Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15/20.2T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARVALHO
Descritores: AÇÃO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
MAIOR SEM ALTERAÇÕES PSICOPATOLÓGICAS
COGNITIVAS OU COMPORTAMENTAIS
NECESSIDADE DO APOIO DE TERCEIRA PESSOA
Nº do Documento: RP2020071415/20.2T8OVR.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O decretamento das medidas de acompanhamento de maior tem como requisito impossibilidade do maior de exercer os seus direitos ou cumprir os seus deveres, por razões de saúde, deficiência ou comportamento, sendo irrelevante que o mesmo não padeça de qualquer doença neuropsiquiátrica.
II - Se o maior necessita de apoio de terceira pessoa nas atividades da vida diária, isso significa que não consegue exercer plena e pessoalmente os seus direitos por motivos de saúde, tanto bastando para o decretamento das medidas de acompanhamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 15/20.2T8OVR.P1
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

O Ministério Público propôs a presente ação de acompanhamento de maior, em benefício de B…
Alegou a impossibilidade de o beneficiário cuidar de si próprio e gerir o seu património com total autonomia, em razão de cegueira, doença renal, obesidade e hiperuricemia, que obrigam a que o mesmo tenha que ser apoiado por terceiros nas tarefas inerentes à gestão da sua pessoa e dos seus bens.
Não se logrou proceder à citação pessoal do beneficiário.
Nomeou-se um patrono ao beneficiário, que foi citado e não apresentou contestação.
Procedeu-se à audição pessoal do requerido e, simultaneamente, realizou-se o exame pericial.
Foi também inquirida a pessoa indicada na petição inicial para exercer o cargo de acompanhante (C…, filho do requerido).
Concluídas essas diligências, nada mais foi requerido.
*
Foi em seguida proferida sentença que julgou a acção improcedente, não aplicando a B… qualquer medida de acompanhamento nem lhe nomeando um acompanhante.
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O Ministério Público interpôs recurso, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:
1.º O recurso vem interposto da douta sentença lavrada nos autos em 17/03/2020, que julgou improcedente a ação especial de acompanhamento de maior, não aplicando ao beneficiário B… qualquer medida de acompanhamento, nem lhe nomeou um acompanhante, ao arrepio do que havia sido requerido pelo Ministério Público.
2.º O recurso é limitado à apreciação da matéria de direito - pois o Ministério Público entende que a douta sentença recorrida não fez correta subsunção jurídica dos factos às normas aplicáveis, e interpretou erradamente o disposto nos art.ºs 138.º e 140.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
3.º A sentença recorrida, além dos outros descritos na “Matéria Provada”, deu como provados os seguintes factos – que reputamos essências para boa decisão da causa:
“1. O beneficiário B… é natural de … – Ovar, nasceu em 21.03.1931, é viúvo e tem seis filhos.
2. O beneficiário não outorgou testamento vital, procuração para cuidados de saúde ou outro ato de manifestação antecipada da vontade relevante para a presente ação.
3. O beneficiário residiu com o filho C… (nascido em 27.07.1970, solteiro), na Rua …, n.º …, em ….
4. O beneficiário esteve internado no Hospital de … e teve alta clínica, mas mantém-se aí porque a sua casa não tem condições de habitabilidade e porque se recusou ingressar no lar residencial no qual o Instituto da Segurança Social conseguiu arranjar vaga (em …).
5. O beneficiário frequentou o ensino até ao 2.º ano de escolaridade e desenvolveu a atividade profissional de cortador de madeira durante a idade adulta, até se reformar aos 65 anos.
6. O beneficiário não sabe ler nem escrever.
7. O beneficiário padece de infeção do trato urinário, litíase renal, retenção urinária, doença renal crónica, anemia, défice de ácido fólico, hipertensão arterial, dislipidémia, obesidade, hiperuricemia e amaurose (cegueira) bilateral desde há cerca de 10 anos.
(…)
10. O beneficiário consegue realizar com autonomia as atividades quotidianas instrumentais complexas (como tomar decisões sobre questões de saúde e sobre a gestão dos seus bens e rendimentos).
11. Por causa da cegueira de que padece, o beneficiário necessita do apoio de terceira pessoa na realização das atividades básicas da vida diária (como vestir-se, alimentar-se e cuidar da sua higiene) e na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar as refeições, cuidar da roupa e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património).
12. Até ter sido internado no Hospital de …, era o filho do beneficiário (C…) quem lhe prestava a assistência referida em 11.
13. É benéfico para o beneficiário manter acompanhamento clínico e ter apoio social, eventualmente em lar residencial”.
4.º Perante este quadro fáctico, é manifesto que o requerido B…, por causa da cegueira bilateral de que padece, necessita do apoio de terceira pessoa na realização das atividades básicas da vida diária (como vestir-se, alimentar-se e cuidar da sua higiene) e na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar as refeições, cuidar da roupa e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património) – facto 11.
5.º Para além disso, o requerido tem 89 anos, não sabe ler nem escrever e padece das várias e variadas doenças que ficaram provadas no ponto 7. da matéria de facto – e que determinaram o seu internamento no Hospital …, em …, em 24/09/2018.
6.º Não tem casa com condições de habitabilidade – tal como o filho C… – facto 4. – razão pela qual ficou “abandonado” naquele Hospital quando teve alta médica, à espera que lhe arranjassem um sítio para onde ir, com o necessário apoio e as condições mínimas de habitabilidade.
7.º A sentença recorrida baseia-se numa tese restritivista aflorada por Prof. Mafalda Miranda Barbosa e Paula Távora Vítor nos estudos nela citados – e que não acompanhamos por ser contrária à própria letra e “ratio” dos art.ºs 138.º e 140.º do Código Civil.
8.º De facto, a seguir-se esta tese restritiva, o citado art.º 138.º só teria aplicação às situações em que o beneficiário é portador de patologias de natureza mental, intelectual ou neurológica, deixando de fora todas as outras situações concretas de “saúde” e de deficiência “física”, mesmo que impossibilitem o cidadão maior de “exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos (isto é: plena, pessoal e conscientemente) – cumprir os seus deveres” - como determina a letra e o espírito daquele art.º 138.º – sempre norteado pelo princípio de “assegurar o bem estar e a recuperação do beneficiário” (art.º 140.º, n.º1, do CC.), e pelos princípios da necessidade e da autonomia da vontade do requerido, consagrados no art.º 12.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
9.º Além disso, a sentença recorrida desrespeita a própria vontade do requerido, que está ciente de que tem limitações decorrentes da cegueira e das outras doenças de que padece, e reconhece que precisa do apoio de terceira pessoa na realização das atividades básicas da vida diária (como vestir-se, alimentar-se e cuidar da sua higiene) e na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar as refeições, cuidar da roupa e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património) – cf.r facto 11.
10.º Também declarou que gostaria que lhe fosse nomeado acompanhante o seu filho C… e este também verbalizou que mantem disponibilidade para continuar a cuidar do requerido – embora lhe falte uma casa com condições de habitabilidade – cf.r Auto de Audição e Exame Pericial de 20/022020.
11.º E continua à espera que o Instituto da Segurança Social, ou outrem, lhe arranjem vaga num Lar residencial perto de …, concelho de ….
12.º Precisa, assim, da ajuda de terceiros – designadamente do filho C… – para o acompanhar e diligenciar no sentido da obtenção de vaga em lar residencial – público ou privado - que o possa acolher com urgência e dignidade.
13.º Contrariamente à tese recorrida, o art.º 138.ºdo Código Civil não limita a situação de “impossibilidade” às patologias de natureza mental, intelectual ou neurológica, mas também abrange as situações de “saúde” e de “deficiência” física – desde que impossibilitem o cidadão maior de “exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.
