Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1756/16.4T8STS-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
REMUNERAÇÃO MÍNIMA ANUAL
Nº do Documento: RP201905221756/16.4T8STS-D.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º892, FLS.131-138)
Área Temática: .
Sumário: I - Ao devedor insolvente deve ser resguardada da cessão ao fiduciário, pelo menos, quantia equivalente à retribuição mínima garantida, que corresponde, anualmente, à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze.
II - Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 1756/16.4T8STS - D
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 5
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B…, residente na Rua…, n.º …, …, …. - … … – Gondomar, apresentou-se à insolvência, alegando, em síntese, que desenvolveu durante largos anos a atividade empresarial na qualidade de sócio e gerente da sociedade C…, L.da, com sede na Travessa …, .., freguesia de …, concelho de Gondomar. Esta empresa confecionava artigos de joalharia e ourivesaria que eram comercializados pelas empresas D…, Unipessoal L.da e E…, Unipessoal L.da. Entre os anos de 2011/2012 estas duas empresas deixaram de liquidar à C… os serviços por ela faturados, que ascendiam a mais de €80.000,00, o que determinou o seu colapso financeiro e encerramento da atividade. Foi assim arrastado para o desemprego e sem direito a qualquer fonte de rendimento. As empresas D… e E… foram declaradas insolventes com carácter limitado, pelo que a C… não alcançou ressarcimento dos seus créditos. No ano de 2011, no âmbito de partilha sequente a divórcio, foram-lhe adjudicados um prédio urbano, correspondente a uma fração autónoma descrita no registo predial sob o número 805 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 16.179, e um terreno para construção descrito no registo predial sob o número 2082 e inscrito na matriz predial sob o artigo 10.998, mas assumiu todo o passivo conjugal e ficou com a responsabilidade de liquidar o crédito à habitação no Banco F…, SA, faltando amortizar a verba aproximada a €80.662,78. Identicamente sucedeu quanto a um crédito do G…, S.A., contraído pelo dissolvido casal para a realização de obras e compra de equipamentos no estabelecimento comercial salão de cabeleireiro da sua ex-cônjuge, estando por liquidar, a essa data, o montante de €25.000,00. Mais articulou que vive da ajuda de seus pais e de alguma formação profissional que vai ministrando na área da ourivesaria. Em 2013 solicitou um empréstimo particular com hipoteca no valor de €40.000,00 para regularizar responsabilidades e apenas conseguiu amortizar €5.000,00. Tem uma dívida para com a H…, S.A. no montante estimado de €9.665,00, também para com o I…, S.A. no montante de €10.156,00. Tem ainda uma dívida ao K… no valor estimado de €15.000,00, ao J…, S.A. no montante estimado de €8.000,00. Há também quantias por liquidar à Segurança Social e Finanças, já com operatividade da reversão: €7.900,00 de segurança social e €5.000,0 de Finanças. Tem ainda em dívida custas no valor de €357,00, relativas ao processo 4525/11.4TBGDM da instância local cível de Gondomar. Requereu a exoneração do passivo restante, alegando ser pessoa de bem, que sempre trabalhou e, no ano de 2015, ministrou formação profissional mas agora não tem ações formativas asseguradas. As despesas de luz e gás são no valor de €36,94 mensais, a água no valor de €10,00, alimentação, vestuário e afins, em média, de €300,00/mensais. São os seus pais que o ajudam, dando-lhe dinheiro ou bens e pernoitando, não raras vezes, em sua casa. Procura cumprir a sua função de pai, ajudando a mãe da menor nas despesas escolares, de atividades, vestuário, alimentação num valor estimado mensal de €100,00, quantia que é, muitas vezes, suportada pelos seus pais.
A insolvência foi declarada por sentença que transitou em julgado em 04-07-2016, tendo sido liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante “...ficando salvaguardado para o/a devedor/a durante o período de cessão os referidos cinco anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho art. 237 b) do CIRE, a quantia correspondente a um salário mínimo nacional (1 s.m.n.) acrescido de valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado e quantias devidas a este título em atraso, quanto à sua filha menor de idade ...”.

O insolvente requereu a retificação da decisão no sentido de nela fazer constar que o salário mínimo nacional disponibilizado para o seu sustento é multiplicado por 14 meses.
Por despacho datado de 20/03/2019 foi clarificado que o montante definido no despacho de admissão liminar de exoneração do passivo restante corresponde a “1 smn X 12, acrescido da pensão de alimentos e demais termos ali constantes”.

Inconformado, recorreu o insolvente, cuja alegação assim rematou:
Pugna o Recorrente pela fixação de um rendimento a coberto da cessão equivalente a 1 S.M.N acrescido de 1/4, como retribuição mínima mensal garantida (que atualmente corresponde a €750,00), acrescido do valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado a quantias devidas a este título em atraso quanto à sua filha menor de idade, devendo ser entregues ao fiduciário, mensalmente os proventos que ultrapassem esse valor.
Pelo que nessa esteira, deverá ser revogado o despacho na parte objeto de recurso – que determinou excluído do rendimento disponível o montante correspondente a um salário mínimo- substituindo nessa parte pelo valor de uma vez e 1/4 a remuneração mínima mensal garantida - acrescido do valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado a quantias devidas a este título em atraso quanto à sua filha menor de idade, 14 vezes ao ano.
1. Não resulta do despacho judicial de deferimento liminar de exoneração do passivo restante proferido ao abrigo do n.º 2 do art. 239º do CIRE, em que se fixou o rendimento cedido ao insolvente se essa rendimento deverá ser retido 14 (catorze) vezes ou 12 (doze) vezes ao ano, o que constitui, no entendimento do Recorrente uma omissão arguível ao abrigo do art. 614ª do C.P.C.
2. Não resulta assim do douto despacho judicial e deveria, no entendimento do Recorrente, em que termos se alcançará a quantia cedida ao insolvente equivalente ao «Salário Mínimo Nacional» (1 S.M.N).
3. Não é de todo irrelevante esta questão, pelo contrário, uma vez que a opção por uma ou outra solução, leva matematicamente a resultados diferenciados.
4. Sufraga o insolvente, pelo presente recurso, que não só deveria esta operação estar plasmada no dispositivo do douto despacho judicial em crise, como aquela que vai no sentido de a retribuição mínima mensal garantida ao insolvente ser calculada por recurso a 14(catorze) meses.
5. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14, pelo que o salário mínimo nacional garantido mensal corresponderá assim à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14 meses.
6. Esta perspetiva defendida vai ao encontro do conceito de «Retribuição mínima nacional anual (RMNA)» definido no art. 3.º do DL 158/2006, de 8 de agosto, como «o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses».
7. Entende assim o Recorrente que na parte do despacho judicial em que se determina que “... ficando salvaguardado para o/a devedor/a durante o período de cessão os referidos cinco anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho art. 237 b) do CIRE, a quantia correspondente a um salário mínimo nacional (1 s.m.n.)acrescido de valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado e quantias devidas a este titulo em atraso ...” deverá constar o seguinte“....a quantia correspondente a um salário mínimo nacional (1 s.m.n.) *14 meses, acrescido de valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado e quantias devidas a este titulo em atraso ...”.
8. Requerendo, ora em sede de recurso, a retificação do douto despacho judicial nesta parte ao abrigo do art. 614º/2 do C.P.C.
9. O objeto do presente recurso prende-se igualmente com o mesmo douto Despacho judicial, na parte e tão só respeitante à fixação pelo douto tribunal do valor correspondente a “um salário mínimo nacional (1 s.m.n) ainda que acrescido de valor de pensão de alimentos fixa e variável a que o insolvente esteja obrigado e quantias devidas a este titulo em atraso quanto a sua filha menor e de idade mediante apresentação de comprovativos como o valor salvaguardado para o insolvente o período de cessão.
9. O Recorrente e salvo o devido respeito que lhe merece a decisão judicial em causa, discorda apenas do quantum um salário mínimo nacional“ reservado para si a título de rendimento disponível.
10. Por entender que tal montante, e após deduzido o valor da pensão de alimentos a que está obrigado à sua filha menor, neste momento do valor de €100,00/mensais, continua a não ser suficiente e compatível com o sustento minimamente digno que deve ser assegurado ao devedor.
11. Dispõe o n.º 3 do art. 239 do CIRE como se calcula o valor do rendimento do insolvente que não será cedido à entidade fiduciária, a saber: penhor, antes da declaração de insolvência, nos termos do art. 115 do CIRE;b)- igualmente fora da cessão do fiduciário estão os valores razoavelmente necessários para: i) o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar»; ii) o exercício pelo devedor da sua atividade profissional; e iii) outras despesas que o juiz ressalve.
12. Ora, em causa no presente recurso está a aferição do que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor, discordando do Recorrente do quantum que lhe fora determinado pelo douto tribunal recorrido.
13. Resulta do despacho judicial que o montante supra descrito fora fixado “atentas as condições pessoais do/a/s devedor/a/s e do seu agregado familiar que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais e não impugnadas.”
14. Ora, essas condições pessoais do Recorrente resultam em larga medida da matéria alegada e provada em sede de petição inicial de apresentação à insolvência em 31.05.2016 bem como do parecer do Ilustre Senhor Administrador de Insolvência, constante dos autos, dos quais se apreende como relevante e com especial interesse para a questão em apreço o facto de: o Insolvente estar divorciado, de ter uma filha menor a quem tem de prestar alimentos no valor de €100,00, que o agregado familiar é composto apenas pelo próprio e que o mesmo não tem rendimento certo e permanente, vindo a prestar serviços de formação profissional e na área da joalharia, não tendo com isto conseguido obter rendimento que lhe permita o pagamento das suas responsabilidades vencidas.
15. Resulta igualmente dos autos que o Recorrente “deixou de liquidar a prestação de amortização do crédito bancário inerente à habitação na qual reside, por não ter condições económicas para a assegurar; que tem despesas como a luz e gás no valor de € 36,94 mensais; despesas de água no valor de € 10,00 e por fim as despesas de alimentação, vestuário e afins, nas quais despende uma média de € 300,00/mensais, sendo os seus pais que o ajudam dando-lhe dinheiro ou bens em espécie, pernoitando em casa dos mesmos, não raras vezes.
16. É verdade que o Recorrente não juntou aos autos despesas com habitação, saúde, transportes, comunicações, entre outras.
17. Todavia, é entendimento do Recorrente, que o Tribunal, por um lado, ao fixar como valor a coberto da cessão o montante de 1 S.M.N (além do valor a titulo de pensão de alimentos que tem de pagar à sua filha menor) não terá ponderado o elemento “habitação”, a que o devedor terá de satisfazer - o preço a pagar pelo uso de uma habitação - à qual, no dia de amanhã, o Recorrente necessariamente terá de fazer face.
18. Assim, é razoável e expectável que o Recorrente tenha de arrendar uma casa para viver não sendo expectável que, face à lei da procura/oferta que se vive no mercado de arrendamento, nas grandes cidades como o Porto, logre alcançar rendas por valores inferiores a €350,00/ €400,00 mensais.
19. Ora, considerando as despesas de alimentação com o próprio, saúde, água, luz, gás, vestuário, transportes, comunicações e demais despesas correntes do dia-a-dia, o elevado custo de vida nas grandes cidades como o Porto e Lisboa, bem como o preço a pagar pelo uso de uma habitação, temos sérias dúvidas em que termos é que 1 S.M.N (€600,00) assegurará ao Recorrente viver com a dignidade mínima que lhe está garantida pela lei.
20. Deste modo, para encontrar o rendimento com que o insolvente se há de governar cumpre partir do salário mínimo, que é o mínimo previsto por lei para uma única pessoa viver com dignidade, e acrescentar-lhe o que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada.
21. Ora, como é sabido, nem mesmo com a atualização do salário mínimo nacional para € 600,00, se pode dizer que, neste momento, será, na realidade, o mínimo indispensável para uma pessoa sobreviver, atento o elevado custo de vida nas grandes cidades como Porto e Lisboa.
22. Por outro lado, o douto Tribunal ao fixar o valor cedido ao Recorrente em 1 S.M.N, não ponderou a possibilidade séria de o Recorrente vir no período da cessão auferir um rendimento certo e superior ao auferido até à data.
23. O que a verificar-se e uma fixado o rendimento cedido equivalente a 1 S.M.N, que se vislumbra desde já como insuficiente e parco, pode até comprometer a própria produtividade, o bem estar e a recuperação da usa liberdade económica, objetivos que igualmente se visam alcançar com o instituto da exoneração do passivo restante.
24. Nesse sentido “Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013.
25. Ou como bem denota, Paulo Mota Pinto, “enquanto o devedor não estiver exonerado, o seu acesso ao crédito está limitado, pelo que os credores terão «interesse em que o devedor peça uma exoneração do passivo restante, caso não lhe seja possível pagar, até para voltar a ter incentivo para o exercício de uma atividade profissional, e para poder voltar a recorrer ao crédito» [PAULO MOTA PINTO, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», in III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pp. 175-195 (179)].
26. Destarte, com a determinação de 1 S.M.N ao Recorrente como valor que pode dispor para si e para a sua vida, prejudica e desincentiva a inclusão socioeconómica do devedor e coloca-se em risco a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia.
27. Pugna o Recorrente pela fixação de um rendimento a coberto da cessão equivalente a 1 S.M.N e ¼, como retribuição mínima mensal garantida (que atualmente corresponde a €750,00), acrescido do valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado a quantias devidas a este titulo em atraso quanto à sua filha menor de idade, devendo ser entregues ao fiduciário, mensalmente os proventos que ultrapassem esse valor.
28. Pelo que nessa esteira, deverá ser revogado o despacho na parte objeto de recurso – que determinou excluído do rendimento disponível o montante correspondente a um salário mínimo - substituindo nessa parte pelo valor de uma vez e 1/4 a remuneração mínima mensal garantida- acrescido do valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado a quantias devidas a este titulo em atraso quanto à sua filha menor de idade, 14 vezes ao ano.
29.A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação do disposto no artigo 614º/1 al c) do C.P.C, art. 1.º; da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e n.º s 1 e 3 do artigo 63.º todas da Constituição da República Portuguesa, bem como do ponto i), alínea b), do n.º 3, do artigo 239.º do CIRE”.

Não consta dos autos resposta à alegação,
II. Âmbito do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões da alegação recursiva que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635º/4 e 639º/1 e 2 do Código de Processo Civil, doravante denominado “CPC”). Tendo em conta o teor das conclusões alegatórias do recorrente, a questão solvenda restringe-se à fixação do rendimento disponibilizado ao insolvente.
III. Fundamentação de facto
1. O insolvente foi sócio e gerente da sociedade “C…, L.da” até 2011, a qual foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado.
2. O insolvente presta serviços esporádicos de formação profissional na área da joalharia.
3. Está divorciado e tem uma filha menor.
4. No processo de regulação do exercício de responsabilidades parentais foi proferida, em 17/11/2011, sentença que homologou o acordo dos pais da menor e que, quanto a alimentos, assim estabeleceu: “O Progenitor contribuirá com €125,00 (cem e vinte e cinco euros) mensais a título de prestação de alimentos a favor da criança, a ser entregue à requerida/progenitora, por qualquer forma documentada, até ao dia 8 de cada mês. O progenitor contribuirá ainda em metade das despesas de saúde e escolares relativas à criança, desde que devidamente documentadas por parte da mãe e enviadas ao progenitor até ao final de cada mês. O pagamento de tais despesas será efectuado em conjunto com a prestação mensal de alimentos a que o progenitor se encontra obrigado”.
5. O insolvente é proprietário dos imóveis apreendidos.
6. Em 2002 contraiu um empréstimo para aquisição de habitação própria permanente.
7. O devedor não foi condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal, nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data.
8. Antes não foi declarado insolvente nem nunca beneficiou de exoneração do passivo restante.
9. Apresentou-se à insolvência em 31-05-2016, a qual foi decretada por sentença de 09-06-2016, transitada em julgado em 04-07-2016.
10. Requereu exoneração do passivo restante, tendo o credor J…, S.A. dado conta de eventual existência de ato simulado, mas o AI veio a emitir parecer no sentido do deferimento liminar do incidente.
11. Em 31-01-2019 foi proferido despacho de admissão liminar do incidente, determinando que, “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (art. 230.º CIRE), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, i.e., todos os rendimentos que advenham ao insolvente, com exclusão dos previstos nas al.s a) e b) do n.º3 do art. 239.º, se considera cedido ao sr. Administrador de Insolvência destes autos, na qualidade de fiduciário, ficando salvaguardado para o/a devedor/a, durante o período de cessão - os referidos cinco anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho - art. 237 b) do CIRE, a quantia correspondente a um salário mínimo nacional (1 s.m.n.) acrescido de valor de pensão de alimentos fixa e variável a que esteja obrigado e quantias devidas a este titulo em atraso, quanto à sua filha menor de idade, mediante apresentação de comprovativos (atentas condições pessoais do/a/s devedor/a/s e do seu agregado familiar que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais e não impugnadas),ficando o/a mesmo/a obrigado/a a observar as imposições previstas no n.º 4 do art. 239.º do CIRE”.
IV. Fundamentação de direito
O artigo 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1] estatui que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser - lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ano encerramento do processo. E, nos termos do artigo 237º do CIRE, a concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, que o juiz profira despacho inicial declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência. Trata-se, como assinalado no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, da forma inovadora do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”.
Nesse período de cinco anos, designado período de cessão, o insolvente tem entregar ao fiduciário, para satisfação dos direitos dos credores e encargos do processo, o seu rendimento disponível, integrado por todos os recursos patrimoniais que aufira, a qualquer título, exceto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro e o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, com o limite do triplo da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), para o exercício da sua atividade profissional e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou em momento ulterior (artigo 239º do CIRE). Nesse contexto, cabe ao juiz, logo no despacho inicial, definir “o que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”. É um conceito aberto, que procede do reconhecimento do princípio da dignidade humana, de sagração constitucional (artigo 1º), a partir do qual se afere o montante pecuniário indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da concreta situação do devedor, numa efetiva ponderação casuística do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos disponíveis.
A RMMG é tida como a remuneração básica estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e, concebida como o patamar mínimo, não pode ser, reduzido qualquer que seja o motivo. Porém, o “sustento minimamente digno” é um conceito indeterminado, que deve ser preenchido pelo juiz à luz do princípio da dignidade humana no confronto da situação pessoal do insolvente com os interesses dos seus credores e a lesão que a exoneração do passivo restante lhes aporta. É assim que não pode ser assegurado ao devedor insolvente o mesmo nível de vida anterior; antes lhe é exigido um sacrifício de medida razoável. Não pode, contudo, ser penalizado como se fosse culpado pela sua insolvência[2].
Tratando-se de um conceito indeterminado, a indagação do montante pecuniário que, em cada caso concreto, se mostra necessário à sobrevivência condigna do insolvente, depende da concretização jurisprudencial, a partir da avaliação das particularidades da situação concreta do devedor. Se por um lado, haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores[3].
Sopesados os dois lados da questão, cremos não ser razoável a pretensão do Recorrente, pois acabaria por eximir-se a qualquer pagamento a favor dos credores. Está-lhe salvaguardado o montante relativo aos alimentos de sua filha menor e, apesar de viver sozinho, pretende ver garantido para o seu sustento o correspondente a uma RMMG, acrescida de ¼, durante 14 meses, quando não dispõe de rendimentos mensais que facultem alguma, ainda que reduzida, satisfação dos credores.
Ao devedor, a par com o esforço de alcançar rendimentos, impõe-se contenção nas despesas, para poder satisfazer os credores, mas também para se preparar para o período de recuperação da sua liberdade económica, em que terá de saber gerir criteriosamente os seus rendimentos para não cair em nova situação insolvencial. Juízo que nos parece muito pertinente no caso, porque o insolvente, não obstante ter um passivo muito expressivo, mesmo depois do estado insolvencial da empresa que geria, e que era a sua única fonte de rendimento, continuou a contrair empréstimos.
Cremos, por conseguinte, equilibrada e cumpridora dos critérios legais e jurisprudenciais a decisão recorrida, ao fixar como excluída da cessão ao fiduciário o valor correspondente a uma RMMG, que lhe garantirá o acesso autónomo a bens e serviços de primeira necessidade. Em regra, a RMMG é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna[4].
O devedor não pode alhear-se do alcance da concessão da exoneração do passivo restante, que se traduz para o devedor numa situação de enorme responsabilidade, já que, perante o incumprimento de algumas das normas legais da exoneração, e até mesmo antes do términus do período de cessão, esta pode ser-lhe recusada (artigo 243º do CIRE). O certo é que, não havendo lugar a cessão antecipada e o devedor tenha cumprido todas as suas obrigações durante o período de cessão, é proferido despacho final de exoneração, que tem como consequência a desoneração do devedor das dívidas que não foram pagas durante o processo de insolvência (artigo 244º do CIRE). Com efeito, no que toca aos efeitos da exoneração do passivo restante ela “importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (…)” (artigo 245º do CIRE).
O Recorrente defende que o rendimento disponibilizado é constituído pela RMMG multiplicada por 14. De facto, sendo a RMMG recebida 14 vezes no ano, podemos afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263º e 264º/1 e 2 do Código do Trabalho), e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. Interpretação que é conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA, a que alude o artigo 3º do decreto-lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente disponibilizado corresponde à àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador [5].
Transpondo este princípio para o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, teremos de admitir que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou, então, cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12.
Esta solução não colhe unanimidade jurisprudencial[6], mas é aquela que, na nossa ótica, melhor quadra com a salvaguarda de uma existência condiga do devedor, acolhida pelo CIRE para a definição do sustendo mínimo do devedor, e melhor cumpre as exigências constitucionais do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Na perspetiva constitucional, à luz do normativizado no artigo 59º/2, a), da CRP, a RMMG representará aquele valor imprescindível a uma subsistência digna.
Do exposto concluímos pela procedência parcial da apelação e pela fixação do rendimento disponibilizado ao devedor para o seu sustento no valor da RMMG multiplicada por 14.
V. Dispositivo
Perante o exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação e, por conseguinte, revogando parcialmente a decisão recorrida, excluem da cessão ao fiduciário e para sustento do insolvente uma remuneração mínima mensal garantida multiplicada por 14 meses, mantendo-a quanto à restante exclusão.
Custas do incidente e da apelação a cargo do insolvente na proporção do decaimento (artigo 527º/1 do CPC).
*
Porto, 22 de maio de 2019.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Aprovado pelo decreto-lei n.º 53/2004, com sucessivas alterações, incluindo as decorrentes do decreto-lei 26/2015, de 6 de fevereiro.
[2] Ana Filipa Conceição, Julgar online, junho de 2016, pág. 11.
[3] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 14-09-2017, processo 1078/14.5TBMTJ.L1.
[4] In www.dgsi.pt: Ac. STJ de 02-/02-2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1.
[5] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 27-02-2018, processo 1809/17.1T8BRR.L1-7; 13-03-2018, processo 92/17.3T8LSB-B.L1; 24-04-2018, processo 3553/16.8TABRR-E.L
[6] Em sentido diverso, in www.dgsi.pt: Ac. RG de 17-05-2018, processo 4074/17.7T8GMR.G1.