgamento, o princípio do contraditório abrange todos os actos susceptíveis de afectar a posição do arguido.
No incidente de incumprimento da prestação de trabalho a favor da comunidade, ao condenado foi proporcionado o exercício do contraditório, já que o seu ilustre defensor foi, para tanto, notificado e o recorrente só não o foi porque mudou de residência sem que tenha comunicado para o processo a alteração verificada, passando a ser desconhecido o seu paradeiro[3].
Importa lembrar que o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no sentido de que «o condenado em pena de prisão suspensa continua afecto, até ao trânsito da revogação da pena substitutiva ou à sua extinção e, com ela, à cessação da eventualidade da sua reversão na pena de prisão substituída, às obrigações decorrentes da medida de coacção de prestação de termo de identidade e residência (nomeadamente, a de “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada”)» (AUJ n.º 6/2010, de 15.04.2010, DR, I, de 21.05.2010).
Resta, então, saber se o juiz (titular do processo respectivo) tem de ouvir pessoalmente o condenado, ou se, apenas, tem de lhe ser proporcionada a possibilidade de se pronunciar sobre a revogação.
Temos defendido que não decorre da lei, concretamente do art.º 495.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, ou de qualquer princípio que essa audição deva ser sempre pessoal e presencial[4] e não vislumbramos razões para alterar tal entendimento.
No caso de pena (de prisão) suspensa (que é a situação prevista no citado n.º 2 do artigo 495.º), a razão da presença do técnico de reinserção social é óbvia: estando a efectuar o acompanhamento do condenado, apoiando e fiscalizando o cumprimento do plano de readaptação social, dos deveres ou das regras de conduta impostos, será ele quem melhor posicionado está para habilitar o tribunal a decidir, informando o juiz se a violação desses deveres e regras de conduta decorre de uma atitude de rebeldia do condenado reveladora de ausência de vontade e de empenhamento no processo de ressocialização, ou, pelo menos, de indiferença face a esse objectivo, ou se, apesar do incumprimento, não é de dar por frustradas aquelas finalidades.
Por isso, só tem justificação a audição pessoal e presencial do condenado nos casos em que existe esse apoio e fiscalização do cumprimento dos deveres e regras de conduta.
Como se decidiu no acórdão desta Relação, de 29.11.2011 (Des. Filomena Lima), disponível em www.dgsi.pt, “só nesses casos se justifica que o tribunal, antes de decidir sobre a revogação da suspensão da execução da pena, ouça o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão, já que aquele melhor poderá então explicar de viva voz à competente autoridade judicial se existiram motivos ou causas para o incumprimento havido, que ainda não sejam, porventura, conhecidas do tribunal”.
Numa situação de suspensão da execução tout court, sem qualquer condição específica, que sentido faria a presença do técnico de reinserção social, totalmente desconhecedor do caso, na audição do condenado a que o juiz procederia? Seguramente, nenhum! E que vantagem adviria da audição pessoal e presencial do condenado? Cremos que nenhuma!
O que se pode afirmar é que, sendo certo que, após a alteração ao artigo 495.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que substituiu a expressão “audição do condenado” por “ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” reforça a tese de que, nos casos de suspensão da execução com regime de prova, suspensão com imposição de deveres e suspensão com regras de conduta em que o respectivo cumprimento é apoiado e fiscalizado pelos serviços de reinserção social, é obrigatória a audição pessoal e presencial do condenado, já não é fundada a conclusão de que assim deve acontecer independentemente da modalidade da suspensão.
Ora, no caso da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade, por identidade de razão, deve a audição do condenado pelo juiz ser pessoal e presencial.
Com efeito, são os serviços de reinserção social que, a solicitação do tribunal, elaboram o plano de execução da prestação de trabalho a favor da comunidade e são os mesmos serviços que acompanham e fiscalizam essa execução, como, claramente, decorre do disposto nos artigos 496.º e 498.º do Código de Processo Penal.
Por isso que a Sra. Juiz devia ter designado data para ouvir pessoalmente o condenado sobre as razões do incumprimento da pena de prestação de trabalho e convocar - para estar presente na diligência e fornecer os esclarecimentos que lhe fossem solicitados - o(a) técnico(a) de reinserção social que vinha acompanhando a execução da pena.
Em vez disso, o tribunal notificou o arguido (ou melhor, tentou a sua notificação), mas para vir aos autos informar das razões do incumprimento da prestação de trabalho.
Foi, pois, cometida a nulidade insanável a que alude o Ex.mo PGA na questão prévia suscitada no seu parecer.

IIIDecisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto, embora com fundamento diverso do invocado pelo recorrente, declarando nulo e anulando o despacho recorrido e os actos dele dependentes, devendo o condenado B… ser convocado para ser, presencial e pessoalmente, ouvido pelo Sr. Juiz sobre as razões do incumprimento da prestação de trabalho, como se determina no artigo 495.º, n.º 2, ex vi do artigo 498.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, após o que será, então, proferida decisão do incidente.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 30-04-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
__________________
[1] Assim, se bem que a propósito da suspensão da execução da pena, os acórdãos (ambos disponíveis em www.dgsi.pt) da Relação de Lisboa, de 01.03.2005 (“a omissão da concessão, ao arguido, da faculdade, prevista no n.º 2 do art.º 495.º do CPP, de se pronunciar sobre o incumprimento das condições a que estava subordinada a suspensão da pena, a que fora condenado, configura a nulidade insanável estabelecida na alínea c) do art.º 119.º do CPP”) e da Relação de Évora, de 22.02.2005 (“A revogação da suspensão da execução da pena sem prévia audição do arguido constitui nulidade insanável”).
No entanto, não pode deixar de ser devidamente ponderada a posição expressa no acórdão da Relação de Lisboa, de 17.10.2007 (Relator: Des. Carlos Almeida), segundo a qual a violação do contraditório imposto, além do mais, pelo n.º 2 do art. 495.º do Cód. Proc. Penal não é um vício que afecte o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão e por isso possa ser corrigido através de recurso interposto desse despacho, mas sim motivo para arguir, perante o tribunal de 1.ª instância, a irregularidade do procedimento adoptado e, caso o despacho que vier a incidir sobre tal arguição não lhe seja favorável, interpor o competente recurso que, a proceder, invalidaria os actos posteriores a esse despacho, incluindo a revogação da suspensão.
[2] Na versão primitiva do Código Penal é que a condenação por crime doloso no período de suspensão determinava, ipso facto, a revogação da suspensão da execução da pena. Solução que era criticada por Figueiredo Dias (”Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 35), pois que “nesta hipótese, perde-se completamente a correlacionação entre o incumprimento e o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do delinquente, sendo, pois, a adopção pela lei de uma revogação automática profundamente criticável do ponto de vista político-criminal”.
[3] Isto, importa frisá-lo, apesar de ter, ainda, 104 horas de prestação de trabalho para cumprir.
[4] Assim, no acórdão de 14.07.2011, proferido no Processo n.º 1066/06.5 PGLRS.L1-5 (disponível em www.dgsi.pt), do mesmo relator.