Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
430/19.4T8OAZ-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
Nº do Documento: RP20211012430/19.4T8OAZ-B.P1
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Frustrada a venda em leilão electrónico e por negociação particular, pode o exequente obter a adjudicação do bem penhorado oferecendo valor inferior ao valor anunciado para venda.
II - Mesmo nessa hipótese, a adjudicação deve observar o regime do art. 800º e seguintes do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N. 430/19.4T8OAZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis – Juiz 2


REL. N.º 623
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


1 – RELATÓRIO

Nos presentes autos de Execução Sumária em que é exequente B… SL e executada C… , Lda, nos quais foi penhorado um imóvel desta, correspondente ao prédio urbano sito na Rua …, em São João da Madeira, composto de casa de cave, rés-do-chão, 1.º andar e logradouro, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de … sob o artigo 1670 e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 960/19890202, foi autorizada a sua adjudicação à exequente, por despacho judicial subsequente a requerimento do agente de execução, pelo valor de 255.000,00 euros.
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Tal decisão, após relato das vicissitudes do procedimento de venda, traduz-se no seguinte:
“Face ao supra exposto, atendendo, pois, às diligências de venda efetuadas pela sr. agente de execução em relação ao imóvel penhorado nos autos, ao facto de não ter havido propostas de valor igual ou superior aos 85% do valor base de venda no leilão nem na tentativa de venda por negociação particular (decorreu aproximadamente por 90 dias) e o pedido de adjudicação da exequente ser inferior aos 85% do valor base da venda, mas superior a 85% do valor patrimonial do imóvel, considerando ainda às contingências atuais do mercado imobiliário, autoriza-se a adjudicação pelo valor proposto pela exequente.”
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pela executada, por considerar inaceitáveis quer a adjudicação por valor tão inferior ao valor base de venda, quer a justificação usada para o efeito.
Termina o seu recurso alinhando as seguintes conclusões:
1ª Tendo havido oposição da executada, aqui recorrente, ao pedido de adjudicação da exequente veio a AE, requerer a pronuncia do Tribunal.
2ª Foi então proferido Douto Despacho datado de 13.05.2020 que aqui se coloca em crise o qual, muito sumariamente e com consequências nefastas para a executada, determinou: “(…)” (consta o excerto do despacho transcrito supra)
3ª É desta parte do despacho – dispositivo - que a aqui recorrente discorda em absoluto, nomeadamente e em concreto, quanto à autorização da adjudicação por valor superior a 85% do valor patrimonial….:, mas inferior a 85% do valor base.
4ª O Valor Base da Venda é de 396.500,00€ (trezentos e noventa e seis mil e quinhentos Euros) e o valor mínimo – segundo a lei aplicável - pelo qual podia ser efectuada a adjudicação era de 337.035.00€ (85% do valor base).
5ª A exequente efectuou pedido de adjudicação nos autos pelo valor de 255.000,00€, que fica abaixo de 85% do valor Base de venda.
6ª Reza expressamente o nº 3 do art. 799º do Código de Processo Civil, que se refere a requerimento para adjudicação: “O requerente deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o nº 2 do art. 816º
7ª Nos termos do referido nº 2 do art. 816º do CPC “O valor a anunciar para a venda é igual a 85% do valor base dos bens.
8ª E, acrescenta o nº 3 do art. 821º desse mesmo CPC (aplicável à adjudicação por força do art. 801º do CPC): “Não são aceites as propostas de valor inferior ao previsto no nº 2 do art. 816º, salvo se o exequente, o executado e todos os credores com garantia real sobre os bens a vender acordarem na sua aceitação”
9ª A executada não concordou com a adjudicação por tal valor, e não concordou fundamentadamente, conforme resulta da sua pronúncia nos autos que consta do pedido de decisão enviado pela AE ao Tribunal.
10ª A Decisão proferida aqui colocada em crise viola de forma incontornável e inapelável o disposto nos arts. 799º nº 3, 816º nº 2 e 821º nº 3 (por via do art. 801º) do CPC.
11ª Perante pedido de adjudicação à margem da lei, e face à oposição da executada, a Agente de execução remeteu a questão à MMª Juiz que, de imediato, decidiu e fê-lo contra a lei.
