Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1645/08.6PIPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE
NULIDADE DO INQUÉRITO
NULIDADE DA INSTRUÇÃO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
ELEMENTOS DO TIPO
RESPONSABILIDADE MÉDICA
Nº do Documento: RP201404301645/08.6PIPRT.P2
Data do Acordão: 04/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam a nulidade do inquérito.
II – A instru­ção é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita a investigação que o juiz de instrução vier a considerar pertinente às finalida­des da instrução.
III - Se o recorrente entende que, para prova dos fac­tos que imputa aos arguidos, são imprescindíveis novas diligências de prova para recolha de novos indícios, então é porque reconhece que nos autos não existem indí­cios suficientes que permitam antever a aplicação aos arguidos de uma pena ou medi­da de segurança, se submetidos a julgamento, condição sine qua non para a prolação de despacho de pronúncia.
IV – Para colmatar tal falta de indícios deveria o assistente ter solicitado ao M° P° a realização das dili­gências de prova que reputa úteis ou necessárias na fase de inquérito, ainda que pela via da intervenção hierárquica nos termos do art° 278° do C.P.P.
V – O crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 148º do C. Penal, é um crime de resultado, que abrange não só a ação adequa­da a produzi-lo, mas também a omissão de ação adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste, em virtude do estatuído no art.º 10º do Código Penal.
VI - No caso de atuação médica, esse dever existe, inevitavelmente, pois a aceitação de um doente cria para o médico o dever jurídico, próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde do doente.
VII - Para que se consume o crime é necessária:
a) A violação de um dever objetivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão-somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum.
b) A produção de um resultado típico.
c) A imputação objetiva do resultado à ação: a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela ação.
d) A imputação subjetiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado. Para o Homem médio colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objetivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objetivo de cui­dado.
VII - O médico será responsável pela prática desse crime se, através de uma ação ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função de médico, provocar um resultado que era objetivamente previsível e passível de ser evitado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1645/08.6PIPRT.P2
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito dos autos de Inquérito que correram termos na 1ª secção do DIAP do Porto com o nº 1645/08.6PIPRT, B… apresentou queixa contra C…, D… e E… por factos que, no entender do denunciante, consubstanciariam a prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. nos artºs. 148º nºs 1 e 3 do Cód. Penal.
Findo o inquérito, o Mº Público deduziu acusação contra o arguido E…, imputando-lhe a prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. nos artºs. 148º nºs 1 e 3, 15º al. b) e 10º nºs 1 e 2 do Cód. Penal [cfr. fls. 887 a 895] e determinado o arquivamento dos autos nos termos do artº 277º nº 2 do C.P.P., relativamente aos arguidos C… e D… [cfr. fls. 1614 a 1620].
O arguido E… requereu a abertura de instrução, pretendendo a prolação de decisão instrutória de não pronúncia [cfr. fls. 963 a 967].
O assistente B… requereu igualmente a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos C… e D… pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. nos artºs. 148º nºs 1 e 3, 15º al. b) e 10º nºs 1 e 2 do Cód. Penal [cfr. fls. 1658 a 1698].
Realizado debate instrutório, o Sr. Juiz de Instrução proferiu decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos [cfr. fls. 2012 a 2028].
Inconformado com a referida decisão instrutória, dela veio o assistente interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da decisão instrutória havida nos autos, e constante de fls. 2011 a 2028, nos termos da qual se concluiu “(…) não resultarem indícios suficientes que permitam alicerçar uma pronúncia contra os arguidos C…, D… e E…”, [e consequentemente determinou-se que] os mesmos não fossem pronunciados e tivesse o M.mo Juiz a quo determinado o arquivamento dos autos;
2. Ora, o distanciamento do recorrente face ao teor daquela decisão alicerça-se, primeiramente, numa questão essencialmente processual ou formal; ou seja, antes mesmo de considerar o “mérito” sobre o juízo de não pronúncia formado, impõe-se realçar que, no quadro daquela decisão, não realizou em termos plenos o douto julgador o juízo preliminar sobre a regularidade do processo, tal como seria exigível nos termos do nº 3 do artigo 308º do C.P.P.;
3. Com efeito, o Assistente/recorrente invocou, a título introdutório, no requerimento de abertura de instrução a nulidade do inquérito, como questão que, porque processualmente relevante, importaria de imediato conhecer com vista a evitar que os autos ficassem indelevelmente feridos de invalidade mais gravosa consagrada na legislação processual;
4. Atendendo, porém, à decisão instrutória proferida de fls. 2011 a 2028 dos autos, constatamos que nem a título introdutório, nem na senda do despacho de não pronúncia havido quanto a todos os arguidos/denunciados, o M. Juiz de Instrução recorrido tomou posição sobre a mesma, votando a questão a completo esquecimento, abstendo-se de sobre ela se pronunciar, na senda da aplicação ao caso concreto da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do C.P.C.;
5. Independentemente de assim se concluir, sempre se diga que o conhecimento daquela outra questão, (leia-se, a nulidade por falta de inquérito) se impõe, porque de nulidade insuprível se trata, ou seja, é este um vício que, porque invocável a todo o tempo e, sobretudo, porque é de conhecimento oficioso, constitui necessariamente parte integrante do objeto deste recurso;
6. Concretamente, nos presentes autos, foi proferido Acórdão pela 1ª secção Criminal deste Tribunal da Relação, com data de 15 de Junho de 2011, por via do qual se declarou nulo o inquérito quanto aos denunciados C… e D… – cfr. 1553 dos presentes autos, ordenando-se. Por decorrência, a baixa dos autos à 1ª instância, de modo a que, reabrindo-se aquela fase, e no que concerne àqueles denunciados, serem realizadas diligências investigatórias, prosseguindo o mais (quanto ao único arguido constituído) os autos;
7. De facto, decorre do mencionado aresto que “compulsando a fase de inquérito dos presentes autos verifica-se que após a queixa formulada pelo assistente contra os três denunciados E… e C… e D…, relativamente a estes dois últimos, o Mº Pº não os constituiu arguidos (artºs. 58º e 59º do CPP), diligência obrigatória em sede de inquérito, não ordenou nem realizou quanto a eles nenhuma diligência concreta de investigação e findo o inquérito não proferiu qualquer despacho, nomeadamente de arquivamento do processo quanto a eles”;
8. Mais, “o MºPº não inquiriu quaisquer testemunhas, não requisitou quaisquer documentos, não os constituiu arguidos e, consequentemente, não ordenou o seu interrogatório nessa qualidade, o parecer solicitado ao IML não se pronunciou quanto à atuação destes dois denunciados e recebido o respetivo relatório o Mº Pº nenhum esclarecimento adicional requereu dada a omissão no relatório de qualquer referência quanto à atuação dos médicos C… e D…”;
9. Foi exatamente perante este estado de coisas que, relativamente aos denunciados C… e D…, e reconhecendo existir uma nulidade insanável, por falta absoluta de inquérito, aquele Tribunal declarou nulo o dito inquérito;
10. Reaberta aquela fase processual, porém, facto é que o Digno Procurador do Ministério Público não se sujeitou a dar-lhe cumprimento; ao invés, contrariando as determinações ali feitas, o Digno Magistrado do Ministério Público, realizou apenas e só duas diligências (solicitação de documentos e tomada de declarações na qualidade de denunciado), nenhuma das quais relacionadas com o aludido, e num claro desrespeito para com a decisão deste Alto Tribunal;
11. E, seguindo a esse comportamento, a prolação de um despacho de arquivamento, dir-se-á que se processualmente estamos perante uma nulidade, materialmente o mesmo atenta contra o doutamente determinado por este Alto Tribunal; na verdade, subsiste idêntico vício ao reconhecido por via do Acórdão tirado de fls. 1553 e seguintes dos autos, no que ao inquérito respeita, com a agravante clara de, por via daquele comportamento, e nada se tendo investigado, aproximar-se perigosamente os presentes autos da data previsível para a sua prescrição (algo que certamente este Tribunal não deixará de acautelar, impondo a urgência devida, ao conhecimento deste recurso);
12. Não foram os denunciados, uma vez mais, constituídos arguidos (artigo 272º do C.P.C.), não foram ouvidas quaisquer outras testemunhas para além das indicadas anteriormente nos autos e, tampouco, foi solicitada nova intervenção do IML, desta feita acautelando que o parecer emitido se reportasse única e exclusivamente à assistência dos médicos assistentes, aqui denunciados, prestado nos dias 6 e 8 de Setembro de 2008, … ou seja, renovou-se a causa de nulidade anteriormente declarada e que, por esta via, importa ver uma vez mais declarada, ao abrigo da alínea d) do nº 1 do artº 119º do C.P.P.;
13. Por outro lado, é igualmente criticável a decisão instrutória proferida na medida em que constitui o encerramento de uma fase processual que, a nosso ver, ficou também, ela própria, e independentemente do anteriormente referido, afetado indelevelmente;
14. Ou seja, como oportunamente se invocou, se formalmente existiu uma fase instrutória, no que ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente se reporta, materialmente porém ela foi inexistente. Claramente tendo sido aquela precedida de um inquérito ostensivamente deficitário, atenta a falta de elementos probatórios carreados para o processo com vista a apurar o cometimento do ilícito penal pelo que os denunciados vêm indiciados, seria exigível e essencial para o apuramento da verdade a concretização de diligências instrutórias, de modo a se apurar da existência de elementos indiciários suficientes que permitissem concluir pela não pronúncia dos arguidos;
15. Para tanto, e ainda que o legislador ordinário estabeleça como única diligência obrigatória o debate instrutório, seria necessária a admissão da prática de atos instrutórios, ainda que sobre a sua admissibilidade exista uma larga margem de discricionariedade por parte do juiz intrutório;
16. Ora, considerando a natureza jurídica do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que consubstancia de facto uma acusação alternativa, não existindo nos autos elementos probatórios que hajam permitido ao Procurador do Ministério Público deduzir uma acusação, e dispondo-se o assistente a carreá-los para o processo demonstrando que aquele decisão foi errada (indicando, concretamente, o fito visado por cada um dos elementos probatórios por si indicados) o indeferimento daqueles, com base na apreciação de conveniência do douto julgador, mediante despacho irrecorrível, constitui uma clara violação daquele preceito legal;
17. Por certo, não é um debate sobre os indícios recolhidos que alterará este estado de coisas, pois que esse é feito pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, e os elementos carreados para os autos pelo arguido, porque não contende com a intervenção dos demais denunciados, são inócuos;
18. Ou seja, seria sempre fundamental para a descoberta da verdade a produção da prova requerida, estando pois devidamente justificada a necessidade da sua realização, a razão de ciência e a relevância do depoimento por referência aos factos descritos na acusação alternativa inserta no requerimento instrutório; de resto, e como supra foi possível demonstrar, não estaríamos no caso concreto perante a repetição de prova (pois que o objeto da perícia ali requerida foi completamente distinto), por um lado, como também perante a realização de atos inócuos ou relevantes (antes seriam fundamentais para demonstrar contradições documentadas nos autos);
19. Isto dito, bom é de concluir que estaremos perante uma verdadeira falta de instrução, culminada pelo legislador ordinário pelo vício da nulidade, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 119º do C.P.P., quando, como no caso em apreço, se formalmente se admite uma fase instrutória, com cumprimento das diligências tidas por obrigatórias, ainda assim não se permite concretizar quaisquer atos instrutórios, atinentes à demonstração e sustentação da “acusação” formulado pelo requerente/assistente, levando, pois, a que materialmente tudo se passe como se a instrução não existisse;
20. E, mesmo que assim não se entendesse, seria a situação concreta acometida à situação de insuficiência manifesta da instrução, uma vez que a decisão instrutória não se baseia na prática de quaisquer atos instrutórios, mas ao invés dos elementos coligidos única e exclusivamente por parte do Ministério Público, em inquérito, que o legislador ordinário sanciona com o vício da nulidade, definida na alínea d) do nº 1 do artigo 120º do C.P.P.;
21. Deixando de parte, doravante, as questões processuais que, a nosso ver, deviam ter sido consideradas em termos adequados, previamente à formulação da decisão instrutória propriamente dita, e entrando desta feita na crítica ao sentido que mereceu colhimento junto do M. Juiz a quo, considerando não dever pronunciar o arguido e os denunciados nos autos, diga-se de imediato que a devida contemplação desta questão importará que se considere um leque mais amplo de factos, por um lado, e se critique a opção de considerar como não indiciados outros;
22. Verdadeiramente, o M. Juiz de Instrução na determinação do leque de factos indiciados, afastou, desde logo, naquilo que consubstancia a nosso ver um erro na apreciação da prova, alguns factos contidos na consulta técnico-científica realizada, numa opção injustificada ao nível da força probatória que, em termos globais, se lhe reconhece (artigo 163º do C.P.P.);
23. E, outro tanto, do teor da prova produzida, apenas considerou alguns factos, quando, da prova produzida, ficaram devidamente indiciados por referência a cada um dos visados, um naipe mais alargado de factos;
24. Com efeito, o teor da perícia médico-legal é definitivamente mais amplo e sobretudo encerra em si factos necessariamente relevantes com vista a indiciar a prática do tipo legal que lhe vinha imputado. Isto significa, portanto, que todos os factos neles descritos e obtidos igualmente por via de esclarecimentos suscitados deveriam ter sido considerados, tal como se retira de fls. 851, 852, 863 e 1933 dos autos, e que supra reproduzimos;
25. Aliás, mesmo na parte em que o Tribunal a quo a considerou, sempre se reitere que o fez de modo desadequado, porquanto da mesma resulta que “(…) quando se diagnosticou por RM um quadro de compressão grave da medula, com claro sofrimento medular [isto é, a 29 de Janeiro de 2008, por diagnóstico validado a 31 do mesmo mês], o doente devia ter sido submetido a descompressão cirúrgica”; a acrescer a isto, se se documentasse instabilidade da charneira occipito-vertebral, deveria então proceder-se a eventual estabilização, para além daquela intervenção, não se arvorando (como resulta do ponto 5 de fls. 2024 dos autos) esta como condição para a concretização daquela primeira;
26. E quanto ao mais, a acrescer a tudo isto não poderia o Tribunal recorrido, ademais, deixar de valorar as declarações prestadas pelo próprio arguido, e atender aos documentos vertidos nos autos, pois que, e como em sede própria se demonstra, como decorrência desta ponderação resulta de imediato incompreensível que o Tribunal haja dado por indiciado alguns factos concernentes, mas não outros reportados a este arguido;
27. Isto é visível – e como tal devia ter sido dado como indiciado – que “No dia 30 desse mesmo mês [leia-se, Janeiro de 2008] o menor foi observado em ortopedia pelo arguido E…, médico dessa especialidade, bom como nos dias 11 de Abril e 25 de Agosto do mesmo”, e, consequentemente, nessa senda teve ou podia ter tido conhecimento do exame radiográfico que se encontrava junto ao registo clínico do menor F…, se não naquela primeira data, nas subsequentes”;
28. Mas também quando não considera “que face ao menor nunca houve neste período, ou de outro que se lembra, qualquer reunião multidisciplinar para discutir o seu caso clínico, a não ser a solicitada pelo Diretor de Pediatria, o Dr. G…”, reunião esta que apenas veio a ter lugar em 04 de Fevereiro de 2009;
29. Com este enquadramento fáctico, e considerando a decisão de não pronúncia face ao arguido E…, discorda o recorrente da decisão assim havida pois que, perspetivando tal decisão por referência ao tipo legal equacionado, definido dir-se-á que a conduta do mesmo foi apta a ter-se por verificados os respetivos pressupostos da punição, ou, se se preferir nesta sede, da probabilidade séria de ela vir a ser obtida;
30. Estando-se perante um tipo legal de resultado, em que se exige uma causalidade entre a conduta do agente e a efetiva produção de uma ofensa à saúde do titular do bem que se procura proteger, a verdade é que o desvalor da conduta ter-se-á de aferir, no domínio médico, em função das circunstâncias do caso concreto que considerando a condição pessoal do agente, mas também em função dos seus conhecimentos e capacidades, determinando-se assim qual o cuidado exigível no caso concreto, tendo por parâmetro comum um profissional da área que haja segundo os métodos e procedimentos de atuação que exprimem o “estádio atual da ciência médica”;
31. Isto sabido, resulta dos autos que foi o arguido quem, porque acompanhou o menor desde a data do seu nascimento, identificou a patologia de que o mesmo padecia; e, na senda desse acompanhamento até à data da produção do dano, foi o mesmo quem acompanhou a progressão da doença, quem foi analisando os efeitos ou reflexos daquela patologia na condição física do menor ao longo do seu desenvolvimento e, em última linha, quem determinou as terapêuticas a seguir;
32. Neste quadro de resto foi o próprio quem não deu indicação cirúrgica ao menor, embora tendo a convicção e conhecimento plenos de que nas crianças a doença crónica visada (a acondroplasia) podia ter efeitos graves, envolvendo apneia, quedas e desequilíbriso súbitos, compagináveis com os sintomas que vinha materializando (e que davam origem à sua assistência em serviço de urgência) e condutíveis, no limite, à situação que veio a ser despoletada e que determinou o seu estado atual;
33. Embora soubesse que esta seria uma terapêutica que devia ser estudada, porque aplicada no universo médico, que poderia, perante o agravamento da condição clínica do menor (aliás, documentada nos autos, e por si conhecida), promover alguma diminuição do agravamento de sintomas e, eventualmente, para a qual o próprio não teria competência técnica;
34. Porém, nunca promoveu pelo encaminhamento do menor para acompanhamento por outras especialidades ou sequer propôs – ou promoveu – a realização de uma reunião de equipa multidisciplinar, que viesse analisar e estudar o caso concreto e, equacionando aquela solução cirúrgica, promover a melhor terapêutica a aplicar;
35. Quando não desconhecia o agravamento dos sintomas manifestados, em virtude dos sucessivos fenómenos de internamento, de acorrência ao serviço de urgências, todos eles documentados nos autos, e que atribuía à progressão normal da doença;
36. Um médico, medianamente sagaz, colocado na posição daquele concreto médico, conhecendo as particularidades ou condicionamentos do filho do assistente, e conhecendo ou devendo conhecer os seus sintomas e tratamentos possíveis, não teria atuado como o arguido, pois que, e como decorre da consulta técnico-científica feita, teria ponderado necessariamente a possibilidade e conveniência da intervenção cirúrgica, por um lado, e, na assunção da falta de competência ou especialidade própria, teria requerido a intervenção de médico(s) de outra(s) especialidade(s), designadamente requerendo uma reunião multidisciplinar, com vista a determinar a terapêutica mais adequada à condição pessoal do menor F…;
37. Dúvidas não poderão existir, por certo, atendendo aos elementos indiciados em função da consulta técnico-científica realizada nos autos, mas também por declarações do próprio arguido e, sobretudo, pelos demais elementos documentais aqui vertidos, que, dentro de um processo causal, a produção da lesão à integridade física foi determinada, ou pelo menos, foi exponenciada a probabilidade do risco da sua produção, em virtude da conduta omissiva empreendida pelo arguido, impondo-se consequentemente, e revogando aquela decisão, proferir em seu lugar despacho de pronúncia e, em tais termos, ordenar a sujeição do arguido a julgamento, nos termos definidos pela acusação anteriormente formulada pelo Ministério Público;
38. Considerando aí, porém, uma alteração não substancial dos factos, tal como admitido pelo artigo 309º nº 1, a contrario sensu, do C.P.P., pois que em vez de se referir que “A 29 de Janeiro de 2008, o F… realizou, a solicitação do arguido (…)” e que “Até ao dia 16 de Setembro de 2008, era ao arguido que competia a decisão de submeter ou não a criança a intervenção cirúrgica” devia prever-se que “O arguido, no âmbito das consultas de ortopedia infantil, mantidas com o menor F…, teve ou devia ter tido conhecimento do exame de ressonância magnética realizado a 29 de Janeiro de 2008, a solicitação da Dr. H…, a qual “mostrou (…)” e
39. Que o arguido sabia ou devia saber que a terapêutica a aplicar no tratamento de doença congénita grave poderia passar pela realização de intervenção cirúrgica, com vista a ultrapassar o sofrimento medular, corrigindo o estreitamento do canal medular, porém, até 16 de Setembro de 2008, nunca decidiu submeter o menor à apreciação de qualquer/quaisquer colega(s) da(s) especialidade(s) envolvidas, ou requerer a realização de reunião médica multidisciplinar, com vista a definir a terapêutica adequada e estudar a hipótese de intervenção cirúrgica;
40. Por último, importa na crítica dirigida à decisão instrutória, e sem prejuízo do conhecimento da invocada nulidade do inquérito e da instrução, atenta a sua falta ou inexistência, mencionar que os autos, ainda que insuficientemente instruídos, permitem de facto concluir pela pronúncia dos dois denunciados, C… e D…;
41. Dúvidas não podem existir de que a conduta destes dois denunciados foi apta a ter-se por verificados os pressupostos firmados pelo legislador, no preenchimento deste tipo legal. Bastará atentar na prova produzida nos autos, designadamente se se considerar o teor das declarações do assistente, mas também a ficha decorrente da assistência médica prestada pelo INEM (sem se considerar outros elementos probatórios que o M. Juiz a quo não permitiu produzir), para se concluir de imediato que o denunciado, em momento algum, no Serviço de Urgência, atendeu à referenciada perda de consciência;
42. Com efeito, embora não haja sido obtida consulta técnico-científica a propósito da intervenção deste médico em concreto, a verdade é que dos elementos juntos aos autos não se evidencia nenhuma atuação concreta do médico denunciado com vista ao apuramento da causa próxima daquele advento;
43. Estando indicado no seu historial clínico, mas também no boletim de admissão que o menor F… sofria de acondroplasia, seria exigível a um médico minimamente diligente e sagaz que identificasse este como um reflexo provável e comummente reconhecido no quadro da acondroplasia em ciranças (vide fls. 104 a 106 dos autos), por um lado, e que considerasse o estudo do seu processo clínico para antever sobre a existência de elementos concretos que justificassem a “sinalização” deste menor, atento o agravamento – expresso em sintomas concretos – da compressão e sofrimento medulares;
44. Não obstante, das diligências empreendidas pelo dito médico, a verdade é que dentro do respeito do dever de cuidado, seria exigível ao médico conhecer todos os elementos relevantes ao estado de saúde do menor (designadamente por consulta do seu historial clínico); era-lhe igualmente exigível, tal como seria a qualquer médico colocado na sua concreta posição, conhecer os sintomas e reflexos da evolução comum da acondroplasia; como também, e se assim não fosse, alertado para a doença daquele, impunha-se-lhe que estudasse os seus antecedentes, pois que, ao omitir a realização de quaisquer meios de diagnóstico complementares, o arguido não foi capaz de percecionar o agravar daqueles que são sinais evidentes da progressão da doença de que o menor visado padecia;
45. E que conduziu a que, dando-lhe alta menos de duas horas depois de ingressar no serviço de urgência, sem apurar todos aqueles elementos e sem os interpretar convenientemente, materializando assim erro na fase de diagnóstico, erro esse que, jurídico-penalmente, porque atenta contra as legis artis, e foi apto a potenciar a produção de consequências severas para o menor, não pode deixar de ser sancionado, impondo a sua pronúncia e sujeição a julgamento;
46. Por fim, a idêntica conclusão somos levados a tirar considerando a conduta da denunciada D…, valendo aqui de perto as considerações acabadas de fazer. Pois que tendo sido a denunciada alertada para as alterações que a marcha do menor traduzia pelo e do receio de que aquela se manifestasse como sequela do episódio de urgência havido dois dias antes, a mesma fez um juízo perfuntório, atribuindo aquela a um eventual medo/receio;
47. Sem considerar, porém, os antecedentes patológicos do menor, que poderiam conduzir, seguindo aqui de perto o teor da consulta técnico-científica realizada (“… a estenose cervical grave poderia contribuir para o desequilíbrio e quedas reportadas, e a paragem cardiorespiratória que o doente sofreu” (fls. 851 dos autos), à produção do resultado que veio efetivamente a concretizar-se na sua pessoa;
48. Concomitantemente, não foi capaz de antever este como sendo um sintoma claro e inequívoco da evolução daquele quadro patológico, pois que não atendeu ao seu historial clínico, disponível no hospital onde prestou a assistência médica;
49. Isto dito, e porque existe de facto, uma alienação evidente dos antecedentes patológicos, associada ao não estabelecimento de relação causal entre os sinais manifestados e a evolução da doença, coadjuvado pela não sujeição a uma observação mais atenta e cuidada do menor, exigindo-se a repetição da avaliação neurológica do menor, a denunciada preencheu os pressupostos para a sujeição a julgamento, por verificação do tipo legal, e, consequentemente, impondo-se a revogação da decisão instrutória nesta parte, também devia ter sido - como se peticiona – pronunciada nos termos oportunamente propostos.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso nos termos constantes de fls. 2125 a 2129.
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Os arguidos C… e E… responderam às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência das nulidades invocadas pelo recorrente e, quanto ao mérito, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., veio o assistente responder nos termos constantes de fls. 2209 a 2211.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor a decisão instrutória sob recurso: (transcrição)
«B… apresentou uma denúncia contra C…, D… e E…, alegando que os mesmos não terão prestado ao seu filho, o ofendido F…, os cuidados médicos adequados ao seu estado de saúde, o que acabou por acarretar para a criança lesões cerebrais irreversíveis.
Findo o inquérito o M° P° proferiu despacho de arquivamento quanto aos arguidos C… e D… e de acusação contra o arguido E….
Fundamenta-se o despacho de arquivamento no seguinte:
Resulta do auto de denúncia que deu origem ao presente inquérito que no dia 6 de Setembro de 2008, o F… terá sofrido uma paragem cardiorespiratória na via pública, recorrendo ao serviço de urgência pediátrica do Hospital …, aonde chegou pelas 23h06min, transferido pelo INEM. Após diagnóstico de paragem cardiorespiratória ligeira, o menor teve alta para o domicílio.
A 8 de Setembro de 2008, pelas 9h56min, o F… regressou ao serviço de urgência do Hospital …, por apresentar alteração de equilíbrio desde a queda ocorrida dois dias antes. Após efetuar RX de crânio e TAC cerebral o F… teve alta para o domicílio nesse mesmo dia.
A 16 de Setembro de 2008, no infantário, o F… deu uma queda não apoiada, entrando em paragem cardiorespiratória, dando entrada na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital …, com diagnóstico de paragem cardiorespiratória revertida, pneumonia de aspiração e anóxia cerebral grave.
A 19 de Fevereiro de 2009, o F… regressou ao seu domicílio, com lesões neurológicas resultantes da anóxia por paragem cardiorespiratória sofrida.
Foi inquirido B…, pai do menor F….
Inquirida, D… declarou que o menor F… tiniu dado entrada na Urgência de Pediatria do Hospital …, em virtude de apresentar alterações na marcha, alegadamente resultantes de uma queda que havia sofrido dois dias antes. Através de radiografia efetuada ao crânio verificou que o menor não apresentava sinais de fratura. No entanto, foi efetuada uma TAC ao F… cujo resultado foi normal. A depoente ainda solicitou o auxílio da especialidade de neurologia pediátrica, constatando-se que o menino já não apresentava as dificuldades na marcha que tinham motivado a sua deslocação à instituição hospitalar.
Inquiriu-se C… que recordou que o menor F… teria caído de uma cadeira em casa, razão pela qual o submeteu a um RX craniano, procedimento que adota quando as crianças sofrem quedas em altura. Apurou assim que o F… tinha sofrido um TCE occipital. A radiografia não revelou qualquer fratura, tendo a criança ficado em observação e vigilância no hospital, com vista a verificar se não apresentava alterações dignas de registo. Foi-lhe efetuado exame neurológico com análise dos olhos e das pupilas, para avaliação de défices neurológicos de novo. O F… acabou por ter alta para o domicílio, com recomendação de vigilância durante vinte e quatro horas.
No caso dos autos, não só não se obteve como não se afigura possível obter qualquer outra prova, razão pela qual se dão por findas as diligências atinentes a esse fim.
Assim, quanto aos arguidos C… e D…: como resulta das declarações prestadas pelos denunciados, os mesmos terão realizado todos os exames e diagnósticos que entenderam necessários à situação clínica apresentada pelo menor F…, tendo-o mantido em observação durante o tempo que consideram essencial para garantir que o mesmo regressava ao seu domicílio sem qualquer agravamento do seu estado de saúde. Face ao exposto importa concluir que não foi recolhida prova indiciária suficiente, para imputar a prática dos factos aos denunciados.
Assenta a acusação quanto ao arguido E…, na imputação, em súmula, dos seguintes factos:
Foi sempre quem seguiu o menor F… na consulta externa de ortopedia no Hospital … e que a seu pedido em 28.01.2008 foi realizado àquele uma ressonância magnética (RMN) cerebral que mostrou um aumento marcado da atrofia cortico-subcortical, um hipersinal do tronco e da região cervical, no contexto da malformação da charneira occipito-cervical, e alterações que se enquadravam no contexto do diagnóstico de acondroplasia, ou seja, estenose do buraco occipital com diminuição do seu diâmetro antero-posterior, provocando compressão e sofrimento medular na transição cervico-occipital traduzido por hipersinal em T2 e cavidade siringomiélica com extensão caudal até C5;
Que era ao arguido que competia a decisão de submeter ou não a criança a intervenção cirúrgica de descompressão da medula e das raízes nervosas e que os exames efetuados e os sintomas faziam admitir como possível a necessidade dessa intervenção como única forma possível de evitar a paragem cardiorespiratória, o desequilíbrio e as quedas reportadas que o menor sofreu e a que se reportam os episódios dos dias, 06, 08 e 16 de Setembro de 2008. Ao não fazê-lo, não cumpriu com as leis da arte, praticando ofensa à integridade física do menor por negligência nos termos do art. 148°, n° 1 e 3 do CP.
Àquele despacho de arquivamento insurge-se o assistente, pai do menor, dizendo:
No dia 6 de Setembro de 2008, por volta das 23h40, o F… foi levado pelo INEM para o serviço de urgência pediátrica do Hospital …, conforme ficha de observação médica de fls. 31 dos presentes autos.
O motivo do episódio de urgência foi uma aparente paragem respiratória do filho do assistente. Uma vez que o assistente tinha sido bombeiro e tendo formação técnica em suporte básico de vida, prestou os primeiros socorros no local, transportando o seu filho F… para a ambulância do NEM, quando esta chegou ao local, encontrando-se o seu filho ainda inconsciente, mas já a respirar.
A ficha de observação médica de fls. 31 dos autos refere que o menor “segundo familiar caiu da cadeira”, o que não corresponde à verdade. O filho do assistente encontrava-se de pé, ao seu lado, quando aquele, aparentemente, parou de respirar. O menor caiu no chão por ter parado de respirar, e não o contrário. Não foi a queda que motivou a paragem respiratória. A irmã e o cunhado do assistente, I… e J…, o seu filho K…, bem como a sobrinha do assistente e seu companheiro, L… e M…, estavam presentes no local e presenciaram os factos tal como foram ora descritos.
O menor foi portanto conduzido ao Hospital … onde deu entrada pelas 23h06m - cfr. fls. 29 dos presentes autos, e, foi assistido pelo Dr. C… - cfr. fls. 29 dos autos.
O denunciado requisitou, como meios auxiliares de diagnóstico, radiografia craniana, com incidência frontal e lateral. Assumindo que se tratava de uma queda “normal”, numa criança sem antecedentes patológicos, ignorando as informações que sempre foram prestadas pelo aqui assistente. De que o menor F… teria deixado de respirar, havendo perda de consciência por parte do mesmo, sendo a queda consequência dessa paragem, e não o contrário.
O denunciado desprezou a única fonte de informação credível acerca das circunstâncias que rodearam o incidente com o F…. Desprezou o relato do representante legal do doente relativamente às circunstâncias do episódio.
O denunciado informou o assistente de que o seu filho “teria tido uma paragem respiratória ligeira e que estava estável”. O assistente questionou se não seria aconselhável, dada a complexidade da patologia do F…, e considerando o seus antecedentes patológicos, incluindo episódios similares e internamentos, efetuar exames complementares de diagnóstico, nomeadamente uma TAC cerebral, uma ressonância magnética cerebral, dorsal e lombar ou um electroencefalograma.
A resposta foi clara, tendo o denunciado afirmado que não era necessário qualquer outro meio complementar de diagnóstico. E assim, após ter dado entrada no serviço de urgência pediátrica do Hospital … entre as 23h00 (cfr. fls. 29 dos autos) e as 00h00 (cfr. fls. 31 dos autos), o filho do assistente teve alta à 00h40 (cfr. fls. 29 dos autos).
O denunciado, que em fls. 1612 prestou declarações, nelas esclareceu que: “Segundo se lembra e após consultar as notas por si escritas a fls. 29, recorda que o F… teria caído de uma cadeira em casa” afirmou também que “onde se lê (na denúncia) que o F… terá sofrido uma paragem cardiorespiratória na via pública, não corresponde àquilo que terá sido transmitido ao depoente pelo pai do menor”.
Afirma ainda o denunciado: “se por exemplo tivesse sido referida uma lipotimia, ou seja, uma perda de consciência antes da queda, já o menor teria sido encaminhado para a especialidade de pediatria médica”. O denunciado C…, contrariamente ao que as suas declarações fazem querer, ignorou o assistente.
Como se lê nas conclusões do processo de auditoria interno, junto aos autos a fls. 1246, “as circunstâncias da queda não estão bem especificadas no Boletim de Admissão. Tratando-se de uma criança com alterações motoras de base e quedas frequentes, o relato do pai em relação a esta queda, que foi diferente. Não foi objeto de uma história clínica aprofundada. Para o facto contribuiu provavelmente a equipa de urgência naquele dia pertencer a outro hospital, não conhecer a situação crónica desta criança e não se ter apercebido do risco de apneia como possível complicação da compressão cervico-medular na acondroplasia”.
Assim, o facto de o denunciado, C…, ter ignorado o assistente e as informações que o assistente lhe transmitiu acerca do seu filho, do historial clínico do seu filho e das circunstâncias que levaram ao episódio de urgência, especificamente o facto de o seu filho ter parado de respirar, tendo portanto “uma perda de consciência antes da queda”, levam a concluir que houve negligência grave por parte do denunciado no tratamento e acompanhamento que fez ao seu filho do assistente, F…, não tendo aquele adotado uma conduta conforme às legis artis, isto é, uma conduta e diligência médias, expetáveis de um médico de experiência mediana, colocado perante aquela concreta situação e aquele concreto doente.
Em 8 de Setembro de 2008, dois dias depois, o menor F… acordou “arrastando a perna direita durante a marcha”, nas palavras do assistente, motivo pelo qual o transportou ao Hospital …, onde deu entrada pelas 10h00.
No Hospital …, o F… foi assistido pela denunciada, D…, médica que ali se encontrava de serviço, mas que, e segundo a própria, trabalhava no Hospital …, também no Porto. A referida médica, após observar o menor, constatou que o mesmo apresentava alterações na marcha, justificando as mesmas com um hipotético medo que o F… teria em andar, após a queda dada dois dias antes, em 6 de Setembro de 2008.
Mais uma vez, o assistente informou a denunciada acerca dos antecedentes patológicos do seu filho, as complexidades da sua patologia, e das circunstâncias que tornearam o incidente de 6 de Setembro de 2008, especificamente, e mais uma vez, o facto de o F… ter parado de respirar e só depois ter ficado prostrado no chão da esplanada.
A denunciada D…, tal como o denunciado C…, desconsiderou tudo aquilo que o assistente transmitiu, escrevendo no episódio de urgência: “TCE occipital por queda no sábado (...) não consegue manter equilíbrio devido a queda” - cfr. fls. 27 dos presentes autos.
O F… efetuou nesse mesmo dia uma TAC cerebral e uma radiografia cervico-dorso-lombar (face e perfil). Apesar de no suporte documental do episódio de urgência, junto aos autos a fls. 27 e 28, a denunciada ter solicitado observação por ortopedia, bem como de neurologia pediátrica, o que é certo é que o assistente esteve junto do seu filho durante o tempo em que o seu filho esteve nas urgências, não tendo presenciado qualquer outro médico, que não a denunciada, a observar o seu filho.
No entanto, a fls. 28 pode ler-se o resultado da observação da ortopedia, o resultado da TAC cerebral, e o resultado da observação da ortopedia.
O que se pode aferir é que, a neurologia pediátrica, tendo sido pedida observação por alterações na marcha por queda no sábado, conclui que “neste momento estava a brincar e a puxar a porta. Já tem seguimento em consultas. A mãe acha que está francamente melhor, normalmente já cai. A comer iogurte e bolachas.” - cfr. fls. 28 dos autos.
Esta conclusão da “observação” de neurologia pediátrica, efetuada as 17h50, apesar de nada esclarecer quanto ao pedido efetuado, isto é, “observação por alterações da marcha”, foi suficiente para que a denunciada, as 18h10, desse alta ao menor.
O F… tinha sofrido uma paragem respiratória dois dias antes, temendo pela saúde e bem estar do seu filho, e temendo que a sintomatologia apresentada pelo seu filho fosse resultar em graves e irreversíveis lesões para o mesmo, o assistente, solicitou à médica D… que internasse o seu filho, para que ele pudesse ser acompanhado pela equipa médica do … que normalmente o fazia, ou que, pelo menos, realizasse exames complementares de diagnóstico, nomeadamente uma ressonância magnética e um electroencefalograma, insistindo junto da mesma, para que fosse tida em conta a história e evoluções clínicas do menor, bem como a complexidade da sua patologia.
A denunciada recusou a realização de exames complementares, alegando que as “alterações na marcha” seriam apenas resultado do medo de andar que o menor teria, devido à “queda” sofrida dois dias antes.
Assim, o facto de a denunciada, D…, ter ignorado o assistente e as informações que o assistente lhe transmitiu acerca do seu filho, do historial clínico do seu filho e das circunstâncias que levaram ao episódio de urgência, especialmente o facto de os problemas ou alterações na marcha poderem ser sinais de alerta relativamente a défices neurológicos, esclarecendo a médica que não houve apenas uma “queda”, houve sim uma paragem respiratória, e não uma mera queda, como ela erradamente presumiu.
O facto de não ter requisitado meios complementares de diagnóstico relativamente a um paciente sofredor de uma patologia tão complexa, o facto de ter ignorado fazer uma análise do percurso clínico do menor no Hospital …, ele que sempre foi acompanhado naquele hospital, bem como ter dado alta ao menor sem ter obtido uma observação clara e precisa, por parte da neurologia pediátrica, quanto às possíveis implicações neurológicas que as alterações e dificuldades que o menor sentia na marcha tinham, levam a concluir que houve negligência grave por parte da denunciada no tratamento e acompanhamento que fez ao filho do assistente, F…, não tendo aquela adoptado uma conduta conforme às leges artis, isto é, uma conduta e diligência médias, expetáveis de um médico de experiência mediana colocado perante aquela concreta situação e aquele concreto doente.
Para esta perceção contribuiu também o relatório dos factos no âmbito do processo de auditoria instaurado pelo conselho de administração do Hospital …, na sequência da reclamação n° 669/2008, efetuada pelo assistente, onde se pode ler: “Admito que nos episódios de urgência de 6 e 8 de Setembro de 2008 tenha havido prováveis erros de comunicação entre os familiares do doente e os clínicos intervenientes que não conheciam a história clínica do F…” - cfr. fls. 1248 dos autos.
No dia 16 de Setembro de 2008, oito dias depois, o menor F… encontrava-se no infantário a brincar com as outras crianças quando caiu inanimado no chão.
Foi chamada a equipa do INEM ao local, encontrando o menor F… em paragem cardiorespiratória - cfr. fls. 585 dos presentes autos. A equipa do INEM conseguiu reverter a paragem cardiorespiratória - cfr. fls. 585 - tendo o menor F… dado entrada nos serviços de urgência do Hospital … pelas 11h30 - cfr. fls. 583 dos autos.
À entrada do serviço de urgência foi aspirado conteúdo alimentar da via aérea, fez TAC cerebral, cervical, radiografia ao tórax, coluna cervical e bacia, não tendo sido identificadas lesões agudas.
Foi transferido para a unidade de cuidados intensivos pediátricos com o diagnóstico de paragem cardiorespiratória revertida, pneumonia de aspiração e anóxia cerebral grave.
Foi também o assistente informado que o F… teria tido uma paragem cardiorespiratória e que, devido ao período de tempo em que esteve assim, tinha sofrido uma anóxia cerebral, com consequentes lesões cerebrais irreversíveis.
O serviço de cuidados pediátricos intensivos realizou ressonância magnética cerebral. Demonstrava este exame um aumento marcado da atrofia cortico-subcortical, um hipersinal dos núcleos da base, região talâmica, núcleos caudados e lenticulares com hipersinal nas ponderações T2 e T2 FLAIR.
Mostrou ainda um hipersinal do tronco e da região cervical no contexto da malformação da charneira occipito-cervical.
As alterações da imagem estariam, portanto, de acordo com o quadro clínico de encefalopatia anóxico-isquémica, que se traduzia clinicamente por alterações do estado de consciência, mioclonias e uma tetraparesia espástica. O F… foi transferido para o serviço de pediatria a 20 de Outubro de 2008.
A 19 de Fevereiro de 2009, o F… teve alta hospitalar, regressando ao seu domicílio traqueostoma, ventilado com BIPAP e com uma gastrostomia de alimentação.
A atuação dos denunciados C… e D…, responsáveis pelo atendimento e tratamento do menor nos dias 6 e 8 de Setembro de 2008, respetivamente, não foi o que razoavelmente seria de esperar de um médico com as qualidade e capacidades médias.
Este facto é assumido na sua plenitude no âmbito do processo de auditoria instaurado pelo conselho de administração do Hospital …, na sequência da reclamação n° 669/2008, efetuada pelo assistente, onde se pode ler: “Admite-se que na fase final deste processo tão complexo, alguns dos intervenientes, (...) por desconhecimento de alguns aspetos desta patologia multidisciplinar, que ultrapassava a sua formação especializada, não tivessem sido capazes de valorizar sinais e sintomas que indicavam uma real progressão da doença com consequente deterioração do estado clínico.”

E quanto à acusação contra si deduzida insurgiu-se o arguido E… dizendo:
No que respeita à especialidade de ortopedia é falso o facto constante da acusação.
Como é falso, como alegado na acusação, que tenha sido quem requisitou a RMN (ressonância magnética) do dia 29 de Janeiro de 2008, nem teve conhecimento da RMN de Outubro do mesmo ano.
Que competia a neurocirurgia o tratamento dos problemas aí detetados por fazer parte do sistema nervoso central em que ortopedia não tem competência.
Por outro lado, o restante estudo da coluna cervical, dorsal e lombar não apresentava conflito medular, não havendo, assim, qualquer violação da leges artis.
Cumpre apreciar e decidir.
Inexistem nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
Alega o assistente, no que concerne aos arguidos C… e D…, a nulidade por falta de realização de diligências requeridas e que reputa essenciais: a falta de perícia e de inquirição de testemunhas.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não se verifica a aludida nulidade.
Refere a norma do art. 291° do CPP que o juiz indefere os atos requeridos que entenda não interessarem à instrução, e de que os atos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais.
Ora o que o assistente pretende, ou não interessa como ato de instrução, ou é repetição de ato.
Na verdade, qual a razão de ser da inquirição das testemunhas quanto aos episódios de 6, 8 e 16 de Setembro de 2008, se nos autos já consta a posição do assistente, e cfr. fls. 1717 e 1718, como ainda o que consta da informação clínica a fls. 20, 21, 1182 e do INEM a fls. 22 e 1181?
Qual a razão de ser da perícia atento o comportamento dos arguidos C… e D… se a mesma já tinha sido pedida, e precisamente tendo em vista esse comportamento? Cfr. fls. 788, 799, com certidão remetida, fls. 789, e com fls. 3, verso (queixa)? O próprio parecer, fls. 850, diz que é referente aos cuidados médicos prestados a F… (inclusive nesse âmbito não deixa de referir os episódios dos dias 6 e 8 de Setembro de 2008).
Mais,
O assistente, após apensação dos processos (originariamente apenas um), foi notificado a fls. 1948 da consulta técnico-científica, e, aguardado o prazo, nada disse. Como ainda notificado novamente dos esclarecimentos do Sr. Perito, fls. 1980, também nada disse.
Como ainda nada disse, não se opondo assim, quando nesse mesmo despacho de fls. 1948, se dizia que se julgava desnecessário proceder a quaisquer diferentes diligências de prova.
Ou seja, conformou-se com o decidido, e, assim, pela desnecessidade de outra prova.
E mais.
A nulidade do omissão posterior de “diligências” que pudessem reputar-se “essenciais” para a descoberta da verdade, al. d) do n° 2 do art. 120° do CPP, “trata-se de uma nulidade devida pela omissão de atos processuais na fase de julgamento e de recurso. Esse é o sentido do adjetivo posterior (Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª Edição, p. 307). Daí que não tenha cabimento invocar - na fase processual em que nos em que nos encontramos, isto é, na fase de instrução - qualquer nulidade processual com base neste fundamento.
Além de não serem necessários consequentemente os atos pretendidos, sendo que mesmo tal preterição não foi objeto de reclamação, também não se mostram obrigatórios, isto é, imperativamente impostos por lei.
Não se verifica pois a alegada nulidade.

Quanto à questão de fundo.
A - Direito enquadrável.
A imputação é a de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148° do CP, isto é, de ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa por falta de atuação segundo as regras generalizadamente conhecidas da ciência.
B - Decisão quanto à matéria de facto.
O despacho de pronúncia terá que ser devidamente ponderado, pois a simples sujeição de uma pessoa a julgamento, mesmo que venha a ser absolvida, quase sempre lhe acarreta consequências gravosas.
Assim, deve ter-se presente a necessidade de evitar esses “incómodos” e, por isso, quer a doutrina quer a jurisprudência, tem entendido que indícios suficientes são aqueles onde a possibilidade de condenação seja mais forte que a absolvição (cfr. Figueiredo Dias, in Direito processual Penal, ed. 1974, pag. 133 e Ac. R.C., de 4.04.89, in BMJ, 386, pág. 528).
O atual Código de Processo Penal, no art° 283°, nº 2, considera “suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Tal fórmula acolheu a orientação da doutrina e da jurisprudência seguidas no direito anterior (Código de Processo Penal de 1982), que não definia o que eram indícios suficientes para a acusação.
Assim considerava-se que eram bastantes os indícios quando existia um conjunto de elementos convincentes de que o arguido tinha praticado os factos incrimináveis que lhe eram imputados; “por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastante, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele. Porém, (...) não é preciso uma certeza da existência da infração, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado (cfr. Acs. Do S.T.J. de 1.3.1961, B.M.J. 105/439, R/C, de 26.06.1963, J.R., 3º, 777; de 29.03.1966, J.R., 2°, 419, RL, de 28.02.1964, J.R., 1°, 117; RP, de 23.04.1976, CJ 1976, 1°, 131).
A este respeito escreve o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1°, 1974, p.133): “(...) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição”. E, após salientar que “a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação, tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico”, mais adiante (p.213), ao analisar o princípio “in dubio pro reo, escreve: “(...) todos os factos relevantes (...) que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à “duvida razoável” do Tribunal, também não possam ser considerados provados”.
Salientando a vinculação do Tribunal à necessidade e dever de reunir todas as provas, acrescenta: “(...)logo se compreende que a falta delas (provas), não possam de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio “in dubio pro reo”. Tal princípio é conhecido em muitos países sob o nome de “presunção da inocência do arguido até à condenação”, dizendo ainda aquele ilustre Professor que sob esta forma ele surgiu no art° 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e é sobre ele que se debruçam o art° 11°, n° 1, da Declaração Universal da Organização das Nações Unidas e o art° 6°, n°2, da Convenção do Conselho da Europa.
Não se trata aqui, nesta fase processual, de factos provados ou não provados, sob pena de violação, com a pronúncia, do princípio fundamental em que assenta todo o direito penal: da presunção de inocência, pois, como refere Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 356, no comentário a este princípio: “A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim”. Trata-se apenas e tão só nesta fase de, como refere a lei, art. 308°, n° 1 do CPP, “recolha, ou não de indícios”.
E como refere José da Costa Pimenta, CPP anotado, pg. 35 e ss: “indício é a circunstância certa através da qual se pode chegar em indução lógica, a uma conclusão acerca da existência ou inexistência de um facto que se há-de provar” - “o indício, para o ser verdadeiramente, tem de conduzir a um convencimento - um convencimento que esteja acima de qualquer dúvida razoável, sob pena de, desnecessariamente, se enxovalhar a dignidade das pessoas. Há pois regras a que a valoração dos indícios deve obedecer. A primeira é a da certeza e inequivocidade da circunstância indiciante, de forma a afastar múltiplas inferências. Com esta regra se distingue indício da mera conjetura”.
A razão de ser dos factos apurados ou provados, ou não, é a razão de ser, assim, do fim último da etapa do processo: a sentença após discussão da causa, arts. 365º, 368° e 372° do CPP.
Assim se consideram:
Factos indiciados, face aos registos clínicos e da prova pericial.
1 - À nascença do menor F… foi-lhe diagnosticada uma acondroplasia,
2 - Passando a ser seguido no Hospital … em consultas de pediatria e teve consultas, no que ora importa reter, de pediatria, ortopedia e neurologia.
3 - A acondroplasia é uma situação muito complexa do ponto de vista médico, ponto 1 do relatório pericial a fls. 851.
4 - No dia 04 de Janeiro de 2008 o menor deu entrada nos serviços de urgência do Hospital … em coma, com hipoglicemia e em convulsão. Realizado TAC cerebral com diagnóstico de buraco magno de pequenas dimensões e imagens sugestivas de impressão basilar, enquadrando-se as alterações no contexto clínico da acondroplasia, fls. 1491;
5 - No dia 30 desse mesmo mês o menor foi observado em ortopedia pelo arguido E…, médico dessa especialidade, bem como nos dias 11 de Abril e 25 de Agosto do mesmo ano, fls. 1605 e 27.
6 - No dia 31, do mesmo mês de Janeiro, é validada ressonância magnética realizada no dia 29, RM Cerebral (crânio-encefálica), por requisição de Dr. H…, com diagnóstico de estenose do buraco magno com compressão e sofrimento medular, fls. 1179.
7 - No dia 06 de Setembro de 2008 o ofendido F… foi levado pelo INEM, chamada por inconsciência para o serviço de urgência pediátrica do Hospital …, tendo-lhe sido prestados cuidados médicos nestes serviços o arguido C… tendo para o efeito solicitado radiografia craniana, com incidência frontal e lateral, fls. 21.
8 - Da ficha de observação médica da ocorrência do INEM, fls. 22, consta como motivo da chamada “inconsciência”. Da observação consta “terá tido palidez e FR após queda que agora não se confirmam. Resulta ainda a informação de que “segundo familiar caiu da cadeira. Sem traumatismos.
9 - No dia 8 de Setembro de 2008, dois dias depois, o menor F… acordou “arrastando a pena direita durante a marcha”, e foi transportado ao serviço de urgência do Hospital …, onde foi assistido pela arguida D… com a informação de “queda no sábado. Alteração da marcha. Sem queixas álgicas. Não consegue manter equilíbrio desde a queda. Solicitou RX craniano, e uma radiografia cervico-dorso-lombar (face e perfil) e observação por ortopedia, cirurgia pediátrica, bem como de neurologia pediátrica, fls. 20.
10 - No dia 16 de Setembro de 2008 no infantário o menor F… deu uma queda e foi levado pelo INEM para o serviço de urgência pediátrica do Hospital …, constando da ficha de observação médica da ocorrência do INEM, fls. 1181, como motivo da chamada “queda” e ainda a informação de que “segundo informação dos educadores a criança terá caído com embate occipital após empurrão. Em PCR à nossa chega. PCR revertido”.
11 - No dia 9 de Outubro de 2008 é realizada ressonância magnética, RM Cerebral (crânio-encefálica), com diagnóstico de sinais de hipersinal da medula oblonga e região cervical superior, com extensão até C4-C5, aparentemente sobreponíveis ao estudo anterior de 29/1/2008, fls. 1722.
12 - No dia 19 de Fevereiro de 2009 o F… teve alta hospitalar, regressando ao domicílio traqueostomatizado, ventilado com BIPAP e com gastrostomia, fls. 704. Lesões que resultaram da anóxia por paragem cardiorespiratória.
13 - No dia 3 de Dezembro de 2009 é realizada ressonância magnética à coluna cervical, a requisição de Dr. N…, revelando a amplitude do buraco magno preservada, com visualização de lesão com hipersinal correspondendo a pequena cavidade siringomélica. Comparando-se com o relatório da RM realizada em 2008, o hipersinal medular observado parece atualmente ter menor extensão.

Não se mostra indiciado que tenha sido o arguido E…:
1- a requisitar a RMN de 29 de Janeiro de 2008 com o diagnóstico de estenose do buraco magno com compressão e sofrimento medular, mas sim por requisição de Dr. H…, cfr. doc. de fls. 1179, e,
2- que tenha tido conhecimento do mesmo, cfr. docs. 1605 e 27 e 1° § de fls. 1909 do depoimento de fls. 1908 (consulta dia 30).
3- que após défice neurológico sofrido a cirurgia trouxesse qualquer melhoria, cfr. esclarecimentos do sr. perito a fls. 1933, penúltimo §.
4- que fosse do foro de ortopedia, ou seja, da competência do arguido E… ou dos demais arguidos, submeter o menor ofendido a cirurgia para descompressão da medula, cfr. esclarecimentos do sr. perito a fls. 1933, último §, e depoimento das testemunhas de fls. 1913 e 1915.
Não se mostra indiciado ainda que:
5 - Dos dados clínicos se mostre documentado a instabilidade da charneira occipito-vertebral, cfr. docs. de fls. 1722 e 1726 e 3° e 4º § de fls. 1909 do depoimento de fls. 1908, como declarações de fls. 1916 do depoimento de fls. 1915, face à necessidade de tal demonstração para a conclusão do parecer pericial (referido no ponto 1, fls. 851). E pese embora as declarações do assistente e da sua versão quanto à indicação dos motivos da queda do menor, uma paragem respiratória, o certo é que em nenhum dos relatórios do INEM, e supra referidos em ponto 8 e 10 dos factos indiciados, é corroborada tal posição, antes pelo contrário.
O próprio assistente alega “uma aparente paragem respiratória”.
Ora, este ramo do direito não pode conter-se, nem nunca poderá conter, circunstâncias e factos incertos ou aparentes, sob pena de violação do princípio constitucional da presunção de inocência. Tem-se de formar por factos ou circunstâncias certas e concretas — como supra referido, Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1°, 1974, p.133): “todos os factos relevantes (…) que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraidos à “duvida razoável” do Tribunal, também não possam ser considerados provados”.
Nem mesmo, embora o assistente o procure alegar em seu favor, a inspeção de saúde conclui no seu processo de auditoria que houvesse matéria suscetível de infração, fls. 818 e ss.
Neste contexto não pode, assim, deixar de se considerar como devidamente
fundamentada a conclusão do M° P° de arquivamento dos autos quanto aos arguidos C… e D… por falta de indícios, tendo os mesmos realizado todos os exames e diagnósticos e observações que entenderam necessários à situação clínica apresentada pelo menor F….

Ou seja, conclui-se de todo o exposto que:
- A acondroplasia é uma situação muito complexa do ponto de vista médico,
- Enquadrando-se as alterações no contexto clínico da acondroplasia.
- Nos momentos objetivos, a indicação médica correspondeu à observância médica das leges artis.
- Não se constata qualquer dolo na ação por parte dos arguidos para que se verifique a alegada inobservância médica da leges artis, necessária para a consumação do crime de ofensa à integridade física por negligência imputado — “No tipo subjetivo só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde)”, Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, pág. 313, § 29, em comentário ao art. 150º do CP.
- Não se mostra documentado a instabilidade da charneira occipito-vertebral.
Á luz dos considerandos expostos, e atentos os elementos probatórios, concluímos inexistir no caso concreto uma possibilidade séria de condenação em julgamento do arguido — requisito essencial para qualquer despacho de pronúncia (art° 308°, nº 1 do C.P.Penal).
Da matéria fáctica carreada para os autos na sequência das diligências investigatória realizadas, não resulta indícios suficientes que permitam alicerçar uma pronúncia contra os arguidos C…, D… e E….
Assim, e em suma: não há prova, e a que existe, não faz preencher os factos típicos ilícitos imputados aos arguidos C…, D… e E… para os submeter a julgamento, pelo que não os pronuncio e ordeno o arquivamento dos autos.
Custas pelo assistente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido, fixando a taxa de justiça em duas (3) UC’s.
Notifique.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, resulta das conclusões do recurso que o recorrente delimita o respectivo objeto à nulidade por falta de inquérito e de instrução, bem como à questão de saber se da prova produzida em sede de inquérito e de instrução resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. no artº 148º nºs 1 e 3, 15º al. b) e 10º nºs 1 e 2 do Cód. Penal.

Da nulidade do inquérito e da instrução:
Alega o recorrente que a decisão recorrida não tomou posição sobre a nulidade do inquérito suscitada no RAI[2], inquinando a mesma do vício de nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P. Alega ainda que, tendo o Ac. desta Relação do Porto de 15.06.2011, declarado nulo o inquérito, o Mº Pº não lhe deu cumprimento, tendo realizado apenas duas diligências e proferindo despacho de arquivamento, sem ter constituído os denunciados como arguidos, sem ter ouvido outras testemunhas e sem ter solicitado nova intervenção do IML, o que determina a nulidade do inquérito nos termos do artº 119º nº 1 al. d) do C.P.P.
Quanto à omissão de pronúncia na decisão recorrida sobre a nulidade invocada pelo assistente no RAI, não lhe assiste razão. Com efeito, como se verifica da simples leitura de fls. 2020 in fine a 2022 dos autos, o Sr. Juiz de Instrução pronunciou-se expressamente sobre a nulidade invocada, julgando-a improcedente. Acresce que as causas de nulidade previstas no artº 379º do C.P.P. têm o seu campo de aplicação reservado às sentenças, como resulta expressamente da epígrafe do próprio preceito. Atento o princípio da tipicidade dos vícios dos atos processuais consagrado no artº 118º do C.P.P., a omissão de pronúncia sobre qualquer questão suscitada pelos sujeitos processuais em ato processual diverso da sentença, constituirá mera irregularidade, devendo ser suscitada no prazo previsto no artº 123º do C.P.P. perante o próprio tribunal que tiver praticado o ato irregular e nunca em recurso, uma vez que só as nulidades da sentença previstas no artº 379º do C.P.P. podem ser arguidas em recurso.
Quanto à invocada nulidade por falta de inquérito, nos termos do artº 119º nº 1 al. d) do C.P.P., alega o recorrente que o Mº Pº não realizou determinadas diligências, tendo-se limitado a solicitar documentos e a tomar declarações ao denunciado.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque[3] “a falta de inquérito nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade, refere-se à omissão total de inquérito, quando não tenha tido lugar o processo sumário”.
Quando, tendo sido instaurado inquérito, não se pratiquem atos de investigação ou se pratiquem atos que, na ótica do denunciante, são insuficientes para o apuramento da responsabilidade criminal, não estaremos perante falta de inquérito, constitutiva de nulidade insanável (artº 119º nº 1 al. d) do C.P.P.), mas, eventualmente, perante insuficiência de inquérito se os atos omitidos estiverem previstos na lei como atos de realização obrigatória.
É preciso, porém, atentar que a lei processual penal vigente não impõe a prática de quaisquer atos típicos de investigação.
A direção do inquérito cabe ao M°P°, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.° 263° CPP), praticando, conforme preceituado no art° 267° CPP, os atos e assegurando os meios de prova necessários à realização das finalidades a que alude o art.° 262°, n.°1 CPP, ou seja, "o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação".
Compete ao juiz de instrução praticar, ou ordenar ou autorizar, os atos referidos nos art.°s 268° e 269° CPP, respetivamente, sendo a intervenção do juiz, nesta fase, circunscrita a atos isolados e específicos. Por seu turno, ao assistente compete colaborar com o M°P° a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo podendo desenvolver as competências previstas no art.° 69° CPP, entre as quais as de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo diligências, deduzir acusação e interpor recurso das decisões que o afetem. E compete ao Juiz de Instrução, em sede de instrução, conhecer das nulidades cometidas durante o inquérito e arguidas pelo assistente nos termos prevenidos no art.° 308°, n.°3 CPP.
Atento o fundamento invocado pelo recorrente, importa saber se a omissão da prática de atos que descreve integra qualquer nulidade.
Perante a formulação legislativa constante dos art.°s 119º e 120º do Código Processo Penal, tem a jurisprudência questionado se a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de atos obrigatórios, ou a esses e ainda a quaisquer outros atos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade. A solução maioritariamente seguida, partindo daquilo que consideramos uma correta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (art.° 32° n.°5 da Constituição), dos princípios do contraditório e da oficialidade, entende que só se verifica esta nulidade quando ocorra ausência absoluta ou total de inquérito[4], e/ou se omita ato que a lei prescreva como obrigatório. Ancora-se esta solução no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direção, pertencem ao Ministério Público (art.° 262° e 263° do Código Processo Penal), sendo este livre — dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência (art.° 53°, 267° do Código Processo Penal) − de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com exceção dos atos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam: os atos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo; de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito; e, no que respeita a certos crimes, atos investigatórios imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos termos do art.° 151° do CPP[5].
Na decisão desta problemática olvida-se não raramente o modelo de autonomia que em sede de exercício da ação penal o legislador no atual Código Processo Penal desenhou para a atividade do Ministério Público [Pertence ao Estado o dever de administração da justiça (art.° 202 da Constituição) através de uma entidade pública que é o Ministério Público (art. 219° da Constituição e art.° 48 do Código Processo Penal). O Ministério Público promove o processo penal depois de adquirir a notícia do crime (art.° 241° do C.P.Penal). A investigação decorre naquilo que se chama a fase de inquérito, sob a direção do Ministério Público]. Como se refere no Acórdão n.° 581/00 do Tribunal Constitucional de acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 219° da Constituição, ao Ministério Público compete exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia. Do n.° 1 do artigo 219° da Constituição pode retirar-se que o exercício da ação penal pelo Ministério Público comporta a direção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo[6].
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva[7] sustentado que a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um ato que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa e que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei, não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de atos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.
Do exposto resulta que só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam nulidade do inquérito[8].
Luís Osório, no seu “Comentário ao Código do Processo Penal Português”, 2.º volume, prevendo o então chamado “corpo de delito” já dizia que “é necessário não confundir a falta de prova para o despacho que encerra o corpo de delito com a falta de diligências prescritas para a instrução do processo. Pode mesmo acontecer que no processo haja a prova necessária e, contudo, se verifique a falta processual. (...). Para a falta processual é necessária sempre a falta de prática de um ato que a lei prescreve. Esta nulidade da insuficiência do corpo de delito é uma nulidade genérica, visto que se não especifica a falta que provoca a nulidade”.
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que o Mº.Pº. de acordo com o disposto no artº 48º do CPP, depois de ter adquirido noticia dos crimes denunciados pelo assistente, e na sequência do Acórdão desta Relação de 15.06.2011, promoveu e exerceu a ação penal, dirigindo e realizando o inquérito, recolhendo prova documental e ouvindo o denunciado C…, por forma a concluir, como o fez, pelo arquivamento do mesmo. Ou seja, competindo-lhe a direção do inquérito, entendeu, face à prova produzida, não ser necessária a realização de quaisquer diligências, com vista à realização da sua finalidade.
Apesar disso, não deixou de apreciar a queixa apresentada, concluindo pelo arquivamento dos autos, conforme resulta do despacho de fls. 1614 a 1620, relativamente aos denunciados C… e D….
Do exposto, resulta que não se verifica a nulidade apontada pelo recorrente, na medida em que o Mº.Pº. não deixou de promover o processo e, tratando-se de omissão de diligências não impostas por lei, como já se referiu, tal facto não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, na medida em que a apreciação da necessidade da realização dessas diligências (promoção de diligências que repute necessárias com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito) é da competência exclusiva do MºPº.
Refira-se ainda que ao recorrente, investido na qualidade de assistente e por isso colaborador do Mº Público na fase de inquérito, incumbia providenciar (ou, pelo menos, requerer) pela recolha de provas sobre factos que reputa de essenciais, sendo certo que não o fez na fase de inquérito.
Refira-se ainda que a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação, sendo a errada valoração dos indícios colhidos na investigação sindicada judicialmente por via da abertura de instrução. Logo, se o único problema detetado ao inquérito for apenas a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º, esse problema deve ser sindicado apenas hierarquicamente por via de reclamação; se o problema detetado ao inquérito for apenas a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, esse problema deve ser sindicado apenas judicialmente por via da abertura de instrução; se ao inquérito forem detetados em simultâneo os dois problemas, insuficiência da investigação e errada valoração dos indícios colhidos na investigação, então deve decididamente escolher-se apenas a reclamação hierárquica – caso contrário, poderá não se poder retirar da instrução todos os dividendos resultantes da prova que nela se produza por a mesma conduzir à nulidade da decisão instrutória tipificada no art.º 309.º (e que na reclamação hierárquica conduziria à reformulação da acusação).
Assim, para além de o assistente poder ter requerido ao Mº Pº a realização de atos de investigação no inquérito, poderia ainda ter suscitado a intervenção do superior hierárquico do respetivo titular, nos termos do artº 287º do C.P.P., para que este determinasse a realização dos atos de investigação que reputasse necessários.
Não o tendo feito e não se enquadrando a situação em apreço nas nulidades insanáveis ou sanáveis previstas nos artºs. 119º e 120º do C.P.P., improcede a pretensão do recorrente.

Quanto à nulidade da instrução:
O assistente requereu no RAI a realização de diversas diligências, as quais vieram a ser parcialmente indeferidas pelo Sr. JIC por as ter considerado desnecessárias (cfr. fls. 1948).
O assistente não se manifestou contra o indeferimento das requeridas diligências.
Alega agora, em sede de recurso, que estamos perante uma verdadeira falta de instrução cominada com o vício de nulidade, nos termos do artº 119º nº 1 al. d), ou uma situação de insuficiência de instrução, sancionada com o vício de nulidade nos termos do artº 120º nº 1 al. d) do C.P.P.
Ora, como é sabido, a instrução tem como finalidade “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – artº 286º nº 1 do C.P.P. Assim, “a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e nada mais. Trata-se antes de uma fase através da qual se opera o controle judicial da posição assumida pelo MP, ou pelo assistente que deduziu acusação particular, no final do inquérito”[9].
Como refere Maia Gonçalves[10] «a instrução – importa acentuar – não é um novo inquérito, mas tão só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar sobre a admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe foi formulada». A instrução não se destina a completar, ampliar ou prolongar o inquérito ou à feitura de uma outra investigação dos factos, levada a cabo pelo juiz, diferente da do MP.
Também a jurisprudência se tem pronunciado neste sentido, como se pode verificar pelos Acs. do STJ de 24.09.2003 (Proc. 03P2299, Rel. Henriques Gaspar), Ac. R. Lisboa de 20.03.2006 (Proc. 4290/2006-5, Rel. Margarida Blasco) e Ac. R. Guimarães de 01.02.2010 (Proc. 333/06.2GBVAVV, Rel. Fernando Monterroso).
Como se escreveu no Acórdão do TC nº 27/2001[11] «A instrução não é um suplemento de investigação e nem tem em vista a substituição do M.P. pelo juiz na investigação. Tudo quanto em sede de instrução se faça no sentido de investigar, terá de ter sempre como horizonte o vir ou não a comprovar-se judicialmente a decisão acusatória ou de arquivamento, que esse sim é o escopo legal da instrução. Posto isto, dir-se-á que se a requerente entende que o inquérito foi insuficiente, ou mal conduzido no sentido de terem sido desastradas as diligências de recolha de prova, mas sem que se ache habilitada a, contrariamente ao M.P., fundar (inclusivamente) a imputação de factos concretos à arguida (não podendo senão limitar-se a dela suspeitar, mais ou menos fundadamente), então o mecanismo correto e próprio (para isso a lei o prevê), teria sido o recurso à intervenção hierárquica, nos termos do art. 278º do C.P.P..»
Aliás, como se extrai da própria redação do artº 286º nº 1 do C.P.P., a instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita a investigação que o juiz de instrução vier a considerar pertinente às finalidades da instrução (artº 291º nº 1 do C.P.P.).
Volvendo ao caso dos autos, se o recorrente entende que, para prova dos factos que imputam aos arguidos, são imprescindíveis novas diligências de prova para recolha de novos indícios, então é porque reconhece que nos autos não existem indícios suficientes que permitam antever a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança, se submetidos a julgamento (condição sine qua non para a prolação de despacho de pronúncia – artº 308º do C.P.P.).
Mas se assim é, repete-se, deveria ter solicitado ao Mº Pº a realização das diligências de prova que reputa úteis ou necessárias na fase de inquérito ou por recurso à intervenção hierárquica nos termos do artº 278º do C.P.P., na medida em que a investigação deve (tem de) ser feita no inquérito – artº 262º do C.P.P[12].
Sendo irrecorrível o despacho do JIC que indeferir a realização de atos ou meios de prova na fase de instrução (artº 291º nº 2 do C.P.P.), não pode este Tribunal ordenar que, na procedência da pretensão recursiva do assistente, se realizem as diligências de prova que foram indeferidas.
Improcede, por isso, este fundamento do recurso.
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Importa agora apurar se da prova produzida, quer em sede de inquérito, quer na fase de instrução, resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado p. e p. nos artºs. 148º nºs 1 e 3, 15º al. b) e 10º nºs 1 e 2, todos do Cód. Penal.
Antes de verificarmos se se verifica a invocada suficiência de indícios, iremos equacionar a questão no quadro legal atinente.
O artigo 308º n.º1 do Código de Processo Penal estipula que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.”
Por sua vez o art. 283° n.º 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".
A mencionada “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospetivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose prospetivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidos ou examinados na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase processual.
O referido juízo retrospetivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objetivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”.
É exigível pois, da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objetividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e valoração das provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova[13].
Com efeito, na lição, sempre atual de Castanheira Neves[14] “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
E o juízo retrospetivo que vimos falando incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação ou o RAI. Meios de prova que “não serão, salvo casos excecionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efetivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afetado”[15].
E na jurisprudência, a interpretação do conceito do in dubio pro reo no âmbito da instrução é resumidamente efetuada pelo STJ da seguinte forma - «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição[16].
Pelo que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objetivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do principio in dubio pro reo – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (in www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, entendeu aquele tribunal que: “a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32º, nº2 da Constituição”.
Sendo exigível este grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes, coloca-se a questão de saber em que medida isso se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a “possibilidade razoável” de condenação.
A “possibilidade razoável” a que alude o nº2 do artº 283º do Código de Processo Penal, reporta-se ao tal juízo de prognose, sendo uma previsão que assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efetuar em relação aos elementos probatórios recolhidos, mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação, do exercício pleno do contraditório.
E importa ter sempre presente que a sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um ato neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame.
Feitas estas considerações, passemos agora a analisar da prova indiciária constante dos autos, com vista a determinar se se impõe a revogação da decisão recorrida, nos termos propugnados pelo recorrente.
O assistente/recorrente apresentou queixa contra os denunciados E…, C… e D… e, como tal pretende vê-los pronunciados, como autores de um crime de ofensa à integridade física por negligência, agravado pelo resultado.
Dispõe o art.º 148º n.º1 do Código Penal que “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. E o nº 3 estipula que “se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Constituindo este ilícito um crime de resultado, abrange não só a ação adequada a produzi-lo, mas também a omissão de ação adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste, em virtude do estatuído no art.º 10º do Código Penal.
Ora, no caso de atuação médica, esse dever existe inevitavelmente, pois a aceitação de um doente cria para o médico o dever jurídico, próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde do doente.
O art.º 15º do Código Penal (sob a epígrafe “Negligência”) formula um juízo de dois graus, na medida em que se dirige a quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e é capaz, consagrando, nestes termos e pelo menos aparentemente, a consideração de um dever de cuidado objetivo, situado ao nível da ilicitude, a par de um dever subjetivo, situado ao nível da culpa.
Assim, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade de realização típica (negligência inconsciente). Age ainda negligentemente, quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente).
Trata-se de um tipo legal de crime cujo bem jurídico protegido é o corpo ou a saúde e, como já referimos supra, é um crime de resultado, na medida em que é necessária a verificação de um determinado evento para que ocorra a sua consumação.
Em sede de tipo de ilícito para que exista crime é necessário que exista:
a) A violação de um dever objetivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum.
b) A produção de um resultado típico.
c) A imputação objetiva do resultado à ação: a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela ação.
d) A imputação subjetiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado. Para o Homem médio colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objetivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objetivo de cuidado.
Quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto[17].
De outra forma, deparando-nos perante um crime negligente de resultado há que atender que, para o preenchimento do tipo de ilícito, não basta que se verifique o resultado e que se verifique a violação do dever objetivo de cuidado, pois que não se pode prescindir da imputação objetiva do resultado. Assim, temos, também, que a imputação objetiva se limita com o fim da proteção da norma, não sendo imputáveis ao agente os resultados que não caem na esfera de proteção da norma de cuidado violada pelo agente. Deste modo, mesmo que se verifique a violação de um dever objetivo de cuidado, não se pode imputar a responsabilidade ao agente se a norma de onde esse dever de cuidado emanava não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido.
Como já o dissemos, este crime também pode ser cometido por omissão – crime omissivo impróprio ou impuro -, sendo que para a sua verificação se exige a ausência de ação, como ato voluntário, a capacidade fáctica de ação (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.
Inegável, portanto, que o ilícito em análise tanto pode ser cometido por ação, ao desencadear um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão, como por omissão, consubstanciada na circunstância de não desencadear ou interromper um processo causal que evite ou diminua a concretização de um perigo preexistente de lesão. Como refere Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues[18], ”Nos crimes comissivos por ação o agente cria o perigo para o bem juridicamente relevante tutelado ou lesa esse bem, nos delitos por omissão impura (como em todos os crimes omissivos), por via de regra, tal perigo é anterior à ação esperada e estranho ao agente e é tal perigo que origina a espera de uma conduta que o esconjure.
Para além destas questões gerais da doutrina sobre a negligência, há que atentar que no caso concreto da negligência médica, se impõe a análise de outras questões e conceitos.
Desde logo, há que atentar na questão do diagnóstico, que constitui “(...) o momento central da atividade típica do profissional médico, enquanto este para poder estabelecer um tratamento deve verificar se efetivamente existem sinais morbosos objetivos, e a existirem qual a natureza da enfermidade e a sua gravidade (...)”[19].
Também de atentar e ter presente que atenta a relação contratual que, em regra, se estabelece entre médico e doente, para aquele nasce uma obrigação de meios (assistência clínica ou dever de tratamento), ou seja, o médico apenas se compromete a desenvolver de forma prudente e diligente a sua arte para a obtenção da cura do paciente (pois os meios devem representar esforço tendencial para a consecução da cura ou melhoria de saúde do paciente, de acordo com as regas da ciência médica e o estado atual dos conhecimentos técnico-científicos – o fim em vista que a obrigação de meios supõe), mas sem assegurar que a mesma ocorre[20].
Assim, para que o agente possa ser punido temos que averiguar se se verifica:
- violação do dever de cuidado (imprudência ou criação de um risco não permitido) que é aquele que é apto a causar a lesão e for exigível e possível ao agente a sua evitação. “(...) para que o resultado possa ser atribuído ao agente (médico) (...) é necessário, no plano objetivo, que o resultado a imputar constitua a realização ou um aumento de um risco juridicamente relevante ou risco proibido (...) cuja evitabilidade do resultado nefasto seja, precisamente, a finalidade (...) da norma infringida pelo agente, nisto se traduzindo a doutrina do âmbito de tutela da norma. Em caso de dúvida razoável, a questão decide-se pela regra universal do direito probatório in dubio pro reu (...)”[21];
- a representação ou representabilidade do facto (previsão ou previsibilidade do facto), pois o médico para agir de forma diligente tem de poder prever uma situação de agravamento da saúde, uma lesão corporal ou uma morte, como causa da sua conduta: “(...) de resto, é justamente em função dessa previsibilidade que se poderá falar de imputação subjetiva nos crimes negligentes de resultado (homicídio negligente, ofensas à integridade física por negligência, intervenções ou tratamentos médicos-cirúrgicos arbitrários) só havendo tal imputação nos casos em que o concreto resultado seja previsível por um médico, com a qualificação do agente e colocado nas mesmas circunstâncias deste”[22].
- a não aceitação do resultado (evitabilidade do facto ilícito previsível), uma vez que tendo o médico uma obrigação de meios e não de resultado, apenas lhe é exigível todo o esforço possível e adequado a evitar o resultado danoso e não a cura ou o salvamento, o que equivale a dizer que ao mesmo apenas se exige a diligência necessária a evitar o evento desde que seja evitável de acordo com a lei e demais normas jurídicas e extra-jurídicas, universalmente aceites, de cautela, prudência e ponderação. “(...) Deverá socorrer-se, além do mais, das chamadas “regras de arte” (legis artis) cuja observância, por força do art-º 150º do Código Penal, afastará a própria tipicidade de ofensas corporais ou de homicídio. [...] Mesmo que o ato médico que desempenhado, como sempre, segundo a “legis artis” desencadeie a morte do paciente (v.g. através de uma intervenção cirúrgica), deve considerar-se que o empobrecimento da ordem jurídica por perda do bem vida, não resulta do próprio ato médico em si — se bem que na imediatidade causalista isso seja indesmentível — mas advém antes do processo ininterrupto e imparável (...)”[23].
Em suma, o médico será responsável penalmente se, através de uma ação ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função de médico, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física grave, que era objetivamente previsível e passível de ser evitada.
Face a tudo o exposto sobre a negligência, cumpre, agora, apreciar, se os arguidos, com as respetivas condutas, incorreram efetivamente na prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, agravada pelo resultado, como entende o recorrente.

A decisão recorrida, face aos registos clínicos juntos aos autos e à prova pericial, considerou indiciados os seguintes factos:
1 - À nascença do menor F… foi-lhe diagnosticada uma acondroplasia,
2 - Passando a ser seguido no Hospital … em consultas de pediatria e teve consultas, no que ora importa reter, de pediatria, ortopedia e neurologia.
3 - A acondroplasia é uma situação muito complexa do ponto de vista médico, ponto 1 do relatório pericial a fls. 851.
4 - No dia 04 de Janeiro de 2008 o menor deu entrada nos serviços de urgência do Hospital … em coma, com hipoglicemia e em convulsão. Realizado TAC cerebral com diagnóstico de buraco magno de pequenas dimensões e imagens sugestivas de impressão basilar, enquadrando-se as alterações no contexto clínico da acondroplasia, fls. 1491;
5 - No dia 30 desse mesmo mês o menor foi observado em ortopedia pelo arguido E…, médico dessa especialidade, bem como nos dias 11 de Abril e 25 de Agosto do mesmo ano, fls. 1605 e 27.
6 - No dia 31, do mesmo mês de Janeiro, é validada ressonância magnética realizada no dia 29, RM Cerebral (crânio-encefálica), por requisição de Dr. H…, com diagnóstico de estenose do buraco magno com compressão e sofrimento medular, fls. 1179.
7 - No dia 06 de Setembro de 2008 o ofendido F… foi levado pelo INEM, chamada por inconsciência para o serviço de urgência pediátrica do Hospital …, tendo-lhe sido prestados cuidados médicos nestes serviços o arguido C… tendo para o efeito solicitado radiografia craniana, com incidência frontal e lateral, fls. 21.
8 - Da ficha de observação médica da ocorrência do INEM, fls. 22, consta como motivo da chamada “inconsciência”. Da observação consta “terá tido palidez e FR após queda que agora não se confirmam. Resulta ainda a informação de que “segundo familiar caiu da cadeira. Sem traumatismos.
9 - No dia 8 de Setembro de 2008, dois dias depois, o menor F… acordou “arrastando a pena direita durante a marcha”, e foi transportado ao serviço de urgência do Hospital …, onde foi assistido pela arguida D… com a informação de “queda no sábado. Alteração da marcha. Sem queixas álgicas. Não consegue manter equilíbrio desde a queda. Solicitou RX craniano, e uma radiografia cervico-dorso-lombar (face e perfil) e observação por ortopedia, cirurgia pediátrica, bem como de neurologia pediátrica, fls. 20.
10 - No dia 16 de Setembro de 2008 no infantário o menor F… deu uma queda e foi levado pelo INEM para o serviço de urgência pediátrica do Hospital …, constando da ficha de observação médica da ocorrência do INEM, fls. 1181, como motivo da chamada “queda” e ainda a informação de que “segundo informação dos educadores a criança terá caído com embate occipital após empurrão. Em PCR à nossa chega. PCR revertido”.
11 - No dia 9 de Outubro de 2008 é realizada ressonância magnética, RM Cerebral (crânio-encefálica), com diagnóstico de sinais de hipersinal da medula oblonga e região cervical superior, com extensão até C4-C5, aparentemente sobreponíveis ao estudo anterior de 29/1/2008, fls. 1722.
12 - No dia 19 de Fevereiro de 2009 o F… teve alta hospitalar, regressando ao domicílio traqueostomatizado, ventilado com BIPAP e com gastrostomia, fls. 704. Lesões que resultaram da anóxia por paragem cardiorespiratória.
13 - No dia 3 de Dezembro de 2009 é realizada ressonância magnética à coluna cervical, a requisição de Dr. N…, revelando a amplitude do buraco magno preservada, com visualização de lesão com hipersinal correspondendo a pequena cavidade siringomélica. Comparando-se com o relatório da RM realizada em 2008, o hipersinal medular observado parece atualmente ter menor extensão.

Para além dos factos supra descritos, acrescenta-se que solicitada consulta técnico-científica ao INML de Coimbra, o Sr. Perito emitiu o seguinte parecer: [fls. 851 e 852]
1- a acondroplasia é uma situação muito complexa do ponto de vista médico. No entanto, em nossa opinião, quando se diagnosticou por RM um quadro de compressão grave da medula, com claro “sofrimento medular”, o doente devia ter sido submetido a descompressão cirúrgica e eventual estabilização se se documentasse instabilidade da charneira occipito-vertebral. Não concordamos, por isso, com a afirmação do ortopedista pediátrico, Dr. E…, que seguia o doente, de não haver indicação cirúrgica.
2- Em nossa opinião, a estenose cervical grave poderia contribuir para o desequilíbrio e quedas reportadas, e a paragem cardiorespiratória que o doente sofreu.
3- As lesões neurológicas observadas subsequentemente foram secundárias a anóxia por paragem cardio-respiratória.
Solicitados esclarecimentos, o mesmo Perito referiu a fls. 863:
“Em minha opinião, ao exprimir discordância em relação à decisão do ortopedista envolvido no caso, estava subentendido que houve violação da “legis artis”.
Solicitado novo esclarecimento, o Sr. Perito referiu a fls. 1080:
“Ao ser diagnosticada em 29.01.2008 uma estenose do buraco occipital que provocava compressão e “sofrimento medular” na transição cervico-occipital este doente deveria ter sido submetido a intervenção cirúrgica como se afirma no nº 1 do parecer. Neste sentido, houve portanto, em nossa opinião, a omissão de um ato médico que viola as “legis artis”. Se se considerar, o que é discutível, que esta intervenção não é do foro da ortopedia mas sim da neurocirurgia então o doente deveria ter sido referenciado ao Serviço de Neurocirurgia. Não encontrámos no processo qualquer menção a este procedimento.
Note-se que dependendo da experiência local, estes doentes podem ser considerados do foro de qualquer uma destas especialidades.”

Ora, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, os elementos probatórios existentes nos autos não permitem concluir, ainda que de forma indiciária, que o arguido E… “teve ou podia/devia ter tido conhecimento do resultado da referida ressonância magnética e, consequentemente sabia/devia ter sabido que espinal medula do menor tinha apertado, o que, como relatado, era fonte de sofrimento, e poderia provocar, por decorrência da evolução identificada, fenómenos de queda e de paragem cardiorespiratória”.
Com efeito, para além de se desconhecer se, efetivamente, o relatório de RM em causa ficou disponível no registo informático do concreto paciente (atenta a natureza genérica e abstrata do depoimento da testemunha O… [fls. 1908 e 1909]), e assim acessível ao arguido E…, o certo é que uma acusação ou pronúncia não podem conter afirmações dúbias, factos incertos [podia ter tido conhecimento/devia ter sabido], precisamente no que respeita ao conhecimento e vontade por parte do agente, ou seja, no que respeita ao elemento subjetivo do tipo de ilícito.
Se a representação (previsão ou previsibilidade do facto), constitui um dos requisitos para a punição da negligência, necessário seria, para que seja exigível que o agente tivesse atuado de forma diligente, que pudesse prever uma situação de agravamento da saúde, uma lesão corporal ou uma morte, como causa da sua conduta: “(...) de resto, é justamente em função dessa previsibilidade que se poderá falar de imputação subjetiva nos crimes negligentes de resultado (homicídio negligente, ofensas à integridade física por negligência, intervenções ou tratamentos médicos-cirúrgicos arbitrários) só havendo tal imputação nos casos em que o concreto resultado seja previsível por um médico, com a qualificação do agente e colocado nas mesmas circunstâncias deste.
Não sendo possível afirmar, com o mínimo de certeza exigível nesta fase processual, que o arguido E… teve conhecimento do relatório de RM e que, apesar de saber que o menor padecia de compressão grave da medula, com claro sofrimento medular, não o submeteu a descompressão cirúrgica, não é possível concluir pela violação da legis artis e, consequentemente, pela imputação do crime de ofensa à integridade física por negligência.
Acresce que o próprio Perito que elaborou o parecer de fls. 851 refere que a descompressão cirúrgica devia ser efetuada “se se documentasse instabilidade da charneira occipito-vertebral”. Ora, os elementos disponíveis nos autos, designadamente os registos clínicos, não documentam a referida instabilidade da charneira occipito-vertebral. Pelo que sempre faltaria um pressuposto para a submissão do menor à cirurgia sugerida.
O dever cuja violação a negligência supõe, consiste em o agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento. Dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum. Porém, fundamental é que a produção desse resultado seja previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão. Contudo, como refere Eduardo Correia[24] "A previsibilidade e o dever de prever que assim objetivamente limitam a negligência não são todavia uma previsibilidade absoluta - mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem”.
Mas, sendo assim, parece que deve haver um dever de prever, e, portanto, a objetiva possibilidade de negligência, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento. Quer dizer, é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objetivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo."
Do que se expôs conclui-se que, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade, não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que esta possa imputar-se objetivamente à conduta e subjetivamente ao agente. Significa isto que a responsabilidade apenas se verifica se existir um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido.
No caso em apreço, se o arguido ignorasse o resultado da RM efetuada e validada em 31.01.2008, não estaria em condições de prever o resultado danoso que veio a ocorrer e de, assim, evidar os esforços necessários a evitar esse mesmo resultado.
Não sendo possível afirmar tal conhecimento e o correspondente dever de previsão, não é possível imputar ao arguido E… a prática do crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado.
E o mesmo se diga relativamente aos arguidos C… e D….
Tendo cada um destes arguidos, em datas diferentes, prestado assistência ao menor F… no SU do Hospital …, quando o mesmo ali foi conduzido pelo INEM, para que o resultado danoso ocorrido em 16.09.2008 pudesse ser-lhes imputável a título de negligência, imprescindível seria que se pudesse afirmar que qualquer um deles, quando prestou assistência ao menor, tinha conhecimento do teor do relatório da RM efetuada em 29.01.2008 ou que, não tendo embora acesso a tal documento, lhes foi comunicado com o devido pormenor o estado de saúde do menor, designadamente que o mesmo padecia de “estenose do buraco magno com compressão e sofrimento medular”.
Só com tal conhecimento, seria possível afirmar que estes arguidos violaram as “legis artis” por não terem efetuado um correto diagnóstico da situação clínica do menor, conjugando devidamente tal informação com as “quedas” e “desequilíbrio” que motivaram a entrada do menor no SU e, assim, estabelecendo, como se impunha, a relação causal entre os sinais manifestados e a evolução da patologia.
Alega o recorrente que no episódio de urgência do dia 06.09.2008 informou o arguido C… que o menor havia tido paragem cardio-respiratória.
Ora, para além de os autos não documentarem tal informação, estranha-se que quer o arguido C…, quer a arguida D… não tivessem registado nos episódios de urgência de fls. 20 e 21, a informação que lhes terá sido prestada pelo recorrente que, como pai do menor, o acompanhou nas referidas ocasiões, sendo certo que ambos os arguidos fizeram constar de tais documentos outras informações sobre as queixas, a observação clínica efetuada, os meios de diagnóstico determinados, etc., sendo que sobre as causas da entrada do menor no SU, apenas se faz referência à queda e alteração da marcha (no doc. de fls. 20) e à queda e perda de consciência (no doc. do INEM de fls. 22 que acompanhou o menor aquando do episódio de urgência documentado a fls. 21).
Em momento algum se faz referência à paragem cardio-respiratória.
Se qualquer um destes arguidos tivesse sido informado da referida paragem cardio-respiratória, ser-lhes-ia exigível que procurassem estabelecer uma relação causal entre a patologia de que o menor padece (acondroplasia), a paragem cardio-respiratória, eventualmente causadora da perda de consciência e concomitante queda.
Não havendo nos autos elementos que nos permitam afirmar tal conhecimento por parte daqueles arguidos, não é possível imputar-lhes a violação do dever de previsão do evento danoso e a omissão do dever de cuidado de forma a evitar o resultado verificado. Em suma, não há nexo de causalidade entre o comportamento dos arguidos e o evento danoso ocorrido em 16.09.2008.
Assim não pode deixar de se concluir pela inexistência de indícios da prática, pelos arguidos, do crime de ofensas à integridade física por negligência agravado pelo resultado p. e p. no artº 148º nºs 1 e 3 do Cód. Penal, pelo que só pode confirmar-se a decisão recorrida, no sentido da não submissão dos arguidos a julgamento, pois que se afigura previsível que, em tal sede, sempre viriam os mesmos a ser absolvidos.
Por isso que, apesar do esforço argumentativo do recorrente, o recurso não pode deixar de improceder.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B… e, em consequência, mantêm a decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos E…, C… e D….
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
*
Porto, 30 de Abril de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
______________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Leia-se Requerimento de Abertura de Instrução.
[3] In Comentário do Código de Processo penal, anotação 9 ao artº 119º, pág. 302.
[4] Cfr., neste sentido, Ac. R.Lx de 21.10.99, in CJ, Ano XXIV, Tomo 4, pág. 158.
[5] V. Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR II série de 9.10.04, p. 149751.
[6] Cfr., Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, págs. 8-9.
[7] In Curso de Processo Penal, Vol. II, 2ª edª., pág. 91.
[8] Neste sentido, cfr., ainda, os Acs. da R.Lx. de 06.11.2007, de 29.03.2007 e de 15.10.2009.
[9] José Souto de Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, Livraria Almedina, 1989, pág. 125.
[10] In Código de Processo Penal Anotado, 15ª edª., pág. 578.
[11] In DR, II Série, de 23.03.2001
[12] “A investigação do crime e a determinação dos seus agentes é objeto exclusivo de inquérito” – Ac. R.Évora de 05.05.1998, in CJ, Ano XXIII, Tomo III, pág. 281.
[13] Cfr. Carlos Adérito Teixeira, «Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, in Revista do CEJ, nº1, p. 161; no mesmo sentido v. Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004, p. 168 e 169.
[14] In Processo Criminal, Sumários, p. 39.
[15] Cfr. Jorge Noronha e Silveira, ob. cit. p. 168.
[16] Cfr. Ac. STJ de 28.06.2006, disponível em www.dgsi.pt.
[17] V., neste sentido, Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, pág. 71.
[18] In Responsabilidade Médica em Direito Penal, pág. 118.
[19] Álvaro da Cunha G. Rodrigues, ob. cit, pág. 31.
[20] V. Álvaro Rodrigues, ob. cit., pág. 62.
[21] Ainda, Álvaro Rodrigues, ob. cit., pág. 280.
[22] Ob. cit. pág. 274.
[23] Cfr. Faria Costa, in “O Perigo em Direito Penal”, reimpressão, Coimbra 2000, pág. 532.
[24] In Direito Criminal, I Vol., p. 426.