Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3360/19.6T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: ACORDO
TRANSMISSÃO
SEGURO
Nº do Documento: RP202402083360/19.6T8MTS.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O acordo de transmissão de uma carteira de seguros está sujeito às condições do art. 179 e segs do DL nº DL 147/2015.
II - No âmbito do mesmo podem os contraentes limitar essa transmissão apenas aos contratos em que ainda não ocorreram sinistros ou estes foram participados.
III - Essa estipulação vincula apenas as partes contraentes mas delimita o objecto do contrato, que só pode ser oponível por terceiros após efectiva transmissão.
IV - Se duas seguradoras em 2018 acordam em transmitir uma carteira de seguros, apenas quanto aos contratos em que não tenha ocorrido sinistros, não pode considerar-se transmitido um seguro cujo sinistro ocorreu em 2014 e já tinha sido participado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3360/19.6T8MTS.P1



Sumário:
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1. Relatório

AA veio propor a presente acção de condenação com processo comum contra “A... – Companhia de Seguros, S.A.” e contra “B... – Companhia de Seguros, S.A.” pedindo que as RR. sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de €17.571,00, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre tal quantia, a contar da sua citação até integral pagamento.

Mais peticiona que, a verificar-se que ambas as RR. respondem em igualdade de circunstâncias perante o Autor pelos factos em apreço nos autos, tanto em termos contratuais como em termos processuais, a condenação de cada uma das RR. deve ter em atenção o preceituado no nº 4 do art. 133º do Dec. Lei nº 72/2008 de 16/04, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre tal quantia, a contar desde a sua citação até integral pagamento.

Alega, para tanto e em resumo, que em Junho de 2008 celebrou com a 1ª R., ainda sobre a denominação “C... – Companhia de Seguros, S.A.” um seguro multirriscos habitação denominado “C... Habitação”, o qual tinha por objecto – entre outros – o recheio da habitação de que é proprietário sita na Rua ... (fracção H”) que cobria, entre outros, o risco de furto do objecto seguro, e que em Agosto de 2013 celebrou, ao balcão do “Banco 1..., S.A.” e sob proposta desta instituição bancária de forma a obter condições de crédito mais favoráveis àquelas que tinha até então, com a D..., S.A., um contrato de seguro multirriscos habitação denominado “Plano Protecção Lar”, o qual tinha por objecto o recheio da mesma habitação e cobria igualmente, entre outros, o risco de furto do objecto seguro, contrato que foi transferido para a 2ª R. no ano de 2018, no âmbito da transferência de carteira “não vida”.

No dia 27 de Junho de 2014, entre as 14:00h e as 20:00h, desconhecidos penetraram no interior do local de riso estipulado nas sobreditas apólices de seguro, que se encontravam em vigor, recorrendo á utilização de chaves falsas que foram “trabalhando” com auxílio de limas, ou outros instrumentos abrasivos, até que lograram proceder à abertura das duas fechaduras que garantiam o fecho da porta de acesso, que se encontravam devidamente fechadas, e do qual furtaram diversos bens, que descrimina, no valor total de €17.571,00. O A. participou a ambas as RR. os factos descritos, tendo a 1ª R. ordenado a averiguação dos factos participados, que veio a ocorrer em 29/06/2014, tendo o averiguador contratado pela 1ª R. concluído pela ocorrência dos factos participados e acordado com o A. no valor global dos prejuízos decorrentes do furto, fixando os mesmos em € 12.500,00, acordo que o A. aceitou tendo como pressuposto a indemnização extrajudicial dos prejuízos sofridos com o furto, o que não veio a suceder porque as RR. entenderam não indemnizar o A. estribando-se no facto de, segundo elas, inexistirem vestígios do modo de intrusão no local seguro, bem como pelo facto de existirem dois contratos de seguro a incidirem sobre os mesmos bens, pelo mesmo período de tempo, de que o A. não lhes havia dado conhecimento. Contudo, o A. não tinha consciência do dever de comunicar às RR. a existência simultânea dos referidos contratos, nem se lembrou de tal, atento o modo como surgiu o contrato de seguro celebrado com a D..., S.A.. Tanto assim é que o A. se manteve, por muito tempo, erradamente convencido de que esta circunstância invocada pelas RR. lhes conferia o direito de não o ressarcirem dos prejuízos que sofreu com o sinistro dos autos, o que não corresponde à verdade e justifica a presente acção judicial contra ambas as RR..

Citada veio a 1ª R., “A... – Companhia de Seguros, S.A.” apresentar contestação na qual, em resumo, alegou que o valor de €12.500,00 foi aceite pelo A. como correspondendo aos prejuízos tidos com o furto participado, independentemente de se tratar de um acordo alcançado numa fase extrajudicial, já que o A. concordou com o reajustamento dos valores dos bens furtados nos termos do quadro que descrimina e ainda aceitou o facto de a verba relativa a dinheiro furtado (no valor de € 1.180,00) não possuir enquadramento na apólice em referência, na medida em que as condições gerais só prevêm a cobertura de dinheiro nos casos de roubo.

Apesar do exposto, a 1ª R., por carta datada de 22/09/2014, comunicou ao A. que declinava o sinistro atendendo ao disposto no art. 133º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei 72/2008. Com efeito, a 1ª R., no seguimento das diligências efectuadas com a participação do sinistro, veio a ter conhecimento de que este mesmo risco estava coberto na sua congénere “D...”, que o A. participou o sinistro à “D...” e em 22/08/2014 chegou a um entendimento, em sede de peritagem, com essa congénere, no sentido de ser ressarcido pelo valor de € 13.383,00 e nunca informou a 1ª R. de tais factos, do que se verifica que o A. se preparava, intencionalmente, para receber duas indemnizações pelo mesmo sinistro e no âmbito do mesmo interesse coberto, bem sabendo que não podia receber duas vezes pelo ressarcimento do mesmo dano.

Citada, a 2ª R. veio apresentar contestação na qual veio alegar que é parte ilegítima nos presentes autos no que respeita à apólice aqui em discussão, com fundamento em que celebrou com a “D..., S.A.” um contrato denominado de “Contrato de Transferência de Carteiras”, sendo que tal contrato transferiu para a 2ª R. a carteiras de apólices de seguro da “D...” com efeitos a partir de 01 de Julho de 2018, pelo que tendo o sinistro ocorrido em 27/07/2014, não é a 2ª R. responsável pela sua gestão, sendo que não se encontrava activa no mercado a essa data.

Foi saneada a causa, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade. Instruída a causa procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que decidiu: “ - Condenam-se as Rés a pagar, solidariamente, ao Autor a quantia de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos contados, à taxa legal anual de 4%, desde a sua citação e até efectivo e integral pagamento. - Condena-se a 2ª Ré, “B... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao Autor a quantia de €500,00 (quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados, à taxa legal anual de 4%, desde a sua citação e até efectivo e integral pagamento”.

Inconformada veio a2º ré interpor recurso, o qual foi admitido como: de Apelação (art. 644º, nº 1, al. a), a subir nos próprios autos (art. 645º, nº 1, al. a), e com efeito meramente devolutivo (art. 647º, nº 1, todos do C.P.C.).


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2.1. Conclusões da apelante

1. Em sede de saneador o Tribunal a quo julgou improcedente a exceção de ilegitimidade da Ré B..., o que reiterou em sentença, na qual julgou e condenou a Ré B..., com o que a mesma não se pode conformar.

2. Ora, sem prejuízo desta Ré entender que no despacho saneador o Tribunal a quo abordou a exceção de ilegitimidade numa perspetiva meramente processual, decidindo-a materialmente somente em sede de sentença, por dever de patrocínio e acautelando entendimentos distintos, recorre a ora Ré de ambos (saneador e sentença), sendo certo que só poderia recorrer do despacho saneador a final por via do disposto no artigo 644.º, n.º 3 do CPC.

3. Ora, entende a Ré B... que o Tribunal a quo interpretou de forma incorreta o preceito legal que aplicou (artigo 182º, do DL 147/2015, de 9 de setembro); interpretou ou aplicou erradamente os preceitos do “Certificado de Conclusão relativo ao Acordo de transferência da carteira de seguros” ao presente processo e sinistro; havendo uma clara contradição entre os fundamentos e a decisão – em concreto entre a fundamentação de facto, que deverá ser aperfeiçoada.

4. Defende o Tribunal a quo que nos termos do disposto no artigo 182.º do DL 147/2015, de 9.09, a transferência de carteira é oponível aos tomadores, segurados e quaisquer outras pessoas titulares de direitos ou obrigações emergentes dos correspondentes contratos, pelo que só a R. Seguradora tem interesse em contradizer a presente ação, ainda que o sinistro em causa tenha ocorrido antes da aludida da transferência – o que resulta do despacho saneador e da sentença ora recorridos.

5. As transferências de carteira sendo oponíveis aos tomadores e segurado a partir da sua autorização, momento em que a nova seguradora passa a figurar como titular do contrato de seguro, a garantir o risco, recebendo, a partir de então, o prémio de seguro, preveem a sua produção de efeitos para o futuro.

6. Na medida em que ocorrendo a transferência e passando a cessionária a participar do prémio, terá necessariamente de participar do risco.

7. Contudo, salvo melhor e douto entendimento, coisa distinta da oponibilidade da transferência prevista naquele artigo, é o efeito que tal transferência possa ter (ou não) perante situações passadas, i. é a possibilidade de retroagir a sinistros ocorridos em momento anterior, a qual não se retira (nem pode ser retirada) daquele normativo.

8. Na verdade, essa matéria costuma ser objeto de previsão expressa no acordo de transferência, como, de resto, ocorreu no presente caso: “A execução do presente Certificado de Conclusão pelas Partes deverá consistir na transferência efetiva da Carteira da D... na Data de Conclusão através da subrogação do Cessionário na posição contratual do Cedente em todos os contratos de seguro relacionados com a Carteira da D.... Consequentemente, os lucros ou perdas resultantes da Carteira da D... deverão corresponder ao Cessionário dessa data em diante (inclusive). O Cessionário não deverá adquirir quaisquer Sinistros ocorridos antes da Data de Conclusão, sem prejuízo da data em que estes sejam apresentados (à exceção de Sinistros pelos quais, nos termos do Contrato de Cosseguro ou Contrato de Resseguro, o Cessionário seja responsável).” – cf. ponto “4. Transferência” do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência junto aos autos.

9. Resultando ainda da presente certidão de conclusão que: “As Partes confirmam pelo presente que a Data de Conclusão do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros entrará em vigor às 00:00:01 horas (GMT) (zero horas e um segundo do fuso horário GMT) de 30 de junho, de acordo com a Cláusula 4.3.ª (Data da transferência efetiva da Carteira de Seguros) do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros.” – cf. ponto “3. Data de conclusão” do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência junto aos autos. (negrito nosso)

10. Resulta, pois, evidente que o cessionário – in casu a Ré Seguradora B... – não será a responsável por garantir os sinistros ocorridos antes da data de conclusão, i. é antes de 01.07.2018, independentemente da data em que os mesmos foram participados.

11. O mesmo é dizer que a B... não pode ser responsabilizada por sinistros ocorridos (e no caso até participados) em momento anterior a 01.07.2018, estando os mesmos ainda garantidos pela anterior seguradora cedente, a D....

12. Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se a decisão proferida em primeira instância, absolvendo-se a R. B... de todos os pedidos contra si formulados, com todas as devidas e legais consequências.

13. Neste particular há que referir que isso mesmo resulta da conjugação da factualidade provada nos artigos n.º 5) a 8) 10) e 17), de facto daquele acervo é evidente que o sinistro ocorreu em 27.06.2014 (facto provado n.º 10) tendo até sido participado à seguradora D... em 08.07.2014 (facto provado n.º 17),

14. E que a transferência de carteira da D... para a B... só produziu efeitos a partir de 01.07.2018 (facto n.º 8),

15. Concluindo-se pela reprodução integral do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência junto aos autos, do qual resulta que: “O Cessionário não deverá adquirir quaisquer Sinistros ocorridos antes da Data de Conclusão”.

16. Termos em que em face da matéria julgada provada resulta que tal transferência de carteira só ocorreu e produziu efeitos, quatro anos depois do sinistro e da sua participação (!), não tendo – nos termos do acordo de transferência – sido adquiridos pela Ré B... os sinistros ocorridos antes daquela data, de entre os quais se encontra e enquadra o presente.

17. Na verdade, aquela mera reprodução do teor do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência, constitui fundamentação deficiente e abreviada que deverá ser corrigida, passando a constar na matéria de facto julgada provada, em face daquele documento probatório que: Resulta do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência, em particular do ponto 4. Transferência, que “O Cessionário não deverá adquirir quaisquer Sinistros ocorridos antes da Data de Conclusão, sem prejuízo da data em que estes sejam apresentados (à exceção de Sinistros pelos quais, nos termos do Contrato de Cosseguro ou Contrato de Resseguro, o Cessionário seja responsável).” E bem assim que, Resulta do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência que “As Partes confirmam pelo presente que a Data de Conclusão do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros entrará em vigor às 00:00:01 horas (GMT) (zero horas e um segundo do fuso horário GMT) de 30 de junho, de acordo com a Cláusula 4.3.ª (Data da transferência efetiva da Carteira de Seguros) do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros.

18. Na verdade, quer em face da documentação junta aos autos, quer mesmo por via da factualidade julgada provada (ainda que disposta de forma abreviada e por mero reporte ao teor do certificado), não podia o Tribunal a quo ter concluído pela condenação da ora Ré B..., encontrando-se a presente fundamentação de facto em evidente contradição com o decidido.

19. Andou mal o Tribunal a quo na aplicação e interpretação que fez daquele preceito do 182.º do Regime Jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora; na leitura que fez do certificado de conclusão junto aos autos, tendo ainda decidido mal em face da própria matéria que julgou provada (a qual deverá ser aperfeiçoada), cabendo ao Tribunal ad quem julgar o presente recurso procedente, por provado, revogando a condenação da ora Ré B..., absolvendo-a de todos os pedidos contra si formulados, com todas as devidas legais consequências.


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2.2. A 1º Ré seguradora contra-alegou, concluindo, em suma que:

1. não deve ser admitido o presente recurso por inadmissibilidade de reapreciação da questão da legitimidade que, em seu tempo, transitou em julgado, nos termos dos artigos 621.º, 628.º, 638.

2. De forma sumária, resulta da matéria dada como provada que o autor celebrou um contrato de seguro, com a seguradora D..., SA, cuja apólice teve início em 27/08/2013; em 27/06/2014 ocorreu um sinistro enquadrável nas coberturas do contrato de seguro; e, entre a referida D... e a recorrente foi celebrado, com efeitos a partir de 01/07/2018, o acordo intitulado, “Acordo de transferência de carteira de seguros”, por meio do qual a apólice de seguro em questão foi transferida para a recorrente.

3. O artigo 182.º do Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei 147/2015, de 09/09, sob a epígrafe “Oponibilidade da transferência e resolução dos contratos”, no seu n.º 1, dispõe o seguinte: “(…) as transferências de carteiras autorizadas pela ASF ou pelas restantes autoridades de supervisão dos Estados membros de origem nos termos da presente secção são oponíveis aos tomadores de seguros, segurados e a quaisquer outras pessoas titulares de direitos ou obrigações emergentes dos correspondentes contratos de seguro, a partir da respetiva autorização.”

4. Ou seja, por força da transferência da carteira de contratos de seguro, da D... para a recorrente, esta passou a ser responsável pela gestão das apólices que a integram, como também passou a ser titular dos direitos e obrigações que emergem dos contratos de seguro transferidos. Nos termos da referida disposição legal, a transferência da carteira de seguros é oponível a tomadores de seguros, segurados e a quaisquer pessoas titulares de direitos e obrigações emergentes dos contratos que integram a carteira de seguros transferida.

5. Tendo operado a transferência da carteira de seguros, na qual se integra o contrato de seguro de que o autor é tomador, esta transferência é-lhe oponível e, por via disso, está impedido de demandar a entidade cedente, e, em consequência, está obrigado a reclamar os seus direitos da seguradora cessionária, ou seja, a recorrente.

6. Não é possível condicionar a transferência de um contrato de seguro da carteira de seguros transferida à não ocorrência de sinistros, mesmo que passados, ou à sua não participação à entidade seguradora. E, menos ainda, restringir os efeitos da transferência de determinado contrato de seguro a sinistros ocorridos após determinado momento. O cessionário toma a posição da cedente no contrato de seguro, por via da transferência, e os contratos, transmitem-se tal qual se encontram no momento da transmissão, com todas as suas vicissitudes, invalidades, direitos e obrigações que àquela data os compõem. Daí que, o sinistro em discussão nos presentes autos tenha de ser reclamado à recorrente por ser parte integrante do contrato de seguro em que passou a figurar como segurador.

