Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1138/19.6PWPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE PARA RECORRER
REGIME ESPECIAL PARA OS JOVENS DELINQUENTES
INDEMNIZAÇÃO
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RP202402071138/19.6PWPRT.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – O assistente não tem legitimidade para recorrer no que se refere às questões da aplicação do regime penal especial para jovens e da determinação da medida concreta da pena aplicada
II – São devidos juros de mora desde a data da sentença que fixa o montante indemnizatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1138/19.6GPWPRT.P1


Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I – AA, assistente e demandante, veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que condenou BB, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, 145.º, n.ºs 1, c), e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, h), todos do Código Penal, e também com referência ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro, na pena sete meses de prisão, suspensa na sua execução por doze meses (com regime de prova), e também no pagamento de dez mil euros, a título de indemnização de danos não patrimoniais, montante acrescido de juros de mora desde a notificação da sentença até integral pagamento.


São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:

«1. A APLICAÇÃO DO REGIME ESPECIAL PARA JOVENS
1. A sentença proferida elenca três fundamentos para a aplicação, ao arguido, do Regime Especial para Jovens:
a. À data dos factos o arguido tinha 16 anos de idade, actualmente com 19, e não tem antecedentes criminais;
b. O arguido trabalha desde cedo, vive com os avós, de quem é cuidador e confessou parcialmente os factos com alguma relevância para a descoberta da verdade;
c. É tido como pessoa pacata, educado e trabalhador, sendo bem considerado no seu meio social.
2. Quanto à atividade profissional desenvolvida pelo arguido, manifesto que, mesmo conferindo a mínima credibilidade às declarações do arguido, a mesma não começou cedo: começou aos 18 anos.
3. Para alguém com o 8º ano de escolaridade, poder-se-á mesmo dizer que tal atividade profissional começou tarde.
4. Por outro lado, quanto à confissão parcial dos factos, tal confissão consubstanciou a admissão do irrefutável, a admissão de factos plenamente espelhados nos autos.
5. Nessa medida, essa “confissão” em pouco contribuiu para a descoberta da verdade material.
6. O arguido não mostrou, sequer, arrependimento.
7. Mais ainda, para a inaplicabilidade do REJ concorrem outros factores:
a. O arguido agiu com dolo direto, de forma livre e esclarecida;
b. O assistente ficou, de forma permanente, afectado na sua imagem, atenta a zona atingida (a face), a sua dimensão, extensão e configuração;
c. O assistente, como consequência direta e necessária da conduta do arguido, sentiu medo, apreensão, angústia e profundas dores, pensando que iria morrer;
d. O próprio tribunal recorrido entendeu que as ofensas foram produzidas em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente.
8. Assim, em função do crime cometido e da forma especialmente censurável através da qual o mesmo foi cometido, em função do tempo e modo em que foi cometido, impõe-se que o Regime Especial para Jovens não seja aplicado no âmbito dos presentes autos, revogando-se nessa medida a sentença proferida.
9. Quando à medida concreta da pena a aplicar:
a. A culpa do arguido é intensa, tendo agido de forma premeditada e com dolo direto, utilizando um canivete, arma corto-perfurante apta a causar a morte, agredindo o assistente na cara e no pescoço, provocando sequelas e cicatrizes que permanentemente o marcarão;
b. A conduta do arguido provocou no assistente fortes dores, angústia e pânico, tendo o assistente achado que ia morrer, tendo o assistente necessitado de assistência hospitalar e assistência médica urgente do INEM;
c. O arguido não confessou, de forma integral e sem reservas os factos, não tendo existido qualquer tentativa de reparar o mal cometido ao assistente, nem qualquer sinal de arrependimento;
d. A conduta do arguido assumiu contornos de especial censurabilidade.
10. A decisão recorrida violou assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 4º do DL nº 401/82, bem como, por consequência, o disposto nos artigos 9º, 40º e 71º, todos do Código Penal, impondo-se a sua revogação e a substituição por outra que entenda não ser de aplicar, in casu, o Regime Especial para Jovens e que, em consequência, condene o arguido em pena de prisão efetiva não inferior a 24 meses, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, ex vi art. 132º, nº 2, alínea h), também do Código Penal, normas igualmente violadas por erro de aplicação pela decisão recorrida.
2. SEM PRESCINDIR, DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
11. A culpa é o limite da medida da pena.
12. E, no caso, a culpa do arguido é elevada: o arguido agiu de forma premeditada, com dolo direto; utilizou um canivete para agredir o assistente, agredindo-o sempre em áreas vitais para a sobrevivência deste, o pescoço e a cara.
13. O arguido provocou ao assistente uma desfiguração de natureza permanente.
14. As agressões foram manifestamente violentas e graves, exigindo assistência médica de emergência, através do INEM, além de assistência hospitalar.
15. O arguido nada fez para providenciar qualquer tipo de auxílio à vítima, não demonstrou qualquer tipo de arrependimento, nem tentou reparar o mal cometido ao assistente.
16. A decisão recorrida violou assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts.40º, nº 1, 71º, nº 1e 2alíneas a), b), c) e e), todos do Código Penal, devendo ser revogada e substituída por outra que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 143º, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, ex vi art.132º, nº 2, alínea h), também do Código Penal, condene o arguido em pena de prisão efetiva não inferior a 24 meses.
3. SEM PRESCINDIR, QUANTO AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
3.1 A violação do disposto no artigo 805º, nº 2, alínea b) do Código Civil
17. A indemnização por perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil, considerando-se o devedor constituído em mora no momento da prática do facto ilícito, ou seja, 12 de Dezembro de 2019 – cfr. art. 805º, nº 2, alínea b) do Código Civil, ex vi art. 129º do CP e facto provado nº 1.
18. A decisão recorrida violou por erro de interpretação o disposto no artigo 805º, nº 2, al. b) do CPC, devendo ser revogada e substituída por outra que, independentemente do valor que venha a ser fixado a título de indemnização, condene o lesante nos juros moratórios sobre tal quantia desde a data do facto ilícito até integral e efectivo pagamento.
3.2 A violação do critério de equidade
19. Como resulta dos factos provados, em particular os factos nº 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 20, 21, 22, 23, e 24, a agressão e as suas consequências foram graves e violentas.
20. Olhados os factos provados referidos, tal como eles se apresentam, é manifesto que a decisão recorrida ignorou completamente a dimensão do dano, bem como ignorou a dimensão da culpa do arguido.
21. Olhados os factos provados, bem como os documentos juntos aos autos, nomeadamente as várias fotografias exemplificativas das sequelas sofridas pelo assistente, notória se torna que o assistente ficou DESFIGURADO.
22. Essa desfiguração é PERMANENTE.
23. Essa natureza potencia o dano: os efeitos da conduta do arguido não são se esgotam em si próprios, mas perduram no tempo.
24. Quanto ao grau de culpa do arguido, o mesmo foi ignorado pelo tribunal recorrido: o arguido agiu com dolo directo, de forma premeditada, com um instrumento corto-perfurante apto a provocar a morte, tendo atingido o assistente em áreas cujos ferimentos (pescoço e face) são aptos a provocar a morte, tendo-se ausentado do local sem providenciar por auxílio e apenas porque o assistente clamou por auxílio e surgiram transeuntes no ponto da contenda, tendo a sua conduta resulta na desfiguração do assistente.
25. O arguido nada fez para reparar os danos causados nem demonstrou qualquer tipo de arrependimento.
26. A decisão recorrida violou assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 70º, nº 1, 483º, nº 1 e 496, nº 1, todos do Código Civil, ex vi art. 129º do CP, bem como o disposto nos arts. 71º e 377º, ambos do CPP, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue o pedido de indemnização procedente por provado, fixando a indemnização a título de danos não patrimoniais no valor peticionado, ou seja, nunca inferior a 40.000,00€.»

O arguido e demandado apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto da primeira instãncia.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II –
A respeito das questões, suscitadas pelo assistente na motivação do recurso, da não aplicação do regime penal especial para jovens (constante do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro), questão que se reflete na pena em que o arguido deva ser condenado, e da determinação dessa pena em função de outros fatores, há que considerar o seguinte.
Estatui o acórdão de fixação de jurisprudência denominado “assemto” 8/99 do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de outubro de 1997 (publicado no Diário da República – Iª série de 30 de dezembro de 1999): «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
De acordo com o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2020 (publicado no Diário da República-Iª série de 26 de março de 2020), verifica-se esse interesse quando o assistente pretenda, como o recurso, condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização a que o arguido tenha sido também condenado.
Ora, no caso em apreço, o assistente não demonstra qualquer concreto e próprio interesse na não aplicação ao arguido do regime penal especial para jovens e na determinação da medida concreta da pena em que este deva ser condenado e não pretende que a suspensão da execução da pena de prisão em que este seja condenado ao pagamento da indemnização em que este foi também condenado. Invoca considerações gerais relativas às finalidades das penas, o que, de acordo com os referidos acórdãos de fixação de jurisprudência (e nada se alega ou suscita que leve a contrariar tal jurisprudência) é próprio da intervenção do Ministério Público como titular da ação penal, mas não da intervenção isolada do assistente. E isso verifica-se mesmo que o assistente seja ofendido quanto ao crime em questão. Mesmo que assim seja (como é neste caso), a escolha e determinação da pena já não será, em regra, relativa a interesses privados do ofendido, mas relativa às finalidades das penas, de alcance geral e público, e não de alcance privado.
Assim, por falta de legitimidade do assistente e recorrente, deverá, nesta parte, ser o recurso rejeitado, nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal.

III –
As questões que importa decidir são, assim, as seguintes:
- saber se o montante da indemnização a cujo pagamento foi o arguido condenado (dez mil euros) deverá ser, face aos critérios legais, elevado para quarenta mil euros (o montante peticionado pelo demandante, assistente e recorrente).
- saber se ao montante dessa indemnização devem acrescer juros de mora vencidos desde a data da prática do crime por que o arguido foi condenado

IV – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO:
1) Instruída e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1 – No dia 12 de Dezembro de 2019, cerca das 23.00 horas, o arguido dirigiu-se a casa do ofendido, sita na Rua ..., ..., Porto, conforme tinha acordado com o mesmo.
2- Já no interior da mesma, ocorreu um desentendimento verbal entre ambos não concretamente apurado mas que se sabe estar relacionado com a actividade de compra e venda de estupefacientes.
3- Na sequência do referido desentendimento verbal, em circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido, usando uma navalha que tinha na sua posse, agrediu o assistente com um golpe superficial na zona do pescoço.
4- Em virtude da agressão, o ofendido, perdeu momentaneamente o equilíbrio, caindo sobre o sofá.
5- Seguidamente o arguido e o assistente, saíram a correr da residência, atrás um do outro, para o exterior do prédio.
6– Nessa altura o ofendido, já na via pública, pediu auxílio, mas ninguém se aproximou.
7- Já na via pública, em circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido e o ofendido envolveram-se em confrontos físicos mútuos, nomeadamente no solo, na sequência do que o arguido, usando a referida navalha que tinha na mão desferiu vários golpes com a mesma no corpo do ofendido, atingindo-o no ombro esquerdo, na zona lombar e no lado esquerdo da cara, desde a zona ocular até à zona bocal.
8 – No decurso da contenda, o ofendido conseguiu apanhar com a sua mão, na zona da lâmina, a navalha que o arguido BB envergava, o que conjugado com a chegada de terceiros ao local, fez cessar as agressões e motivou a fuga do arguido do local.
9- Na sequência do supra descrito, o ofendido foi assistido pelo INEM no local, sendo depois transportado para o Hospital Geral de Santo António, no Porto, onde deu entrada no Serviço de urgência, às 00h26, com os seguintes ferimentos:
- ferida cortocontusa com 10cm e perda de alguma substância na região malar esquerda;
- ferida superficial com 2 cm na região cervical direita;
- ferida superficial na palma da mão direita com 5 cm;
- ferida superficial no ombro esquerdo com 3 cm; e
- ferida superficial lombar esquerda 2 cm;
10- No dia 16 de Dezembro de 2019, o ofendido foi observado no INML – Porto, tendo as seguintes lesões relacionáveis com os factos descritos:
- Crânio: escoriação com 1 por 0,3 cm na região frontal à esquerda, recoberta de crosta hemática;
- Face: equimose infraorbitária à esquerda; na data apresentava pensos recobrindo a região malar esquerda, ligeiramente repassados; apresenta lesão linear com 6 cm, iniciando-se junto à comissura labial esquerda e prolongando-se superior e posteriormente em direcção aos pensos atrás descritos, parcialmente suturada, junto à qual se observa lesão linear com 1 cm, suturada;
- Pescoço: na data apresentava penso na face lateral direita do pescoço, com dificuldade na rotação da cabeça para a esquerda;
- Tórax: escoriação com 2 por 0,5 cm no hemitórax esquerdo;
- abdómen: conjunto de escoriações lineares no flanco e região lombar esquerdos, com orientações diversas, medindo entre 1 e 3 cm, sendo que abaixo desse conjunto, na região lombar esquerda, apresentava penso;
- Membro superior direito: apresentava penso recobrindo a polpa do 2° dedo;
- Membro superior esquerdo: penso recobrindo a face lateral do ombro; escoriação linear de orientação praticamente vertical, localizada na face anterior do terço inferior do antebraço; apresenta a mão e punho envoltos em ligaduras e pensos (com dedos livres);
- Membro inferior esquerdo: três escoriações infracentimétricas localizadas na face interna do terço superior da coxa;
11 - Novamente sujeito a exame de avaliação de dano corporal, no INML do Porto, no dia 11 de Agosto de 2020, o ofendido apresentava as seguintes sequelas relacionadas com a conduta do arguido:
- Face: cicatriz linear, ligeiramente hipertrófica na hemiface esquerda, medindo sensivelmente 7 cm, iniciando junto à comissura labial esquerda e prolongando-se para a região malar, visível a 3 m; cicatriz linear com 1 cm, junta à porção inicial da primeira cicatriz descrita, com características semelhantes; as cicatrizes provocam muito ligeiro repuxamento de tecidos em alguns gestos de mímica facial;
- Pescoço: cicatriz linear muito ténue (visível apenas a poucos centímetros), rosada, com limites indefinidos, não inferior a 1 cm, localizada na face lateral direita do pescoço;
- Abdómen: duas cicatrizes lineares na região lombar, medindo cerca de 2 cm cada, pouco notórias a 3 m;
- Membro superior direito: cicatriz fibrótica na polpa do 2° dedo, linear, visível apenas a menos de 50 cm, medindo 1 cm;
- Membro superior esquerdo: cicatriz linear com vestígios de sutura, com 3,5 cm, na face palmar, sobreposta a uma das pregas palmares, de difícil visualização; cicatriz nacarada, em forma de "V", localizada na face lateral do ombro, medindo cada elemento do "V" sensivelmente 2 cm, nítida a 50 cm mas pouco visível a 3 m;
- Membro inferior esquerdo: três escoriações infracentimétricas localizadas na face interna do terço superior da coxa.
12 - Essas lesões foram causa directa e necessária de 15 (quinze) dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral durante 8 (oito) dias.
13 – Em virtude da conduta do arguido o assistente sofreu sequelas permanentes, sendo que a nível da face que se caracterizaram por cicatriz linear, ligeiramente hipertrófica na hemiface esquerda, medindo sensivelmente 7 cm, iniciando junto à comissura labial esquerda e prolongando-se para a região malar e visível a 3 metros; cicatriz linear com 1 cm, junta à porção inicial da primeira cicatriz descrita, com características semelhantes; as cicatrizes provocam muito ligeiro repuxamento de tecidos em alguns gestos de mímica facial.
De acordo com o exame pericial efectuado em 11/08/20, as consequências permanentes descritas no exame, que sob o ponto de vista médico-legal se traduzem nas cicatrizes descritas no exame e sintomatologia associada (alterações da sensibilidade), não causam incapacidade significativa nem desfiguram gravemente o examinado.
14- De acordo com o esclarecimento pericial de 04/01/22, o conceito de “desfiguração grave” reveste-se de subjetividade, podendo não ser considerado do mesmo modo por diferentes peritos, devendo ser avaliado caso a caso.
Refere ainda que o facto duma cicatriz se localizar na face do examinado, com as características descritas no relatório pericial referido no item 11), e que aqui se dão por reproduzidas, não implica necessariamente que a mesma seja causa de desfiguração grave.
E, além de indicar exemplos de situações que o perito consideraria “desfiguração grave”, refere que “salienta-se ainda que segundo o próprio examinado, não estaria prevista nenhuma intervenção por cirurgia plástica, situação que se coaduna com sequelas de pouca gravidade”.
E, termina o referido esclarecimento pericial que “salvo melhor opinião, o Perito considera que a desfiguração provocada pelas cicatrizes, mesmo como localização na face, não será de considerar como “grave”.
15 – A cicatriz referida em 11), atenta a zona atingida (face), a sua dimensão, extensão e configuração, afecta de modo permanente a imagem do ofendido;
16- Ao actuar do modo descrito agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o intuito, concretizado, de molestar, como molestou, fisicamente o ofendido.
17- O arguido com a conduta descrita, especialmente com os golpes desferidos com a navalha contra o ofendido, actuou visando causar-lhe os ferimentos e dores que causou, o que representou e quis.
18. O arguido actuou do modo descrito, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
19- Em virtude dos factos referidos em 7), o arguido sofreu ferimentos na face e na mão, não concretamente apurados, que não careceram de tratamento médico ou hospitalar;
20. Em virtude da conduta do arguido, o assistente, que se viu surpreendido pela agressão com a navalha e sem se conseguir defender, sentiu medo, apreensão e angústia;
21. Com o primeiro golpe desferido pelo arguido, na zona do pescoço do assistente, este pensou que ia morrer e ficou em pânico;
22. Em virtude da agressão do arguido o assistente sentiu dores muito fortes, que se prolongaram durante o tempo que foi assistido no hospital;
23. As consequências da agressão do arguido e o pânico que na altura sentiu, vão acompanhar o assistente para o resto da vida;
24. As cicatrizes que marcam o corpo do assistente, sobretudo na face, em virtude da referida agressão, fazem com que a memória da agressão permaneça e se mantenha o medo, ansiedade e tristeza que sofreu com a mesma;
25. Em virtude da conduta do arguido, o Centro Hospitalar Universitário do Porto, EPE, prestou em 13/12/2019, tratamentos médicos ao assistente AA, que importaram na quantia de €117,07, que ainda não foi paga.
26. O arguido e o ofendido eram à data dos factos, ambos consumidores de haxixe.
27. O assistente:
a) tem 30 anos e é solteiro;
b) reside sozinho, em casa pertencente a familiar e tem suporte económico de familiares;
28. O arguido:
a) é solteiro e tem 19 anos de idade;
b) na data dos factos tinha 16 anos de idade e era estudante;
c) reside com os avós, sendo o avô deficiente motor (não tem as pernas) e a avó também padece de problemas de saúde metal, sendo o arguido quem cuida dos mesmos, nomeadamente a nível de higiene e apoio nos cuidados médicos;
d) vive com os avós desde que foi abandonado pelos pais, ainda em criança;
e) os avós encontram-se reformados, recebendo reformas no valor global conjunto de €500,00 mensais;
f) residem em casa camarária, pagando de renda €90,00 mensais;
g) trabalha com o tio na construção civil, na empresa “A...”, sita na ... e aufere cerca de €600,00 líquidos;
h) antes disso, trabalhou no Hotel ..., no Porto, durante cerca de um ano e saiu há 2-3 meses;
i) a namorada do arguido trabalha há 3 anos, no restaurante “B...”, em Matosinhos, encontrando-se grávida do arguido, a quem o mesmo também presta assistência;
j) quando está com a namorada dividem as despesas;
l) tem como habilitações literárias o 8.º ano e o curso de cozinha;
m) é tido como pessoa educada, pacata, trabalhadora e educada, respeitada no seu meio social;
n) confessou parcialmente os factos, com alguma relevância para a descoberta dos mesmos;
o) Não tem antecedentes criminais.
(…)»

V –
Vem o assistente, demandante e recorrente alegar que o montante da indemnização a cujo pagamento foi o arguido condenado (dez mil euros) deverá ser, face aos critérios legais, elevado para quarenta mil euros (o montante que peticionou). Invoca o grau de gravidade e violência das agressões que sofreu, o grau de culpa do arguido e, em especial, a circunstância de dessas agressões ter resultado uma desfiguração permanente.
Vejamos.
Nos termos do artigo 496º, nº 1, do Código Civil, na fixação da indemnização decorrente de responsabilidade civil deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito. E, de acordo com o nº 3 do mesmo artigo, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo diploma (ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso)
Afirma Carlos da Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pgs. 85 e 86):
«Estes danos não patrimoniais - tradicionalmente designados por danos morais – resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação). A sua verificação tem lugar quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de direitos de personalidade. Não sendo estes prejuízos avaliáveis em dinheiro, a atribuição de uma soma pecuniária correspondente legitima-se, não pela ideia de indemnização ou reconstituição, mas pela de compensação.
Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados, mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço da dor” ou um “preço do sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.»
À luz dos referidos preceitos legais e destas considerações, afigura-se-nos ajustado o montante da indemnização por danos não patrimoniais em que o arguido foi condenado.
Na verdade, há que considerar a multiplicidade de ferimentos sofridos pelo assistente e demandante, a angústia por ele vivida no momento da agressão, o período de doença que o atingiu (quinze dias, sendo oito com incapacidade para o trabalho) e, sobretudo, as sequelas permanentes resultantes dessa agressão, que se traduzem numa desfiguração permanente (cicatrizes) que não deve, porém, ser qualificada como grave.
Mas há que considerar, por outro lado, a precária situação económica do arguido.
O montante fixado não deixa de ser significativo, não é meramente simbólico, representa alguma forma de compensação para o demandante e assistente e também um sacrifício efetivo e proporcional para o arguido e demandado.
A sentença recorrida não é merecedora de reparo também quanto a este aspeto.
Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso interposto pelo demandante e assistente quanto a este aspeto.

VI-
Vem o assistente, demandante e recorrente alegar que ao montante da indemnização a cujo pagamento foi o arguido condenado devem acrescer juros de mora vencidos desde a data da prática do crime por este foi também condenado (e não desde a data da notificação da sentença recorrida, como desta consta). Invoca o disposto no artigo 805.º, n.º 2, b), do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 129.º do Código Penal.
Vejamos.
Estatui o artigo 805.º, n.º 2, b), do Código Civil que quando a obrigação provier da prática de facto ilícito, há mora do devedor desde a prática desse facto.
No entanto, nos termos do n.º 3, desse mesmo artigo, quando se trate de um crédito ilíquido (como sucede no caso em apreço) haverá mora apenas quando este se torne líquido, o que se verificará, em regra, com a citação.
Mas há que considerar também o que decorre do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002 (publicado no Diário da República-Iª série, de 27 de junho de 2002): quando o montante da indemnização é atualizado na sentença, os juros de mora serão devidos desde a data da decisão atualizadora, e não a partir da citação.
Ora, no caso em apreço, o valor da indemnização foi fixado (e, nessa medida, atualizado) na sentença recorrida. Os juros de mora relativos ao pagamento dessa indemnização serão devidos desde a data dessa sentença.
Assim, a sentença recorrida não merece reparo quanto a este aspeto.
Deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

O assistente, demandante e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

VII –
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em rejeitar, por ilegitimidade do recorrente, o recurso interposto pelo assistente no que se refere às questões da aplicação do regime penal especial para jovens e da determinação da pena em que o arguido deva ser condenado e em negar provimento a esse recurso no que se referente ao pedido de indemnização civil por aquele formulado.

Condenam o assistente e recorrente em três (3) U.C. s de taxa de justiça

Notifique


Porto, 7 de fevereiro de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)

Pedro Vaz Pato
Raúl Esteves – vencido, nos termos da declaração que segue:
[VOTO DE VENCIDO - Voto vencido pois em meu entendimento o assistente teria legitimidade para interpor recurso quanto à espécie e medida da pena aplicada nos autos, sendo por demais evidente que, no caso em apreço, revela interesse concreto e próprio na pena a aplicar ao arguido.
Tal como sustenta Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., págs.224 e 1055, Lisboa, 2011) “A constituição como assistente e a dedução de uma acusação pelo assistente ou acompanhamento da acusação pública pelo assistente são mostras claras do seu interesse pessoal direto no destino da causa penal, que o habilitam desde então a fazer valer o seu ponto de vista sobre esse mesmo destino. (….) Assim, o assistente tem o direito constitucional de interpor recurso ….da condenação em pena cuja espécie ou medida considera insuficientes, sempre que o assistente deduziu acusação ou acompanhou a acusação pública, independentemente de o Ministério Público ter recorrido ou não.”.
Neste sentido, no seio de jurisprudência controversa, aqui se citam alguns acórdãos (entre muitos outros, num e noutro sentido), Ac da RC de 20/12/2011, processo 305/08.2GBPBL.C1, in www.dgsi.pt “O assistente tem legitimidade para recorrer, mesmo desacompanhado do Mº Pº, em relação aos crimes em que é ofendido, pedindo a agravação da pena aplicada, por ainda assim estar a colaborar na administração da justiça submetendo a decisão a exame por um tribunal superior, por a mesma não realizar o direito, na sua perspetiva.”; também o Ac da RL de 5/12/2013, processo 456/10.3JDLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt “I - O assistente, sendo imediata ou mediatamente atingido com o crime, adquire o estatuto processual em função de um interesse próprio, individual ou colectivo. II - Porém, a sua intervenção no processo penal, sendo embora legitimada pela ofensa ao interesse que pretende afirmar, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, cabendo-lhe, na defesa do interesse próprio, o direito de submeter à apreciação do tribunal a sua perspetiva sobre a justeza da decisão, substituindo-se ao Ministério Público, se entender que não tomou a posição processual mais adequada, ou complementando a sua atividade, sempre no respeito pelo princípio e pela natureza do carácter público do processo penal. III - A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não condiciona as possibilidades de recurso do assistente.”.
Com efeito, se o estatuto do assistente permite-lhe intervir processualmente, de forma substancial e intensa, deduzindo acusação independente da acusação do MP; oferecendo prova, pronunciando-se sobre a decretação da excecional complexidade do processo; requerer a conexão e separação de processos; pronunciar-se sobre as pretensões probatórias, requerendo a abertura de instrução; pode requerer a intervenção do Tribunal de júri; pode deduzir a incompetência do tribunal; direito a intervir e alegar em audiência de julgamento. E se essas amplas possibilidades que o legislador lhe confere sob o manto do interesse do assistente que permitiu a sua admissão, não podem ser adiante anuladas pela negação do direito ao recurso. Com efeito, as expressões legais que somente admitem o recurso “das decisões que o afetem” cfr.art.69 nº2 c) do CPP (aqui reporta-se a toda a miríade de despachos decisórios, só fazendo sentido atribuir o direito ao recurso, quando estiverem em causa os interesses do assistente, e não decisões que somente afetem outros ofendidos); e “decisões contra ele proferida” cfr.art.401º nº1 alínea b) do CPP respeitam ao objeto de processo que seja atinente às suas pretensões, por contraponto, à parte da sentença que não respeita a este ofendido, como será o caso em que a sentença aprecia delitos cujo bem jurídico nada tem quer com os interesses e bens jurídicos do ofendido, ou quando se reporta a arguidos cuja atuação nada têm que ver com a lesão do ofendido. Os processos frequentemente são depositários de vários interesses, consoante os delitos cometidos, crimes de perigo abstrato ou que respeitam a bens jurídicos, totalmente distintos dos bens jurídicos próprios do assistente (como o delito de falso testemunho); ou delitos que lesaram outros ofendidos que não o assistente. É esse o sentido da norma que define a legitimidade para recorrer cfr.art.401º n1 alínea b) do CPP. E com isto não se contradiz o Assento do STJ 8/99 de 30/10/97 –AR 1ª séria – de 10/8/99, que firmou jurisprudência no sentido de que « o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir ». Aí se sustentando que “Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o Tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar”.
A questão sofre profunda distorção, e cava repetidas divergências na jurisprudência, sobre quem quer descobrir o sentido da expressão “decisão contra ele proferida”, num objeto de processo onde apenas existe um crime que ofendeu o assistente, mas como vimos não é esse o foco da alínea b) do nº1 do art.401º do CPP.
Não se pode negar a possibilidade de recurso e de ver apreciada pelo Tribunal Superior um interesse, sobretudo de um delito que foi cometido sobre a pessoa da assistente.
A conformação do assistente relativamente à pena determinada para o seu agressor, haverá de ser obtida mediante a apreciação e discussão dos seus pontos de vista e nunca pela negação do seu acesso ao recurso, pois somente assim a justiça será compreendida e constituirá um fator de pacificação social.
Pelo exposto, entendo que o recurso do assistente haveria de ser apreciado na sua totalidade.]
Paula Guerreiro