Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3308/04.2TVPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
PENHORA DE IMÓVEL
HABITAÇÃO
VENDA
NORMAS DE PROTECÇÃO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
Nº do Documento: RP201901243308/04.2TVPRT-C.P1
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO EXECUTIVA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º160, FLS.111-113)
Área Temática: .
Sumário: Tendo a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o RAU, estendido expressamente ao executado cuja casa de habitação principal seja vendida na execução apenas algumas das normas de protecção com que visou a protecção do arrendatário, em situação similar (n.ºs 3 a 6 do artigo 930.º-B do CPC – actual artigo 863º -, ex vi nº 6 do artigo 930º - actual artigo 861º - do mesmo código), não colhe a interpretação extensiva do preceito do artigo 861º, nº 6, do Código de Processo Civil, no sentido de abranger a totalidade desse regime de protecção, nomeadamente a norma que prevê a possibilidade de o arrendatário requerer o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação (artigo 930º-C do CPC – actual artigo 864º).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 2ª SECÇÃO CÍVEL – Processo nº 3308/04.2TVPRT-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 2
Sumário (artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
RELATÓRIO
Nestes autos de execução em que é exequente B…, SA, e executado C…, tendo o executado requerido o diferimento da desocupação do imóvel em que habita com a sua família, foi proferido o seguinte despacho.
«Fls. 398 e ss...
Pretende o executado que seja diferida, por prazo não inferior a seis meses, a entrega, ao adquirente, do imóvel correspondente à verba nº 1 (fracção B) do auto de penhora de 24/4/2007 (fls. 248-249), atendendo a que aquele imóvel constitui a casa de habitação do seu agregado familiar, não dispondo de outra para habitar nem de rendimentos que lhe proporcionem habitação alternativa, sendo certo que padece de vários problemas de saúde, nomeadamente, na área da infecciologia e dermatologia, pelo que a entrega imediata da casa colocaria em perigo a sua vida, devido aos problemas de saúde de que padece, bem como a dos seus dois filhos e da sua esposa.
Ora, o diferimento da desocupação de um imóvel apenas pode ocorrer no caso de execução para entrega de imóvel arrendado para habitação (cfr. art. 864º do Código de Processo Civil), o que não é o caso dos autos.
E, por outro lado, a eventual aplicação do disposto no artigo 863º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Civil (por via do art. 861º, nº 6, do mesmo diploma) apenas pode ocorrer de acordo com os trâmites aí referidos, ou seja, se ao agente de execução, no acto da entrega, for apresentado o atestado médico aí mencionado e se, suspensa a execução, for solicitada a sua confirmação pelo juiz. Nada disso aqui ocorreu, pelo que não é caso de aplicação de tal norma.
Pelo exposto, indefiro o requerido».
O executado veio interpor recurso, juntando as respectivas alegações, nas quais conclui.
1. O presente recurso vem interposto do douto despacho proferido em 5 de Março de 2018, que julgou improcedente o requerimento de diferimento da desocupação do imóvel que constitui a casa de habitação do executado e seu agregado familiar e que foi vendido nos presentes autos.
2. O Digníssimo Tribunal a quo entendeu que “o diferimento da desocupação de um imóvel apenas pode ocorrer no caso de execução para entrega de imóvel arrendado para habitação (cfr. art. 864º do Código de Processo Civil), o que não é o caso dos autos”.
3. Ora, o executado, aqui recorrente, foi notificado pela senhora agente de execução que o bem imóvel penhorado nos presentes autos, anteriormente sua propriedade, foi vendido em leilão electrónico.
4. Assim, a senhora agente de execução informou o requerente que dispunha do prazo de dez dias para efectuar a entrega das chaves do imóvel.
5. Tal imóvel constitui a casa de habitação do recorrente e seu agregado familiar.
6. Não dispõem actualmente de rendimentos que lhes permitam, de imediato, obter um outro espaço habitacional, ainda que temporário.
7. Nem família ou amigos que possam albergar temporariamente a si e ao seu agregado familiar.
8. Consciente da sua situação, o recorrente, em 4 de Outubro de 2016, requereu uma habitação social junto do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana.
9. No entanto, até à presente data, ainda não lhe foi atribuída nenhuma habitação, prevendo-se, no entanto, que tal possa acontecer dentro de poucos meses.
10. Acresce que o tribunal a quo também ignorou o débil estado de saúde do requerente, que é vigiado periodicamente em consultas de infecciologia e dermatologia.
11. O abandono imediato da sua ainda residência irá colocar em causa a sua saúde, que poderá vir a agravar-se.
12. Assim, a atribuição do diferimento de desocupação da casa de habitação não acarreta um prejuízo significativo para a adquirente, o que já não se poderá dizer quanto ao recorrente e seu agregado familiar.
13. Por outro lado, o tribunal a quo entende que o diferimento da desocupação de um imóvel apenas pode ocorrer no caso de execução para entrega de imóvel arrendado para habitação (cfr. art. 864º do Código de Processo Civil).
14. Tal preceito legal deve ser alvo de uma interpretação extensiva, encontrando-se, assim, o espírito da lei e pretendido pelo legislador.
15. Pois, se assim não fosse, criar-se-ia uma grande desigualdade entre o executado na execução para entrega de coisa certa e o executado na execução para pagamento por quantia certa em que é penhorado e vendido o seu imóvel que constitui a casa de morada de família e é notificado para entregar a sua casa, num prazo tão curto de dez dias, estipulado pela senhora agente de execução.
16. Pelo que, fazendo-se uma interpretação extensiva de tal preceito legal, deve entender-se que o regime do diferimento da desocupação do imóvel deve aplicar-se no caso em concreto, ou seja, em execução para pagamento de quantia certa.
17. Nestes termos, deve ser deferido o diferimento da desocupação do imóvel por um período nunca inferior a seis meses.
Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito suspensivo.
Foram dispensados os vistos.
II
FUNDAMENTAÇÃO
Sustenta o recorrente que se deve interpretar extensivamente o preceito do artigo 864º do Código de Processo Civil, no sentido de que o regime do diferimento da desocupação de imóvel seja também aplicável sempre que na execução se venda a casa de habitação principal do executado e não só quando se trate de imóvel arrendado, assim se ampliando o alcance da remissão do preceito do nº 6 do artigo 861º do mesmo código.
No artigo 11º do Código Civil, é admitida expressamente a interpretação extensiva das normas, maxime no que concerne às normas excepcionais.
Como refere Francisco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª Edição, pág. 150, “a interpretação extensiva (…) destina-se a corrigir uma formulação estreita de mais”. Reportando a figura aos casos em que “o legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando quer aludir ao género, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma categoria”. É, desse modo, de interpretar um preceito extensivamente quando o legislador dixit minus quam voluit, ao não enunciar exaustivamente os casos (espécies) que caberiam na universalidade (género) que pretendeu abranger. Explicitando Cabral de Moncada, in Lições de Direito Civil, 1931-1932, 1º Vol, pág 157), que, “sendo essa a ratio legis, o princípio superior e geral de direito que a inspira, resultaria absurdo ou injusto não estender a sua aplicação a um caso que, embora não abrangido na letra, contudo está manifestamente abrangido no espírito da lei”.
No presente caso, a argumentação do recorrente para estribar a interpretação que propugna é parca, cingindo-se a uma ambígua e vaga alusão ao espírito da lei e ao pretendido pelo legislador.
Sondemos, pois, os desígnios deste, por referência às normas cujo sentido se pretende apurar.
A Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o RAU, alterou também o Código Civil e o Código de Processo Civil, num esforço de harmonização que passou pela supressão, alteração ou introdução de normas nestes diplomas.
Assim, no seu artigo 5º, introduziu uma série de novos artigos no Código de Processo Civil (artigos 930º-A a 930º-E), regulando as especialidades atinentes à “execução para entrega de coisa imóvel arrendada”, epígrafe do artigo 930º-A, cujo teor se transcreve - «a execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente subtítulo, com as alterações constantes dos artigos 930.º-B a 930.º-E». Aos quais correspondem os actuais artigos 862º a 866º do Novo Código de Processo Civil.
O legislador não esqueceu a eventual similitude das posições do arrendatário e do executado proprietário do imóvel que nele tenha a sua habitação, no artigo 4º daquele diploma acrescentando um nº 6 ao artigo 930º (actual artigo 861º) do Código de Processo Civil, estendendo àquele parte do regime de protecção do arrendatário – «tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 6 do artigo 930.º-B (actual artigo 863º), e caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes».
Ou seja, o legislador apercebeu-se perfeitamente da possível afinidade e similitude das situações do arrendatário e do executado proprietário do imóvel, delimitando o regime que entendia dever aplicar-se a este, parte do qual por remissão para preceitos que regulam os direitos do arrendatário.
Não colhe, desse modo, a pretensão do recorrente quanto à interpretação extensiva do conjunto de preceitos que visam proteger o arrendatário. Na verdade, o legislador tomou expressa posição quanto àqueles que pretendia estender ao executado proprietário do imóvel com casa de habitação neste. Neles não incluindo o do artigo 930º-C (864º do Novo Código de Processo Civil).
No mais, apenas cumpre constatar, na esteira da senhora juiz a quo, que a aplicação do disposto no artigo 863º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Civil pressuporia tramitação que não ocorreu. Aliás, as maleitas reportadas pelo executado não permitem sequer configurar a situação visada naqueles preceitos.
Por tudo o que não procede a pretensão do recorrente.
III
DISPOSITIVO
Na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.

Porto, 24 de Janeiro de 2019
José Manuel de Araújo Barros
Filipe Caroço
Judite Pires