14.º Assim tem sido entendido pela maioria dos juristas que se têm pronunciado sobre esta temática, e que – contrariamente à tese restritiva da douta sentença recorrida - defendem que a Lei n.º49/2018 optou por um alargamento dos casos em que pode ter lugar o acompanhamento de maior, relativamente ao anterior regime taxativo da interdição e inabilitação a saber – vejam-se, neste sentido, os artigos publicados no ebook do CEJ sobre o “Novo Regime do Maior Acompanhado” da autoria do Professor António Pinto Monteiro; da Professora Mafalda Miranda Barbosa; do Desembargador Nuno Luís Lopes Ribeiro; e da Procuradora da República Margarida Paz – conforme transcrito nas Alegações.
15.º Estes ilustres juristas também são unânimes em considerar que os conceitos de “saúde” e “deficiência” a que alude o art.º 138.º do Código Civil, não se cingem à saúde ou deficiência mental ou intelectual, mas abrangem também a saúde e a deficiência física que afetem um cidadão maior e o impeçam de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos; ou o impeçam de cumprir os seus deveres, também de forma plena, pessoal e consciente.
16.º Esta interpretação também está conforme com a própria Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - que logo no seu artigo 1.º, n.º2, define que as pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradoras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros.
17.º A cegueira (amaurose) bilateral e outras patologias de que o requerido padece, impedem-no de exercer pessoalmente, e de forma plena, os seus direitos, e de cumprir suas obrigações, pelo que se mostra necessário e adequado o seu acompanhamento, nos termos do art.º 138.º do C. Civil.
18.º Assim decidiu o Tribunal da Relação do Porto no douto acórdão proferido em de 14/10/2019, no Processo n.º1299/18.1T8OVR.P1, da 5.ª Secção, de que foi relator o Desembargador Augusto de Carvalho - num caso com contornos muito semelhantes ao dos presentes autos, considerando que “ a Lei n.º 49/2018 optou por um alargamento dos casos em que pode haver lugar a acompanhamento de maior, relativamente ao anterior regime da interdição e inabilitação” – seguindo de perto a doutrina citada e defendida pelos Profs. António Pinto Monteiro e Mafalda Miranda Barbosa.
19.º E concluiu assim: “ No caso, perante a factualidade provada a requerida (…), em razão de sua cegueira, está impossibilitada de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e deveres. A cegueira total da requerida, desde os três meses de idade, associada à diabetes, hipertensão, dislipidmia, artrose em ambos os joelhos e obesidade determinam que a beneficiária/requerida necessite do apoio de terceira pessoa na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar as refeições, cuidar da roupa, e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património) (…) A requerida, por razões de deficiência visual, está, pois, impedida de exercer, sozinha e pessoalmente, muito dos seus direitos em condições de igualdade, designadamente, preparar as refeições, cuidar da roupa, e da casa, e desloca-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património (…).
Nestes termos, verificam-se todos os requisitos previstos nos art.ºs 138.º e 140.º do C.C., para que seja determinado o acompanhamento da requerida (…) por sua irmã (…), sendo necessárias e adequadas as seguintes medidas de acompanhamento: representação geral, com dispensa da constituição do conselho de família (artigo 145.º, n.º2, al. b), do C.C.) e administração total de bens (alínea c) daquele n.º 2).”
20.º A situação concreta e de cegueira do beneficiário B… é muito semelhante à retratada no citado aresto da Relação do Porto, e também se mostra necessário e adequado o seu acompanhamento pelo filho C…, e a aplicação das medidas de representação geral, com dispensa de constituição do conselho de família; e de administração total de bens.
21.º E dada a situação precária em que aquele se encontra – no Hospital …, em Ovar, à espera de vaga em Lar Residencial – deverá ainda o acompanhante diligenciar por vaga em Lar Residencial que o possa acolher.
22.º Ao julgar a ação improcedente nos termos em que o fez, a sentença recorrida violou, por errada interpretação, o disposto nos art.ºs 138.º,
140.º e 143.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do Código Civil.
