Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2804/17.6T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDO
Nº do Documento: RP201901242804/17.6T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º160, FLS.204-208 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: Os pedidos são incompatíveis quando o sejam os efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um deles, ou quando o reconhecimento de um excluir a possibilidade de verificação dos restantes, sejam eles emergentes ou não da mesma causa de pedir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº 2804/17.6T8VFR.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
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Sumário:
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I - Relatório:
B… e esposa C…, intentaram, em 18.09.2017, a presente acção declarativa com processo comum contra D… e marido E… e F…, todos identificados nos autos, pedindo na petição inicial:
I - devendo os 1.º e 2.º RR. serem condenados a:
a) Reconhecerem os AA como donos e legítimos proprietários do prédio conforme descrito no artigo 1.º e 2.º da PI bem como dos currais e palheiro existente nesse prédio, com excepção da benfeitoria casa/habitação que se encontra implantada nesse prédio a qual é pertença da 1.ª Ré e 3.º R.
b) Procederem à remoção das obras realizadas pelos mesmos, em concreto no muro que os mesmos iniciaram a construir em Outubro de 2016, bem como na retirada dos canos de esgoto e quaisquer sistemas ilegais de drenagem de esgotos domésticos e reposição do local como o mesmo se encontrava antes da intervenção dos RR. Na data supra referida;
c) Pagarem a título de sanção compulsória a quantia de 100,00€ por cada dia de atraso no peticionado na Alina b) do presente pedido;
d) Compensarem a título de danos não patrimoniais os AA. Pelo sofrimento havido pelo mesmo devido à construção do muro em montante nunca inferior a 5.000,00€;
e) Indemnize os AA. a título de danos patrimoniais na quantia nunca inferior a 5.000,00€, pelos prejuízos causados por não poderem aceder aos seus currais pela sua respectiva sita na Rua …;
f) Condene os RR a retirar/remover quaisquer obstáculos que existam ou que impeçam os AA. de acederem aos seus currais pela Rua …. pelo caminho lá existente;
g) Condene os RR a não praticar quaisquer actos que impeçam ou limitem o gozo do direito de propriedade dos AA, nomeadamente colocações de portões, terras ou areias nos locais de passagem e acesso aos currais dos AA., nomeadamente pela Rua …, …;
h) Pagarem a título de sanção compulsória a quantia de 100,00€ por cada dia de atraso ou de impedimento de gozo no peticionado nas alíneas f) e g) do presente pedido;
i) A pagar, em sede de liquidação de Sentença, os encargos que deteve com a presente acção com honorários de Advogado, bem como custas de processo.
II - E cumulativamente ao pedido no anterior devem os 1.º e 2.º RR serem condenados,
j) A pagar o valor de 48.007,00€ aos AA pelo prédio destes, conforme acordado no âmbito do processo n.º de processo 3307/16.1T8VFR, no Juízo local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2;
Ou em alternativa,
k) A pagar uma indemnização aos AA. pelo incumprimento do acordo em montante nunca inferior a 20.000,00€
III - Subsidiariamente ao pedido na alínea j), caso este pedido seja improcedente, deverão os 1.º, 2.º 3.º RRR condenados:
l) A destruir a obra pelos RRR construída, restituindo o terreno aos AA. na sua configuração inicial, ou em alternativa, entregarem a respectiva obra aos AA. pelo valor apurado pelos materiais da obra em sede de Enriquecimento sem causa calculados à data de realização das mesmas.”
Alegaram os Autores, em resumo, que permitiram à sua filha, aqui Ré, que construísse uma casa de habitação num terreno deles onde mantiveram, contudo, o uso de parte do logradouro para criação de animais e guarda de alfaias agrícolas; que esta deixou de permitir essa utilização do logradouro pelos autores, em inícios de Outubro de 2016, com a colocação de entraves físicos, o último dos quais um muro e um novo portão destinados a impedir a entrada e passagem dos pais; os Autores embargaram extrajudicialmente tal obra, posteriormente, em sede de ratificação judicial de tal embargo acordaram com os Réus que o litígio que os opunha devia ser solucionado com recurso ao instituto da acessão industrial imobiliária após avaliação judicial e compra da parte do prédio com menor valor tendo a instância sido suspensa com vista a permitir a celebração desse acordo; depois de avaliado o imóvel, sendo o terreno avaliado em 48.007€ e a construção em 77.790€, os Réus não o cumpriram pelo que os autos prosseguiram e foi decretada a ratificação judicial do embargo e julgada improcedente a aquisição originária do terreno pelos Réus por usucapião por falta de prova do respectivo animus bem como sublinhando a necessidade de os Réus recorrerem a acção declarativa para verem operar o instituto da acessão industrial imobiliária, ali devendo procederem ao pagamento da indemnização legal.
Foi realizada audiência prévia e, como consta da respectiva acta, ali se comunicou ser entendimento do tribunal “que há contradição substancial entre os pedidos formulados no ponto I a) e II j) da petição inicial, já que no primeiro, os autores pretendem o reconhecimento a seu favor da propriedade do prédio objecto dos autos e, no segundo, cumulativamente pedem que os réus sejam condenados a pagarem-lhes 48.007,00€ “conforme acordado no âmbito do processo nº 3307/16.1T8VFR”.
Este segundo pedido baseia-se na alegação contida nas alíneas 24 a 36 da petição inicial, onde os autores descrevem um acordo lavrado em ata de audiência de julgamento de providência apensa em 04-01-2017 e cujo teor está a fls. 37, apelidando-o de transacção.
Segundo os autores, na decorrência do que ali alegam, estarão os réus obrigados, por via desse acordo e do regime da acessão industrial imobiliária a adquirir o terreno onde construíram a sua habitação pelo valor de 48.007,00€.
Por isso, entende o Tribunal que as pretensões traduzidas nos referidos pedidos são substancialmente incompatíveis pois ou os autores se querer arrogar proprietários ou entendem que, por via da acessão industrial imobiliária, os primeiro e segundo réus adquiriram tal propriedade, estando obrigados a pagar o valor que o prédio tinha antes das obras nos termos do disposto no artigo 1340º, nº 1 do Código de Processo Civil”.
Facultado o contraditório às partes, em resposta a tal entendimento da senhora juíza a quo, vieram os Autores defender a compatibilidade dos pedidos deduzidos de serem reconhecidos “como proprietários de todo o terreno, sendo que cumulativamente “peticionam que os 1.º e 2.º RR sejam condenados no cumprimento do acordo de compra do terreno obtido em tribunal perante um juiz, de forma livre e consciente e devidamente assessorados por Advogado”.
Em 13.08.2018 foi proferido despacho saneador que decidiu “Em conclusão, olhando para os pedidos principais, é manifesta a impossibilidade de cumulação dos pedidos de pagamento do preço do terreno pelos Réus com o de reconhecimento da propriedade do mesmo a favor dos Autores.
Tal impossibilidade resulta em ineptidão da petição inicial, com o consequente conhecimento oficioso da nulidade absoluta daí decorrente e absolvição dos Réus da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 186º, número 1 c), 196º, número 1, 200º número 2, 278º, número 1 b) e 577º b) do Código de Processo Civil.
Decisão:
Assim, julgo nulo todo o processado, por ineptidão da petição inicial decorrente da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, absolvendo os Réus da instância”.
Desta decisão vieram os autores interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é motivado pelo facto de o juiz do tribunal “a quo” considerar existir ineptidão da petição inicial decorrente da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, absolvendo os Réus da Instância.
2. Concretamente, veio entender que o pedido constante da alínea a) do petitório no qual se peticiona a condenação dos 1.º e 2.º RR a
“Reconhecerem os AA como donos e legítimos proprietários do prédio conforme descrito no artigo 1.º e 2.º da PI bem como dos currais e palheiro existente nesse prédio, com excepção da benfeitoria casa/habitação que se encontra implantada nesse prédio a qual é pertença da 1.ª Ré e 3.º R.” se encontra em contradição com o peticionado na alínea j), no qual os AA peticionam que sejam o 1.º e 2.º RR “condenados A pagar o valor de 48.007,00€ aos AA pelo (aquisição) prédio destes, conforme acordado no âmbito do processo n.º 3307/16.1T8VFR, no Juízo local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2”.
3. Entendendo o Tribunal “a quo” “que seria impossível cumular o pedido de pagamento de preço do terreno pelos Réus com o de reconhecimento da propriedade a favor dos Autores”.
4. Ora, obviamente que os AA discordam desta posição, tendo já esclarecido que não existia cumulação de pedidos incompatíveis mas sim interligados, uma vez que peticionam que os RR adquirem um bem dos AA.
5. Convém antes de mais, esclarecer minimamente o histórico do processo, para que se compreender o pedido, o qual se poderá discutir sobre a sua complexidade, mas sobre os quais não se poderá concluir que sejam incompatíveis.
6. Ora, a alguns anos atrás, os AA autorizaram os 1.º (filha dos AA) e 3.º RR, na altura casados, para que estes edificassem a sua habitação em parte de um terreno pertencente aos AA, permanecendo estes a serem possuidores e detentores da parte restante da propriedade.
7. Posteriormente à construção os 1.º e 3.º RR divorciaram-se, tendo posteriormente a 1.º R casado com o 2.º R.
8. Por sua vez, os 1.º e 2.º RR iniciaram a construção de um muro, colocaram um portão e vedaram o acesso dos AA, tanto a pé como de trator, a parte da propriedade dos mesmos, nomeadamente e concretamente palheiros, canastro de milho e currais, o que motivou o actual desentendimento que os AA intentassem a providência cautelar de embargo de obra nova contra os 1.º e 2.º RR.
9. No âmbito dessa providência, os 1.º e 2.º RR contestaram a mesma alegando a aquisição da parcela de terreno onde construíram a casa por usucapião, ou se assim não se entendesse a aquisição da mesma pelo instituto da acessão industrial imobiliária.
10. Ora, em Tribunal e no âmbito da Audiência de Julgamento da Providência, logo se conclui que seria impossível verificar-se a existência da aquisição por usucapião pelo que com a mediação do juiz, realizou-se um acordo, tendo-se acordado entre as partes, perante juiz, funcionário e mandatários das partes que no caso em concreto se aplicaria o instituto da acessão industrial imobiliária, em que quem detivesse o bem de valor superior pagaria o valor que viesse a ser determinado por perito do tribunal a quem detivesses o bem de valor inferior.
11. Nesses termos redigiu-se a Acta nos seguintes termos, a qual não foi objecto de reclamação: “As partes concordam na aplicação do instituto de acessão industrial imobiliária no presente caso. Porém carecem da atribuição de valores objetivos que só poderão ser alcançados através de perícia a realizar pelo tribunal. Assim requerem a realização de perícia para a qual pedem o prazo de 5 dias para apresentar os quesitos. Consoante os valores alcançados as partes comprometem-se a comprar a parte de inferior valor.”.
12. Após a elaboração da Perícia, na qual se conclui pelo maior valor da benfeitoria dos RR, caberia a estes, em cumprimento do acordado, adquirir a propriedade dos RR avaliada em 48.007,00€.
13. Sucede que os RR dão o dito por não dito, rompem o acordado e viram costas ao Tribunal, continuando inclusive com a obra embargada.
14. O Processo continuou os seus trâmites, tendo vindo os 1.º e 2.º RR a serem condenados a respeitar o Embargo de obra nova, relegando o Tribunal relativamente aos restantes pedidos e que consubstanciariam o pedido principal para acção principal a intentar, como foi intentada e que deu origem aos presentes autos.
15. Nos presentes Autos, vieram então os AA. repetir o peticionado na Providência Cautelar, nomeadamente que os RR fossem condenados a reconhecer os AA como legítimos proprietários do prédio.
16. Sendo que os Autores excepcionam do pedido a benfeitoria concretizada pelos RRR relativo à casa edificada pelos, uma vez que a casa não foi construída pelos AA.
17. E acrescentaram ao pedido, que os 1.º e 2.º RR, cumprissem com o acordo assumido em tribunal, ou seja, de pagaram o valor que foi apurado por perito.
18. Poderá ser discutível se a obrigação de aquisição por parte dos RR assume-se como transacção judicial ou como um contrato ou promessa.
19. Na dúvida, na presente acção, peticiona-se o cumprimento do acordo e caso o Tribunal viesse a indeferir o pedido de cumprimento do acordo, sempre os 1.º e 2.º RR viriam a ser condenados no pagamento de uma indemnização aos AA por eventual falta de cumprimento do acordo, bem como, subsidiariamente na destruição da benfeitoria.
20. Assim, sendo, os AA. peticionam que os RR reconheçam que os AA são proprietários do terreno, bem como cumulativamente e em resultado de uma obrigação assumida pelos RR, que estes paguem o preço devido por terem acordado na aquisição,
21. e caso o tribunal entenda que não exista obrigação de pagar o valor apurado pelo Perito, ao menos que os RR indemnizem os AA pela violação do acordo, bem como procedam à destruição da benfeitoria.
22. Pelo supra exposto, é nítido e claro que não existem pedidos incompatíveis, uma vez que, e como foi esclarecido ao Tribunal, os AA não podem lançar mão do instituto da acessão industrial imobiliária, uma vez que somente os RR, enquanto, detentores de uma benfeitoria de valor superior ao bem dos AA, o poderão fazer.
23. Na verdade, os AA. dão a possibilidade dos 1.º e 2.º RR poderem adquirir o prédio, obstando assim à condenação na destruição do mesmo. Com efeito, os AA, conferem todas as possibilidades aos RR para resolverem o problema.
24. Mas, mesmo que hipoteticamente, se possa colocar eventualmente a questão da impossibilidade da cumulação dos pedidos (posição que se consideraria manifestamente injusta e incongruente) o juiz do Tribunal “a quo” ainda poderia e deveria lançar mão dos expedientes que detém para manter a acção, através de basicamente duas possibilidades, as quais tem vindo a ser sufragadas pela Jurisprudência.
25. Poderia o juiz, e conforme tem vindo a ser entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, decretar como improcedentes os pedidos que poderiam entrar em contradição, sendo que no caso em concreto, o que aparentemente apresenta contradição será o do referido na alínea j) do pedido, sendo que relativamente a este existem outros pedidos alternativos e subsidiários.
26. Ou então poderia o juiz convidar os AA a suprir a nulidade, convidado os mesmos a optar entre os pedidos que entendesse serem incompatíveis entre si, através da desistência de alguns dos pedidos que aparentemente se encontrem em contradição, nomeadamente e a título de exemplo pela eventual desistência do pedido de execução do acordo,
27. Sendo que restaria sempre o pedido alternativo de pagamento de uma indemnização pela falta de cumprimento do acordo, bem como o pedido subsidiário do Ponto III, no qual e em caso da condenação no acordo fosse improcedente, fosse a benfeitoria edificada pelos RR demolida.
28. Mas nunca, no nosso humilde entendimento, deveria o juiz determinar a incompatibilidade de pedidos, e isto porque não existe incompatibilidade – os AA não peticionam que os RR sejam declarados proprietários por via da aplicação do instituto da acessão, mas tão somente possibilitam que os 1.º e 2.º RR cumprem com uma obrigação de aquisição assumida de forma livre, espontânea e devidamente acompanhados por advogado da sua escolha perante o tribunal.
29. Ao absolver os RRR da Instância como absolveu, o Juiz do Tribunal “a quo” denega aos AA o direito a uma resolução do litígio existente de forma justa e equitativa, denegando-lhes o direito de acesso à justiça.
30. Ao decidir pela nulidade de todo o processado com base na incompatibilidade de pedidos, o juiz do Tribunal “a quo” violou os artigos 2.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, 154.º, n.º 1, 265.º, n.º 2, primeira parte, 278.º, n.º 3, 607.º, n.º 4, todos do Cód. Proc, Civil e 1305.º e 1311.º do Código Civil.
31. Pelo que necessariamente o Despacho emanado pelo Juiz do Tribunal “a quo” terá que necessariamente ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos Autos.
Termos em que os Venerandos Juízes, reapreciando o processado nos termos supra propostos, deverão revogar o despacho do Juiz que decreta a nulidade do processado por incompatibilidade de pedidos, ordenando o prosseguimento dos Autos para que se faça JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra alegações.
Admitido o recurso e dispensados os vistos dos adjuntos, cumpre decidir.
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II- Do Recurso:
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e no recurso não se apreciam razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º e 639º, nºs 1 e 2, CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26.06.2013, aplicável ao presente processo face ao disposto no artº 8º desta Lei.
As questões a decidir são estas:
A petição inicial é inepta por incompatibilidade substancial dos pedidos formulados nas alíneas a) e j) da petição inicial, que não permita a sua cumulação?
Impõe-se a anulação de todo o processado?
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II.1 - A) Os factos provados
Consideram-se provados os factos que resultam dos articulados e da tramitação processual supra descritos no relatório.
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II.2 - O Direito:
Em processo civil declarativo, o pedido e causa de pedir delimitam o objeto da ação o qual, perante o princípio da estabilidade da instância, que ocorre com a citação (art. 260º do NCPC), não é passível de alteração, salvas as exceções de modificação consignadas na lei.
Nos termos do disposto no artº 552º, nº 1, als. d) e e) do NCPC, o A. deve, na petição inicial e para além do mais que dele consta, expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formular o pedido, exigências estas que constituem corolário necessário do principio do dispositivo mitigado consagrado nos artºs. 3º, nº 1, 5º, nº 1 e 3 e 609º, nº 1, do NCPC, nos termos dos quais e salvas as questões de natureza oficiosa, «o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (…)» (artº 3º, nº 1), “às partes cabe invocar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aquelas em que se baseiam as excepções invocadas” (artº 5º, nº1), sendo certo que “ o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (artº 5º, nº 3) e «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou e objecto diverso do que se pedir» (artº 609º, nº 1), sob pena, aliás, de nulidade da mesma, atento o disposto no artº 615º, nº 1, al. d), 2ª parte, do NCPC.
Só com a alegação da factualidade em que o A. consubstancia a causa de pedir e a formulação de um ou vários pedidos alternativos, subsidiários ou cumulativos ou até genéricos, nos termos dos artºs 553º, 554º, 555º e 556º, todos do NCPC, é que o Réu estará em condições de contraditar os factos ou seja, de se defender. Princípio do contraditório com consagração no artº 3º, nºs 1, 2 e 3, NCPC.
O pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo A. e a causa de pedir o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Como se sabe a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no NCPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
Ora, dispõe o art.º 555º, nº 1, que “pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”.
Os pedidos são incompatíveis quando o sejam os efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um deles, ou quando o reconhecimento de um excluir a possibilidade de verificação dos restantes, sejam eles emergentes ou não da mesma causa de pedir.
A norma em causa visa a “incompatibilidade intrínseca ou substancial, isto é, a incompatibilidade de efeitos jurídicos que o autor se propõe obter com os vários pedidos”[1]
Do art.º 186º, nºs 1 e 2, al. c), NCPC, resulta que a petição inicial é inepta e o processo é todo nulo quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Ora, a senhora juíza na audiência prévia de 28.05.2018 permitiu a discussão das partes quanto à delimitação dos termos do litígio e alertou os autores para a incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados cumulativamente sob as alíneas a) e j) do ponto 1, nos termos em que vinham formulados na petição inicial, tendo o ilustre mandatário dos autores solicitado prazo para se pronunciar por escrito, o que lhe foi concedido.
Não acataram os autores tal convite ao aperfeiçoamento da petição inicial ou desistência de algum dos pedidos cumulados em causa, insistindo pela sua legalidade processual com o requerimento de 07.06.2018.
Seguiu-se a decisão recorrida, que não é uma decisão surpresa, pois os autores foram avisados da intenção manifestada pela senhora juíza a quo e sobre a questão se puderam pronunciar ou tomar a atitude processual que evitasse a prolação daquela decisão.
Mas, não se concorda com a decisão recorrida e passamos a explicar a nossa posição, acolhendo parte das conclusões recursivas dos apelantes.
Os autores poderiam ter intentado acções diferentes, uma com os pedidos das alíneas a)a i) e outra com os pedidos das alíneas j) a l). Optaram por intentar uma única acção, com duas causas de pedir diferentes que, de acordo com o que alegaram na petição inicial, suportam os pedidos principais cumulados e os subsidiários e alternativos[2]. Nada obsta a esta única acção, até aconselhando razões de economia processual e de acesso ao direito, desde que os pedidos formulados cumulativamente não sejam substancialmente incompatíveis.
Não obstante isso, as duas causas de pedir – invocação do direito de propriedade sobre o prédio como descrito nos artigos 1º e 2º da petição inicial e realização pelos réus de atos de perturbação do domínio dos autores e uma pretensa responsabilidade contratual ou pré-contratual dos réus em virtude de acordo celebrado no Procº nº 3307/16.1T8VFR - não perderam autonomia e os respectivos pedidos não se apresentam substancialmente incompatíveis, de modo que determinem a nulidade de todo o processo à luz do disposto no artº 186º, nºs 1 e 2, al. c), NCPC.
É lapidar o sumário do douto Acórdão desta Relação, de 12.10.1998 (Azevedo Ramos)[3]” I - A ineptidão da petição por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, radica na ininteligibilidade da posição do autor e na consequente impossibilidade de decidir.
II - Saber se o autor tem ou não os direitos que se arroga nos pedidos cumulados, é questão de fundo, ou seja, de procedência ou improcedência dos pedidos”.
Ora, as considerações feitas na decisão recorrida sobre o antagonismo entre os aludidos pedidos no plano legal dizem respeito ao mérito desses pedidos, que é questão de fundo e determinará a eventual absolvição dos réus de todos ou alguns dos pedidos e não nulidade processual[4]. Poderia até tal decisão de mérito de algum dos referidos pedidos ser tomada no saneador, de acordo com o disposto no artº 595º, nº1, alº b), NCPC, mas não foi esse o caminho trilhado pela senhora juíza a quo.
A situação é bem diferente de outras em que, definitivamente, há incompatibilidade entre os pedidos, como é o caso de ser pedido ao mesmo tempo, a condenação na realização da prestação e na omissão de a realizar, ou a resolução de um contrato e a condenação do réu no seu integral cumprimento. Há nestes casos uma clara contradição no objeto do processo (pedido individualizado pela causa de pedir) que impede a sua necessária identificação e gera claramente a nulidade do processo.
A esta instância de recurso resta, assim, revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova e termos subsequentes.
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III- Decisão:
Nestes termos, ACORDAM os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida ordenando-se o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Custas pelos apelados.
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Porto, 24.01.2019
Madeira Pinto
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
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[1] A.dos Reis, Comentário, Vol. II, p.390.
[2] Cfr, neste sentido, Paulo Cunha, in Processo Comum de Declaração, Tomo I, págs. 209 a 211, Luso Soares, in Direito Processual Civil, 1980, pág. 259, Artur Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1981, págs. 157 e ss.. e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, págs. 84 e 85.
[3] www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, Acórdãos do STJ de 06.05.2008, 03.05.2012 e 28.11.2012, in www.dgsi.pt.