7. O clausulado sob o seu ponto n.º 4 (do certificado) trata-se de uma disposição contratual que pretende regular a cessão operada entre as partes do contrato, tem mero efeito “inter partes”.

8. Acresce que é de notar que há data da transferência da carteira de seguros, o sinistro já havia sido participado à cedente e, por isso, já desta conhecido. Mesmo conhecendo este facto, a cedente e a recorrente não excluíram o contrato de seguro em causa da transmissão da carteira.


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3. questões a decidir

1. Determinar se o despacho saneador formou ou não caso julgado formal quanto à questão da legitimidade processual da apelante.

2. Averiguar depois se a sentença padece da invocada nulidade.

3. Determinar por fim se a apelante é ou não parte legítima por força do acordo celebrado de transmissão da carteira.


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4. Questão prévia: Da existência ou não de caso julgado formal quanto à decisão proferida no despacho saneador relativa à legitimidade da apelante B....

Pretende a apelada que: “Ou seja, a meritíssima juíza a quo debruçando-se sobre a legitimidade material passiva da recorrente, decidiu que esta era parte legitima. A questão sobre a exceção de ilegitimidade invocada pela recorrente foi expressa e concretamente apreciada e não decidida de forma tabelar ou genérica. Ao longo de mais de quatro páginas, o Tribunal a quo, debruçou-se concretamente sobre esta e decidiu pela legitimidade material da apelante. Notificada deste despacho, a apelante dele não recorreu, conformando-se com o ali decidido. Portanto, o respetivo despacho produziu efeitos de caso julgado formal, nos presentes autos, quanto a tal questão. Em consequência, não deve ser admitido o presente recurso por inadmissibilidade de reapreciação da questão da legitimidade que, em seu tempo, transitou em julgado, nos termos dos artigos 621.º, 628.º, 638”.

Afirma a apelante que: “o presente recurso é admissível, em todo e qualquer caso, a final”.

Decidindo

Está em causa o recurso da decisão proferida no despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pela apelante B....

Essa decisão, na sua parte final, decidiu: “Ou seja, por força da transferência da carteira de seguros, SA, oponível ao autor, só a ré tem interesse em contradizer a demanda, por ser a responsável pelos danos alegadamente sofridos pelo demandante, sendo indiferente que o sinistro em causa tenha ocorrido antes da aludida transferência. Pelo exposto, julgo improcedente a referida exceção dilatória”.

Estamos, perante uma decisão que julgou improcedente uma excepção dilatória e que foi proferida na fase de saneamento.

Ora, “os segmentos de que resulte a declaração de improcedência de alguma excepção dilatória (…) não admitem recurso de apelação o qual é deferido para o eventual recurso que seja interposto da decisão final”.[1]

Logo, a mesma não era recorrível, nos termos do art. 644º, nº1, al. a) e b), do CPC, já que nem pôs termo à causa (total ou parcialmente), nem absolveu qualquer réu do pedido ou parte dele.

Concluímos, pois, que a decisão proferida no despacho saneador não era passível de apelação autónoma e que, por isso, nos termos do art. 644º, nº3, do CPC pode ser impugnada “no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1”.

Improcede, pois, a questão prévia suscitada pela apelada.


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5. Da nulidade da sentença

Pretende a apelante que “havendo uma clara contradição entre os fundamentos e a decisão – em concreto entre a fundamentação de facto, que deverá ser aperfeiçoada”.

As nulidades da sentença estão previstas no art. 615º, do CPC e, desde logo, pressupõem a existência de um vicio manifesto, completo, que impeça a peça processual de cumprir os fins a que se destina.

Ora, o vício invocado não assume essa natureza, já que é evidente e seguro que a apelante compreendeu a decisão (ilegitimidade) e o porquê da mesma (fundamentação), de tal modo que conseguiu impugná-la neste recurso.

A exigência da fundamentação e sua coerência, visa possibilitar à parte o correcto exercício dos seus direitos processuais, nomeadamente o de recurso. Nestes termos o Ac do TC nº 147/00, de21.03.00, é claro: “a fundamentação visa (…) é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – (…) – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos.”.

Improcede, pois, a nulidade invocada.


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6. Motivação de facto

1) Encontra-se registada a favor do A. e mulher, desde 19/01/1999, a propriedade do imóvel situado na Rua ...., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº ...69/19890504-H, conforme documento junto com a p.i. sob o nº 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2) O A. celebrou com a 1ª Ré – “A... – Companhia de Seguros, S.A.” (ainda sob a denominação C...– Companhia de Seguros, S.A.”) um contrato de seguro do ramo multirriscos denominado “... +” e posteriormente “C... Habitação +”, que ficou titulado pela apólice nº ...39 com início em 28/06/2003 e válida e eficaz em 27/06/2014, o qual tinha por objecto, entre outros, o recheio da habitação do Autor sita no imóvel referido em 1), conforme documentos juntos aos autos sob os nºs 1 a 4 com a contestação da 1ª R (fls. 43 a 82), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3) Entre as coberturas contratadas no âmbito do contrato referido em 2), inclui-se a cobertura do risco de furto ou roubo.

4) O capital seguro era do montante de €62.320,00.

5) O A. celebrou com “D..., S.A.” um contrato de seguro do ramo multirriscos habitação denominado “Plano Protecção Lar”, que ficou titulado pela apólice nº ...71, com início em 27/08/2013 e válida e eficaz em 27/06/2014, o qual tinha por objecto, entre outros, o recheio da habitação do Autor sita no imóvel referido em 1), conforme documento junto aos autos sob o nº 1 com a contestação da 2ª R (fls. 101), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

6) Entre as coberturas contratadas no âmbito do contrato referido em 5), inclui-se a cobertura do risco por furto ou roubo e furto simples. 7) O capital seguro era do montante de €40.000,00 e incluía a cobertura de importâncias em dinheiro com o limite de €500,00.

8) A 2ª Ré – “B..., Companhia de Seguros, S.A.” e “D..., S.A.” celebraram um acordo escrito denominado de “Acordo de Transferência de Carteiras de Seguros”, por via do qual foi para ela transferida uma parte da carteira de apólices de seguro da D..., onde se inclui a apólice referida em 5), com efeitos a partir de 01/07/2018, conforme documento junto sob o nº 2 com a contestação da 2ª Ré (fls. 101 verso a 103 e tradução a fls. 121 a 125), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

9) O contrato referido em 5) foi celebrado pelo A. ao balcão do “Banco 1..., S.A.”, tendo sido proposto ao A. por esta instituição bancária de modo a obter condições de crédito mais favoráveis.

10) No dia 27/06/2014, entre as 14h00 e as 20h00, desconhecidos penetraram na habitação do A. referida em 1), sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, de onde retiraram diversos bens móveis pertencentes àquele e ao seu agregado familiar.

11) Para esse efeito, o autor (ou autores) desses factos recorreram à utilização de chaves falsas, que foram “trabalhando” com o auxílio de limas, ou outros instrumentos abrasivos, até que lograram proceder à abertura das duas fechaduras que garantiam o fecho da porta de acesso ao imóvel, que se encontravam devidamente fechadas.

12) Após a detecção da ocorrência da subtracção dos bens, era visível a existência de limalhas de aço na soleira da porta de acesso ao imóvel referido em 1) e os espelhos das fechaduras apresentavam riscos que não existiam antes desta ocorrência.

13) E a fechadura apresentava-se “folgada”, embora funcionasse.

14) O Autor participou os factos referidos em 10) às autoridades (PSP de Matosinhos – Esq. de ...), dando origem ao processo de inquérito n.º 753/14.9PHMTS, que correu termos na 2ª Secção do DIAP de Matosinhos, o qual veio a ser arquivado por inexistência de elementos que permitissem apurar a identidade do(s) autor(es) dos factos.

15) Do interior da habitação do Autor foram subtraídos na ocorrência referida em 10) e 11) os seguintes bens, propriedade do Autor, da sua mulher e da sua filha, que com eles residia:

• 3 voltas de ouro, de elo grosso tipo “cadeado; • 4 anéis de ouro • 2 pulseiras de ouro elo grosso; • 2 pares de botões de punho em ouro; • 2 alfinetes de gravata em ouro; • 1 volta de prata; • 1 pulseira de prata; • 1 anel de ouro fino; • 1 Aliança casamento; • 1 Medalha em ouro com a figura de Cristo em alto relevo; • Crucifixo em ouro rendado com figura de cristo em alto relevo; • Porta moedas em prata tipo "rede”; • Vários objectos de ouro, de uso em criança: pulseiras e anéis, brincos e pulseiras pequenas; • 15 pulseiras de ouro com bolinhas em cor;• 1 pulseira de ouro com bolinhas em ouro; • 2 pulseiras em ouro de elo grosso; • 1 trancelim com uma meia libra em ouro; • 4 voltas de ouro antigo; • 1 volta de ouro com medalha "trevo”; • 1 volta de ouro com pendente "coração" e pedras verdes; • 1 anel de noivado de 7 brilhantes; • Aliança de casamento; • 9 anéis de ouro variados; • 1 par de argolas com 3 aros: 1 aro de ouro branco e 2 aros de ouro amarelo; • 6 pares de brincos de ouro variados • 1 par de brincos pendentes com pérolas; • 1 par de brincos de ouro "bolinha" com relevo - ouro tipo “Viana”; • 1 par de brincos de ouro "bolinha"; • 1 anel de prata, com fios no meio e rebordo em dourado UNIKE; • 1 conjunto de 3 anéis UNIKE; • 1 conjunto de colar com bola + brincos bolas em prata; • 1 par de brincos pendente em prata; • 1 anel de prata estilo entrançado UNIKE; • 2 pulseiras PANDORA; • 30 Contas PANDORA em prata + cor; • 1 Anel SWAROVSKI com brilhantes em dourado acobreado; • 1 par de brincos fantasia variado; • 1 Relógio Festina quadrado, com bracelete metálica; • 1 Relógio Festina redondo mostrador preto bracelete preta em pele; • 1 Relógio Fossil redondo com bracelete castanha em pele; • 1 Relógio One redondo mostrador claro bracelete preta em pele; • 1 Relógio Casio redondo com bracelete metálica; • 1 Relógio Bravo quadrado, com mostrador preto bracelete metálica; • 1 Relógio Rolex réplica redondo com números, caixa dourado e bracelete prateada e dourada; • 1 Relógio Swatch redondo mostrador cinza claro com cronómetro e bracelete metálica; • 1 Relógio Swatch redondo mostrador preto bracelete metálica; • 1 Relógio Elletta quadrado bracelete castanha em pele; • 1 Relõgip Breitling, réplica, redondo bracelete castanha em pele; • 1 Relógio Elletta quadrado mostrador branco com bracelete branca em pele; • 1 Relógio Celsius dourado modelo sextavado; • 1 Relógio Swatch quadrado bracelete larga com brilhantes e bracelete metálica; • 1 Relógio Swatch quadrado bracelete fina com brilhantes e bracelete metálica; • 1 Relógio Swatch skin mostrador preto com bracelete em preta; • 1 Relógio Milano redondo mostrador dourado, com bracelete castanha em pele; • 1 Relógio Swatch redondo, cor de rosa mostrador espelhado "Dia da mãe"; • 1 Relógio Swatch redondo, mostrador dourado, bracelete transparente com flores "Dia da mãe"; • 1 Relógio, Fantasia redondo, bracelete plástica roxa; • 1 Relógio Casio redondo mostrador branco, ponteiros e números dourados, bracelete metálica com fios dourados; • 1 Relógio "Novestel" oval, formato pequeno com bracelete metálica; • 1 Relógio redondo, bracelete metálica; • 1 Relógio Gussi metálico mostrador rectangular com bracelete azul; • 1 Relógio Swatch skin digital formato redondo preto; • 1 Relógio Swatch touch redondo bracelete azul com flores; • 1 Relógio Swatch snowpass redondo com mostrador cinzento e com altímetro; • 1 relógio Swatch redondo caixa transparente com bracelete roxa; • 1 Relógio Swatch redondo com mostrador automático e bracelete verde; • 1 Relógio Swatch redondo com mostrador rosa e bracelete rosa em pele; • 1 Relógio Haurex redondo mostrador branco com bracelete preta; • 1 Relógio Custo Barcelona, rectangular, ponteiro vermelho, bracelete metálica; • 1 Relógio One redondo mostrador branco, caixa com brilhantes e bracelete transparente; • 1 Relógio One redondo dourado acobreado com bracelete metálica; • 1 Relógio Swatch redondo mostrador preto, caixa com brilhantes, bracelete metálica; • 1.180€ em notas do Banco Central Europeu; • 1 IPAD Mini 16 GB Space gray Modelo A1455 Série: ...; • 1 Máquina de filmar SAMSUNG Modelo Digital Camcorder VP D-93i; • Máquina fotográfica CASIO S7N 40019723A;• 1 Computador Portátil HP DV6 Pavilion e • 1 Computador Portátil INSYS M761SUN.

16) O valor dos bens referidos em 15) – excluindo as notas de Banco central Europeu - totaliza um montante de €12.500,00.

17) O A. participou à 1ª Ré através do seu mediador de seguros, BB por email de 08/07/2014 e a “D..., S.A.” por carta, pelo menos na mesma data, os factos referidos em 10) a 15).

18) A 1ª Ré ordenou uma averiguação aos factos participados a um gabinete exterior denominado “E...”, a qual veio a ter lugar no dia 29 de Julho de 2014, com a intervenção de um averiguador desta entidade.

19) Durante a referida averiguação, que decorreu entre as 14h00 e as 20h00 do dia 29/07/2014, o averiguador contratado pela 1ª Ré observou os vestígios do modo de intrusão na residência do autor e seu agregado familiar, tendo concluído pela ocorrência dos factos participados pelo Autor.

20) Depois de ter efectuado um levantamento dos prejuízos decorrentes do furto dos autos, o averiguador da 1ª Ré acordou com o Autor no valor global de tais prejuízos, fixando os mesmos na quantia de 12.500,00€, conforme documento junto com a p.i. sob o nº 63 (fls. 29v.) e com a contestação da 1ª Ré sob o nº7 (fls. 94v.), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

21) O A., para além de ter acordado no reajustamento dos valores dos bens furtados para a quantia referida em 20), ainda aceitou que a verba relativa a dinheiro furtado, no valor de € 1.180,00, não possuía enquadramento na apólice referida em 2).

22) O valor referido em 20) foi aquele que o A. efectivamente concordou como sendo o valor dos bens furtados coberto pela apólice.

23) O A. não deu conhecimento à 1ª Ré e a “D..., S.A.” da existência simultânea dos dois contratos de seguro referidos em 2) e 5), nem no momento da celebração do contrato referido em 5) nem aquando das participações referidas em 17).

24) A 1ª Ré, por carta datada de 22/09/2014, comunicou ao A. que “Após uma análise cuidada de todos os elementos em presença, e atendendo ao disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 133º do decreto-Lei 72/2008 de 16 de Abril, informamos que o sinistro não será indemnizado”, conforme documento junto aos autos com a contestação da  1ª Ré sob o nº 8, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

25) O A. respondeu à missiva da 1ª Ré por carta datada de 28/08/2014, conforme documento junto com a contestação da 1ª Ré sob o nº 9, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

26) A 1ª Ré, por sua iniciativa, no seguimento das diligências efectuadas após a participação do sinistro, veio a ter conhecimento que o risco coberto pela apólice referida em 2) se encontrava coberto na congénere “D...”, através da apólice nº ...71, que o A. participou o sinistro à “D...” e que, em 22/08/22014, chegou a entendimento, em sede de peritagem solicitada por essa congénere, no sentido de ser ressarcido pelo valor de €13.383,00.

27) O A. nunca informou a 1ª R. dos factos referidos em 26).


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7. Motivação jurídica

1. Da ilegitimidade

Na tese do autor ocorreu uma transferência da titularidade de um dos seguros para a 2º ré ora apelante.

Na tese desse apelante essa transferência não ocorreu, pelo que não será responsável pela indemnização do risco contratado nesse acordo de seguro.

Nos termos do art. 30º, nº3, do CPC “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Logo, estando controvertida a efectiva ocorrência dessa transferência a apelante é parte legítima, pois, como vemos, tem um interesse directo em contradizer a demanda.

Improcede, pois, a primeira questão suscitada confirmando-se, por diferentes motivos, a decisão proferida quanto à legitimidade processual da apelante.


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2. Da transferência da apólice subscrita pelo autor com a sociedade D... SA 

A transmissão de carteiras de seguros (entre seguradoras) está regulada nos arts 179 e segs do Lei n.º 147/2015, de 09 de Setembro relativo ao REGIME JURÍDICO DE ACESSO E EXERCÍCIO DA ATIVIDADE SEGURADORA E RESSEGURADORA.

Dessas normas resulta que:

1. essa transferência depende de autorização da ASF (arts. 179 e 180)

2. a qual deve ser divulgada em local próprio (art. 181)

3. e que é oponível ao tomador de seguro nos termos do art. 182º.

Essa última norma dispõe que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as transferências de carteiras autorizadas pela ASF ou pelas restantes autoridades de supervisão dos Estados membros de origem nos termos da presente secção são oponíveis aos tomadores de seguros, segurados e a quaisquer outras pessoas titulares de direitos ou obrigações emergentes dos correspondentes contratos de seguro, a partir da respetiva autorização”.

Daí, resulta, pois, que caso essa transferência tenha efectivamente incluído o contrato de seguro subscrito pelo autor a mesma terá produzido efeitos apartir dessa autorização se, no prazo de 30 dias, não tiver merecido qualquer oposição por parte do tomador.

Note-se, porém, que esse regime legal não fixa os limites contratuais do acordo de transferência, impondo por exemplo, a transferência total de todos os acordos, nem distingue ou limita estas apenas aos acordos em que tenha ou não já ocorrido um sinistro ou até que este se encontra ressarcido ou apenas em averiguações.

Daí decorre, pois, que a norma legal não regula a situação concreta dos autos, na qual segundo a tese da apelante o concreto contrato de seguro não foi sequer transmitido.


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Do ponto de vista sistemático existem normas paralelas que regulam a transmissão entre mediadores.

Assim, nos termos do art. 44º, do DL nº 144/2006, de 31.7.2005:

1 - As carteiras de seguros são total ou parcialmente transmissíveis, por contrato escrito, devendo o transmissário encontrar-se em condições de poder exercer a actividade de mediação quanto aos referidos contratos de seguro.

(…)

5 - As carteiras de seguros são também total ou parcialmente transmissíveis, por contrato escrito, a favor de empresas de seguros, desde que sejam partes em todos os contratos objecto de transmissão.

6 - A transmissão de carteira de seguros a favor de empresa de seguros deve ser precedida da comunicação ao tomador do seguro pela empresa de seguros por carta registada ou outro meio do qual fique registo escrito e com a antecedência mínima de 60 dias relativamente à data da transmissão de que deixa de existir mediador no contrato de seguro, mas que mantém o direito de escolher e nomear, nos termos legais, mediador de seguros para os seus contratos.

7 - Os efeitos da transmissão de contratos que integrem uma carteira de seguros só se produzem, relativamente a cada um deles, na sua data aniversária ou, nos contratos renováveis, na data da sua renovação”.

         A propósito desta situação o Ac da RG de 27.6.19, nº 2/16.5T8MLG.G1 (Margarida Fernandes), decidiu que a falta dessa comunicação era/foi causa de nulidade do acordo.

         E, o recente Ac da RP de 8.2.22, nº 3445/18.6T8VFR.P1 (ALEXANDRA PELAYO) que essa transferência já não poderia produzir efeitos se antes da mesma o contrato em causa tivesse sido denunciado validamente.

         Daí decorre, pois, que a transferência de carteira efectuada por mediadores:
a) pode ser total ou parcial
b) não é automática
c) e depende da concreta situação contratual existente quanto a cada uma das apólices.


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         Por seu turno o art. 54 do mesmo diploma dispõe que:

1 - As carteiras de seguros são total ou parcialmente transmissíveis, por contrato escrito, a favor de empresas de seguros, desde que sejam partes em todos os contratos objeto de transmissão.

2 - A transmissão de carteira de seguros a favor de empresa de seguros deve ser precedida da comunicação ao tomador do seguro pela empresa de seguros por escrito e com a antecedência mínima de 60 dias relativamente à data da transmissão de que deixa de existir mediador de seguros ou de seguros a título acessório no contrato de seguro, mas que mantém o direito de escolher e nomear, nos termos legais, mediador de seguros ou de seguros a título acessório para os seus contratos.

3 - Na falta de fixação pelas partes, no contrato que titula a transmissão da carteira, de outra data para a respetiva produção de efeitos, estes produzem-se, relativamente a cada contrato que integre a carteira, na sua data aniversária ou, no caso dos contratos renováveis, na data da sua renovação, devendo, em qualquer dos casos, essa data ser incluída na comunicação ao tomador do seguro prevista no número anterior.

         Desta norma resulta, pois, que os efeitos da transmissão ocorrem não na data da transmissão, mas “na data aniversária”, e que existe um dever de comunicação ao tomador.


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Por seu turno a Lei nº 7/2019 de 16.1. (regime de distribuição de seguros) dispõe que “Durante o período de um ano subsequente à transmissão, o transmitente responde solidariamente pelas obrigações vencidas até à data da transmissão”.

       Desta norma, resulta, pois, que além de a mesma prever que a situação “normal” é a transmissão de apólices em que o risco coberto ainda não ocorreu, existe ainda uma produção de efeitos (responsabilidade) extraordinária durante um determinado período de tempo após a produção de efeitos da transmissão.

Acresce que nos termos da Lei n.º 147/2015, de 09 de Setembro, “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as transferências de carteiras autorizadas pela ASF ou pelas restantes autoridades de supervisão dos Estados membros de origem nos termos da presente secção são oponíveis aos tomadores de seguros, segurados e a quaisquer outras pessoas titulares de direitos ou obrigações emergentes dos correspondentes contratos de seguro, a partir da respetiva autorização”.


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       Desta forma podemos concluir que a transmissão da apólice depende de condicionantes vários (autorização e comunicação), e que produz efeitos até desde a data da autorização, mas que pode ser total ou parcial, cabendo, pois a sua determinação ao concreto negócio celebrado e autorizado.

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         3. Do concreto acordo celebrado pela Ré apelante

         A inclusão ou não da apólice deveria ser facilmente constatada pelo âmbito da autorização. Mas esta nem foi junta aos autos nem foi sequer invocada por qualquer uma das partes.

         Sendo assim, teremos de analisar o âmbito das estipulações contratuais constantes desse acordo.

         Sendo certo que as regras para essa operação constam dos arts. 236.º a 238.º do CC, das quais avulta que se deve dar prioridade ao ponto de vista do declaratário (receptor),sob o prisma de um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário[2].

         E, que nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1, do CC.

         Ora, no caso presente foi estabelecido que:

       4. TRANSFERÊNCIA[3]

A execução do presente Certificado de Conclusão pelas Partes deverá consistir na transferência efetiva da Carteira da D... na Data de Conclusão através da sub-rogação do Cessionário na posição contratual do Cedente em todos os contratos de seguro relacionados com a Carteira da D.... Consequentemente, os lucros ou perdas resultantes da Carteira da D... deverão corresponder ao Cessionário dessa data em diante (inclusive). O Cessionário não deverá adquirir quaisquer Sinistros ocorridos antes da Data de Conclusão, sem prejuízo da data em que estes sejam apresentados (à exceção de Sinistros pelos quais, nos termos do Contrato de Cosseguro ou Contrato de Resseguro, o Cessionário seja responsável). (nosso sublinhado).

Logo é inequívoco que a real vontade dos contraentes foi a de transferir apenas as apólices em que os sinistros tenham ocorrido após a data da sua conclusão.

In casu, a data dos efeitos da transmissão ocorreu em 1.7.2018.[4]

E o sinistro ocorreu em 27.06.2014 (facto provado n.º 10) e foi participado à seguradora D... em 08.07.2014 (facto provado n.º 17).

Logo, não fazia parte do objecto contratual fixado pelas partes.


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4. Dos efeitos dessa cláusula face a terceiros

Pretende a apelada que, nos termos do princípio da relatividade dos contratos essa limitação não pode produzir efeitos quanto a terceiros, incluindo, pois, o tomador da apólice.

Omite, a apelada que é a prévia existência de uma transmissão válida e eficaz do contrato de seguro que pode ou não ser oponível ao tomador, e que essa transmissão depende do objecto contratual fixado pelas partes.

Ou seja, neste caso está em causa uma estipulação contratual, que sem dúvida só vincula os contraentes, mas que condiciona e limita o concreto objecto da carteira objecto de transmissão.

Logo, não se vislumbra como pode a parte discutir que essa limitação do objecto contratual não é, sem mais, oponível ao tomador se sem a mesma não existe sequer qualquer transmissão do seguro e uma real vontade negocial, objectivada no texto, de incluir na transmissão os contratos cujo sinistro já tenha ocorrido.

Pretender o contrário seria impor às partes um objecto que não foi por elas concretamente visado, escrito, negociado, aceite e comunicado.

Concluímos, pois, que o contrato subscrito pelo autor não faz parte sequer do acordo de transferência este seguro, logo não existe qualquer vontade negocial de transmissão da mesma.


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Importa frisar, que essa conclusão poderia ter consequências distintas se tivessem sido alegados factos subsumíveis a outros institutos como, por exemplo, o de abuso de direito, nos termos dos quais, por exemplo, o autor poderia ter entregue à ré apelante prémios para pagamento do risco, ou se esta tivesse assumido a vigência da mesma na sua esfera após a transmissão.

Mas, na sua resposta a esta questão o autor limita-se a invocar os efeitos da transferência alegando até que “se este tivesse intentado a presente acção contra a D..., S.A., esta poderia ter invocado validamente a excepção de ilegitimidade, com arrimo na oponibilidade da transferência da sua carteira de seguros para a ré B..., nos termos previstos no sobredito preceito legal”.

Logo, nada obsta à anterior conclusão.


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8. Deliberação

Pelo exposto, este tribunal colectivo julga a presente apelação integralmente provida e, por via disso, determina a absolvição da apelante B... de todas as quantias em que foi anteriormente condenada, assim revogando, parcialmente, a decisão recorrida.


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Custas a cargo da apelada porque decaiu totalmente.

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Porto em 8.2.24
Paulo Duarte Teixeira
Francisca Mota Vieira
Isabel Rebelo Ferreira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5º edição, pág.207.
[2] Entre vários, Ac do STJ de 12.6.2012, nº 14/06.7TBCMG.G1.S1 (Nuno Gameira).
[3] Usamos a versão do acordo traduzida e junta aos autos em 6.1.2020.
[4] Consta do acordo que: “ As Partes confirmam pelo presente que a Data de Conclusão do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros entrará em vigor às 00:00:01 horas (GMT) (zero horas e um segundo do fuso horário GMT) de 30 de junho, de acordo com a Cláusula 4.3.ª (Data da transferência efetiva da Carteira de Seguros) do Acordo de Transferência da Carteira de Seguros.” – cf. ponto “3. Data de conclusão” do certificado de conclusão relativo ao acordo de transferência junto aos autos. (negrito nosso)”.