Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6850/06.7YYLSB-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
ABUSO NO PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RP202402226850/06.7YYLSB-A.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Emitida em branco, no momento dessa emissão a livrança não adquire logo a qualidade de título cambiário, mas, preenchida com os elementos essenciais em falta, a obrigação cambiária nela incorporada considera-se constituída. -
I - O pacto ou contrato de preenchimento, que consiste no acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, não está sujeito a forma especial, podendo ser expresso ou tácito.
III - O abuso no preenchimento do título de crédito constitui um facto impeditivo do direito invocado pelo seu portador e primeiro adquirente, pelo que incumbe a quem o pagamento é exigido a respectiva alegação e prova.
IV - A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende de simples interpelação do devedor. Não tendo sido fixado tal prazo no pacto de preenchimento, ficando a sua aposição ao critério do portador, a falta de comunicação ao subscritor do título tem como consequência que a obrigação apenas se considere vencida com a sua citação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6850/06.7YYLSB-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Execução do Porto – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO

Por apenso à execução que o “Banco 1...., SA” contra eles instaurou, os executados AA e BB deduziram oposição à execução, mediante embargos de executado, pretendendo a procedência dos mesmos com a consequente extinção, pelos factos constantes da petição de embargos.

Notificada, a embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos de executado e prosseguimento da execução com a sua normal tramitação.

Foi indeferida a suspensão da execução sem prestação de caução e proferido despacho saneador no qual foram afirmados, pela positiva, os pressupostos processuais. Procedeu-se à fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova, sem ter sido apresentada qualquer reclamação.

Foi ainda determinada a realização de exame pericial, a incidir sobre a matéria da invocada excepção de falsidade da assinatura invocada pelos embargantes.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com, após o que foi proferida sentença que, julgando improcedentes os embargos de executado deduzidos, determinando o prosseguimento da execução, ressalvando que os juros sejam contabilizados desde a citação dos executados para os termos da execução, por corresponder a mesma à data da sua interpelação.

Inconformados com tal sentença, dela interpuseram os embargantes recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1 - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nestes autos que decide julgar improcedente, por não provados os presentes embargos de executado;

2 – Resulta dos factos provados e não provados que os executados/embargantes não foram notificados do incumprimento do contrato e respetiva resolução do contrato celebrado com o exequente/embargado.

3 – De acordo com o que é aceite pelo próprio exequente/embargado a livrança dada à execução destinava-se a caução;

4 – A caução carateriza-se como uma garantia especial da obrigação, abrangendo genericamente os casos em que é exigida, por determinação da lei ou por decorrência de estipulação das partes, a prestação de uma garantia especial ao credor sem determinação da sua espécie;

5 – A livrança-caução, entregue à instituição de crédito com a data desse dia para garantia do cumprimento de um contrato de concessão de crédito, sob convenção de preenchimento se e quando ocorresse incumprimento daquele contrato, só assume relevo com título de crédito cambiário na data do complemento daquele preenchimento.

6 – Ora, conforme resulta dos factos provados e não provados da sentença recorrida, os executados/embargantes nunca foram notificados ou interpelados pelo exequente/embargado da verificação de algum incumprimento contratual e que a livrança dada à execução iria ser preenchida e submetida a pagamento.

7 - As condições gerais do “Contrato de Crédito não Hipotecário” não foram explicadas aos executados/embargantes nem se encontram por estes assinadas, como resulta do documento junto com o doc. 1 junto com a contestação.

8 – Tem de se entender que as condições gerais do contrato se encontram de facto colocadas depois das assinaturas dos mutuários, por consequência necessariamente excluídos do contrato cfr. al d) do artº 8º do Dec. Lei 446/85 de 25/10 o que gera a nulidade.

9 – Sem prejuízo do que atrás se conclui, a cláusula 7ª das condições gerais do contrato sob apreciação sempre se teria de considerar nula, por ser uma cláusula genérica, prevendo todas as obrigações presente e futuras

10 – A Sentença recorrida, faz errada interpretação e aplicação prova do estabelecido no Dec-Lei nº 446/85 de 25/10 (cláusulas contratuais gerais) e que integrem o dever de entrega da cópia do contrato imposta no Dec-Lei nº359/91 de 21/09 .

11 - Verifica-se assim o preenchimento abusivo do titulo dado à execução e a falta de autorização de preenchimento.

12 - Neste entendimento não pode deixar de ser julgado procedente o presente recurso apresentado pelos embargantes/executados.

Termos em que, nos melhores de Direito que V.Exªs. doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento e por via disso, revogada a sentença recorrida, substituindo-a por decisão que julgue totalmente procedentes os presentes embargos de executado, como é de inteira

J U S T I Ç A !”.

A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se ocorreu preenchimento abusivo da livrança exequenda;

- consequências da falta de interpelação;

- se é nula a cláusula 7.ª das condições gerais do contrato celebrado  entre as partes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Considerou o tribunal de primeira instância provados os seguintes factos:

1. A exequente apresentou à execução em causa o documento junto à execução denominado “livrança”, contendo os seguintes dizeres:

2. As assinaturas apostas na livrança referida em 1. Apostas no campo destinado à assinatura dos subscritores foram efectuadas pelo próprio punho dos executados (requerimento executivo).

3. As letras manuscritas que constam da indicação do “Local e Data de Emissão”, “Importância”, “Vencimento”, extenso da quantia e nome dos executados/embargantes, não foram apostas nessa livrança pelos executados/embargantes.

4. A livrança referida em 1, foi entregue pelos executados à exequente apenas preenchida no campo destinada às suas assinaturas, quanto da celebração do contrato junto com a contestação como documento n.º 1, denominado “contrato de crédito não hipotecário”, com o numero ... e cujo teor se dá aqui por reproduzido nas suas condições gerais e especiais, contrato esse assinado pelo punho dos executados/embargantes, e para titulação e garantia das obrigações emergentes do contrato supra identificado , constando da cláusula .7.ª das condições gerais desse contrato o seguinte:

III.2. E considerou não provados os seguintes factos:

a) Que os embargantes receberam a carta junta com a contestação aos embargos como documento n.º 2, remetida pela exequente/embargada, datada de 18.7.2005 com o seguinte teor:

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1.Do título executivo.

A acção executiva funda-se necessariamente num título do qual depende a exequibilidade da obrigação exequenda.
Como prescreve o n.º 5 do artigo 10.º do Código de Processo Civil, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da acção executiva”.
Esclarece Lebre de Freitas[1]: “para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação devida (ou do seu equivalente), há que satisfazer dois tipos de condição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação:
a) O dever de prestar deve constar dum título: o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito (…), na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.
b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (…). Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão”.
No caso, o título em que se fundou a execução instaurada contra os executados foi uma livrança, como resulta da matéria fixada no artigo 1.º dos factos provados, com as particularidades nele mencionados.
A livrança é um título de crédito à ordem, de natureza formal, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data[2].
Está tal título de crédito sujeito a uma disciplina jurídica específica, que se norteia pela preocupação de defesa dos interesses de terceiros de boa fé e de facilitar a sua circulação enquanto título cambiário.
Constituem características da livrança, enquanto suporte de uma obrigação cambiária: a) Incorporação da obrigação no título; b) Literalidade da obrigação; c) Abstracção da obrigação; d) Independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título e e) Autonomia do direito do portador.
O que significa que “o direito de crédito cambiário é cartular, está como que compenetrado com o documento. É a titularidade deste que decide da titularidade do crédito, e é assim que a sua transferência ou exercício estão condicionados pela posse legítima da letra (...). Basta ser-se portador legítimo de uma letra, ou seja, possuí-la em virtude de uma série ininterrupta de endossos para se poder reclamar e receber o pagamento”[3], conclusão que vale também para a livrança, igualmente título de crédito cambiário.
Por outro lado, “pelo conceito de literalidade põe-se em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades de obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele[4].
Sendo o negócio cambiário abstracto, pode preencher uma multiplicidade de funções económico-jurídicas, sendo independente da “causa debendi”.
Para além disso, a eventual existência de nulidade que afecte uma das obrigações não se comunica às demais.
1.1. Livrança em branco.
Resulta do artigo 10.º da LULL, que a letra ou a livrança podem ser validamente emitidas e entregues em branco, sem menção de qualquer dos requisitos essenciais previstos no artigo 1.º do referido diploma, desde que, posteriormente e até à data de vencimento, os elementos em falta passem a constar do título.
A letra ou a livrança em branco encontra bastas vezes justificação nas relações duradouras com prestações pecuniárias face à iliquidez da dívida e ao seu carácter futuro e incerto, como acontece, designadamente, nos contratos de abertura de crédito em conta corrente, celebrados entre Bancos.
A livrança em branco consiste num título de formação sucessiva; enquanto não se mostrarem preenchidos os elementos essenciais previstos no artigo 75.º da LULL, a mesma não produz efeitos como título cambiário.
Ou seja, a livrança em branco é um documento que aspira tornar-se título de crédito, desde que os nela intervenientes hajam assumido essa intenção ou possibilidade futura.
Emitida em branco, no momento dessa emissão não adquire logo a qualidade de título cambiário, mas, preenchida com os elementos essenciais em falta, a obrigação cambiária incorporada no título considera-se constituída (deixando, assim, de ser um título incompleto, como sucedia até esse preenchimento).
A circunstância da livrança ser assinada em branco pelo seu subscritor não a invalida enquanto título cambiário. Como refere Abel Delgado[5], valendo tais considerações também para a livrança: “os aceitantes, ao aporem a sua assinatura na letra, constituem-se em uma obrigação cambiária, desde o início, mas que, como tal, não pode ser efectivada senão depois do seu preenchimento.
Quer isto dizer que a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo a letra circular por meio do endosso, mesmo ainda por preencher, desde que tenha já indicado o nome do tomador.
A letra, mesmo antes de preenchida, circula, pois, como título cambiário, estando sujeito ao regime cambiário”.
Nesse caso, isto é, tendo o título sido assinado em branco, apenas constituirá facto impeditivo do exercício do direito cambiário a existência de preenchimento em desconformidade com o acordado entre o aceitante da letra e o sacador ou o subscritor e o tomador da livrança: “tratando-se de letra com aceite em branco, o valor probatório da letra terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, mostrando este que essa letra não se acha preenchida em conformidade com o ajustado entre o sacador e o aceitante[6].
1.2. Do preenchimento abusivo.
Alegam os recorrentes que foi abusivo o preenchimento do título dado à execução e “falta de autorização de preenchimento” – artigo 7.º das conclusões.
Segundo o artigo 10.º da LULL - aplicável às livranças por força do artigo 77.º do mesmo diploma, “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
O exercício da faculdade de preenchimento da livrança (ou da letra) há-de efectuar-se em conformidade com a vontade que presidiu à assinatura do título em branco, seja essa vontade expressa e corporizada no pacto escrito de preenchimento (se o mesmo existir) ou tácita ou implícita, decorrendo da própria relação fundamental que determinou a criação do título cambiário.
O que releva, assim, para efeitos de se poder afirmar que a autorização para o preenchimento foi dada é que o interveniente que assinou um título em branco tenha ou deva ter a consciência de aquele documento que assinou (como subscritor/aceitante ou avalista) se destina a assegurar o cumprimento de uma obrigação pecuniária, que em algum momento a pessoa que o recebeu poderá estar em condições de exigir esse cumprimento e poderá preencher o título para essa finalidade e nos termos dessa finalidade.
Defende Carolina Cunha, na sua tese de doutoramento[7]: “Em nosso entender, a subscrição e entrega voluntária do título (conscientemente) deixado em branco, através do qual se manifesta a intenção de deixar o preenchimento do título ao cuidado do receptor, é suficiente para permitir a aplicação do art. 10.º da LU. Já os termos em que o completamento deve vir a ser efectuado tanto podem constar de documento escrito, como podem ter sido objecto de mero acordo verbal (com as dificuldades probatórias que acarreta em caso de posterior conflito). Podem, ainda, “resultar implicitamente do próprio contrato que dá origem à letra, isto é, da relação jurídica fundamental, hipótese em que o acordo de preenchimento será tácito, (…) ressalvadas as hipóteses de incompletude proveniente de lapso, parece-nos que haverá sempre pelo menos um acordo tácito das partes quanto aos termos do preenchimento, hermenêuticamente extraível do contexto negocial mais vasto em que a subscrição e entrega do título se inserem. Não quer isto dizer que, na prática, não surjam dificuldades relacionadas com a reconstrução ou comprovação desse acordo. Em última análise, tais dificuldades resolvem-se por intermédio das regras relativas ao ónus da prova. Nunca é demais recordar que, em sede de art. 10.º da LU, nos movemos no interior de um conflito aberto: cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo do preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta”.
O contrato ou pacto de preenchimento é, na definição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Maio de 2005[8], “O acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.”.
O pacto ou contrato de preenchimento não está sujeito a forma especial, podendo ser expresso ou tácito, definindo-se, então, os seus contornos a partir da natureza da relação fundamental e dos usos do comércio[9].
O preenchimento da letra ou livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes dos mencionados títulos, faz-se de harmonia com o chamado contrato de preenchimento, expresso ou tácito. Consiste este no acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc. O acordo de preenchimento apresenta-se normalmente como uma cláusula do contrato escrito e o incumprimento do cliente é o fator que tipicamente desencadeia o acionamento do título.
O abuso no preenchimento do título de crédito constitui um facto impeditivo do direito invocado pelo seu portador e primeiro adquirente, pelo que incumbe a quem o pagamento é exigido a respectiva alegação e prova (artigos 342.°, n.° 2, do Código Civil e 552.°, n.° l, al. d), do Código de Processo Civil).
Numa acção executiva, o ónus da prova é do executado/embargante. É esta a solução apontada pelo artigo 10.º da LULL. O ónus da prova recai sobre o subscritor em branco. Como refere Carolina Cunha[10], “é ele quem terá de provar, desde logo, que a letra ou livrança, foi preenchida “contrariamente” à vontade por si manifestada (aquilo que a norma designa por “acordos realizados”) e depois, para que essa desconformidade seja “motivo de oposição ao portador” terá igualmente de provar que este adquiriu a letra de “má fé” ou cometendo uma “falta grave”». Só logrando demonstrar estes dois pressupostos conseguirá repelir ou reconfigurar a pretensão correspondente ao conteúdo inscrito no título, uma vez que a formulação do artigo 10.º determina que, de outro modo, “não pode a inobservância” da vontade manifestada “ser motivo de oposição ao portador”.
Nos casos em que o título não circula (…) será particularmente fácil ao subscritor provar a má-fé ou falta grave do credor-portador – máxime quando possa prevalecer-se de um acordo de preenchimento escrito, no qual o credor outorgou e cujo conteúdo é ou deve ser por ele conhecido[11].
Resulta do n.º 3 da cláusula sétima do denominado “contrato de crédito não hipotecário” mencionado no ponto 4.º dos factos provados que o Banco/exequente fica “expressa e irrevogavelmente autorizado a completar o preenchimento da livrança” entregue apenas com as assinaturas dos seus subscritores/executados, podendo aquele nela colocar o valor e local de pagamento “quando o entender necessário para cobrança dos seus créditos, encargos e despesas que venha a suportar”.

Alegando que “7 - As condições gerais do “Contrato de Crédito não Hipotecário” não foram explicadas aos executados/embargantes nem se encontram por estes assinadas, como resulta do documento junto com o doc. 1 junto com a contestação” e que “8 – Tem de se entender que as condições gerais do contrato se encontram de facto colocadas depois das assinaturas dos mutuários, por consequência necessariamente excluídos do contrato cfr. al d) do artº 8º do Dec. Lei 446/85 de 25/10 o que gera a nulidade”, adiantando ainda que “9 – Sem prejuízo do que atrás se conclui, a cláusula 7ª das condições gerais do contrato sob apreciação sempre se teria de considerar nula, por ser uma cláusula genérica, prevendo todas as obrigações presente e futuras”.

Só em sede de alegações de recurso os apelantes invocam a nulidade da referida cláusula, pelas alegadas razões.

Nunca antes, quer na petição de embargos, quer em qualquer outro articulado ou requerimento, os ora recorrentes haviam questionado a validade do contrato que celebraram com a exequente, nunca antes invocando a nulidade do mesmo ou de alguma das suas cláusulas, designadamente a referida cláusula sétima.

A questão agora suscitada constitui claramente questão nova, cuja apreciação está vedada a esta instância de recurso. Tal como explica Abrantes Geraldes[12], “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. (…)

Os recursos destinam-se à apreciação de questões já anteriormente levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.”.

Daquela cláusula sétima, que consubstancia um verdadeiro pacto de preenchimento, resulta que a exequente está autorizada a proceder ao preenchimento da livrança que lhe foi entregue em branco pelos executados, designadamente quanto à data de vencimento, a fixar pela mesma.

Não ocorreu, como tal, preenchimento abusivo da livrança exequenda.

1.3. Da interpelação.

A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende de simples interpelação do devedor. Não tendo sido fixado tal prazo no pacto de preenchimento, ficando a sua aposição ao critério do portador, a falta de comunicação ao subscritor do título tem como consequência que a obrigação apenas se considere vencida com a sua citação[13].

Como refere o acórdão do STJ de 6.04.2021[14], “Apesar de a obrigação ter prazo certo e estar vencida, depende, para a sua exigibilidade, de comportamento ativo do credor, sendo que este comportamento ativo tem características que o aproximam da interpelação”.

O Banco exequente remeteu aos devedores/executados a carta cuja cópia consta da alínea a) dos factos provados, não resultando, todavia, comprovado que a mesma haja sido recebida pelos seus destinatários.

De acordo com o n.º 1 do artigo 224.º do Código Civil, “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.

Não se achando demonstrado que os executados/subscritores da livrança exequenda hajam recebido a comunicação constante da aludida carta, nem que foi por culpa destes que a mesma não foi recebida, ter-se-á de concluir pela ineficácia da interpelação.

Ora, não tendo sido fixado no pacto de preenchimento nenhum prazo, a falta de comunicação da Exequente tem como consequência que a obrigação só se poderá considerar vencida com a citação dos devedores para os termos da execução contra eles instaurada.

Tal como refere a sentença recorrida, “a data de vencimento foi validamente aposta de acordo e os embargantes foram interpelados para o pagamento da livrança com a citação para os termos da execução.

Concluindo, nesta matéria, mesmo que, não tenha ocorrido previamente à execução, sempre terá de se entender que a obrigação considerar-se-ia vencida com a citação dos aqui embargantes para os termos da execução, relevando somente esse facto para efeitos de contagem dos juros”.

Naufragam, desta forma, os argumentos recursivos dos apelantes.

Improcede, assim, o recurso, com a consequente manutenção do decidido.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando improcedente a apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas – pelos apelantes: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.


Porto, 22.02.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
António Carneiro da Silva
_______________
[1] “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pág. 29.
[2] cf. Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, 5ª ed., pág. 405.
[3] Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, págs. 38-39.
[4] Ibid, pág. 40.
[5] Ob. cit., pág. 86.
[6] Acórdão da Relação do Porto, 30.10.74, Boletim do Ministério da Justiça 240º-273.
[7] Letras e Livranças: Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, pág. 620.
[8] Processo n.º 05A1086, www.dgsi.pt.
[9] Segundo José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, 2º Vol., Fascículo II, pág. 40), as cláusulas ou termos de preenchimento nem sempre são directamente estabelecidos numa estipulação, muitas vezes resultando implicitamente do próprio contrato que dá origem ao título, isto é, da relação jurídica fundamental-quando se fala de acordo quanto ao preenchimento tanto se consideram os acordos expressos como os tácitos, definindo-se o seu conteúdo pelos próprios termos da relação fundamental subjacente.
[10] Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, págs. 180 e 186.
[11] Idem, pág. 184.
[12] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, a pág. 87/88.
[13] Segundo o artigo 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, “quando a inexigibilidade derive da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação”.
[14] Processo n.º 4410/16.3T8VNF-C.G1.S1, www.dgsi.pt.