Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2928/16.7T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: INCIDENTE
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PARECER DO ADMINISTRADOR
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
ELEMENTOS CONTABILISTICOS
Nº do Documento: RP201810092928/16.7T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 10/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL(2013)
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º848, FLS.58--68)
Área Temática: .
Sumário: I - O prazo para o administrador de insolvência apresentar parecer de qualificação de insolvência no respectivo incidente (Art.º 188, n.º2 do CIRE), tem carácter meramente ordenador.
II - A obrigação de manter a contabilidade organizada integra as situações de falta de elementos contabilísticos, quando essa omissão for relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2928/16.7T8AVR-A.P1
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Recorrente: B…
Recorridos: - C…, L.da
- Ministério Público
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Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
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Nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão: “O sr. administrador da insolvência emitiu parecer nos termos do art. 188º, nº 1 do CIRE pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita, esclarecendo que:
- cfr. IES da insolvente referente ao ano de 2013, no dito período registou capitais próprios negativos de €116.802,37 pelo que desde então se encontrava em situação de insolvência;
- a insolvente não procedeu ao depósito das contas na CRC relativas aos anos de 2013 a 2015;
- das diligências que encetou resulta que nos três anos que antecederam o início da insolvência esta só terá procedido à alienação, pelo preço de €2.000,00, de um veículo que estava avariado e sobre o qual incidia uma penhora em benefício de quantia exequenda que foi paga com o produto da venda.
Concluindo que apesar do descrito não é possível concluir que a situação da empresa tenha sido agravada, de uma forma deliberada e dolosa.
Conforme requerido pela sr.ª Digna Procuradora, o sr. Administrador da Insolvência prestou novos esclarecimentos e juntou documentos.
O Ministério Público pugnou pela qualificação da insolvência como culposa por referência ao disposto no art. 186º, nº 1 e 2, al. h) e 3, als. a) e b) do CIRE, alegando em fundamento que:
1) O gerente da insolvente não cumpriu com o dever de manter a contabilidade organizada a partir de 2013 e não apresentou nem procedeu ao depósito de contas dos exercícios de 2013, 2014 e 2015.
2) Entre a eclosão da insolvência, em 2013, e a instauração do processo de insolvência, a devedora contraiu novas responsabilidades que contribuíram para o agravamento do passivo, a saber, salários e compensações devidas pela cessação do contrato de trabalho, contribuições à segurança social de março e desde setembro 2013 a abril de 2016, e à Autoridade Tributária de IVA de 2015 e IVA, IRS e IRC de 2016.
Indicou como pessoa a afectar o gerente da requerida, B….
Requereu a inquirição do sr. Administrador da Insolvência.
O requerido deduziu oposição alegando que:
1) As contas foram todas depositadas em 2015, quando se apercebeu que o anterior TOC não estava a cumprir com tais obrigações, tendo chegado a reter documentação da insolvente que apenas foi entregue na sequência de apresentação de queixa à OTOC e das insistências do requerido, acrescentando que a falta de depósito das contas não contribuiu para a insolvência.
2) A partir de 2013 a insolvente não contraiu novas responsabilidades, apenas uma conta caucionada que tinha na D… foi revertida em contrato de mútuo para cumprimento daquela, e as dificuldades económicas sentidas com a crise económica dos anos de 2011 e ss. levaram à perda de clientes fixos, e culminou em 2016 com a resolução do contrato por parte da Santa Casa da Misericórdia, depois de nove anos de duração.
Concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita, arrolou testemunha e requereu a notificação de terceiros para junção de documentos.
Fixado o objecto dos autos, de qualificação da insolvência como culposa ou fortuita, e enunciado os temas de instrução os autos prosseguiram para realização de audiência de julgamento com audição do sr. Administrador da Insolvência, inquirição de testemunha e junção de documentos oficiosamente ordenada.
A final foi proferida a seguinte Decisão:
Decisão:
Em face do exposto decide-se:
a) Qualificar como culposa a insolvência de C…, Ldª.
b) Declarar afectada pela qualificação o requerido B….
c) Declarar o requerido inibido, pelo período de 30 meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa.
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido.
e) Condenar o requerido a indemnizar os credores titulares de créditos constituídos sobre a insolvente a partir de janeiro de 2014, inclusive.
Custas do incidente a cargo do requerido com duas UC’s de taxa de justiça.
Do valor da causa para efeitos de recurso – art. 306º do CPC:
Dispõe o art. 296º, nº 1 do CPC que A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido., e ao qual se atende, desde logo, para determinar a relação da causa com a alçada do Tribunal para efeitos de recurso (para efeito de custas judiciais o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no Regulamento das Custas Processuais, conforme nº 3 do art. 296º). Sobre os incidentes prevê o art. 304º, nº 1 que o respectivo valor é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores.
Ora, nos termos dos arts. 301º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Para efeitos de custas, o valor da causa no processo de insolvência (…) é o atribuído ao activo no referido inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens se for o caso. Sob a epígrafe Base de tributação estabelece o art. 303º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, (…) os incidentes (…) de qualificação de insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa.
Importa assim atender que o art. 301º prevê o valor para o processo de insolvência na globalidade prevista pelo art. 303º, pelo que desde logo seriamos compelidos a desconsiderá-lo como regra legal para fixação do valor tributário de cada incidente nele processado quando as custas não hajam de ficar a cargo da massa e, assim, a desconsiderar a regra geral do art. 304º, nº 1 (que fixa o valor dos incidentes por referência ao valor da causa em que se inserem). O valor deverá ser então fixado em função dos interesses/valores que no presente incidente é objecto de discussão, de acordo com os critérios previstos pelos arts. 300º e ss. do Código de Processo Civil, desde logo porque não faria sentido fazer depender a possibilidade de recurso da sentença de qualificação do valor de avaliação dos bens inventariados ou do valor do activo.
Neste contexto, e considerando que pelo seu objecto e consequências pessoais para os afectados o incidente de qualificação da insolvência versa sobre interesses imateriais, fixa-se o respectivo valor tributário no equivalente à alçada da Relação e mais €0,01, cfr. art. 303º do Código de Processo Civil.
Após trânsito cumpra-se o art. 189º, nº 3 do CIRE remetendo certidão da presente sentença à Conservatória do Registo Civil”.

Desta decisão apelou B… oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
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Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente sentença recorrida ser substituída por outra na qual se qualifique a presente sentença como fortuita e que desafecte o administrador desta qualificação e que não o iniba o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Aguarda-se pela V. acostumada justiça!

Foi apresentada resposta pelo M.P.º, terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
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Termos em que se conclui que o recurso não deve merecer provimento, devendo manter-se a sentença recorrida, como é de JUSTIÇA.

Cumpre agora decidir.
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Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações – artigo 635 do Código de Processo Civil – das formuladas pelo Apelante resulta que as questões colocadas à nossa apreciação são as seguintes:
- Prazo para apresentação do parecer pelo sr. Administrador;
- Saber se a insolvência deve ser qualificada como culposa ou como fortuita, como defende o apelante.
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Vejamos.
Os factos a considerar para a decisão do pleito e constantes da sentença recorrida são os seguintes:
Provados:
1. De acordo com os fundamentos dos pareceres da qualificação da insolvência, que delimitam os temas em discussão nos autos, o processado nos autos e prova testemunhal e documental produzida, resultam assentes e demonstrados os seguintes factos:
a) C…, Ldª, constituída através de contrato de sociedade inscrito no registo em 06.02.1970, tinha como objecto social ‘Lavandaria a seco’, com o capital social de €160.000,00 distribuído por quotas sociais que em 09.03.2012 foram inscritas em benefício do requerido (€80.000,00 e €79.000,00), que permaneceu sozinho na gerência da requerida, e da respectiva cônjuge (€100,00) com fundamento em contrato de transmissão de quotas.
b) A C… foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 05.01.2017 na sequência de requerimento apresentado em juízo em 28.09.2016 por E…, que não mereceu oposição, arrogando-se a credora laboral da insolvente pelo montante de cerca de €22.400,00 a título de retribuições, subsídios de férias e de natal e indemnização por referência a 30 dias de retribuição por cada ano ou fracção de antiguidade, com fundamento em contrato de trabalho celebrado em 02.12.1983.
c) No âmbito da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, foi declarado o encerramento do processo proposto pelo sr. Administrador da Insolvência com fundamento em insuficiência de bens que inventariou e avaliou em €2.825,00, correspondentes a máquinas destinadas à actividade da insolvente (máquinas de lavagem, de lavagem a seco, de secagem, de costura, mesa de escovagem e de engomar, encapadora, e equipamento mobiliário e informático, cfr. fls. 119 e s. dos autos principais).
d) A insolvente é devedora ao Instituto da Segurança Social pelo montante de € 20.308,33 a título de contribuições referentes aos meses de março 2013 (€1.036,66) e setembro 2013 a abril de 2016, a que acrescem juros de mora.
e) A insolvente é devedora à Autoridade Tributária pelo montante de €11.542,09 a título de IVA referente aos anos de 2014, 2015 e primeiro trimestre de 2016, IRC de 2014, IRS de 2015 e 2016, outros tributos, coimas, juros e custas (certidão junta com req. de reclamação de créditos junto por linha aos autos).
f) Conforme requerimentos de reclamação de créditos juntos por linha aos autos, para além da Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social, reclamaram créditos:
i) D…, emergente de contrato de mútuo que em 06.03.2013 concedeu à insolvente no montante de €13.000,00, com fiança prestada pelo requerido e respectiva cônjuge e que deixou de ser cumprido a partir de abril de 2014, permanecendo capital em dívida no montante de €9.503,59;
ii) requerente da insolvência, entre outros, crédito no montante de €2.032,73 a título de retribuições referentes aos meses de janeiro a março e 11 dias de abril de 2016;
iii) F…, SA, no valor de capital de €663,11 emergente de facturas vencidas entre janeiro e abril de 2015.
g) A TOC que até ao exercício de 2014 elaborava a contabilidade da insolvente, G…, a partir do segundo trimestre de 2014 deixou de a elaborar invocando falta de entrega pelo requerido e naquele período dos documentos contabilísticos sujeitos a registo e necessários ao envio das declarações fiscais legalmente exigidas, apesar dos pedidos (mails) que lhe dirigiu .
h) Invocando valores em dívida pela insolvente (€461,25), aquela TOC G… não entregou ao requerido as pastas, balancetes, mapas de imobilizado e diários de 2014 bem como os documentos da empresa, e o que motivou participação à OTOC.
i) Em abril de 2015, e após das insistências da TOC H… entretanto contratada pelo requerido, a TOC G… entregou os documentos da empresa e, através de comunicação escrita datada de 21.04.2015 que dirigiu a H…, informou que continuam a existir valores em dívida, no montante de 269,00€, sem juros incluídos, sendo que a “cedência da contabilidade” quando o valor for regularizado. No entanto, e tal como a OTOC refere, poderá V/Exa. assumir a contabilidade, assumindo desta forma a dívida actual. (doc. fls. 43).
i) Após várias comunicações que a partir de novembro de 2014 H… trocou com G…, no sentido de obter desta a cedência da contabilidade da requerida, em 14.09.2015 aquela remeteu à advogada do gabinete de contabilidade desta comprovativo do depósito da quantia de €269,00 e solicitou o documento de cedência da firma em epígrafe para que possa dar continuidade ao processo, ao que aquela respondeu o valor depositado não corresponde ao montante em dívida nos termos da injunção proposta. Tendo sido depositado 269 euros aguardaremos pelo depósito dos restantes 153,75 euros (docs. junto com req. de 23.04, fls. 193vº e 200 e ss.).
j) Em resposta a solicitação reiterada em 22.09.2015 pela TOC H…, a TOC G… remeteu-lhe 5 anexos descritos como Balancete Geral, Extractos Conferência, Diários 1, Diários 2 e Diários 3, tendo aquela acusado a recepção dos mesmos, acusando simultaneamente que estava em falta as fichas dos funcionários. Interpelada pelo sr. Administrador da Insolvência para informar do estado da contabilidade da insolvente, a TOC H… remeteu-lhe os supra referidos documentos, sendo o Balancete Geral de março de 2014, e informou não dispor de mapa de imobilizado por não lhe ter sido fornecido pela TOC G… (doc. remetidos com req. de 23.04).
l) A última IES da insolvente reporta ao exercício de 2013 e nela consta inscrito:
- vendas e serviços prestados no valor de €32.457,73,
- custos das mercadorias vendidas e matérias consumidas, fornecimentos e serviços externos e gastos com o pessoal nos valores de €1.262,00, €20.134,00 e €57.432,00, respectivamente,
- resultado líquido do período de €47.515,53 negativos,
- total do capital próprio no valor de €116.802,37 negativos,
- passivo no montante total de €132.525,00 que, com exclusão das dívidas a sócios, se reduz a €84.100,00, do qual, no passivo não corrente, €10.562,00 a título de financiamentos obtidos e, no passivo corrente, €5.714,43 a fornecedores e €8.247,00 ao Estado (declaração de IES junta com req. de 10.04.18, fls. 103vº e 104).
m) Entre dezembro de 2015 e junho de 2016, através de acerto de contas a Autoridade Tributária afectou reembolsos devidos à insolvente, no montante total de €4.269,00, ao pagamento de dívidas da insolvente objecto de execução fiscal (doc. remetidos com req. de 23.04).
n) A insolvente laborou até abril de 2016 mas, a partir de abril de 2014, inclusive, não procedeu à categorização e lançamento dos movimentos atinentes com compras, vendas, recebimentos, pagamentos, etc. nos livros/contas próprias da contabilidade, pelo que não procedeu à elaboração dos Relatórios de Gestão, Balanços e Demonstração de Resultados referentes aos anos de 2014 e 2015 nem procedeu à apresentação das declarações fiscais de rendimentos referentes aos ditos exercícios.
o) As últimas contas da insolvente submetidas a registo na Conservatória do Registo Comercial, em julho de 2013, reportam ao exercício de 2012 (certidão comercial junta com o req. do pedido de insolvência).
Não provados:
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Decidindo.
1. A tempestividade do parecer.
Sustenta o apelante que “Declarada a insolvência com verificação judicial imediata da insuficiência da massa insolvente e não aberto, ao mesmo tempo, o incidente de qualificação da insolvência com caracter limitado (art. 39º, nº 1), o prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa é de 45 dias contados desde a data da sentença de declaração da insolvência (art. 191º, a), do CIRE), sob pena de não mais poder ser aberto, posteriormente a tal prazo, tal incidente de qualificação. Desta sorte, em bom rigor interpretativo, quando se proferiu despacho em que se dizia estar “declarado” aberto o incidente de qualificação de insolvência tal abertura, por extemporaneidade, já não podia ter acontecido”.
Vejamos então.
A questão é a de aferir se o prazo referido nos n.º1 e 2 do art. 188 do CIRE é um prazo peremptório, como pretende o apelante, ou se é um prazo meramente indicativo, ordenador.
Diga-se desde já que subscrevemos esta 2.ª posição.
Na verdade, como já escrevemos no Acórdão da Relação de Guimarães n.º 3597/11.6T8VNF.G1 de 24/09/2015, disponível na Internet (www.dgsi.pt) e com o seguinte SUMÁRIO: “O facto de o administrador da insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer mais tarde e de a tal parecer se atender para todos os efeitos legais”.
Como nos dizem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, II, p. 22), o parecer do administrador da insolvência constitui elemento relevante na decisão do incidente de qualificação da insolvência - e na sua própria tramitação - pelo que não pode deixar de ser apresentado, e daqui que “(…) não pode ser atribuído valor ao silêncio, cabendo ao juiz, se for o caso, providenciar para que, mesmo tardio, o parecer seja emitido”.
E parafraseando o que se pode ler no Ac da RP de 29 de Outubro de 2009 (disponível em www.itij/jurisprudência [da Relação do Porto]), “o administrador da insolvência é um colaborador do tribunal; não é uma parte no processo. Como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional. Não está na disponibilidade do administrador emitir ou não emitir o parecer com formulação de uma proposta para qualificação da insolvência. Deve fazê-lo, sob pena de ser considerado relapso no cumprimento das suas competências, devendo então ser advertido, mesmo multado nos termos das regras gerais, ou até demitido pelo tribunal e substituído por novo administrador (…). O incidente da qualificação da insolvência não é uma fase facultativa do processo. É obrigatório e indispensável (…). Além de obrigatório, pode ser dado fora dos prazos em causa nos art.ºs 188º e 191° (…)”
Ora, assim sendo, como é, não se pode ver na não apresentação do parecer no prazo previsto na lei uma preclusão da possibilidade de o fazer mais tarde. Na realidade, e como ainda se diz no supra citado acórdão (e no mesmo sentido o Ac da RP de 17 de Novembro de 2008, disponível em www.itij/jurisprudência [da Relação do Porto]), estamos simplesmente perante um prazo regulador, ordenador ou de organização processual, sem cominação processual (e muito menos substantiva), e cuja ultrapassagem, podendo embora gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, não pode nunca fazer caducar um direito que o administrador não detém. No mesmo sentido, e segundo informa João Botelho (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 162), se decidiu no Ac desta RG de 7 de Dezembro de 2006, proferido no processo nº 2024/06.
Esta é também a orientação maioritária da jurisprudência, nomeadamente nos Ac. Rel Porto de 23/02/2012 (Proc. n.º 621/09.6TBOAZ-A.P1 Relator Pinto de Almeida) e de 29 de Outubro de 2009 (Proc. 10/07.7TYVNG-B.P1 – Relator Filipe Caroço), bem como os do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/04/2011 (processo n.º 881/07.7TBVCT-S.G1 – Relator Manso Rainho) e de 2/06/2011 (Processo 881/07.7TBVCT-U.G1 – relator António Sobrinho), jurisprudência que também perfilhamos, como acima referido.
Na Doutrina, Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 134/135) e Menezes Leitão (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 6.ª edição, Almedina, 2012, pág. 190) também parecem aderir a esta concepção de um prazo meramente ordenador.
A conclusão a tirar é a de que o parecer apresentado nos autos pelo Administrador pode ser apreciado, sendo válido e atendível, não se verificando a suposta preclusão.
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2. A qualificação da insolvência
Sustenta o apelante que “Tendo presente o disposto no artº 186º, nº 1, do CIRE – noção de insolvência culposa -, para a qualificação da insolvência como culposa importa que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito, que: - tenha criado ou agravado a situação de insolvência; - tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo; - e que essa conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave”, que “O estado de insolvência da insolvente decorreu das circunstâncias próprias do comércio, e a insolvente começou a definhar devido à ausência de vendas”
Sustenta ainda que “com a sua acção não contribuiu para a insolvência da insolvente, sendo certo que a falta de depósito das contas da mesma na conservatória do registo comercial competente não contribuiu em nada para a criação ou agravamento da situação de insolvência”, concluindo que “da análise dos factos provados, não resulta a verificação de qualquer um dos requisitos de insolvência culposa que se possa concluir que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essas omissões, pelo que a insolvência da recorrente é fortuita”, sendo certo que “O passivo da sociedade existe dessa data e apenas aumentou para a segurança social e para as Finanças de forma oficiosa (não tendo o administrador em nada contribuído para esse facto), tendo inclusive realizado acordos com a AT para pagar”.
Vejamos.
Foi dado como provado, factos que o apelante não põe em crise, que:
- A insolvente laborou até abril de 2016 mas, a partir de abril de 2014, inclusive, não procedeu à categorização e lançamento dos movimentos atinentes com compras, vendas, recebimentos, pagamentos, etc. nos livros/contas próprias da contabilidade, pelo que não procedeu à elaboração dos Relatórios de Gestão, Balanços e Demonstração de Resultados referentes aos anos de 2014 e 2015 nem procedeu à apresentação das declarações fiscais de rendimentos referentes aos ditos exercícios (facto n).
- As últimas contas da insolvente submetidas a registo na Conservatória do Registo Comercial, em julho de 2013, reportam ao exercício de 2012 (certidão comercial junta com o req. do pedido de insolvência) (facto o).
O incidente de qualificação da insolvência é um instituto jurídico que foi introduzido no nosso ordenamento pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, presidindo a esta criação a declarada intenção de obter uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas.
O art. 185º indica claramente a finalidade do incidente: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá-la numa das categorias tipificadas na lei. Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
No caso vertente, o tribunal a quo decidiu proceder à qualificação da insolvência como culposa, ancorando-se nas presunções estabelecidas na alínea h) do nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 186º.
O referido julgamento é agora posto em crise pelo apelante (que, dada a sua qualidade de gerente da insolvente, foi afectado por essa qualificação enquanto seu gerente, de acordo com o disposto na al. a) do nº 1 do art. 6º e no art. 189 n.º 2 al.s b) e c) do CIRE, o qual advoga que não se encontra reunido o condicionalismo necessário para fazer operar as mencionadas presunções legais.
Vejamos.
O citado art. 186º, depois de no seu nº 1 fixar uma noção geral de insolvência culposa, estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem carácter taxativo.
Com efeito, para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais, sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
No concernente às presunções do primeiro tipo, a doutrina e jurisprudência é claramente dominante no sentido de considerar que uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento [cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, CARNEIRO DA FRADA, op. citada, pág. 689 e MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 2012, pág. 274; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Coimbra de 21.01.2014 (processo nº 174/12.8TJCBR.C1) e de 14.01.2014 (processo nº 785/11.9TBLRA-A.C1) e acórdãos desta Relação de 27.02.2014 (processo nº 1595/10.6TBAMT-A.P2) e de 18.12.2013 (processo nº 41/10.0TYVNG-D.P1), e ainda MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 2015, pág. 132, onde afirma que tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afectada, de que não praticou o acto.
Portanto, e como se diz no Ac. Rel Porto, de 16/04/2013, Proc. n.º 1709/06.0TBPNF-T.P2, Relator Rodrigues Pires, “O incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada constitui presunção inilidível de insolvência culposa”.
O que está aqui em questão é a falta de elementos contabilísticos.
Ora, no que respeita à al. h) do nº 2, o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada é prevista, a par de outras situações que denunciam mais claramente a gravidade exigível: manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Contudo, o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada preenche por si a primeira parte da previsão da citada al. h).
Segundo Pires Cardoso, em Noções de Direito Comercial, pág. 114, (citado no Ac. Rel Porto de 27/02/2014) “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados - lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (...). Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (…) Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa.”
No mesmo registo Menezes Cordeiro, em Manual de Direito Comercial, vol. I, pág. 297 e 298, escreve: “a escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante (…) Mas além disso, desde cedo se verificou que servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título:
- incentivando o comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas;
- permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.
A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado actuar, com fins de polícia, de fiscalização ou de supervisão.”
A contabilidade assume, assim, particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados.
Apesar da relevância em abstracto da contabilidade para se verificar a previsão da 1ª parte da al. h) do n.º2 art. 186º não é suficiente qualquer deficiência, tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas e com influência na percepção que tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.
Assim, como se escreveu no Ac. da Rel. de Coimbra de 08.02.201, Proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1, C J, Tomo I/2011, pág.32, “o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.
Aplicando estas regras acima explanadas ao caso vertente, temos de concluir que a sentença recorrida não merece censura ao qualificar a insolvência como culposa, e não como fortuita como pretende o apelante, pois que, uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, fortuita será a insolvência que não é culposa, o que não é o caso, como vimos.
Improcede assim a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
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Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 9 de Outubro de 2018.
Estelita de Mendonça
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral