Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1132/13.0TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE UMA SOCIEDADE
Nº do Documento: RP201510151132/13.0TYVNG.P1
Data do Acordão: 10/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não pode ser pedida a declaração de insolvência de uma sociedade cuja liquidação já tenha sido encerrada e que, portanto, já se encontre extinta.
II - Questão diversa é aquela que se coloca nos casos em que, tendo-se iniciado o processo de insolvência, quando a sociedade ainda não se encontrava dissolvida ou mesmo quando já havia sido dissolvida e se encontrava em liquidação, vem a encerrar-se a liquidação no decurso do processo em fase anterior à declaração da insolvência.
III - Baseando-se a dissolução/liquidação de uma sociedade comercial em factos errados, no caso a falta de activo e de passivo, deve considerar-se que não têm efeito quer o encerramento da mesma dissolução/liquidação quer os actos de registo a este subsequentes, devendo sim prosseguir os seus ulteriores termos o processo onde posteriormente foi decretada a sua insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº1132/13.0TYVNG.P1
Tribunal recorrido: Comarca do Porto
V.N. de Gaia – Inst. Central – 2ª Secção de Comércio – J2
Relator: Carlos Portela (651)
Adjuntos: Des. Pedro Lima Costa
Des. Filipe Caroço

Acordam na 3ª Secção (2ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório:
Nos presentes autos que é requerente B e requerida a sociedade C…, Lda. e proferida que foi a sentença que nos termos do art.º30º, nº5 do CIRE decretou a insolvência da requerida, foi a dado passo, emitido o despacho cujo teor aqui passamos a reproduzir integralmente:
“B…, veio requerer em 30.09.2013, a declaração de insolvência da sociedade C…, Lda., com sede na Rua …, .., …, V. N. de Gaia.
Em 11.11.2014 foi proferida sentença a decretar a insolvência da sociedade, já transitada em julgado.
Em 25.07.1014, pela Ap 25, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação proferida em procedimento administrativo oficioso de dissolução/liquidação iniciado por determinação do IRN, por não ter sido apurada a existência de qualquer activo ou passivo.
A fls. 434 a 436, veio o ex-gerente da requerida D… informar que a sociedade foi dissolvida administrativamente em 07.07.2014, pelo que, não pode ser registada posteriormente a sua insolvência, requerendo a extinção da instância.
A fls. 486 e ss, o requerente veio opôr-se ao pedido de extinção da instância formulado pela requerida, pelo motivos ali invocados.
A questão de que cumpre conhecer e decidir é a seguinte:
Se, apesar de no decurso do processo de insolvência e decretada esta, ter sido inscrita no registo a dissolução e liquidação da sociedade e cancelada a respectiva matricula, deve este processo de insolvência prosseguir seus termos ou deve ser declarada extinta a instância.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artº 141º, n.º 1 do CSC, a dissolução da sociedade pode ocorrer por deliberação por deliberação dos sócios (al. b)) ou por declaração de insolvência da sociedade (al. e)).
“A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação”, cfr. artº 146º, n.º 1 do CSC, sendo que, “A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica”, cfr. n.º 2 deste preceito.
Dispõe o artº 160º, n.º 2 CSC que “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios, e sem prejuízo do disposto nos artºs. 162º a 164º do Código das Sociedades Comerciais, pelo registo do encerramento da liquidação”.
O artº 11º n.º 1 do CPC dispõe que “A personalidade judiciaria consiste na susceptibilidade de ser parte” acrescentando o n.º 2 que “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciaria”.
Por último, o artº 12º do CPC afirma que têm ainda personalidade judiciaria “As sociedades comerciais, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do artº 5º do Código das Sociedades Comerciais” (al. d)).
Como resulta dos autos, a sociedade cuja insolvência foi requerida em 30.09.2013 e, no decurso deste processo, foi instaurado procedimento administrativo oficioso de dissolução/liquidação e, não tendo sido apurado a existência de qualquer activo ou passivo a liquidar, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação pela An.1-2014.07.15 e cancelada a matricula cfr. Of. 1 Ap 2/20140725, tendo sido efectuadas a notificações e comunicações legais, cfr. fls. 529, tudo sem que este tribunal tivesse conhecimento, razão pela qual, em 11.11.2014, foi decretada a insolvência da sociedade requerida, já transitada em julgado.