Pelo exposto deverá ser julgado procedente o recurso, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que determine o acompanhamento do requerido B… pelo filho C…, com as seguintes medidas:
a) Representação geral, com dispensa da constituição do conselho de família (art.º 145.º, n.º2, al. b), e n.º 4, do C. Civil);
b) Administração total de bens do requerido (al. c) daquele n.º 2);
c) Diligenciar pela colocação do requerido em Lar Residencial para Idosos que o possa acolher, preferencialmente no concelho de … (al. e) daquele n.º 2).
Assim se fará JUSTIÇA!
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra alegações.
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Os factos
Na decisão recorrida encontram-se descritos os seguintes factos:
A) Factos provados
1. O beneficiário B… é natural de … – Ovar, nasceu em …03.1931, é viúvo e tem seis filhos.
2. O beneficiário não outorgou testamento vital, procuração para cuidados de saúde ou outro ato de manifestação antecipada da vontade relevante para a presente ação.
3. O beneficiário residiu com o filho C… (nascido em ...07.1970, solteiro), na Rua …, n.º …, em ….
4. O beneficiário esteve internado no Hospital de … e teve alta clínica, mas mantém-se aí porque a sua casa não tem condições de habitabilidade e porque se recusou ingressar no lar residencial no qual o Instituto da Segurança Social conseguiu arranjar vaga (em …).
5. O beneficiário frequentou o ensino até ao 2.º ano de escolaridade e desenvolveu a atividade profissional de cortador de madeira durante a idade adulta, até se reformar aos 65 anos.
6. O beneficiário não sabe ler nem escrever.
7. O beneficiário padece de infeção do trato urinário, litíase renal, retenção urinária, doença renal crónica, anemia, défice de ácido fólico, hipertensão arterial, dislipidémia, obesidade, hiperuricemia e amaurose (cegueira) bilateral desde há cerca de 10 anos.
8. O beneficiário apresenta-se consciente, vígil e capaz de focar e manter a atenção; está consciente e orientado no tempo (com ligeiras falhas) e no espaço; está orientado em relação a referências pessoais; não tem défices de memória; não tem défices de compreensão nem de expressão da linguagem; não apresenta alterações psicopatológicas do humor e da regulação afetiva; não apresenta alterações psicopatológicas do curso, forma, posse ou conteúdo do pensamento; nem apresenta alterações psicopatológicas da sensoperceção.
9. Não se apuraram alterações psicopatológicas, cognitivas ou comportamentais que permitam formular o diagnóstico de qualquer perturbação neuropsiquiátrica, de acordo com a classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde.
10. O beneficiário consegue realizar com autonomia as atividades quotidianas instrumentais complexas (como tomar decisões sobre questões de saúde e sobre a gestão dos seus bens e rendimentos).
11. Por causa da cegueira de que padece, o beneficiário necessita do apoio de terceira pessoa na realização das atividades básicas da vida diária (como vestir-se, alimentar-se e cuidar da sua higiene) e na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar as refeições, cuidar da roupa e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património).
12. Até ter sido internado no Hospital de …, era o filho do beneficiário (C…) quem lhe prestava a assistência referida em 11.
13. É benéfico para o beneficiário manter acompanhamento clínico e ter apoio social, eventualmente em lar residencial.
14. O beneficiário está capaz de dar o seu consentimento voluntário às respostas sociais que lhe forem propostas.
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B) Factos não provados
Não ficaram por provar quaisquer factos essenciais alegados na petição inicial.
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O direito
Questão a solucionar: se deve ser decretado o acompanhamento de B….
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B… foi internado no Hospital de … e teve alta clínica, mas mantém-se aí porque a sua casa não tem condições de habitabilidade, tendo-se recusado a ingressar num lar residencial em … (facto nº 4). De acordo com o documento junto a fls. 6, emitido pelo Hospital …, de …, a alta clínica data de 01-10-2018 - ou seja, há sensivelmente 19 meses. Isto sucede porque a cegueira que o afecta não permite a sua total autonomia, necessitando de apoio de terceira pessoa na realização das actividades básicas da vida diária e na realização das actividades quotidianas instrumentais simples (facto nº 11).
Na sentença recorrida foi indeferido o acompanhamento requerido pelo Ministério Público, por se ter entendido que “As limitações de que o beneficiário padece são apenas executivas, pois a cegueira de que padece determina que o mesmo necessite do apoio de terceira pessoa para fazer as tarefas da vida quotidiana (como alimentar-se, vestir-se, cuidar da sua higiene, preparar as refeições, cuidar da roupa e da casa, e deslocar-se a serviços públicos e privados, para tratar dos assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património) – cf. o facto provado n.º 11.
Essas limitações apenas afetam (I) o exercício (em sentido estrito) dos direitos do beneficiário, mas não a própria aquisição desses direitos, e (II) o cumprimento (em sentido estrito) dos seus deveres, mas não a própria assunção desses deveres – decorrendo tais limitações da simples circunstância de o beneficiário ser cego.
O beneficiário não padece de qualquer incapacidade cognitiva ou volitiva que careça de ser suprida através do acompanhamento, podendo com ajudas técnicas (bengala ou outros objetos similares) ou humanas (pessoa que a auxilie na realização das tarefas acima referidas) exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres.
Acresce que o beneficiário pode contratar uma pessoa para esse efeito (cf. o artigo 1154.º do Código Civil), caso não inexista alguém que voluntariamente a ajude, e recorrer aos serviços (mormente de apoio domiciliário) das instituições públicas e privadas de assistência social. E o beneficiário também pode encarregar terceiro de o representar para a prática de atos jurídicos, se assim o entender, através de contrato de mandato (cf. o artigo 1157.º do Código Civil).”
No essencial a sentença acompanhou o teor do Relatório pericial psiquiátrico-forense (fls. 20/21), no qual se lê que a necessidade de apoio nas actividades da vida diária não é assim determinada por doença neuropsiquiátrica, mas pela presença de défices sensoriais – cegueira bilateral. Acrescenta que embora seja claro que o impacto funcional do défice sensorial e das patologias médicas de que padece é significativo, determinando a necessidade de apoio de terceira pessoa nas actividades da vida diária, não se pode afirmar que exista uma limitação das capacidades cognitivas e volitivas do examinando, com gravidade suficiente para o limitar no exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos, e nos mesmos termos, no cumprimento dos seus deveres.
Dispõe o artigo 138º do C. Civil: “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
O estatuto jurídico do maior acompanhado afastou-se do anterior sistema das interdições e inabilitações. Neste o acento tónico era colocado, na interdição, na incapacidade de os interditos governarem “suas pessoas e bens” (art. 138º, nº 1, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 49/2018, de 14-08) e na incapacidade de os inabilitados “se mostrarem incapazes de reger convenientemente o seu património” (art. 152º, também na versão primitiva).
Na legislação vigente releva a (im)possibilidade de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres. O que pode ocorrer por razões de saúde, por deficiência ou pelo comportamento. Por isso, a referência no relatório pericial à ausência de doença neuropsiquiátrica é, no caso, irrelevante.
Se necessita de apoio de terceira pessoa nas actividades da vida diária, tal significa que não consegue exercer plena e pessoalmente os seus direitos. E essa necessidade funda-se em razões de saúde.
O nº 2 do artigo 140º exclui o acompanhamento sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam. O filho do requerido não dispõe de condições adequadas à prestação dos deveres de auxílio e de assistência (art. 1874º, nº 1).
Na sentença alude-se à possibilidade de contratar uma pessoa para prestar ao beneficiário serviços de apoio. Não se questiona esta possibilidade. Mas as limitações do requerido impedem-no de realizar essa contratação. E coloca-se ainda a questão de saber onde iria ser prestado esse serviço, uma vez que segundo consta dos autos não dispõe de casa que permita habitar com um mínimo de condições de dignidade. Além de que é duvidoso que a sua reforma fosse suficiente para pagar tais serviços.
Resta assim decretar o acompanhamento, para permitir que sejam tratados os assuntos relacionados com a administração dos seus bens, que seja acompanhado ao médico e que seja diligenciado por uma instituição que o possa acolher.
A não se decretar o acompanhamento, manter-se-á por tempo indeterminado a ocupação de um lugar num hospital público, por parte de uma pessoa a quem já foi dada alta há mais de um ano e meio, mas permanece no hospital por falta de autonomia decorrente da cegueira que o afecta.
No Estudo Legislativo – Anteprojeto de reforma – intitulado “Da situação jurídica do maior acompanhado”, escreveu o Prof. Menezes Cordeiro: “O acompanhamento é apresentado como um benefício e nunca como uma sujeição” (Revista de Direito Civil, ano III, nº 4, pág. 692, anotação nº 3 ao artigo 138º).
A cegueira que afecta o requerido mostra-se irreversível, necessitando este de apoio de terceira pessoa na realização de actividades básicas e na realização das atividades instrumentais simples, justificando-se por isso o acompanhamento.
Na decisão deve ser designado o acompanhante e devem ser definidas as medidas de acompanhamento (art. 900º, nº 1, do CPC). A mesma norma acrescenta que quando possível deve ser fixada a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
Como acompanhante designa-se seu filho, C….
O acompanhante deverá, no exercício da sua função, privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhante com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação, mantendo um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo no mínimo, com uma periodicidade mensal (art. 146º, nº 1 e 2, do C. Civil).
As medidas de acompanhamento devem limitar-se ao necessário à salvaguarda dos direitos do acompanhado (art. 145º, nº 1). Afiguram-se adequadas as medidas propostas pelo Ministério Público: representação geral com dispensa da constituição do conselho de família (art. 145º, nº 2, b) e nº 4); administração total dos bens do requerido.
Não existe notícia de que o beneficiário tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde (art. 900º, nº 3, do CPC).
Considera-se que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes a partir de 01 de Outubro de 2010 – data da alta clínica concedida pelo Hospital de ….
A comunicação à repartição do registo civil, prevista no artigo 902º do CPC, e a publicitação e a comunicação a que alude o nº 3 do mesmo artigo serão efetuadas, após o trânsito deste acórdão, pela 1ª instância.
As medidas de acompanhamento agora decididas serão revistas de três em três anos (art. 155º do C. Civil).
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Decisão
Pelos fundamentos expostos, na procedência da apelação:
1. Revoga-se a sentença recorrida, julgando-se a ação procedente e decretando o acompanhamento de B…, viúvo, nascido a .. de Março de 1931, filho de D… e de E…;
2. Designa-se como acompanhante do beneficiário/requerido seu filho C…, residente na Rua …, nº …- Anexos, …. - … …. O acompanhante deverá diligenciar pela colocação do requerido em Lar Residencial para idosos que o possa acolher, preferencialmente no concelho de …;
3. Atribui-se ao acompanhante agora designada os poderes de representação geral de bens do requerido (art. 145º, nº 2, b) e nº 4);
4. Atribui-se ao acompanhante a administração total dos bens do requerido (art. 145º, nº 2, c);
5. Dispensa-se a nomeação de Conselho de Família;
6. Consigna-se que que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes a partir de 01 de Outubro de 2010 – data da alta clínica concedida pelo Hospital de ….
7. Fixa-se em três anos o prazo de revisão da medida aplicada.
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Consigna-se que não existe notícia de que o beneficiário tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde.
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Após trânsito, a 1.ª instância comunicará e publicitará a presente decisão, conforme o acima exposto.
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Não são devidas custas (art. 4º, nº 1, al. l), do RCP).

Porto, 14.07.2020
José Carvalho
Rodrigues Pires
Márcia Portela