12ª Tal decisão, prejudica de forma inapelável, a executada, impedindo-a de obter um preço justo, ou pelo menos razoável, pelo seu imóvel, causando-lhe grave e irreparável prejuízo
13ª Os interesses da exequente sempre estariam assegurados, quanto mais não fosse pelos juros que se vencem á taxa legal, incomparavelmente superior a taxa de juros que se consegue actualmente obter no mercado em qualquer aplicação sem risco.
14ª Viola assim tal decisão ainda o disposto no art. 20º da Constituição de Republica Portuguesa (Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva), nomeadamente o consagrado direito a um processo justo e equitativo.
15ª E ainda viola também o nº 1 do art. 6º da Convenção Europeia, que consagra e impõe tal processo equitativo, onde não podem ser descurados os direitos do próprio executado.
16ª Pois, se a exequente tem direito a executar o executado para obter o pagamento do que lhe é devido, também o exequente tem direito a que os seus bens não sejam, injustificadamente ou sem justificação suficiente e fundamentada, vendidos na execução por valor muito abaixo do seu valor real, valor esse comprovadamente constante de avaliação existente nos autos, beneficiando de forma ilegítima a exequente.
17ª O facto da oferta de adjudicação ser 85% superior ao valor patrimonial do imóvel, (????) não tem qualquer protecção na lei em vigor, pois nada consta na lei que permita tirar a conclusão que é possível a aceitação de pedido de adjudicação por 85% do valor patrimonial.
18ª Uma coisa é 85% do valor base, outra completamente distinta é 85% do valor patrimonial… e é senso comum e facto notório que não carece de qualquer prova o valor patrimonial dum prédio não corresponde necessariamente, nem de perto nem de longe, ao seu valor real. Além disso
19ª A própria exequente refere – em requerimento que juntou aos autos após a decisão aqui colocada em crise, mas antes do presente recurso, e no qual chega a admitir fazer uma nova avaliação - que “a pandemia não fez baixar o valor dos imóveis”. (referencia 11494102 e foi enviado aos autos pela exequente em 17.05.2021)
20ª A avaliação com cerca de cinco anos foi feita a pedido da própria exequente para servir de base à hipoteca que a executada lhe concedeu.
21ª Pelo que, o facto da exequente pretender agora adquirir o prédio por um valor de 255.000,00€, que representa menos 141.500,00€ do que o valor que foi avaliado a pedido dela própria há apenas cerca de cinco anos, e por menos 82.025,00€ sobre o próprio limite legal (85% do valor base), constitui abuso de direito
22ª Por uma divida de 225.587,00€, e uma quantia exequenda inicial de 230.690,90€, receberia um prédio do valor de 396.500,00€, representando tal facto um manifesto abuso de direito, nos termos do art. 334º do Código Civil, sendo ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, o que é o caso
23ª Como tal, ainda que não fosse impedido por lei, não deveria no caso concreto permitir-se a adjudicação por tal valor, descendo abaixo dos 65% do valor da avaliação - que é neste momento o valor base.
24ª E não será de descer o valor base sem qualquer fundamentação sustentada e sustentável em factos concretos nomeadamente uma nova aferição ou avaliação do imóvel em questão, no caso de não se conseguir obter após nova tentativa de venda.
25ª Estando em causa direitos de executada e exequente, e colidindo os mesmos devem nos termos do nº 1 do art. 335º do Código Civil “ devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. “, o que daria primazia a uma venda por preço justo
26ª E, a falta de fundamentação do despacho, ou sua insuficiência é gritante, pelo que também por ai deve improceder o pedido de adjudicação
27ª Nos anúncios de venda foi claramente publicado como valor de avaliação o seu valor patrimonial (ver os dois anúncios), o que não corresponde à realidade, e tal lapso induz em erro qualquer eventual interessado, o que deve também ser levado em conta na decisão a proferir.
28ª Deve assim ser revogada a decisão proferida sendo a mesma substituída por outra que negue a pretensão da adjudicação por valor inferior a 85% do valor base.
29ª Além da inadmissibilidade legal seria preterido com a presente decisão aqui colocada em crise o direito à venda por preço justo.
30ª Qualquer decisão nesse sentido só deveria ser tomada após nova tentativa frustrada de venda pelo referido valor base e após nova avaliação que permitisse fixar um valor base com alguma coerência, e não meramente um valor patrimonial que não tem correspondência com o valor real do imóvel.
31ª Deverá assim recusar-se tal proposta de adjudicação nos termos legais, determinando-se nova venda com os mesmos valores mínimos - por um período mais alargado e com publicitação adequada do imóvel e das suas valências, conforme anteriormente defendido.
32ª A exequente sempre terá o seu crédito garantido e plenamente assegurado pela hipoteca que executa, pelo que a prorrogação do prazo de venda apenas constituirá um pequeno adiamento por pequeno hiato de tempo, assegurando juros vincendos, até ver satisfeito o seu crédito.
33ª Deverá ainda e para o efeito considerar-se que o tempo em que decorreu o leilão foi um tempo completamente atípico, de plena excepcionalidade, em plena pandemia COVID 19 (segunda vaga), o que limitou e afastou potenciais interessados.
34ª Deve ainda ter-se em conta que a duração da execução não ser superior ao tempo médio das execuções e que o tempo e diligências de venda atentas até as circunstâncias pandémicas e de suspensão de prazos judiciais não é excessivo e o facto do tempo de venda ser muito reduzido.
35ª A decisão proferida viola de forma clara e ostensiva o disposto nos arts. 799º nº 3, 816º nº 2 e 821º nº 3 do CPC, o artigo 154º também do Código de Processo Civil, e os arts. 334º e nº 1 do art. 335º do Código Civil e ainda o artigo 20º da CRP e o nº 1 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
36ª Como tal deve ser revogada por outra que não admita a adjudicação pelo valor proposto – abaixo dos 85% do valor base,
Revogando-se o mesmo Despacho no sentido preconizado pela recorrente/executada se fará a habitual Justiça.
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Não se mostra junta resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo, designadamente perante a rejeição dos argumentos da executada, tendentes à atribuição de efeito suspensivo.
Mostra-se devidamente fixado o efeito do recurso, em face do disposto no art. 853º, nº 4 do CPC, pelo que nada cumpre alterar a esse propósito.
Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso. No caso, e considerando a sua ordem lógica, apesar da diferente organização do recurso, importará decidir:
1 – Se ocorreu qualquer irregularidade na publicação dos anúncios de venda, que possa prejudicar a decisão recorrida.
2 - Se, nas circunstâncias do caso, é admissível, perante o regime processual executivo, a adjudicação do imóvel penhorado, pelo valor proposto pela exequente.
3 – Sem prejuízo disso, se o despacho é nulo, por falta de fundamentação.
4 - Se a decisão viola disposição constitucional ou o direito a um processo equitativo, nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
5 – Se o exercício do direito a adjudicação pelo valor referido constitui abuso de direito.
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Para a análise das questões identificadas, é útil ter presente a decisão do tribunal recorrido, onde se fixam os respectivos pressupostos relevantes que, constituindo elementos do próprio processo, se têm por devidamente demonstrados, designadamente no respeitante aos valores referidos, ao teor da proposta de adjudicação e à oposição da executada:
«Veio a AE expor o seguinte:
"1 – Aquando da decisão da venda do imóvel penhorado nos presentes autos, foi decidida a venda tendo por valor base o valor da avaliação que a executada remeteu aos autos (396.500,00 euros), valor esse superior ao valor patrimonial do imóvel (293.250,63 euros), documento em anexo;
2 - Em 21/01/2020, realizou-se o encerramento do leilão para venda do imóvel não tendo sido apresentadas propostas de valor igual ou superior aos 85% do valor base de venda, tendo sido a melhor proposta apresentada no valor de 243.000,00. Por decisão da signatária datada de 27/01/2020 foi determinada a venda do referido imóvel por negociação particular, através do site e leilões mantendo-se o mesmo valor base de venda, sendo, no entanto, colocadas à consideração das partes as propostas obtidas, documentos em anexo;
3 - O imóvel esteve em venda por negociação particular no referido site, sensivelmente por 90 dias, tendo a melhor proposta apresentada o valor de 199.500,00 euros, documento em anexo;
4 - Notificados a executada, exequente e credores reclamantes da proposta de aquisição no valor de 199.500,00 euros, veio a executada por requerimento comunicar que não aceita a venda pela proposta apresentada, reiterando que o imóvel deve ser vendido pelo valor constante da decisão de venda, documento em anexo;
5 – Exequente e credores reclamantes foram notificados do requerimento da executada;
6 – Veio a exequente requerer a adjudicação do imóvel pelo valor de 255.000,00 euros – valor superior aos 85% do valor patrimonial do imóvel, inferior aos 85% do valor base da decisão de venda, documento em anexo;
7- Notificados os credores reclamantes e executada, veio a executada se pronunciar sobre o pedido de adjudicação apresentado, opondo-se ao referido pedido por o valor ser inferior aos 85% do valor base de venda, reiterando que a venda deverá ser feita pelo valor constante da decisão de venda, documento em anexo."