Ora, tendo em conta a data do registo da dissolução/liquidação – 25.07.2014 -, em 11.11.2014, a sociedade não poderia ter sido declarada insolvente, tanto mais que, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”, cfr. artº 1º do CIRE.
A extinção das sociedades é, por isso, um processo complexo, pois não se trata exclusivamente de extinguir as relações contratuais entre os sócios, mas atender a uma rede de vínculos jurídicos com terceiros, que merecem ser protegidos – cfr. Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987, pgs. 12 e 13.
Significa isto que a sociedade “como relação e como pessoa colectiva, não se extingue quando se dissolve. Outros factos jurídicos devem produzir-se para que a extinção se verifique e o carácter específico daquela modificação indica-se sinteticamente dizendo que a sociedade entrou em fase de liquidação. A sociedade em liquidação não se transforma em comunhão de bens ou de interesses, não passa a sociedade fictícia nem é sociedade especial, nova; goza de personalidade colectiva e esta personalidade é a mesma de que gozava a sociedade antes de ser dissolvida”.
Conclui-se, assim que, nenhum obstáculo haveria à declaração de insolvência em 11.11.2014, se a sociedade em causa não estivesse já dissolvida e registada a dissolução/liquidação em 25.07.2014 e cancelada a respectiva matrícula, pelo que, nesta data a sociedade estava extinta.
Ora, estando extinta, por se encontrar dissolvida e efectuado o registo do encerramento da sua liquidação, não poderia ter sido proferida sentença a declará-la insolvente, porém, tal sucedeu, como consta dos autos, por desconhecimento daquele procedimento administrativo.
Dos autos consta que o ex-gerente da sociedade, em face do registo da dissolução/liquidação, veio requerer a extinção da instancia por inutilidade superveniente da lide, ao que o requerente se veio opôr, posição acompanhada pela Sra. Procuradora da Republica junto deste tribunal, com base no facto de que o registo da dissolução e encerramento da liquidação proferida em procedimento administrativo partiu de um pressuposto errado, ou seja, o de não ter sido apurada a existência de qualquer activo ou passivo, cfr. fls. 444, 445 e 493.
A dissolução e encerramento da liquidação da requerida sociedade verificou-se na sequencia da instauração de procedimento administrativo oficioso iniciado por determinação do IRN, tendo como causa a administração tributária ter comunicado àqueles serviços a declaração oficiosa da cessação de actividade, nos termos da legislação tributária e de acordo com o previsto no RJPADLEC, cfr. fls. 529.
Por força do artº 3º do Dec. Lei n.º 76-A/2006 de 29.03., os actos praticados ao abrigo do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais ficam sem efeito, “se durante a tramitação do procedimento (…) for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial”, seguindo nesse caso o processo de insolvência nos termos previstos no CIRE.
Neste caso, o processo de insolvência já tinha sido instaurado quando se iniciou o procedimento administrativo oficioso e, na pendência daquele foi inscrita no registo a dissolução e o encerramento da liquidação e cancelada a respectiva matricula, pelo que, se nos termos daquele preceito supra citado, naquele circunstancialismo referido faz prevalecer o processo de natureza judicial, por maioria de razão, também, estando pendente processo de insolvência, aquele procedimento não poderia prosseguir, até porque, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”, cfr. artº 1º do CIRE.
Acresce que, o procedimento administrativo oficioso foi instaurado com base em pressupostos errados, ou seja, o de não ter sido apurada a existência de qualquer activo ou passivo.
Senão vejamos.
A dissolução da requerida teve lugar por determinação do IRN (auto de noticia de 10.04.2014), tendo como causa a administração tributária ter comunicado àqueles serviços a declaração oficiosa da cessação de actividade (em 31.12.2013), nos termos da legislação tributaria (RJPADLEC), tendo sido efectuadas as notificações e comunicações legais e, não tendo sido apurado qualquer activo ou passivo a liquidar foi lavrado o respectivo registo de dissolução e liquidação da sociedade e cancelada a respectiva matricula, cfr. fls. 529 e ss..
Compulsados os autos, no relatório do artº 155º do CIRE junto pelo A.I., conclui-se que não é assim, pois, por um lado, daquele relatório resulta que foram reclamados créditos pelos credores da insolvente num valor superior a 1 milhão e meio de euros, sendo uma parte bem significativa de impostos, cfr. fls. 462 a 464, portanto, há passivo e por outro, que a insolvente tem um veiculo registado em seu nome, tendo transmitido uma marca “C1…”, a uma empresa que tem sócios comuns e sede na mesma morada da insolvente, portanto, há activo, cfr. fls. 459.
Acresce que, sempre se dirá que, não fora as dificuldades de proceder á citação da requerida (propositadas ou não), o que demorou, nada mais nada menos, quase 1 ano, a insolvência teria sido decretada antes de tal procedimento, uma vez que a PI deu entrada em 30.09.2013 e a citação apenas foi conseguida em 09.05.2014.
Para além disso, a dissolução administrativa poderia ter sido evitada se as contas tivessem sido apresentadas pelos sócios (já que não havia gerência), cumprindo um dever que lhes é imposto no exercício das suas funções, tendo o último exercício e prestação de contas sido apresentadas em 2005.
Por tudo isto, parece-nos que, este processo de insolvência terá de prosseguir os seus termos normais, pois só assim, os interesses dos credores ficam mais protegidos neste processo do que na dissolução/liquidação, uma vez que, o processo de insolvência é fundamentalmente um processo de liquidação do património do devedor como garantia comum dos credores e não, necessariamente, um processo de dissolução.
O facto de os autos prosseguirem, não estará em causa uma “nova liquidação”, mas a liquidação dos bens do activo da sociedade que ainda não foram liquidados e o pagamento do passivo (repete-se que o procedimento administrativo teve por base a inexistência de activo e passivo).
Por tudo o que ficou dito, parece-nos, s.m.o., que não deverá ser declarada a extinção da instancia, podendo a continuação do processo ser útil para os credores poderem, aos menos, aceder ao FGS ou reaver o IVA, assim como do ponto de vista de justiça social se mostra relevante para efeitos do incidente de qualificação de insolvência.
Neste sentido, em situação idêntica, vd. Acs. STJ. De 23.09.2010 e 02.07.1996.
Atentos os factos (errados) em que se baseou a dissolução/liquidação – falta de activo e passivo -, entendemos que deve considerar-se sem efeito o encerramento da liquidação da sociedade (public. An.1-20140715) e, consequentemente, o seu registo e o registo do cancelamento da matrícula (Of. 1 Ap 2/20140725) e, em consequência, os presentes autos deverão prosseguir os seus termos normais, com o registo da sentença que decretou a insolvência em 11.11.2014 e trâmites posteriores.
Notifique.
Após, trânsito, oficie à CRC para os fins tidos por conveniente.
(…)”
*
Inconformado com o teor do mesmo veio então o gerente da insolvente, D…, interpor recurso e apresentar nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A estas responderam o Administrador de Insolvência, E… e o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal “a quo”.
Foi proferido despacho que considerou que o recurso era tempestivo e legal e acabou por admitir o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao seu conhecimento, cumpre apreciar e decidir o recurso em apreço.
*
II. Enquadramento de facto e de direito:
Como se verifica dos autos a acção foi proposta em 01.10.2013 e o despacho recorrido foi proferido em 09.05.2015.
Assim sendo e atento o disposto nos artigos 5º, nº1 e 7º, nº1 da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais postas a vigorar por este último diploma legal.
Ora como é por demais sabido, o objecto do presente recurso e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelo apelante nas suas alegações de recurso (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do NCPC).
E é o seguinte o teor das mesmas conclusões:
1. Foi a Insolvente declarada Insolvente nos presentes autos por decisão de 11/11/2014.
2. Acontece que, conforme resulta do documento anexo esta sociedade foi já dissolvida e liquidada administrativamente a 7 de Julho de 2014.
3. Os credores foram notificados em local público do início e das decisões proferidas neste processo http.//publicacoes.mj.pt.
4. Estando a sociedade dissolvida e registada a dissolução e liquidação não pode ser posteriormente a tal registo ser decretada a sua insolvência.
5. Existem evidências nos autos que o processo administrativo decorreu com todas as legais notificações.
6. Dois processos executivos contra a Insolvente já foram extintos por falta de bens.
7. Não foram apreendidos quaisquer bens à Insolvente.
8. Foi o Requerente quem omitiu nos autos a existência de tais processos executivos, que nos mesmos não foram apreendidos quaisquer bens.
9. Ao não determinar a extinção da instância o Tribunal violou:
a) art.ºs 12º e 13º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (aprovado pelo D.L. nº75-A/2006 de 29/3), pois deveriam as partes ilegítimas impugnar tal decisão, a não ser o tribunal a determinar o cancelamento do registo de dissolução e liquidação.
b) art.º160º, nº1 do CSC, uma vez que não pode o tribunal proferir, decisão contra uma sociedade extinta.
c) art.º 578º do CPC ao não determinar a inutilidade superveniente da lide, e determinar o cancelamento do registo de dissolução e liquidação.
10. Mais, entendendo o Tribunal que poderia decretar a sua Insolvência terá que posteriormente citar a referida sociedade da decisão, uma vez que à data em que a mesma foi proferida esta não existia.
Já os apelados nas suas alegações e no fundo, pugnam pela improcedência do recurso e pela confirmação do despacho recorrido.
Já os apelados Administrador de Insolvência e Digno Magistrado do MºPº concluem as suas alegações, pugnando ambos pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
Perante o antes exposto, resulta claro que é a seguinte a questão que importa apreciar e decidir neste recurso:
A de saber se tendo sido inscrita no registo e no decurso do processo de insolvência, a dissolução e liquidação da sociedade requerida, ainda assim deve o processo de insolvência prosseguir os seus termos.
Para decidir tal questão é essencial considerar os seguintes factos constantes dos autos:
1-Em 30 de Setembro de 2013, o requerente/credor B… deu entrada de requerimento pedindo fosse decretada a insolvência da sociedade C…, Ld.ª, invocando, para tanto o crédito sobre esta no valor de 518 024, 97 €;
2-Citada a requerida e não tendo havido oposição, viria a ser decretada a insolvência em 11 de Novembro de 2014, transitada em julgado e publicitada no CITIUS em 13 de Novembro de 2014;
3-No decurso do processo, em 7 de Julho de 2014, a requerida foi dissolvida administrativamente em processo administrativo oficioso de dissolução/liquidação, tendo, nessa sequência, por não ser conhecido activo/passivo, sido registada a dissolução e encerramento da liquidação;
4-A sociedade, além do credor requerente, tinha então outros credores, entre os quais, a Autoridade Tributária e Aduaneira – que reclamou créditos no valor de 712.738, 55 € – e Instituto da Segurança Social – que reclamou créditos no valor de 240.062, 83€;
5-O processo administrativo oficioso de dissolução/liquidação foi iniciado por determinação do INIR, tendo como causa a administração tributária ter comunicado a esses serviços a declaração oficiosa da cessação da actividade nos termos da al. e) do art.º 5.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais (D.L. nº76/A/2006, de 29/3);
6-Foram efectuadas as notificações e comunicações legais, nos termos desse diploma e, não tendo sido apurado qualquer activo ou passivo a liquidar, foi lavrado registo de dissolução e liquidação da sociedade. (cf. oficio de fls. 533 do Instituto dos Registos e Notariado);
7-Elaborado o relatório a que se refere o art.º 155.º do CIRE, concluiu-se que a requerida tem um veículo automóvel registado, tendo transmitido a marca C1…, a uma empresa que tem sócios comuns e sede na mesma morada.
Sendo estas as circunstâncias de facto a considerar, cabe pois avaliar da validade dos fundamentos do presente recurso.
E para tanto iremos recorrer ao vertido no Acórdão desta Relação do Porto de 23.09.2010, no processo nº1899/10.8TBSTS.P1. em www.dgsi.pt., cujos argumentos aqui passamos a reproduzir com todo o respeito que é devido.
Assim e como ali se refere:
“É consabido que nos artigos 141º, 142º e 143º do CSC, estão legalmente previstas as diversas causas de dissolução da sociedade comercial.
Já o art.º146º, nº1 do mesmo código, refere que dissolvida a sociedade, esta entrará em liquidação.
Para o art.º146º, nº2, a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedade não dissolvidas.
A dissolução da sociedade marca o momento em que se reconheceu que ela esgotou a sua função mas não traduz desde logo a sua extinção, pois torna-se necessário ainda proceder à cobrança dos créditos, pagamento das dívidas e partilha dos bens sociais sobrantes.
A extinção das sociedades é, por isso, um processo complexo, pois não se trata exclusivamente de extinguir as relações contratuais entre os sócios, mas de atender a uma rede de vínculos jurídicos com terceiros, que merecem ser protegidos (cf. Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, págs. 12 e 13).
Segundo Raul Ventura, Obra citada, agora a págs. 16 e 17, a dissolução é uma modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, consistente em ela entrar em liquidação.
Porém, a sociedade, como relação e como pessoa colectiva, não se extingue quando se dissolve.
Outros factos jurídicos devem produzir-se para que a extinção se verifique e o carácter específico daquela modificação indica-se sinteticamente dizendo que a sociedade entrou na fase de liquidação.
A sociedade em liquidação não se transforma em comunhão de bens ou de interesses, não passa a sociedade fictícia nem é sociedade especial, nova, goza sim de personalidade colectiva e esta personalidade é a mesma de que gozava a sociedade antes de ser dissolvida.
O que se passa na dissolução e liquidação é um processo desconstrutivo da instituição societária, traduzido na sequência de actos ou factos jurídicos que determinam a cessação progressiva da sua existência.
A dissolução é pois um facto contínuo de execução continuada.
Assim, verificada a circunstância de facto ou a decisão que desencadeia a dissolução, a sociedade fica ainda a ter existência jurídica, com vista à liquidação do seu património - apuramento do activo, pagamento do passivo, e partilha do saldo (cf. Pupo Correia, Direito Comercial, 2ª ed., pág. 252).
Na dissolução e liquidação deliberadas pelos sócios, salvo disposição estatutária ou deliberação noutro sentido, os administradores da sociedade passam a ser liquidatários (cf. art.º 151º, nº1 do CSC), competindo-lhes ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos haveres sociais (cf. art.º152º, nº3).
Com a proposta respectiva, submetem a deliberação da sociedade (cf. art.º 157º, nº4) um relatório completo da liquidação, acompanhando as contas finais (cf. art.º 157º, nº1).
Aprovada a deliberação, será requerido o registo do encerramento da liquidação (cf. art.º 160º, nº1) e é com este registo que, finalmente, a sociedade se considera extinta (cf. art.º 160º, nº2).
Deste modo, dispondo a sociedade dissolvida e ainda não liquidada de personalidade jurídica, tem também personalidade judiciária por força do disposto no nº 2 do art.º5º do CPC”.
E como também se afirma no acórdão que estamos a seguir de muito perto, a mesma não deixa de ter capacidade jurídica, na medida em que continua a poder exercitar os direitos relativos à liquidação e partilha do seu património; tendo, por isso, em consequência, também capacidade judiciária (cf. art.º 9º, nºs 1 e 2 do CPC).
Ora, como é sabido o processo de insolvência é precisamente um processo de liquidação universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência (cf. art.º 1º do CIRE).
Mantendo intactas a sua personalidade e a sua capacidade judiciárias, a sociedade dissolvida e em liquidação pode e deve ser demandada directamente no processo de insolvência. E a sua intervenção nos autos, designadamente, para deduzir oposição ao pedido de insolvência, é que será feita através do liquidatário ou liquidatários nomeado(s) no procedimento de liquidação, que actuarão como seus “representantes” nos termos acima expostos, ou seja, não para suprir uma situação de incapacidade, mas para exprimir a vontade da sociedade.
Apenas após a sua extinção com o registo da liquidação encerrada, a sociedade se considera substituída pela generalidade dos sócios, sendo estes que têm de ser demandados directamente, na pessoa dos liquidatários, com vista a efectivar a sua responsabilidade pelos débitos sociais dentro dos limites consignados no art.º 163º, nº1 do CSC.
Segundo Raul Ventura, obra citada, a págs. 467 a 480, “a nossa lei não acolheu as teorias da sobrevivência da personalidade jurídica da sociedade nem da reconstituição dessa personalidade após a extinção, consagrando em termos inequívocos o regime da responsabilidade pessoal dos sócios (cf. artigos 163º e 164º do CIRE)”.
Por isso, não pode ser pedida a declaração de insolvência de uma sociedade cuja liquidação já tenha sido encerrada e que, portanto, já se encontre extinta.
Questão diversa é aquela que se coloca nos casos em que, tendo-se iniciado o processo de insolvência, quando a sociedade ainda não se encontrava dissolvida ou mesmo quando já havia sido dissolvida e se encontrava em liquidação, vem a encerrar-se a liquidação no decurso do processo em fase anterior à declaração da insolvência.
Em tese e por força do que antes ficou dito, o processo de insolvência não poderia prosseguir os seus termos, por não poder ser declarada a insolvência de uma sociedade já extinta.
Importa agora transferir a nossa atenção para o caso dos autos.
Ora aqui e como já vimos, a dissolução da requerida teve lugar na sequência de um processo administrativo oficioso de dissolução/liquidação.
Tal dissolução administrativa ocorreu cerca de dez meses depois de ter sido requerida a insolvência da sociedade e cerca de cinco meses antes da data em que a mesma insolvência foi judicialmente decretada.
A requerida insolvente foi citada na pessoa de F…, filho dos sócios da mesma requerida e pessoa que na data declarou estar em condições de receber a citação.
Não tendo sido deduzida oposição, consideraram-se admitidos os factos alegados na petição inicial, tendo sido de imediato decretada a insolvência nos termos do art.º30º, nº5 do CIRE.
Como resulta dos autos, o início oficioso do procedimento administrativo de dissolução/liquidação teve como ponto de partida a situação prevista no art.º5º do D.L. nº76-A/2006 29.03, ou seja, a circunstância da sociedade não ter actividade declarada na administração tributária e não ter procedido ao depósito das contas nem às declarações fiscais exigidas por lei.
Mais se sabe que no âmbito desse procedimento administrativo, foram efectuadas as notificações exigidas pelo art.º8º do supra citado diploma.
Apesar de devidamente notificados nos termos previstos nesta norma, os sócios/gerentes da sociedade, não vieram declarar quanto à existência de passivo e activo, deixando o mesmo procedimento avançar para a dissolução e respectivo registo.
Está igualmente comprovado que o Instituto dos Registos e Notariado, não foi oportunamente informado da pendência do processo de insolvência.
Também aqui o encerramento da liquidação pressupõe que tenha sido liquidado o passivo social (art.º 154º) – o que não foi feito, como se pode depreender da falta de contestação da requerida ao pedido de insolvência, que teve como efeito a confissão pela requerida dos factos que foram alegados pelo requerente na petição inicial, a saber:
Que a requerente forneceu á requerida diversos produtos, que não foram pagos, estando em dívida a quantia de € 518.024,97;
Que o valor do activo da requerida não ultrapassará os € 6.000,00;
E que são sócios da requerida D…, G…, H… e I….
Ora diversamente do que ocorre na situação descrita no aresto que temos vindo a sufragar, nos autos não foram os sócios da sociedade insolvente que diligenciaram no sentido de inscreverem no registo comercial a dissolução e o encerramento da sua liquidação.
De qualquer modo a situação que temos para análise é muito semelhante à relatada no mesmo acórdão.
Senão, vejamos:
Refere o art.º334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Continuando a seguir as avisadas considerações do referido acórdão de 23.09.2010, impõe-se recordar que no mesmo dispositivo está consagrada uma concepção objectiva do abuso do direito.
Por isso, se aceita que não é necessária a consciência de se estarem a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no art.º334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo a intenção com que o titular tenha agido (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, Volume I, pág.277).
Como também referem os referidos autores, obra citada e agora a pág.278, “o abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes”.
Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 64, “as normas jurídicas, enquanto gerais e abstractas, atendem ao comum dos casos. Consequentemente, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo perante situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram”.
Deste modo, ocorrerá abuso de direito, quando um determinado direito, em si mesmo válido, seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante da comunidade social.
Em suma, o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais.
Voltando ao caso concreto, o que temos é um requerimento do ex-gerente da requerida D… no qual este vem informar que a sociedade em apreço foi dissolvida administrativamente em 07.07.2014, pelo que na sua óptica, não pode ser registada posteriormente a sua insolvência, razão pela qual solicita que seja declarada extinta a presente instância.
Só que também sabemos que na sequência da instauração do referido processo administrativo oficioso de dissolução/liquidação, foram efectuadas todas as notificações e comunicações legais.
Mostra-se ainda comprovado que em face de tais notificações nenhum dos sócios gerentes da requerida, entre os quais se incluía o ora requerente D…, nada veio dizer quanto à existência de activo e passivo da mesma sociedade (e quanto à pendência da presente insolvência), deixando que o aludido processo administrativo avançasse para a sua dissolução e respectivo registo.
Perante tais dados, podemos pois concluir que o requerimento formulado pelo mesmo sócio-gerente e que deu origem ao despacho ora recorrido é ilegítimo por raiar os limites do abuso de direito, não podendo assim ser atendido.
Mas mesmo que assim se não considere, valerão os argumentos vertidos pela Digna Magistrada do MºPº nas suas contra alegações de recurso, e que aqui não deixamos de subscrever e que são os seguintes:
“Aqui chegados, urge concluir que, na realidade, o procedimento seguiu os seus trâmites com pressupostos de facto que não existiam, para tanto tendo contribuído os sócios da empresa, que, não só não a apresentaram à insolvência, como era sua obrigação legal como não informaram o IRN da existência de enorme passivo da empresa e ainda da existência de activo desta”.
Deste modo e seja por um ou por outro dos argumentos expostos, devemos considerar sem efeito o encerramento da liquidação da sociedade e, consequentemente, o seu registo e os registos de cancelamento da matrícula, impondo-se por isso o prosseguimento dos presentes autos, com o necessário registo da sentença que aqui decretou a insolvência e com os demais ulteriores trâmites.
Em suma e sem mais, impõe-se pois confirmar o despacho recorrido.
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Sumário (cf. art.663º, nº7 do NCPC):
1.Não pode ser pedida a declaração de insolvência de uma sociedade cuja liquidação já tenha sido encerrada e que, portanto, já se encontre extinta;
2.Questão diversa é aquela que se coloca nos casos em que, tendo-se iniciado o processo de insolvência, quando a sociedade ainda não se encontrava dissolvida ou mesmo quando já havia sido dissolvida e se encontrava em liquidação, vem a encerrar-se a liquidação no decurso do processo em fase anterior à declaração da insolvência;
3.Baseando-se a dissolução/liquidação de uma sociedade comercial em factos errados, no caso a falta de activo e de passivo, deve considerar-se que não têm efeito quer o encerramento da mesma dissolução/liquidação quer os actos de registo a este subsequentes, devendo sim prosseguir os seus ulteriores termos o processo onde posteriormente foi decretada a sua insolvência.
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação, assim se confirmando integralmente o despacho recorrido.
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Custas do presente recurso a cargo da massa insolvente.
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Notifique.

Porto, 15 de Outubro de 2015
Carlos Portela
Pedro Lima Costa
Filipe Caroço