Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1050/20.6T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CASO JULGADO
IRREVOGABILIDADE
ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
DESIGNAÇÃO JUDICIAL DO ACOMPANHANTE
RELATÓRIO SOCIAL
ANULAÇÃO DA DECISÃO PARA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP202102281050/20.6T8PRD.P1
Data do Acordão: 02/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No processo chamado de jurisdição voluntária, o caso julgado forma-se nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia.
II - No entanto, as decisões proferidas neste tipo de processos, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, podendo ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração.
III - O processo para acompanhamento de maior tem uma natureza híbrida, não sendo de facto um típico processo de jurisdição voluntária.
IV - A designação judicial do acompanhante deve estar centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos.
V - Neste tipo de processos mostra-se relevante a realização de um relatório social quanto às condições de vida da requerida, no qual se precise os apoios que a mesma tem, designadamente a nível familiar.
VI - Quando a Relação não tem ao seu dispor todos os elementos de facto e de e de Direito, que nos permitam tomar posição quanto ao objecto do recurso, nomeadamente quanto à nomeação do acompanhante, deve a mesma ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º, nº2, alínea c), nº3, alínea c), do NCPC, anular a decisão proferida em 1.ª instância, de modo a ampliar a matéria de facto referente a quem está em melhores condições para assumir as funções de acompanhamento legal da beneficiária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº1050/20.6T8PRD.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Paredes
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.Relatório:
O Digno Magistrado do Ministério Público veio instaurar acção especial de Acompanhamento de Maior, requerendo a final que se decrete o acompanhamento da requerida B…, devidamente identificada nos autos.
Alegou para tanto e em síntese o seguinte:
A Beneficiária nasceu a 10/06/1955.
Padece de ataxia, alteração comportamental e demência em contexto vascular + tóxico crónico;
Efectuou TAC que revelou atrofia cerebral principalmente subcortical, sem outras anomalias, que efectuou também ressonância magnética que evidenciou alterações temporo-baias postraumáticas, atrofia cerebral de predomínio subcortical e encefalopatia isquémica microanagiopática com atingimento pontino;
A mesma tem como antecedentes pessoais os seguintes:
-Internamento ma UCI em 2004 por PAC grave com insuficiência respiratória;
-Abuso de álcool – em abstinência desde julho 2017;
-HTA;
-Anemia;
-Tentativa de suicídio em 2006;
-Cirurgias: cesariana, fractura radio-cubito.
A requerida encontra-se desorientada no tempo e parcialmente no espaço.
Sabe para que serve o dinheiro, mas já não reconhece as notas e moedas e o seu valor aquisitivo.
Tem dificuldades em perceber o significado de documentos, apesar de saber ler e escrever.
Não consegue utilizar transportes públicos.
Necessita de ajuda para efectuar a sua higiene pessoal e para se vestir.
Também necessita de ajuda para lhe serem assegurados os cuidados médicos e medicamentosos.
Aufere mensalmente do Instituto da Segurança Social, I.P. uma Pensão de Velhice no montante global de € 280,94.
Porém, sabe o seu nome, a localidade onde nasceu e, por vezes, o local onde se encontra.
Reconhece familiares e amigos e come pela mão.
Concluiu dizendo que em virtude das limitações cognitivas de que padece a Beneficiária encontra-se, em suma, impossibilitada de, sem ajuda de outra pessoa, administrar o seu património e cumprir os seus deveres.
A final requereu a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento:
a) Representação especial para administrar o montante que a Beneficiária recebe do Instituto da Segurança Social, se necessário para abrir conta bancária com o objectivo de prover às necessidades diárias, e ainda para obter cartão de débito – art.º 145.º, n.º 2, al. b) e c), do Código Civil – com dispensa da constituição do Conselho de Família - Art.º 145.º, n.º 4, do Código Civil;
b) Apoio nas actividades diárias supra referidas e noutras que venham a mostrar-se necessárias, bem como nos cuidados de saúde – art.º 145.º, n.º 2, al. e), do Código Civil.
c) Limitação do direito pessoal de testar - Art.º 147.º, n.º 2, Código Civil.
Mais requereu que a publicidade da decisão final seja efectuada através de anúncios em sítio oficial (art.º 893º, n.º 2, C.P.C.).
Para exercer as funções de Acompanhante indicou o Sr. Dr. C…, Presidente do Conselho de Administração do Hospital D… – art.º 143-º, n.º 2, al. dg) do Código Civil – com domicílio profissional sito na Rua …, … – ….-… Paredes, por ser a pessoa que, de momento, está em melhores condições para assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, e ainda por ser idónea para o exercício do cargo.
*
Procedeu-se à afixação de editais e à publicação de um anúncio, nos termos do disposto no art.º 892º, do C.P.C.
Não se procedeu à citação pessoal da Beneficiária, em virtude de o funcionário judicial ter consignado que a mesma não conseguia entender o conteúdo daquela.
Foi nomeado como defensor oficioso da requerida o Sr. Dr. E….
Citado para contestar, o ilustre Defensor Oficioso o mesmo veio apresentar resposta na qual diz desconhecer parte dos factos alegados no articulado inicial.
Alegou que a requerida vivia em São João da Madeira não tendo nenhuma relação com Paredes.
Concluiu requerendo a audição da requerida e de quaisquer familiares seus ou pessoas amigas a fim de encontrar quem melhor a poderá acompanhar na gestão da sua vida e dos seus interesses.
Por fim, solicitou a realização de exame psiquiátrico à requerida e a notificação do ISS para além do mais, realizar relatório social sobre as suas condições de vida, informar se é possível inseri-la agora num Lar próximo da sua antiga residência e da sua rede familiar e social e se a mesma tem algum familiar ou pessoa amiga capaz de assumir o seu acompanhamento de forma duradoura.
O Ministério Público não se opôs ao deferimento da prova requerida.
Os autos prosseguiram os seus termos sendo proferida decisão onde se julgou procedente a excepção dilatória de incompetência relativa – territorial do Juízo Local Cível de Paredes, declarando-se competente o Juízo Local Cível de São João da Madeira.
Remetido o processo ao Juízo de Competência Genérica de São João da Madeira e a sugestão da Sr.ª Juiz do Juízo Local Cível de Paredes, tendo por base as regras previstas no art.º 605º do CPC, acabou por ser proferida decisão na qual se fez notar que o domicílio actual da requerida é em Paredes, não existindo qualquer factor de conexão com São João da Madeira, razão pela qual se julgou o mesmo tribunal incompetente em razão do território e, em consequência, se determinou a remessa do processo para o Juízo Cível de Paredes.
Já neste tribunal e nos termos do disposto no art.º 897º, nº2, do C.P.C., na redacção que surgiu da aprovação do RJMA, procedeu-se à audição pessoal e directa da beneficiária, conforme se mostra do auto de fls.49 e 50.
Posteriormente a tal diligência e aludindo ao que resultou da mesma, veio o Digno Magistrado do Ministério Público promover que se desse sem efeito a realização da perícia psiquiátrica à requerida antes deferida.
Tal promoção foi aceite dando-se sem efeito a referida diligência.
Foi então proferida sentença na qual se decidiu de facto nos seguintes termos:
Factos provados:
Com relevo para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1-B… nasceu a 10/06/1955.
2-É filha de F… e de G….
3-É natural da freguesia e concelho de São João da Madeira.
4-É casada.
5-Tem residência fiscal na …, n.º …. – 4.º esquerdo – ….-… S. João da Madeira.
6-Actualmente encontra-se internada na Unidade de Cuidados Continuados de Média Duração do Hospital D…, sito na rua …, … – ….-… Paredes.
7-Conforme resulta do relatório médico junto como documento 3, a mesma, além do mais:
-Padece de ataxia, alteração comportamental e demência em contexto vascular + tóxico crónico;
-Efectuou TAC que revelou atrofia cerebral principalmente subcortical, sem outras anomalias;
-Efectuou ressonância magnética que evidenciou alterações temporo-baias postraumáticas, atrofia cerebral de predomínio subcortical e encefalopatia isquémica microanagiopática com atingimento pontino;
-Tem como antecedentes pessoais:
-Internamento ma UCI em 2004 por PAC grave com insuficiência respiratória;
-Abuso de álcool – em abstinência desde Julho 2017;
-HTA;
-Anemia;
-Tentativa de suicídio em 2006;
-Cirurgias: cesariana, fractura radio-cubito.
8-Encontra-se desorientada no tempo e no espaço.
9-Desconhece o valor facial e aquisitivo do dinheiro.
10-Tem dificuldades em perceber o significado de documentos, já não conseguindo ler e escrever.
11-Não consegue utilizar transportes públicos.
12-Necessita de ajuda para efectuar a sua higiene pessoal e para se vestir.
13-Também necessita de ajuda para lhe serem assegurados os cuidados médicos e medicamentosos.
14-Aufere mensalmente do Instituto da Segurança Social, I.P. uma Pensão de Velhice no montante global de € 280,94.
15-Sabe o seu nome.
16-Não sabe a data do seu nascimento nem a sua idade.
17-Reconhece familiares e amigos.
18-Come pela mão.
19-Não há notícia que a Beneficiária tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses.
20-O Sr. Dr. C… é Presidente do Conselho de Administração do Hospital D…, com domicílio profissional sito na Rua …, … – ….-… Paredes.
21-É a pessoa que, de momento, está em melhores condições para assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.
22-A pessoa indicada para Acompanhante não tem antecedentes criminais.
Na sequência de tal decisão de facto julgou-se julgou a acção procedente e, considerando estar a beneficiária B… impossibilitada, por razões de doença de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de nos mesmos termos, de cumprir os seus deveres, se decidiu que a mesma se encontra em situação de beneficiar das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil e, em consequência:
- Se nomeou acompanhante da maior B…, o Sr. Dr. C…, Presidente do Conselho de Administração do Hospital D…, com domicílio profissional sito na Rua …, … – ….-… Paredes.
- Se cometeu ao acompanhante a representação especial da acompanhada (onde se incluem poderes de administrar as pensões e subsídios que a Beneficiária recebe ou venha a receber, os quais poderá requerer em nome e no interesse da Beneficiária, para abrir conta bancária, requerer cartão de débito, para estes efeitos e movimentá-la para prover às necessidades desta; o apoio nas actividades diárias supra referidas e noutras que venham a mostrar-se necessárias, bem como nos cuidados de saúde, nomeadamente quanto à toma de medicamentos, transporte e acompanhamento às consultas médicas, apoio na tomada de decisão de tratamentos médicos a que se sujeitar, acompanhamento e apoio aquando das deslocações a Repartições Públicas para tratar de assuntos pessoais - cfr. art.º 145, n.º 2 al. b) do C. Civil;
- Se fixou o inicio da impossibilidade do exercício pessoal e consciente da plenitude dos direitos e deveres da acompanhada, em 25.10.2017 - data a partir da qual a medida decretada se tornou conveniente.
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Mais se decidiu que a medida será revista de cinco em cinco anos, sem prejuízo do disposto no art.904º, nº2, do C.P.C., nos termos do disposto no art.155º, do C.C.
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Consignou-se ainda o seguinte:
Que o RJMA, na nova redacção do art.º145º, nº4, do C.C., deixou de impor, como sucedia no anterior instituto da Interdição, a obrigatoriedade da constituição do Conselho de Família”, podendo o tribunal dispensar a constituição deste.
Assim atenta a função “por excelência” do Conselho de Família” – a de vigiar o modo por que são desempenhadas as funções de tutor” – cf. art.1954º, do C.C., considerou-se que, no caso concreto, por ora, não existe a necessidade da sua constituição.
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A requerida representada pelo seu ilustre defensor oficioso veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo as suas alegações de recurso.
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu a tais alegações.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação foi proferido despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É sabido que o objecto do presente recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
I - Uma vez que o Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1 se declarou incompetente em razão do território e tal decisão transitou em julgado, não podia a Senhora Juiz “a quo” alterar essa decisão, sendo a mesma vinculativa no âmbito do processo em que foi proferida – cfr. o Artº 620 do CPC.
II - Razão pela qual o Tribunal recorrido não tinha competência para proferir a sentença, tal como o fez;
III - Uma vez que o Despacho proferido pelo Senhor Juiz do Juízo 1 do Juízo de Competência Genérica de São João da Madeira de 24 de agosto de 2020, havia deferido todas “as diligências requeridas pelo ilustre patrono da requerida na parte final da sua resposta” - cfr. despacho com a Refª eletrónica 112400421 e a notificação de 24/08 com a Refª 112403396 – não podia a sentença recorrida desconsiderar estes meios de prova;
IV- Ao não mandar realizar os meios de prova requeridos pelo Defensor da Beneficiária e já ordenados pelo Tribunal por despacho transitado em julgado, violou o Tribunal recorrido, mais uma vez, o caso julgado- Cfr. Artº 620.º do CPC;
V - Ao ignorar a Resposta apresentada pela Requerida o Tribunal não apreciou, nem ponderou, como é seu dever, as questões por esta colocadas, assim violando o disposto nos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, nº 1, alínea d) do CPC;
VI - Ao não considerar, ignorando-a, a “contestação” apresentada pelo Defensor da Requerida e os meios probatórios por esta requeridos, o Tribunal violou o direito ao contraditório e a um processo justo e equitativo, assim decidindo contra Lei expressa- Cfr. Arts 3.º e 410.º do CPC e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
VII – A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 20.º da CRP, 3.º, 410.º, 608.º, n.º 2, 615.º, nº 1, alínea d) e 620.º do CPC.
Termos em que se impõe a revogação da sentença recorrida pois assim e só assim, se interpretará e aplicará correctamente a Lei e o Direito e, com isso, se fará a necessária JUSTIÇA
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Por seu turno o Digno Magistrado do Ministério Público responde às alegações de recurso nos seguintes termos:
O processo de maior acompanhado não tem em vista dirimir conflito algum.
Inexiste um conflito de interesses nestes processos.
Por isso, embora seja um processo especial, aplica-se-lhe “o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz … e à alteração de decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes” (art. 149º do CC e 891º, nº 1, do CPC).
Foi exactamente o que fez a Mma. Senhora Juíza quando recebeu os autos, afirmando “a fim de não eternizar o presente processo”, e aceitando a competência.
Os processos de maior acompanhado, por não serem contenciosos, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, antes de equidade, tendo o juiz por único objectivo o bem-estar e a recuperação do Acompanhado, bem os restantes desígnios descritos no art.º 140º, nº 1, do CC.
Dos poderes substanciais do juiz do processo de maior acompanhado diz o art.º 145º do CC, designadamente o seu nº 2, quando permite ao juiz cometer ao acompanhante algum dos regimes aí enunciados, “independentemente do que haja sido pedido”.
Sobre o caso julgado nos processos de jurisdição voluntária, o Acórdão do STJ de 13.09.2016, de modo claro, explicita o caso julgado nos processos de jurisdição voluntária em confronto com os contenciosos: as decisões não têm o dom da irrevogabilidade” (art.º 988º CPC) – STJ, Boletim Anual - Assessoria Cível, 2016, págs. 492 e 493.
Resposta assim dada, igualmente, às restantes conclusões das alegações do recurso da Maior Acompanhada, uma vez que não existe neste processo um conflito de interesses, nem material, nem formal.
De resto, não tendo a Maior Acompanhada familiares conhecidos, visitas ou qualquer retaguarda social, a realização, com evidente insucesso, do relatório pela Segurança Social apenas protelaria a decisão judicial.
A nomeação do Director Clínico do Hospital D… como Acompanhante, tem sustentação no art.º 900º do CPC, que remete para o art.º 143º do CC, cujo nº 2, al. g), legitima a escolha.
Termos em que deve ser julgado improcedente o recurso,
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Perante o antes exposto, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas neste recurso:
1ª) A violação das regras do caso julgado;
2ª) A nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
3ª) A violação do princípio do contraditório.
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Para apreciar e decidir tais questões são fundamentais os elementos processuais antes melhor descritos no ponto I. desta decisão.
Iniciando a nossa análise pela primeira destas três questões, o que cabe dizer é o seguinte:
É aceite por todos que em matéria de critérios de julgamento os processos de jurisdição voluntária, como é o caso dos autos, não estão sujeitos a regras de legalidade estrita mas sim a ditames “ex-aequo et bono”.
Mas para além disso, os mesmos processos têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986º, n.º 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1 do CPC).
Assim, nos processos de jurisdição voluntária, as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram. Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus” ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados
No entanto, desta natureza específica, a da alterabilidade das resoluções, voluntária, não decorre porém um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão.
Na verdade, enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma (art.º 671 do CPC) e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei.
Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.
Neste sentido cf. o Acórdão do STJ de 13.09.2016, no processo 67/12.5TBBCL.G1.S1, em www.dgsi.pt., onde a dado passo se defende o seguinte:
“(…)
Na verdade, o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede é que as resoluções tomadas no âmbito do incidente em apreço, como as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art.º988º do CPC.
Como parece evidente, sob pena de desrespeito do prestígio dos tribunais, da certeza do direito e da prevenção do risco da decisão inútil, a especificidade ora dilucidada não faz desaparecer a eficácia do caso julgado da decisão anteriormente produzida em processo de jurisdição voluntária. Tal particularismo apenas sujeita o caso julgado a uma espécie de cláusula rebus sic stantibus e, por isso, a uma eventual condição temporal.”.
Como ali também se refere agora em notas de rodapé, “nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.”.
Ora todos sabemos que a excepção do caso julgado tem opor fim evitar que “o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” (cf. art.º 580º nº 2 do CPC).
Regressando ao caso dos autos, o que em consonância com os princípios enumerados, importa fazer notar é o seguinte:
Contrariamente ao que agora se vem defender no recurso, a sentença proferida nos autos não viola as regras do caso julgado.
E isto porque apesar do trânsito em julgado do despacho proferido pelo Juízo Local Cível de Paredes em 19.06.2020 (cf. fls. 25 e seguintes) e pelo qual considerou competente o Juízo Local Cível de São João da Madeira, a verdade é que o mesmo Tribunal acabou por posteriormente, voltar aceitar a competência para tramitar e decidir a acção, justificando tal mudança de opinião nos termos que constam do despacho proferido em 27.08.2020 (cf. fls. 41 e 42).
Ora esta última decisão foi aceite pelo Juízo de Competência Genérica de São João da Madeira e não foi posta pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
Já quanto à Beneficiária B… é de referir que esta só agora e em sede de recurso veio questionar tal decisão.
Sendo assim nenhum fundamento existe para se considerar que no caso, foram violadas as regras do caso julgado.
Neste seu recurso a beneficiária/apelante vem também dizer que a sentença é nula por não se ter pronunciado sobre as questões que colocou no seu articulado de fls. 26 v e seguintes.
Estamos pois perante a situação que o Prof. Alberto dos Reis no Código de Processo Civil anotado e a fls.24 e seguintes apelidava de “omissão de pronúncia” e que consiste no facto de a sentença não se pronunciar sobre questões que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no art.º 608º, nº2 do CPC.
Ora todos sabemos que por força de tais regras, impõe-se ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Importa, no entanto, considerar que não enferma desta nulidade a decisão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as considerar desnecessárias para a decisão da causa.
Por outro lado, o que importa é que o tribunal decida a questão posta, não estando obrigado a apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
Ora nas suas alegações de recurso o ilustre advogado oficioso da beneficiária/apelante não identifica as questões, que na sua óptica, ficaram por apreciar na decisão recorrida, limitando-se a referir de forma genérica, que a mesma desconsiderou (ignorou mesmo) a Resposta apresentada pelo defensor da requerida e todos os seus argumentos, os quais não ponderou nem apreciou…”.
Contrariamente ao que a mesma defende, entendemos que na mesma decisão acabaram por ser apreciadas e decididas todas as questões que no caso importa decidir e que o Tribunal “a quo” não deixou de identificar (cf. fls.55 e seguintes dos autos).
Sendo assim, impõe-se concluir que a mesma decisão não padece de todo da nulidade apontada.
Agora a pretensa violação do princípio do contraditório.
Segundo a beneficiária/apelante ao não considerar a “contestação” apresentada pelo seu defensor oficioso, foi violado o direito ao contraditório e a um processo justo e equitativo, assim se decidindo contra as regras dos artigos 3º e 410º do CPC e 20º da CRP.
Não tem no entanto razão nesta sua pretensão.
Assim não se pode afirmar que não foi considerada a contestação apresentada.
O que se verificou foi que após a audição da beneficiária, documentada na acta de fls.49 e 50, se considerou que deixava de ter interesse a realização de outras diligências, nomeadamente a perícia psiquiátrica que a mesma havia requerido, razão pela qual se deu a mesma sem efeito (cf. despacho de fls.51).
Quanto à possibilidade de no caso ser dispensado tal exame, consideramos poder ser sufragado o entendimento vertido na revista Julgar, nº41, a pág.134, quando no artigo com o título “O maior (des)acompanhado e as perícias médico-legais”, os seus autores, Ema Conde, Bruno Trancas e Fernando Vieira, afirmam o seguinte:
“Entendemos, também, que num conjunto limitado de situações tal deverá mesmo suceder, nomeadamente em quadros de incapacidade extrema em que é evidente a qualquer cidadão médio, não possuidor de conhecimentos técnicos especiais, que a incapacidade grave existe. Nestes casos dispensar-se-á não só a perícia, mas, sobretudo, o sofrimento que eventualmente este procedimento poderia causar nos familiares do beneficiário, obrigando-os – na colheita da anamnese e na observação – a reviver memórias emocionais angustiantes ou a tornar mais evidentes incapacidades que a todos são óbvias, nestes casos, muito escassos, diríamos que o imperativo ético tenderá para a dispensa da perícia.”
O mesmo não ocorre, no entanto, no que toca à elaboração do relatório social sobre as condições de vida da beneficiária.
E as razões que encontramos para sustentar tal opinião são em síntese, as seguintes:
Como ficou já visto o processo para acompanhamento de maior tem uma natureza híbrida, não sendo de facto um processo de jurisdição voluntária.
Por ser assim é que tem uma disposição própria a propósito dos poderes instrutórios, que é a do actual artigo 897º, nº1 do CPC (cf. Lei 49/2018 de 14 de agosto), onde se diz o seguinte:
"1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia -se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.”
Ora no caso presente mostra-se relevante a existência de um relatório social quanto às condições de vida da requerida, para se precisar os apoios que a mesma tem, designadamente a nível familiar, e a razão pela qual é preterido um familiar como acompanhante e é afastado a constituição do Conselho de Família.
Como se afirma no Acórdão desta Relação de 26.09.2019, no processo nº13569/17.1T8OPRT.P1., em www.dgs.pt., no qual foi Relator o aqui 1º Adjunto, “A designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidas.”
Ou seja, não é pelo facto da pessoa maior estar internada que o director dessa instituição deve ser, sem mais, nomeado acompanhante, quando a mesma tem familiares que podem até exercer tal incumbência.
Por outro lado e com evidente conexão com esta questão, é primordial referir a natureza conclusiva do ponto 21 dos factos provados, no qual e recorde-se ficou a constar o seguinte:
“21-É a pessoa que, de momento, está em melhores condições para assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.”
Em face de tal circunstancialismo temos certo quer o entendimento a seguir, deve ser o que mesmo que está na base da decisão proferida no supra citado acórdão desta Relação de 26.09.2019.
Ou seja, também aqui não temos ao nosso dispor todos os elementos de facto e de e de Direito, que nos permitam tomar posição quanto ao objecto do recurso relativamente à nomeação do acompanhante.
A ser assim, pode esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º, nº2, alínea c), nº3, alínea c), do NCPC, anular a decisão proferida em 1.ª instância, de modo a ampliar a matéria de facto referente a quem está em melhores condições para assumir as funções de acompanhamento legal da beneficiária.
No mesmo seguimento deve o tribunal recorrido, agora ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alíneas d), n.º 3, alínea d), do NCPC, fundamentar a sua decisão, atentos os parâmetros agora definidos.
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Sumário (cf. art.º 663º nº7 do CPC).
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III. Decisão:
Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e anula-se a sentença recorrida, com vista à ampliação da matéria de facto e melhor fundamentação, nos termos anteriormente referidos.
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Sem custas (cf. art.º 4º, nº2, alínea h) do RCP).
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Notifique.

Porto, 28 de Janeiro de 2021
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos