Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2174/18.5T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: CABEÇA DE CASAL
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP202103222174/18.5T8VLG.P1
Data do Acordão: 03/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O cabeça de casal pode, por si só, dar de arrendamento bens da herança indivisa, desde que o arrendamento tenha duração inferior a seis anos.
II - Não é de aplicar ao arrendamento de bens da herança o disposto no n.º 2 do artigo 1024 do Código Civil (CC).
III - A vinculação à celebração futura de uma venda, dependente apenas da vontade do comprador (opção de compra), não é um ato de conservação ou frutificação.
IV - Por isso, a sua validade depende do consentimento de todos os herdeiros, sob pena de nulidade (294 do CC), uma vez que, se celebrada apenas pelo cabeça de casal, viola o disposto no n.º 1 do artigo 2091 do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2174/18.5T8VLG.P1

Recorrente – B…
Recorridas – C… e outras

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
1 – C…, D…, E… e F… instauraram a presente ação contra B… e G… e pediram a anulação do contrato de arrendamento do imóvel que identificam, bem como a sua restituição à herança.

2 - Alegaram, em síntese, que, juntamente com o seu irmão, o 1.º réu e a sua mãe (entretanto falecida) são herdeiros de H…, tendo assumido, por morte do marido, a administração da herança, como cabeça de casal o cônjuge I…. Em Junho do corrente ano as autoras tiveram conhecimento da existência de um contrato de arrendamento com promessa de venda de um imóvel que pertence à herança por partilhar, que foi indevidamente celebrado pelo 1.º réu, pois o mesmo usou a posição de procurador da sua mãe para exercer poderes enquanto cabeça-de-casal, para os quais não tinha legitimidade nem autorização expressa.

3 - Os réus contestam, o primeiro pugnando pela validade do contrato e o segundo deduzindo pedido reconvencional, onde pede que, caso o contrato de arrendamento seja declarado nulo, as autoras sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de 4.237,24€

4 - Teve lugar a audiência prévia e o tribunal conheceu imediatamente o mérito da causa, tendo decidido “a) declarar a anulação do contrato de arrendamento com opção de compra datado de 01 de Março de 2018 e referido em 3º a 6º dos factos provados e em consequência condenar os Réus B… e G… a restituir a C…, D…, E… e F…, na qualidade de herdeiras da herança aberta por óbito de H… o prédio correspondente a casa de rés do chão e andar com entrada pelo n.º … da Rua …, freguesia … e concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 5863/20050217 , inscrito na respetiva matriz sob o art. 4110. b) absolver as AA. do pedido reconvencional deduzido por G…”.

II – Do Recurso
5 - Inconformados, os réus vieram apelar. Pretendem que se declare nula a sentença “mantendo válido o contrato de arrendamento e admitindo a reconvenção do réu G…. Formulam as seguintes Conclusões:
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6 – As autoras responderam e, defendendo a decisão recorrida e a improcedência da apelação, concluem, em síntese: 1) As recorridas juntamente com o recorrente B… são irmãos entre si e juntamente com a sua mãe D. I…, herdeiros de H…, pai e marido respetivamente e, por morte do marido, a administração da herança, como cabeça de casal, passa a ser assumida pelo cônjuge D. I…; 2) Em 1.03.2018 foi celebrado entre os recorrentes um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo e opção de compra, do imóvel identificado nos autos, pertencente à herança; 3) o recorrente B… celebrou indevidamente o contrato, usando a posição de procurador da sua mãe para exercer poderes de cabeça de casal, que não tinha, nem autorização expressa das restantes herdeiras; 4) O valor patrimonial do imóvel foi atualizado em 2016 (127.770.38€, como consta da caderneta predial), sendo que o valor da venda foi de 50.000,00€, o que demonstra que o negócio não foi vantajoso para a herança; 5) O recorrente G… é sócio gerente do Lar onde se encontra a D. I… e sabia que o imóvel é parte da herança a partilhar; 6) Não provou que as alegadas benfeitorias tenham sido realizadas ou que tenha havido valorização do prédio; 6) Os recorrentes alegam circunstâncias relativas à administração da herança que não foram objeto do processo, não sendo, por via disso, matéria do recurso.

7 – O recurso foi recebido nos termos legais e, entretanto, o réu G… veio desistir do recurso, desistência julgada válida ainda na primeira instância.

8 – Na Relação nada se alterou ao despacho que recebeu o recurso, salvo a afirmação do seu efeito meramente devolutivo, atenta a desistência do recurso pelo réu arrendatário.

9 – Foram dispensados os Vistos e nada se observa que impeça o conhecimento do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões do apelante, consiste em saber se o arrendamento (e opção de compra) aqui em causa deve ter-se por válido, por traduzir um ato de administração ordinária.

III - Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
10 – A primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto, não impugnada em sede de recurso:
10.1 – As autoras e o 1.º réu são irmãos entre si e juntamente com a sua mãe, I…, herdeiros de H….
10.2 - Por morte do marido, I… assumiu a qualidade de cabeça de casal da herança.
10.3 - Entre I… (primeiro outorgante), na qualidade de cabeça de casal da herança aberta pela morte de H… (e representada pelo seu procurador B…) e G… (segundo outorgante) foi celebrado o acordo junto aos autos a fls. 8 a 11, datado de 1 de março de 2018 e cujo teor se dá aqui por reproduzido;
10.4 - Pelo referido acordo o primeiro outorgante declara dar de arrendamento ao segundo outorgante a casa de rés do chão e andar com entrada pelo n.º … da Rua …, freguesia …, concelho de Valongo.
10.5 - O arrendamento é celebrado por prazo certo e terá a duração de dois anos com início em 1 de Março de 2018 e termo em 28 de Fevereiro de 2020, renovar-se-á por iguais e sucessivos prazos de 1 ano, salvo se for denunciado por qualquer das partes.
10.6 - Pela cláusula oitava, o primeiro outorgante confere ao segundo outorgante o direito de adquirir a casa de rés do chão e andar com entrada pelo n.º … da Rua …, objeto do presente contrato, nos termos e condições constantes dos anexos 1 e 2, que dele fazem parte integrante.
10.7 - O réu G… gastou 4.237,94€ em material para realizar as seguintes obras no locado: pintou as portas todas, na garagem retificou as paredes e pintou-as, colocou um telhado novo, na marquise retificou as paredes, colocou um cilindro novo, colocou móveis novos, arranjou as paredes da casa de banho, colocou tijoleira na casa de banho do primeiro andar, remodelou os quartos por completo, pintou as salas e cozinha, colocou fichas de eletricidade novas, colocou parquet nas escadas e no primeiro andar, retificou a escadaria e portas, retificou as paredes da sala e cozinha.

III.II – Fundamentação de Direito
11 – Fundamentando a sua decisão, o tribunal recorrido deixou escrito o que ora se sintetiza: “(...) O contrato celebrado tinha um prazo de dois anos, mas no mesmo é conferido opção de compra ao arrendatário (clausula oitava), pelo que a D. I…, representada pelo réu enquanto seu procurador, não tinha poderes, sem os demais herdeiros, e enquanto cabeça de casal, para celebrar o contrato, uma vez que este contrato tinha opção de compra, pelo que não cabe dentro dos poderes de administração ordinária do mesmo (a cláusula de opção de compra no contrato de arrendamento vincula o outorgante a vender/alienar o imóvel ao inquilino pelo preço acordado, durante ou após um dado período de tempo), e não constitui um ato de frutificação normal do bem. Qual a sanção? (...) do n.º 1 do art 1024 CC resulta genericamente o que, em matéria de legitimidade para dar de arrendamento, deverá constituir, por um lado, ato de (mera) administração e por outro, ato de disposição, estipulando-se que «a locação constitui para o locador um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrado por prazo superior a seis anos». Donde se segue que o cabeça de casal pode dar em arrendamento bens integrantes da herança que administra, posto o arrendamento em causa não exceda o prazo superior a seis anos. Dispõe, por seu lado, o art 2091/1 que «fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art 2078, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros» (...) Vaz Serra entende que a sanção para a falta de consentimento dos restantes comproprietários é a da mera ineficácia (...) Posição que Pires de Lima/Antunes Varela rejeitam, entre o mais, afirmando: «Não interessa, na verdade, aos consortes que o ato não autorizado seja ineficaz em relação a eles, enquanto o arrendatário detiver o prédio e pagar as rendas ao consorte administrador. O que lhes interessa é pôr termo ao arrendamento, obter o despejo do prédio, ou se se quiser, por termo àquela situação de facto. Ora isto não se consegue com a posição puramente passiva inerente à ineficácia, mas somente com a destruição ativa do ato mediante uma acção judicial, e a mais adequada para este efeito é a da nulidade, ao funcionar como pressuposto ou antecedente da acção de despejo». Ora, não podemos deixar de concordar com a posição subscrita, e concluir pela procedência do pedido”.

12 - Contrariamente ao decidido, entendemos que o regime especial de administração da herança indivisa, regime que resulta da conjugação do disposto nos artigos 2079 e 2091 do Código Civil (CC) e, quanto ao arrendamento, do disposto no n.º 1 do artigo 1024 do mesmo Código, permite ao cabeça de casal a celebração de contratos de arrendamento, desde que até seis anos, mesmo sem o consentimento dos outros herdeiros.[1]

13 – Com efeito, a tal não obsta o disposto no artigo 1024, n.º 2 do CC, uma vez que este preceito “visa apenas a indivisão de prédios (por compropriedade) que não o caso de património autónomo constituído pela universalidade da herança indivisa, em que a normal fruição da herança impõe a figura do cabeça de casal”[Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 3.ª Edição Renovada/Reimpressão, pág. 55, nota 145].

14 – Assim, tendo em conta o prazo do arrendamento em causa nos autos, a cabeça de casal podia celebrar, por si só, o contrato e, por isso, não há fundamento para declarar a sua invalidade e a consequente anulação, como se decidiu em primeira instância, havendo que, nessa parte, revogar o decidido.

15 – Já quanto à opção de compra do bem (arrendado), acordada entre a cabeça de casal e o segundo réu, a solução há de ser diversa, ainda que não pelas razões constantes da decisão recorrida.

16 – A opção de compra (negócio jurídico pelo qual uma das partes se vincula à celebração futura de uma venda, se assim o desejar o beneficiário da compra) não pode ser considerado um ato de mera administração.

17 – Com efeito, a opção de compra (ato que não é conservação ou frutificação) tem autonomia e distingue-se do arrendamento, nomeadamente por prazo inferior a seis anos (ato de mera administração).

18 – A consequência resultante da prática desse ato, que não cabe dos poderes do cabeça de casal, ou seja, que não pode ser realizado sem o consentimento de todos os herdeiros, isto é, em violação do disposto no artigo 2091, n.º 1 do CC, assim consubstanciando uma ilegitimidade substantiva, é a nulidade.

19 – Efetivamente, e como expressamente decorre do disposto no artigo 294 do CC, os negócios celebrados contra norma imperativa são nulos.

20 – Em conformidade, o presente recurso revela-se procedente e as custas são devidas pelas apeladas.

IV - Dispositivo
Pelas razões ditas e na procedência da presente apelação, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida e, do mais absolvendo o recorrente, determinar a nulidade (e a consequente anulação) da opção de compra datada de 1 de março de 2018 constante do contrato referido em 3.º a 6.º dos factos provados e relativa ao prédio correspondente a casa de rés do chão e andar com entrada pelo n.º … da Rua …, freguesia … e concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 5863/20050217, inscrito na respetiva matriz sob o art. 4110.

Custas pelas recorridas.

Porto, 22.03.2021.
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
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[1] Nesse sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8.06.2017 (Relatora, Desembargadora Maria Teresa Albuquerque, Processo n.º 4579/14.1T8FNC.L1-2, dgsi) com o seguinte sumário: “I – Da conjugação do disposto nos arts 2079º, 1024º/1 e 2091º/1 CC, parece resultar que o regime da administração da herança indivisa por parte do cabeça de casal constitui um regime especial, em função do qual, o mesmo pode, por si só, outorgar em contrato de arrendamento até seis anos, só o não podendo fazer sem o consentimento dos demais herdeiros no referente a arrendamento por prazo superior, não se aplicando, por isso, no tocante à administração da herança indivisa por parte do cabeça de casal o disposto no nº 2 do art 1024º.”