Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24/14.0T2AVR-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE
FIXAÇÃO DO RESPECTIVO MONTANTE
Nº do Documento: RP2015091524/14.0t2avr-C.P1
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do art. 239º, nº3, cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, encontrar, em função do caso concreto, o rendimento do trabalho excluído da cessão aos credores, apenas coarctado na lei pelo limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional; nessa tarefa, deve evitar-se o recurso a generalizações abstractas, devendo ir-se ao encontro das especificidades irrepetíveis de cada situação.
II –Tendo sido apurado nos autos despenderem os insolventes, casados entre si, uma quantia global de cerca de 1000 euros com despesas mensais fixas, nomeadamente com a habitação (renda de casa), alimentação, vestuário e encargos com uma filha menor de 13 anos, afigura-se adequada e proporcional a fixação de 1,2 salários mínimos mensais para cada um dos membros da sociedade conjugal nos termos e para os efeitos do disposto no art. 239º, nº 3 b), subalínea i) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 24/14.0t2avr-C.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

Recorrente(s): B… e C….
Comarca de Aveiro – Instância Central - 1ª Secção de Comércio.
*****
B… e C…, residentes na Rua … .., ..º ….–… Águeda, aquando da sua apresentação à insolvência, requereram a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos arts. 235º e seguintes do CIRE.
Tal pedido veio a ser deferido determinando-se que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, o rendimento dos devedores/insolventes que ultrapasse o montante de uma vez e vinte avos (1,2x) o salário mínimo nacional (x12 vezes) seria cedido ao Exmo. Administrador de Insolvência que foi nomeado para exercer as funções de fiduciário.
*
Inconformados precisamente com a fixação desse montante (uma vez e vinte avos (1,2x) o salário mínimo nacional) os insolventes interpuseram o recurso de apelação ora em apreciação cujas conclusões são as seguintes, em súmula:
A – Nos presentes autos, entendeu o Mmo. Juiz deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante (...) e em consequência determinou que “durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir, será cedido ao Fiduciário ..., fixando-se o sustento minimamente digno dos Insolventes no valor correspondente ao montante de uma vez e vinte avos (1,2x) o salário mínimo nacional (x12 vezes) para cada um dos insolventes.”
B – Atendendo ao valor do actual salário mínimo nacional, o rendimento mínimo disponível dos Insolventes e do seu agregado familiar no qual se insere uma criança de 13 anos de idade seria o equivalente a 808,00 Euros.
C – Tal valor afigura-se como um valor nitidamente diminuto, tendo em consideração as despesas fixas mensais que ascendem a, pelo menos, €980,00.
D – Deste modo, está em causa a garantia de uma vida condigna dos Insolventes, mais atendendo à idade da sua filha menor.
E – Na verdade, a manter-se a decisão de que se recorre, teriam os insolventes que optar ou pelo incumprimento do despacho inicial de exoneração do passivo restante, ou pela própria sobrevivência do agregado familiar.
F – Os insolventes auferem do produto do seu trabalho como empregados por conta de outrem o montante de EUR 910,90 mensais, não dispondo de outras fontes de rendimento.
G – Têm, respectivamente, 44 e 40 anos de idade além de uma filha de 13 anos.
H – O rendimento mínimo disponível (808 EUR) não permite assumir a gestão mensal dos encargos correntes.
I – Não permitindo ao agregado familiar sobreviver, revelando-se injusto e desequilibrado.
J – Não respeitando o espírito da lei designadamente o art.239º do CIRE quando refere no nº3, al. b) i) o “sustento minimamente digno do devedor...”
K – Pedem os recorrentes a substituição deste despacho inicial por outro em que os insolventes venham a auferir o equivalente a 2,5 SMN.
L- O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige a fixação do mínimo julgado indispensável a uma existência condigna até porque
M – A exigência constitucional do princípio da dignidade humana, plasmado no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa, assim o determina, salvaguardando-se esse mínimo de existência expressamente consagrado no art.1º da Declaração dos Direitos Humanos e no art.59º, nº1, al. a) da CRP.
N – A decisão recorrida interpretou mal o at.239º, nº3, al. b), subalínea i do CIRE pelo que deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que determine que os Recorrentes recebam sempre o equivalente a 2,5 SMN que em cada momento vigorar.

III – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso subsume-se a uma única questão: a fixação do montante a que alude o art.239.º do CIRE correspondente ao rendimento excluído da cessão e atinente a acudir ao sustento minimamente digno do(s) devedor(es).

III -Fundamentação de direito.
À luz dos factos provados por documentos e que mereceram o assentimento dos intervenientes, em particular do administrador da insolvência, apurou-se que:
1 – Os requerentes, ora apelantes, apresentaram-se à insolvência no dia 08.01.2014;
2 – Os Requerentes são casados entre si sob o regime de comunhão de adquiridos e têm uma filha a cargo, estudante, menor de idade;
3 – A insolvente mulher aufere remuneração mensal de €551,80 e o insolvente marido aufere subsídio de desemprego no valor mensal de €419,10;
4 - Residem em casa arrendada, pagando 400€ de renda;
5 - Os requerentes tem um passivo que ascende a um valor superior a duzentos e setenta e sete mil euros.
Apurados os factos relevantes há que subsumi-los às normas jurídicas, indagando do direito aplicável na fixação do montante tido por razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar; neste excurso breve, evitaremos reproduzir considerandos gerais já expressos noutros nossos acórdãos publicados e constantes em dgsi.pt.
Preceitua o artigo 239 do CIRE que:
“1- Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes”.
“2- O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
“3- Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115 cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.
O CIRE consagrou, assim, um período de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afectar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não forem integralmente satisfeitos no processo de insolvência.
Durante tal período, o devedor terá de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre os Administradores de Insolvência), que afecta os montantes recebidos a título de “rendimento disponível” ao pagamento dos credores (artºs 239º nºs 1 e 2 e 241º nº1 CIRE). O rendimento disponível, nos termos do disposto no artº 239º nº3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão, como ficou expresso acima, do que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
Ora, é sobre esse concreto montante que o dissídio plasmado no presente recurso se manifesta.
Este rendimento excluído da cessão – correctamente designado justamente como “rendimento indisponível” (cf. Ac.R.L. 12/4/2011 Col.II/129, relatado pela Desembª Ana Resende) –caracteriza-se, no essencial, como aquela parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor. Exemplificando, a norma legal indica esse limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário.
É certo que Luís de Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2009, pág. 788, parágrafo 5º, entendem que o legislador, ao referir-se no nº3 do referido normativo, alínea b) i) a três vezes o salário mínimo nacional, adoptou “um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional” e que “o valor assim calculado só pode ser excedido mediante decisão do juiz, devidamente fundamentada”.
Porém, entendemos, de acordo com a jurisprudência e doutrina claramente dominantes, que este sustento digno apenas se pode discernir em concreto, sem prejuízo do recurso a noções consolidadas e que reflectem o nosso estado civilizacional relativamente a conceitos como os da dignidade do trabalho, reflectidas nos montantes fixados como salário mínimo nacional ou relativos ao rendimento social de inserção ou ao valor do subsídio de desemprego.
Na verdade, caberá, sim, ao juiz fixar com razoabilidade esse montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar - vide, por todos, Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª ed. pág. 162/163. Interpretação esta acolhida igualmente por Assunção Cristas ao defender, que, o rendimento disponível, “engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, excluindo (..) os montantes que se consideram razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundamentadamente, o juiz determinar montante superior)” – cfr. Exoneração do Devedor do Passivo Restante, Themis 2005, pág. 174, nota 8.
Neste contexto, com a sensibilidade social que o tema implica e tendo em consideração a sempre difícil tarefa em vista de aplicar o direito à especificidade única e irrepetível de cada caso concreto, tendo em boa conta a necessidade de satisfazer, tanto quanto possível, integralmente os direitos dos credores, de modo a evitar que a “exoneração do passivo restante” se transforme num “prémio ou na cobertura a uma fraude” (neste sentido, entre muitos outros, cita-se o Acórdão da Relação de Évora de 13/12/2011 Col. Jurisprudência Vol. V, pg.263, relator Canelas Brás), a interpretação relativamente ao montante devido a título de rendimento indisponível deve, contudo, obedecer ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida) – assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 3ª ed., pgs. 428ss.
Estando em causa a determinação de factores de subsistência de um dado cidadão, no caso um casal insolvente, naturalmente que o problema envolve considerandos constitucionais, fundantes do primado do direito, que devem ser valorados. Ou seja, incumbe ao julgador atender às necessidades fundamentais para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sem prejuízo do escopo do processo falimentar que não deve ser obnubilado - o ressarcimento dos credores.
Tecidos estes considerandos genéricos, desçamos ao caso concreto.
Desde logo, a título de referência, deve considerar-se o salário mínimo nacional para o período compreendido entre 1 de Outubro de 2014 e 31 de Dezembro de 2015, o qual foi fixado em €505 (vide Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de Setembro).
Em termos de despesas fixas, temos que os requerentes demonstraram necessitar de pagar 400 euros de renda de casa a que acrescem os valores relativos a alimentação, vestuário e demais itens próprios da vida corrente; adende-se que o casal tem ainda de arcar com as despesas de um filha, D…, com 13 anos de idade, nas que se incluem necessariamente as despesas de educação.
Naturalmente que a fixação de um dado valor para gastos essenciais terá que ser ponderada numa lógica de contenção, face à necessidade de ressarcir os respectivos credores à luz da protecção legítima dos seus direitos. Repita-se: a “ exoneração do passivo restante nunca pode ser vista como a possibilidade de a insolvente se libertar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão” o que tem pleno apoio no instituto consagrado no normativo legal tal como decorre do ponto 45 do preâmbulo D-L nº 53/2004, de 18 de Março – cfr. Ac. da RL de 10-05-2011, proc. 1292/10, sitio DGSI. Ou seja, como se escreve no Ac. da R-L de 29-05-2012, sitio DGSI, “o processo de insolvência e o procedimento da exoneração do passivo não se destinam a melhorar a vida dos devedores, a perdoar as suas dívidas sem mais! Destina-se a satisfazer um compromisso entre o devedor e credor ou credores, com sacrifícios para ambas as partes”
Pois bem. Importa, desde logo, esclarecer que as douta alegações de recurso parecem assentar num pressuposto inverificado e que não corresponde à decisão do tribunal recorrido.
É que a referencia ao valor de 808 EUR como correspondendo ao montante fixado não é aquele que efectivamente foi decidido. Assim, temos que 1,20 vezes o valor do salário mínimo corresponde, sim, a 606,00 Euros (na medida em que o salário mínimo nacional é de 505 euros) muito embora o montante recebido por este agregado familiar corresponda a 1212 Euros; recorde-se que foi fixado o valor em causa – 606,00 euros – para cada um dos requerentes, ou seja, 606,00 euros para o B… e 606,00 euros para a C…, sua mulher.
Ora, este valor duplicado de 1212 euros não é uma mera abstracção; na verdade, trata-se de um casal que vive em economia comum e que partilha, por exemplo, a casa arrendada onde vivem para além da evidente economia de escala que a vida conjunta propicia. As doutas alegações de recurso reflectem correctamente essa percepção ao serem descritas as despesas conjuntas dos requerentes, os quais, aliás, apresentaram-se num mesmo processo à insolvência.
Entende-se, portanto, que o valor em causa de 1212 euros corresponde a um montante equilibrado e adequado à luz das exigências legais já descritas; sublinhe-se que este valor ultrapassa o valor de €980 invocado pelos próprios requerentes como correspondente às despesas fixas mensais (ponto 4 das alegações) em cerca de 25 %, uma percentagem igualmente ponderada, tendo em conta, designadamente, a existência de uma filha menor a cargo.
A quantia arbitrada pela primeira instância terá, assim, logrado um equilíbrio entre os interesses em presença face à necessidade de contenção na gestão familiar mas também valorando as vertentes concretas do caso, em particular as atinentes com a renda de casa e com a educação de uma filha, com encargos inerentes e inevitáveis, a que acrescem as despesas normais do quotidiano. Nessa adequada fixação mantém-se incólumes os princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana relativamente aos rendimentos mínimos para uma vida digna à luz da modesta realidade nacional.
Decide-se, pois, confirmar integralmente a sentença recorrida.
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Sumariando a fundamentação (art.663º, nº7 do Código do Processo Civil):
I – Nos termos do art. 239º, nº3, cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, encontrar, em função do caso concreto, o rendimento do trabalho excluído da cessão aos credores, apenas coarctado na lei pelo limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional; nessa tarefa, deve evitar-se o recurso a generalizações abstractas, devendo ir-se ao encontro das especificidades irrepetíveis de cada situação.
II –Tendo sido apurado nos autos despenderem os insolventes, casados entre si, uma quantia global de cerca de 1000 euros com despesas mensais fixas, nomeadamente com a habitação (renda de casa), alimentação, vestuário e encargos com uma filha menor de 13 anos, afigura-se adequada e proporcional a fixação de 1,2 salários mínimos mensais para cada um dos membros da sociedade conjugal nos termos e para os efeitos do disposto no art. 239º, nº 3 b), subalínea i) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a sentença proferida em 1ª instância.
Custas pelos apelantes.

Porto, 15 de Setembro de 2015
José Igreja Matos
Rui Moreira
Tomé Ramião