Considerando a oposição da executada ao pedido de adjudicação da exequente, veio a AE requerer a pronúncia do tribunal.
Face ao supra exposto, atendendo, pois, às diligências de venda efetuadas pela sr. agente de execução em relação ao imóvel penhorado nos autos, ao facto de não ter havido propostas de valor igual ou superior aos 85% do valor base de venda no leilão nem na tentativa de venda por negociação particular (decorreu aproximadamente por 90 dias) e o pedido de adjudicação da exequente ser inferior aos 85% do valor base da venda, mas superior a 85% do valor patrimonial do imóvel, considerando ainda às contingências atuais do mercado imobiliário, autoriza-se a adjudicação pelo valor proposto pela exequente.»
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Apesar de colocada apenas em último lugar, é logicamente anterior às demais a questão referente a uma eventual irregularidade no procedimento de venda do imóvel em causa, que antecedeu a proposta de adjudicação do exequente, por alegadamente ali, nos anúncios de venda, ter sido indicado o valor patrimonial tributário do imóvel e não o seu valor de mercado, apontado para servir de valor base à venda.
Alega agora a apelante que esse lapso foi apto a induzir em erro qualquer eventual interessado e deve ser agora tido em conta.
Apesar de não operar a qualificação jurídica devida, o que a apelante concretiza, ao suscitar tal questão, é a arguição de uma nulidade que teria ocorrido na fase inicial do procedimento de venda.
Acontece que os autos não revelam o referido lapso. Mas, ainda que assim não fosse, a irregularidade apontada sempre seria uma nulidade secundária, sujeita ao regime dos arts. 195º e 199º do CPC e, por não ter sido arguida tempestivamente e perante o próprio tribunal, sempre teria de considerar-se sanada.
Inexiste, pois, relativamente a essa fase do processo executivo, qualquer nulidade que possa agora ser apreciada e condicione já a apreciação do mérito da causa.
Improcederá, pois, a apelação, nesta parte.
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De seguida, cabe decidir se, nas circunstâncias do caso, é admissível, perante o regime processual executivo, a adjudicação do imóvel penhorado, pelo valor proposto pela exequente.
Como se referiu supra, foi decidida a venda do imóvel tendo por valor base o respectivo valor de mercado (396.500,00 euros) aferido a partir de uma avaliação trazida aos autos e que ninguém pôs em causa. Esse valor era superior ao valor patrimonial tributário do imóvel, que era de 293.250,63 euros, e a sua utilização, para se anunciar o valor da venda, correspondeu ao cumprimento ao disposto no art. 812º, nº 3 do CPC.
Assim, tal como dispõe o art. 816º, nº 2 do CPC, o valor anunciado para a venda foi equivalente a 85% daquele montante de 396.500,00€, isto é, 337.025,00€.
A modalidade da venda foi determinada em observância do disposto no art. 837º do CPC, com a adopção da solução de leilão electrónico. É desprovida de polémica a conclusão sobre o insucesso dessa solução, que apenas conseguiu, no leilão ocorrido em 21/1/2020, a proposta de 243.000,00€, inferior ao valor anunciado para a venda.
Como tal, e ainda sem controvérsia, em 27/01/2020, a agente de execução determinou que a venda prosseguiria na modalidade de negociação particular, a seu cargo, através do site e-leilões, mantendo-se o mesmo valor base de venda, sendo, no entanto, colocadas à consideração das partes as propostas que viessem a ser obtidas.
Anunciada a venda em 30/9/2020, com limite a 15/12/2020, só veio a ser colhida uma proposta de compra, pelo valor de 199.500,00€.
Ouvidas as partes, veio a executada pronunciar-se contra a aceitação da proposta.
Foi nessas circunstâncias que a exequente formulou a sua proposta de que o imóvel lhe fosse adjudicado, pelo valor de 255.000,00€.
É certo que esse valor é inferior ao anunciado como sendo o mínimo para venda, que, como vimos, ascendia a 337.025,00€ (85% de 396.500,00€). E é certo que também quanto a ele não se pode concluir pela concordância da executada, o que inibe a verificação do pressuposto constante do nº 3 do art. 821º e a eventual aplicação do seu regime ao caso sub judice.
Importa, no entanto, apurar se seria admissível a venda, em negociação particular, por aquele valor e se, nas mesmas circunstâncias, é admissível a adjudicação.
Tal como dispõe o art. 832º, al. f), do CPC, a venda por negociação particular é a solução que se segue à frustração da venda em leilão electrónico, tal como à frustração da venda por propostas em carta fechada (cfr. al. d) do mesmo preceito).
Quanto à venda por negociação particular, é unânime a compreensão do respectivo regime sobre a não vinculação do negócio a realizar à imprescindibilidade de um preço equivalente, pelo menos, a 85% do valor base da venda. E isso bem se compreende (obviamente, na falta do pressuposto de acordo entre todos os interessados): esse valor já se revelou inalcançável numa anterior modalidade de venda (v.g. proposta em carta fechada ou em leilão electrónico) e a sua aceitação como requisito imprescindível tenderia a inviabilizar nova e sucessivamente a concretização de qualquer venda (entre muitos outros, cfr. Ac. do TRC de 26-02-2019, proc. nº 1594/09.0TBFIG-D.C1; Ac. do TRP de 9/11/2020, proc. nº 942/05.7TBAGD-D.P1; Ac. do TRC de 8/3/2016, proc. nº 1037/10.7TJCBR-B.C1).
Em qualquer caso, a venda por um preço inferior a 85% do valor base de venda dependerá sempre de um juízo de adequação, por parte do tribunal, na consideração de diversos factores. Veja-se o que a esse propósito foi descrito no Ac. deste TRP, de 9/11/2020 (proc. nº 942/05.7TBAGD-D.P1), que, de resto, traduz o que a jurisprudência vem afirmando repetidamente: “Havendo oposição, só deve ser autorizada, pelo juiz, a venda por um preço inferior ao anteriormente anunciado para a venda por propostas em carta fechada se tal corresponder aos interesses do executado, da exequente e dos demais credores com garantia sobre os bens a vender, o que tem de resultar da ponderação dos diversos factores do caso, designadamente, da duração da execução, do período de tempo já decorrido com a realização da venda, da evolução da conjuntura económica, das potencialidades da venda do bem, do interesse manifestado pelo mercado, da desvalorização sofrida e a sofrer, dos valores de mercado da zona e de outros elementos relevantes para ajuizar acerca da aceitação da oferta.”
Aceitando-se esta solução como a adequada para as situações em que a execução prossegue para a modalidade de venda por negociação particular, cabe ponderar se uma solução homóloga deve ser aceite para uma hipótese em que o próprio requerente requeira a adjudicação do imóvel penhorado, mas por um preço inferior ao do anunciado para venda. E isto porquanto a regra do art. 799º, nº 3 do CPC parece impedi-lo, ao dispor: “O requerente deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 816.º.”
A vinculação do exequente ou de qualquer credor reclamante à satisfação, pelo menos, do valor anunciado para venda, no caso de pretenderem que o bem penhorado lhes seja dado em pagamento do seu crédito justifica-se pela necessidade de prevenir que uma tal prerrogativa possa redundar em prejuízo de outros credores ou do próprio executado, ao ser retirado do património do executado aquele bem, por preço inferior ao seu justo valor. É do interesse de todos que a adjudicação se faça pelo melhor preço. De resto, é esse o interesse que se salvaguarda com a diferença do regime da adjudicação consoante a venda já esteja anunciada ou não, tal como estabelece o nº 4 daquele art. 799º.
Todavia, essa limitação deixa de ter fundamento quando a venda por propostas em carta fechada, em leilão electrónico ou, como no caso em apreço, até a venda por negociação particular já se frustraram, por nenhum comprador se ter revelado interessado na aquisição nas condições anunciadas.
Com efeito, mal se compreenderia que que a transmissão do bem penhorado pudesse ocorrer para qualquer comprador por um valor inferior ao antes anunciado, mas que isso não pudesse acontecer no âmbito de uma adjudicação ao exequente. É que, quer para os fins da execução, quer para os interesses do executado, o resultado será exactamente o mesmo e qualquer das situações.
Entendemos, pois, impor-se uma interpretação restritiva da regra do nº 3 do art. 799º do CPC, no sentido de que a limitação aí prevista só se destina às situações em que ainda se não tenha frustrado, por ausência de proponentes ou pela apresentação de propostas de valores inferiores, a venda pelo preço anunciado nos termos do art. 816º, nº 2 do CPC.
Este mesmo entendimento era defendido por Alberto dos Reis (Processo de Execução, vol. II, pg. 303), embora, em face das modalidades de venda então previstas, o referisse à hipótese de o requerimento de adjudicação ser apresentado depois de frustrada a venda em hasta pública, sucessivamente, em 1ª e 2ª praças. Ensina Alberto dos Reis, sobre a fixação do preço da adjudicação: “Para o efeito da fixação do preço há que distinguir:
a) Ou a adjudicação é requerida antes da segunda praça;
b) Ou é requerida depois.
No 1º caso o requerente não pode oferecer preço inferior ao valor em que os bens teriam de ir à praça; no 2º, pode oferecer qualquer preço.”
Questão diferente é a dos termos de contraditório e controlo da decisão de venda por um preço inferior ao previsto no nº 2 do art. 816º do CPC.
Como se referiu supra, no caso da venda por negociação particular, haverão de ponderar-se todos os interesses em presença e apurar se a venda nos termos angariados pelo agente de execução, ainda que por um valor inferior ao resultante do nº 2 do art. 816º do CPC, se revela uma solução adequada aos concretos termos do caso, satisfazendo os fins da execução sem uma agressão intolerável aos interesses do executado ou de outros credores reclamantes. Tudo a revelar-se após análise de uma proposta justificada pelo agente de execução, sujeita a contraditório, e transposto para uma decisão devidamente fundamentada do tribunal.
No entanto, esta solução, que a foi a utilizada na decisão recorrida, com referência à razoabilidade do preço e a umas genericamente referidas condições do mercado imobiliário, não pode ser transposta, por analogia, para a hipótese de adjudicação ao exequente, por valor inferior ao anunciado para venda. E isso porquanto inexiste, para o caso da adjudicação, lacuna quanto aos termos de contraditório e controlo que devem observar-se, o que prejudica a importação daquela solução que se aplica para as hipóteses de venda por negociação particular.
Com efeito, para que se opere a adjudicação do imóvel penhorado ao próprio exequente, e sem prejuízo de isso poder ocorrer por preço inferior ao do art. 816º, nº 2 do CPC, nas circunstâncias supra descritas, não pode deixar de observar-se ainda o regime previsto nos arts. 800º e 801º do CPC.
Só a observância desse regime assegurará o necessário contraditório, incluindo a possibilidade de o executado conseguir comprador por valor superior ao oferecido, assim se inibindo, simultaneamente, a arguição de questões como as de abuso de direito ou de violação da garantia de processo equitativo.
Por outro lado, a observância de tal procedimento não decorre já sob a ameaça de eventual insucesso, porquanto, a final, pelo menos sempre se logrará a alienação do bem penhorado mediante o valor oferecido pelo exequente.
Assim jamais poderá rejeitar-se o seu cumprimento à luz da afirmação de que possa consubstanciar um retrocesso ou uma repetição de uma fase anterior do processo. De resto, nem isso poderá decorrer da regra do nº 3 do art. 801º (“3-Se o requerimento de adjudicação tiver sido feito depois de anunciada a venda por propostas em carta fechada e a esta não se apresentar qualquer proponente, logo se adjudicam os bens ao requerente.”), por tal disposição se justificar em face da regra do art. 799º, nº 3, visando a hipótese em que o requerente não ofereceu um preço inferior ao valor anunciado para venda, como acontece no caso em apreço.
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Nestes termos, por todo o exposto, sem prejuízo de se rejeitar a razão da apelante quanto à alegada impossibilidade de adjudicação, ao exequente, do imóvel penhorado pelo valor de 255.000,00€, pois que tal se considera admissível, cumpre revogar a decisão recorrida na medida em que autorizou, sem mais, essa adjudicação.
Consequentemente, o processo regressará ao tribunal recorrido para que, na consideração do requerimento de adjudicação por esse mesmo valor, seja observado o regime do art. 800º e ss. do CPC.
Fica, consequentemente, prejudicada a apreciação das restantes questões identificadas supra.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a apelação, em razão do que, revogando a decisão recorrida, determinam que o processo regresse ao tribunal recorrido para, na consideração do requerimento do exequente, de adjudicação do imóvel penhorado pelo valor de 255.000,00€, seja observado o regime do art. 800º e ss. do CPC.
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Custas como na execução, a final.
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Porto, 12 de Outubro de 2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda