Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
478/13.2TAAMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO RIBEIRO COELHO
Descritores: SIGILO FISCAL
Nº do Documento: RP20151216478/13.2taamt-A.P1
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DISPENSADO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O regime normativo que regula o sigilo fiscal permite concluir que se está perante um sigilo com uma natureza não absoluta e mesmo menos consistente, se comparado com regime normativo de outros segredos tanto de cariz profissional como institucional, como é o caso do segredo de justiça e do segredo jornalístico, das telecomunicações, da correspondência e dos dados pessoais os quais se sustentam numa dimensão constitucional própria.
II – Os interesses que se pretendem proteger com o segredo fiscal enquadram-se numa dimensão da privacidade do cidadão mas não entra no núcleo da sua intimidade privada e familiar, como no caso do segredo médico ou religioso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 478/13.2TAAMT-A.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
Nestes autos de inquérito veio a ser instruído este incidente de quebra de sigilo fiscal, após ter sido notificado o Serviço de Inspecção Tributária – Direcção de Finanças do Porto para fornecer informação sobre as declarações IES/DA, IRC, as declarações periódicas e as declarações de IRS, relativamente aos anos de 2011-2014, respeitantes a determinadas empresas e contribuintes, suspeitos nos mesmos autos, negando-se aquele serviço na prestação dessa informação fiscal a coberto do disposto no Art.º 64.º da Lei Geral Tributária (LGT).
O Ministério Público veio requerer ao senhor juiz de instrução criminal a quebra de sigilo fiscal dos respectivos funcionários da autoridade tributária, tendo em conta o interesse da informação fiscal solicitada e a consequente ordem de entrega dos elementos pela mesma entidade tributária.
Apresentada que lhe foi essa promoção, o Juiz de instrução, em despacho fundamentado, veio suscitar a intervenção deste Tribunal da Relação, ao abrigo dos Art.ºs 64.º da LGT e 135.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal.
No parecer emitido pelo Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto nesta Relação, considera-se, também, ser evidente o interesse público na descoberta da verdade quanto aos factos, pelo que se entende que se entende que deve ser ordenada a quebra do sigilo profissional e fiscal.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a decisão importa atentar nos seguintes factos:
. No inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público da Comarca do Porto Este, estão em causa os factos mencionados na promoção de fls. 191-192 dos autos (e também aludidos no despacho do juiz de instrução de fls. 194-199) que, em síntese consubstanciam a possível concretização de um crime de frustração de créditos p. e p. pelo disposto no Art.º 227.º-A do Código Penal.
. Para investigação dos referidos factos foram encetadas diligências de prova pela autoridade policial e pelo Ministério Público, com a notificação do Serviço de Inspecção Tributária – Direcção de Finanças do Porto para fornecer informação sobre as declarações IES/DA, IRC, as declarações periódicas e as declarações de IRS, relativamente aos anos de 2011-2014, respeitantes a determinadas empresas e contribuintes, suspeitos nos mesmos autos.
. Na sequência, a mencionada autoridade tributária negou-se a prestar tal informação fiscal a coberto do sigilo fiscal e profissional.
. O Ministério Público, após isso, veio a elaborar a promoção de fls. 191-192, onde suscitando a imprescindibilidade da aludida informação fiscal, promove que seja ordenada a quebra do sigilo fiscal dos funcionários da autoridade tributária.
. O Mm.º Juiz de instrução considerou legítima a recusa e mandou instruir o presente incidente a ser apreciado por esta Relação, nos moldes da decisão de fls. 194-199 dos autos.
***
Cumpre apreciar dos fundamentos do presente incidente.
Está em causa, na presente decisão, apreciar da justificação para ordenar a quebra de sigilo fiscal.
O sigilo fiscal encontra-se, actualmente consagrado no Art.º 64.º da LGT sob a epígrafe "Confidencialidade". Este dever impende sobre "dirigentes, funcionários e agentes da administração Tributária", encontrando-se estes "obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributário dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado (Art.º 64.º, n.º l, da LGT).
O mesmo artigo, no seu n.º 2, enuncia as circunstâncias em que este dever cessa e, no seu n.º 5, demonstra nova preocupação do legislador em esclarecer que determinados actos da administração, que à partida poderiam ser violadores deste dever, na realidade são comportamentos legítimos ao abrigo deste preceito, por não violarem a sua ratio.
Dada a consagração abrangente do dever de sigilo fiscal operada pela LGT, este acabou por ter uma reduzida expressão no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Aliás, o Art.º 51.º n.º 3 do CPPT decorre do mencionado Art.º 64.º da LGT, limitando-se a consagrar uma extensão do dever de sigilo fiscal a outras entidades nos mesmos termos do sigilo da administração.
Refira-se que independentemente do texto legal que sirva de apoio, o sigilo fiscal encontra-se sempre relacionado com a "situação tributária do contribuinte", nomeadamente com a sua "capacidade contributiva".
Em suma, todos os elementos dos quais seja possível aferir da capacidade contributiva do contribuinte são, necessariamente, sigilosos. De tais elementos podemos desde logo destacar as informações relativas aos rendimentos de que o contribuinte e titular, às deduções e despesas que efectue, aos moveis ou imóveis de que seja proprietário, a existência ou não de débitos ou créditos fiscais, o tipo e valor de bens e serviços produzidos, bem como a própria declaração de rendimentos a que este esta obrigado e que visa possibilitar o apuramento da obrigação de imposto.
A preocupação do legislador prende-se com informação dita já analisada e "fiscalmente trabalhada", ou seja, já submetida a um processo administrativo de interpretação dos dados recolhidos para que, desta forma, seja possível aferir a situação tributária do contribuinte. Logo, os dados que não reflictam nem denunciem minimamente a situação tributária do contribuinte, como a declaração de início e de cessação de actividade, não são factos enquadráveis na noção de sigilo fiscal.
Em suma, o dever de sigilo fiscal impende, prioritariamente, sobre a administração fiscal relativamente aos dados dos contribuintes por si directamente recolhidos e não ao sigilo que enquadre outros dados, nomeadamente os solicitados pela administração, no âmbito da sua actividade, a outras entidades as quais poderão estar enquadradas num regime específico de sigilo (nomeadamente nos Bancos ou na CMVM). Porém, uma vez recebidos esses dados no procedimento tributário, passam os mesmos a estar igualmente protegidos pelo sigilo fiscal.
O sigilo fiscal tem como referência constitucional o Art.º 26.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), e também a aferição substantiva nos nºs 1 e 2 do Art.º 80.º do Código Civil. É no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada que o dever de sigilo fiscal se baseia.
Face ao reconhecimento, também constitucional, deste direito à reserva da intimidade da vida privada, o legislador foi obrigado a estabelecer restrições (cujo fundamento constitucional se encontra no Art.º 18.º da CRP) ao direito à informação e a criar instrumentos jurídicos que funcionem como garantias do direito à privacidade, como é o caso do sigilo fiscal.
Importa, pois, saber se estão reunidos os requisitos para se decidir pela quebra de segredo, ou se o direito ao sigilo fiscal dos particulares e das empresas deve prevalecer. Dito de forma diferente, se deve ceder perante outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos, desde que lhe sejam superiores.
O regime normativo, sinteticamente referido, que regula o sigilo fiscal permite concluir que se está perante um sigilo com uma natureza não absoluta e mesmo menos consistente, se comparado com regime normativo de outros segredos, tanto de cariz profissional como institucional, como é o caso do segredo de justiça e do segredo jornalístico, das telecomunicações, da correspondência e dos dados pessoais os quais se sustentam numa dimensão constitucional própria, conforme decorre dos Art.ºs 20.º n.º 3 e 38.º n.º 2 alínea b), 34º n.ºs 1 e 4, e 36.º, n.º 4, da CRP, respectivamente.
Os interesses que se pretendem proteger com o segredo fiscal, enquadram-se numa dimensão da privacidade do cidadão que, no entanto, não entra no núcleo da sua intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar «garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana» (n.ºs 1 e 2 do Art.º 26º da CRP), como são o caso do segredo médico ou religioso – cfr., neste sentido, Saldanha Sanches, «Segredo Bancário e segredo fiscal», in Centro de Estudos Judiciários, Medidas de Combate à Criminalidade Económica e Financeira, Coimbra Editora, 2004, pp. 58, e, também, Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 2007, p. 414.
Na verdade, o sigilo fiscal assume na ordem jurídica portuguesa uma natureza de sigilo não absoluto, se comparado com regime normativo de outros segredos, nomeadamente de ordem profissional, na medida em que, verificados e justificados determinados requisitos, pode ceder perante a relevância de outros interesses.
O critério adoptado pelo nosso legislador é o de que o tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Assim só se justifica fazer tal ponderação se o levantamento do sigilo se mostrar indispensável para a investigação do crime.
Suscitado o incidente e chegado ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no n.º 3 do Art.º 135.º do CPPenal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade da informação pretendida para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Ora nos autos, o que está em causa, desde logo, é a investigação de um crime de frustração de créditos, p. e p. pelo Art.º 227.º-A do Código Penal, respeitante à actividade societária de determinados suspeitos da prática desse crime.
O que se pretende é apurar se a sociedade "B…, Lda" sofreu uma «quebra brutal do seu volume de vendas", ou se, pretendeu apenas transferir o seu património para a sociedade "C…, Lda", para, assim se frustrar à satisfação dos seus créditos.
Na economia da investigação que se procede no presente inquérito, torna-se indispensável obter os elementos sugeridos pelo Ministério Público para se aferir ou tentar perceber se havia razões financeiras/económicas/fiscais para o encerramento “apressado” daquela empresa, ou se, conforme suspeita, a mesma apenas teve como objetivo inviabilizar uma eventual execução patrimonial para pagamento da coima de 50.000,00€.
Assim, mostra-se imprescindível, para o decurso da presente investigação, analisar as declarações IES/DA, IRC, as declarações periódicas de IVA e as declarações de IRS, relativamente aos anos de 2011 a 2014 para:
- aceder ao declarado à AT e apurar se a empresa "B…, Lda", "em função da gravíssima crise económica e social" sofreu uma “quebra brutal no seu volume de vendas”, que possa ter motivado o encerramento da sua actividade;
- aceder ao volume de vendas declarado à AT, pela empresa "C…, Lda ", desde o início da sua actividade; e
- aceder aos rendimentos declarados pelos sujeitos singulares enquanto responsáveis das empresas visadas.
Pese embora a informação tenha sido solicitada ao Serviço de Inspecção Tributária -Direcção de Finanças do Porto, a mesma foi negada a coberto deste sigilo fiscal e profissional.
Nesse sentido surgem os elementos em causa, oportunamente solicitados, como imprescindíveis para efeitos da descoberta da verdade no âmbito do inquérito em investigação.
Numa dimensão negativa, e de acordo com o princípio da proporcionalidade, importa referir que não se reconhecem outros meios de obtenção de prova menos invasivos que possam permitir o mesmo resultado pretendido, pese embora a moldura penal do tipo de crime em causa.
Assim sendo, efectuado o juízo de ponderação entre os valores em causa determina-se a quebra do sigilo fiscal e profissional, invocado pelos funcionários da autoridade tributária acima referida, devendo os mesmos fornecer os elementos solicitados.
***
III. DECISÃO
Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em autorizar a quebra do sigilo fiscal e profissional dos funcionários da administração tributária Serviço de Inspecção Tributária -Direcção de Finanças do Porto -, os quais deverão fornecer as informações fiscais relativas às declarações IES/DA, IRC, às declarações periódicas e às declarações de IRS, relativamente aos anos de 2011-2014, respeitantes aos seguintes contribuintes:
- D…, NIF ………, melhor identificado a fls. 189;
- E..., NIF ………, melhor identificada a fls. 189;
- F…, NIF ………, melhor identificada a fls. 189;
- "B…”, Lda, NIF ………; melhor id. a fls. 189; e
- "C…”, Lda, NIF ………, melhor id. a fls. 189.
***
Sem custas, em face da natureza do incidente em apreço.
Notifique-se.
***
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (cfr. Art.º 94.º, n.º 2, do CPPenal).

Porto, 16 de Dezembro de 2015
Nuno Ribeiro Coelho
Renato Barroso