Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1187/10.0TAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
LEITURA DE DECLARAÇÕES
FALECIMENTO DO DECLARANTE
PROCESSO PENAL EQUITATIVO
Nº do Documento: RP201710261187/10.0TAVCD.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 732, FLS.42-46)
Área Temática: .
Sumário: I - O artº 356º4 CPP admite expressamente a leitura em audiência das declarações prestadas perante autoridade judiciária nomeadamente em caso de falecimento do declarante.
II – O direito a um processo penal equitativo consente limitações ao direito ao exame contraditório das provas em situações de manifesta impossibilidade ou de protecção de outros interesses fundamentais.
III – A compressão do direito de defesa emergente do artº 356º4 CPP traduz uma opção legislativa dando supremacia aos valores também constitucionais da descoberta da verdade e da efectividade da acção penal, não se afigurando tal compressão desproporcionada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1187/10.0TAVCD.P1
Comarca do Porto
3ª Secção do Juízo Local Criminal de Vila do Conde

Acórdão, deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1. Decisão recorrida
Por sentença proferida em 26 de Maio de 2015 foi o arguido B… condenado por um crime de denúncia caluniosa e outro de falsificação, previstos respectivamente nos artigos 365º nº 1 e 256º nº 1 als. e) e f), ambos do CP, em duas penas de 180 dias de multa, à taxa diária de 6€, e, em cúmulo, na pena única de 240 dias de multa, à taxa diária de 6€.

1.2. Recurso
O arguido interpôs recurso da sentença, invocando, em resumo, que (1) a sentença é nula por falta de motivação da decisão da matéria de facto, em violação do disposto no artigo 374º nº 2 do CPP, por ser lacónica a referência aos meios de prova e inexistente o exame crítico dessas provas, por referência aos respectivos factos, numa interpretação inconstitucional do artigo 127º do CPP, violadora do artigo 205º nº 1 da Constituição, e que (2) ao ter alicerçado a convicção na leitura das declarações da assistente, já falecida, fez uma interpretação inconstitucional do mesmo artigo 127º, por violação do princípio do contraditório, previsto no artigo 32º nº 5 da Constituição.
O Ministério Público respondeu, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, afirmando, sinteticamente, que a fundamentação é sucinta mas suficiente, tendo em conta que não havia qualquer versão alternativa dos factos a considerar e que a prova decorrente da leitura das declarações da assistente é válida e está prevista no artigo 356º nº 4 do CPP.
Na Relação o Ministério Público emitiu parecer concordante com a resposta ao recurso acima aludida.

2. Questões a decidir
As questões a decidir são as seguintes:
- A sentença é nula por falta de fundamentação da decisão da matéria de facto?
- A interpretação dada ao artigo 127º do CPP, viola o disposto no artigo 205º nº 1 da Constituição?
- A fundamentação da decisão na leitura das declarações da assistente, já falecida, constitui uma interpretação do artigo 127º do CPP violadora do princípio do contraditório, previsto no artigo 32º nº 5 da Constituição?

3. Fundamentação
3.1. Factos provados e sua fundamentação
Transcrevem-se os factos considerados provados em primeira instância e a motivação que consta na sentença:
Produzida a prova resultaram assentes os seguintes factos:
1. Os arguidos mantiveram um relacionamento de amizade com a ofendida C… desde data não apurada do mês de Dezembro de 2002, e pelo menos até Abril de 2005, motivo pelo qual tiveram acesso aos diversos documentos de identificação daquela, tais como bilhete de identidade, cartão de contribuinte e outros.
2. A aqui Assistente C… veio denunciar a prática pelos arguidos de diversos ilícitos de natureza criminal, o que originou os autos de Processo Comum Colectivo 859/05.5PAMAI do Juízo Criminal de Vila do Conde.
3. No âmbito dos autos em cama, os arguidos assumem idêntica posição processual e C… adopta a qualidade de assistente.
4. Pelas 9h45 do dia 8 de Junho ele 2010, no decurso da aludida audiência, os arguidos, em comunhão de esforços e intentos e execução de plano previamente delineado, através do ilustre defensor, requereram a junção do documento junto a fls. 191 a 193 dos presentes autos, e cuja cópia já constava a fls. 847 e ss. do processo em causa, intitulado "Contrato Promessa de Compra e Venda", que foi elaborado em circunstâncias não concretamente apuradas.
5. Vêm falsamente identificados como outorgantes no "contrato" em causa, a Sociedade Construções D…, LDA., representada pela sócia gerente E…, supostamente na qualidade de primeira outorgante e promitente vendedora, e C…, identificada como segunda outorgante, com indicação de número de bilhete de identidade, contribuinte e morada.
6. Na cláusula primeira, a aludida sociedade arroga-se "legítima proprietária e possuidora de um terreno rústico, registado na CRP de Gondomar sob o nº 2109, freguesia de …, alegando-se na cláusula segunda que "realizou projecto de loteamento para 24 moradias, registado na Câmara Municipal de Gondomar sob o nº 13884/02", e na cláusula terceira que "vai construir uma moradia de 2 frentes, composta por cave, r/ chão e andar, designado por lote nº 5".
7. Da cláusula quarta do documento forjado, lê-se que "pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender à segunda outorgante, uma moradia na referida na cláusula terceira, designado por lote nº 5, conforme o loteamento referido na cláusula segunda, livre de ónus e encargos de pessoa e bens".
8. Da cláusula quinta resulta fantasiado o preço de 225.000 euros e da cláusula oitava consta ainda, contrariamente à realidade, que "o presente contrato promessa de compra e vendei se encontra à vontade de ambos".
9. No documento em causa foi ainda aposto por pessoa não concretamente identificada o nome da ofendida no lugar reservado à assinatura da "promitente compradora".
10. Mas, na realidade, o documento usado a título de pretensa prova pelos arguidos no decurso da audiência do processo 859/05.5PAMAI, como se de um documento genuíno se tratasse, nunca havia sido outorgado por C…, que jamais tinha visto antes do dia 8 de Junho de 2010, nem nunca tinha pretendido adquirir qualquer vivenda aos arguidos ou à Sociedade Construções D…, Lda.
11. Pois, do exame pericial à suposta assinatura da "compradora" foi possível concluir que a sua autora não foi C…, o que os arguidos bem sabiam, na qualidade de sócios da Sociedade Construções D…, LDA, identificada no aludido documento como primeira outorgante e supostamente representada em tal acto pela arguida E….
12. Tal facto foi pessoalmente confirmado no decurso da audiência do processo 859/05.5PAMAI por C… que prestou declarações na qualidade de assistente a 8 de Junho de 2010, pelas 14h50.
13. Por via da condenação em prisão efectiva que sofreram nesses autos na primeira instância, e ainda por via da pendência de factos noticiados na audiência de discussão e julgamento do processo 859/05.5PAMAI, que originou novo inquérito criminal contra os arguidos, de que tiveram conhecimento pelo menos a 15 de Dezembro de 2010, dia em que foram constituídos arguidos, estes últimos nutriram desejos de vingança contra a ofendida.
14. Nesta conformidade, decidiram em conjunto formalizar uma denúncia de natureza criminal contra C….
15. Pelo que, no dia 17 de Outubro de 2011, em hora não concretamente apurada, na execução do plano previamente gizado entre eles, os arguidos apresentaram nos Serviços do Ministério Público de Vila do Conde uma denúncia contra C… no âmbito na qual alegaram falsamente que a mesma faltou à verdade no decurso da aludida audiência de discussão e julgamento e que "... falta à verdade, pois o que verdadeiramente pretendia, era entrar no negocio do empreendimento F…, onde iria adquirir, em construção, uma vivenda, avaliada em 225.000 euros ... Para tal, mediante contrato de promessa de compra e venda a denunciada entregou a sua casa (na Maia) como princípio de pagamento - sinal - tendo por subjacente a intenção, de adquirir uma vivenda a construir no projecto da empresa dos aqui denunciantes – D…, Lda… As partes utilizaram como instrumento contratual o contrato promessa de compra e venda, em que a aqui denunciada participou enquanto promitente compradora e os denunciantes como promitentes vendedores... a denunciada tinha pleno conhecimento e alcance do negócio... Contudo esqueceu-se que assinou um contrato promessa de compra e venda da referida vivenda. Esqueceu-se? Não! Mentiu. E mentiu descaradamente em audiência de discussão e julgamento quando inquirida pelos juízes do Tribunal Colectivo. Mentira, irrefutável, registada no dia acima referido, l:cma de gravação do Tribunal de Vila do Conde, "Habilus Media Studio”! ... A aqui sabia que tinha assinado - facto pessoal - e mesmo assim mentiu dizendo que nunca assinou o contrato ou sequer o tinha visto, encontrando-se assim definido o objecto do interrogatório. Com a agravante de ter mentido após o interrogatório preliminar realizado perante o Juiz Presidente, e, após este ter advertido a aqui denunciada sobre as consequências penais da falta ao dever de verdade ... as falsas declarações contribuíram para a condenação dos aqui denunciantes ... a denunciada agiu livre, voluntaria e conscientemente, com o intuito lucrativo, como se alcança da reclamação de créditos e, prejudicando a boa administração da justiça, faltando à verdade por declarar factos que não retratavam o ocorrido, bem sabendo que a sua conduta era punida ... A convicção do Tribunal fundou-se na analise critica da prova, socorrendo-se varias vezes das declarações falsas da aqui denunciada para considerar provados determinados factos que de outra forma não teriam sido".
16. Pelos factos que sabiam não verídicos e que relataram, os arguidos manifestaram desejo de procedimento criminal e declaram ainda que pretendiam ser indemnizados pelos danos alegadamente sofridos.
17. Pelos eventos acima denunciados pelos arguidos, correu os seus normais trâmites nestes serviços do Ministério Público o processo de inquérito nº 2159/11.2TAVCD, em que C… figurava como denunciada por indícios de crime contra a realização da Justiça.
18. Porém, as declarações que C… prestou no processo 859/05.5PAMAI correspondiam à verdade, como bem sabiam os arguidos, pois jamais a mesma havia assinado o contrato que foi apresentado no decurso na audiência de discussão e julgamento desse processo pelos aqui arguidos.
19. O procedimento criminal originado pela denúncia apresentada contra a ofendida foi, assim, arquivado nos termos do art. 277°, n" 1, do Código de Processo Penal por ter sido recolhida prova bastante de se não ter verificado crime.
20. Ao terem detido e usado o documento já referido em nome da ofendida, apesar de estarem cientes que não se tratava de documento genuíno e que não tinham qualquer qualidade que os legitimasse a agir em nome da ofendida e que agiam contra a vontade da mesma, os arguidos actuaram com a intenção alcançada de exercer os direitos conferidos à ofendida, e de assim obter para eles um benefício que sabiam não lhes ser permitido por lei, pretendendo fazer crer aos Juízos que compunham o Tribunal Colectivo do processo 859/05.5PAMAI que os elementos identificativos e assinatura que dele constavam correspondiam à verdade, pondo em perigo a credibilidade merecida por tais documentos.
21. Com essa conduta, os arguidos visavam, assim, descredibilizar as declarações de C… e de, assim, não serem criminalmente responsabilizados pelos eventos noticiados pela mesma, na qualidade de lesada, no âmbito dos autos 859/05.5PAMAI, nem de serem condenados no pedido de indemnização formulado pela assistente.
22. Com a conduta supra descrita, os arguidos agiram ainda, querendo apresentar a denúncia acima transcrita junto das entidades competentes, cientes da falsidade das afirmações que comunicaram a órgão que exerce a acção penal em representação do Estado e para que fosse instaurado procedimento criminal contra C….
23. Os arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de esforços e intentos, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que por isso incorriam em responsabilidade criminal.
MAIS SE PROVOU:
24. O arguido B… tem os seguintes antecedentes criminais: foi condenado pela prática de um crime de burla qualificada no processo (supra referido) 859/05.5PAMAI do extinto 1.° Juízo Criminal do tribunal de V. Conde, por decisão de 13/07/2010, transitada em julgado em 21/09/2011, na pena de 5 anos de prisão; foi condenado pela prática de um crime de ameaça agravada por decisão de 12/04/2012, transitada em julgado em 15/04/2012, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €6,00, pena essa que já liquidou.
25. A arguida E… tem os seguintes antecedentes criminais: foi condenada pela prática de um crime de burla qualificada no processo (supra referido) 859/05.5PAMAI do extinto 1.° Juízo Criminal do tribunal de V. Conde, por decisão de 13/07/2010, transitada em julgado em 21/09/2011, na pena de 5 anos de prisão.
26. Pende sobre os arguidos Mandado de Detenção tendo em vista o cumprimento pelos mesmos da pena de 5 anos de prisão em que cada um deles foi condenado, no âmbito do processo nº 859/05.5PAMAI, não tendo sido ainda possível a sua detenção.
27. Não são conhecidos quaisquer bens imóveis ou móveis registados à arguida E….
28. Embora se encontre inscrito em nome do arguido B… um imóvel sito na Maia, resulta dos autos que o mesmo poderá não lhe pertencer.
29. Consta como última remuneração de ambos os arguidos nas bases de dados da Segurança Social: Dezembro de 2012, no valor de €385,90.
Fundamentação da decisão de facto:
A convicção sobre a matéria de facto provada baseou-se no conjunto da prova produzida, designadamente as declarações da assistentes prestadas a fls. 29 a 30, lidas em Audiência por ter a Assistente entretanto falecido conjugadas com os documentos e perícia referidos na douta acusação pública: certidão dos autos supra referidos de fls. 3 e seguintes, o Auto de denúncia do apenso, transcrição de fls. 119 e seguintes, relatório do LPC da PJ de fls. 184 e seguintes, contrato de fls. 191 a 193, e print de matrícula da sociedade referida, tudo criticamente analisado à luz das regras da lógica e da experiência comum.
Os arguidos regularmente notificados não compareceram pelo que inexiste qualquer versão a considerar que obste ao supra exposto.
Quanto às condições pessoais, sócio - económicas e antecedentes criminais dos arguidos valemo-nos da prova documental produzida determinada em Audiência e os respectivos CRC juntos aos autos.

3.2. Nulidade da sentença por falta de fundamentação
O dever de motivação da sentença penal consagrado nos artigos 97º nº 5 e 374º nº 2 do CPP decorre do dever constitucional de fundamentação das decisões previsto no artigo 205º nº 1 da Constituição e também da garantia do processo equitativo, inerente ao Estado de direito democrático.
O artigo 374º nº 2 do CPP estabelece o conteúdo da fundamentação, determinando que a sentença deve conter a enumeração dos factos provados e não provados e a exposição, ainda que concisa, dos motivos facto e de direito que fundamentam a decisão, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Estas exigências na fundamentação visam garantir que a sentença cumpre a sua dupla finalidade de assegurar, no processo, a efectividade do exercício do direito de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, e de garantir, para fora do processo, a transparência e legitimidade do poder soberano que o Estado exerce através do Juiz.
A fundamentação da sentença pode ser sintética mas tem de ser suficiente, cobrindo as questões de facto, o exame crítico das provas e a exposição das razões de facto e de direito. Deve ser também coerente, racional e clara. A sentença é o veículo de comunicação da decisão judicial e como tal tem de ser perceptível para os destinatários.
Concretamente, no que respeita à fundamentação da decisão da matéria de facto, o exame crítico das provas impõe que se indiquem as provas em que o tribunal se baseou para dar os factos como provados ou não provados e que as analise de forma crítica. Não há fórmulas obrigatórias ou pré-definidas para explicitar esse exame crítico, mas, na medida do possível, ele deve reproduzir o pensamento do julgador que permitiu passar do estado de dúvida ao estado de certeza sobre a veracidade do facto.
Decorre ainda dos princípios da razoabilidade e da necessidade dos actos processuais, que a extensão da fundamentação da convicção do tribunal está também ela dependente da complexidade da matéria de facto submetida a julgamento, da natureza das provas, que podem ser objectivamente mais ou menos persuasivas, e da existência ou não de uma versão plausível, alternativa à da acusação, que importe confirmar ou afastar.
Olhando agora para a sentença recorrida, verificamos que enumera de forma exaustiva as provas em que o tribunal fundou a sua convicção, mas que é muito lacónica no seu exame crítico. Contudo, estamos situados numa daquelas situações em que a compreensão das razões da convicção do tribunal emerge da simples enunciação das provas e da sua correlação com os factos respectivos.
O facto 1 tem como suporte as declarações da assistente; os factos 2 a 20, as declarações da assistente, os documentos enumerados pelo tribunal (certidão do processo 859/05 e contrato promessa) e a perícia do LPC; os factos 21 a 23, relativos ao plano de actuação e intenção, são uma ilação lógica dos anteriores; os factos 24 e 25 baseiam-se nos CRC e os factos 26 a 29 nos documentos mencionados.
Parece-nos evidente que a natureza dos factos em discussão, em grande parte apenas descritivos do conteúdo de documentos ou de acções da assistente, permite descortinar com suficiente clareza quais foram os concretos meios de prova que serviram para dar cada um como provado e quais as razões de ciência presentes na formação da convicção. Exemplificando, se o tribunal dá como provado que foi junto pelos arguidos num processo judicial um contrato promessa falso, ao fundamentar a sua convicção na certidão do processo onde constam esses documentos, no depoimento da assistente, que disse nunca ter assinado o contrato, e no relatório pericial, que considera improvável que a assinatura pertença à assistente, não precisa de fazer muito mais do que remeter para tais meios de prova. A complexidade dos factos e o significado objectivo das provas que os suportam não exigem uma motivação mais extensa, que se tornaria redundante. Até porque o tribunal não estava confrontado com uma versão alternativa dos factos em discussão que impusesse um acrescido dever de fundamentação.
Em face do exposto, parece-nos que, embora pelo mínimo, a sentença compre suficientemente os requisitos de fundamentação da decisão da matéria de facto e permite a compreensão dos motivos do tribunal e a sua impugnação em recurso. O arguido não ficou de modo algum impedido de impugnar a decisão da matéria de facto da sentença recorrida, pois são claras as razões que levaram o tribunal a dar como provados os factos incriminatórios e evidentes as provas de onde retirou essa conclusão.
Concluindo esta parte, é nosso entendimento que a sentença recorrida não padece da nulidade de insuficiência de fundamentação, prevista no artigo 379º nº 1 al. a), por referência ao artigo 374º nº 2, ambos do CPP.

3.3. Inconstitucionalidade do artigo 127º do CPP, por violação do artigo 205º nº 1 da Constituição
A propósito da alegada deficiência de fundamentação – que já vimos não existir – afirma-se no recurso que foi feita uma interpretação inconstitucional do artigo 127º do CPP, em violação do artigo 205º da Constituição.
Parece-nos existir alguma confusão no recurso. O dever de fundamentação da sentença, que decorre do artigo 205º nº 1 da Constituição e está expressamente consagrado no artigo 374º nº 2 do CPP, não tem directamente a ver com o princípio da livre convicção, estabelecido no artigo 127º do CPP. Este refere-se apenas ao modo como a prova pode ser valorada pelo tribunal para estabelecer a veracidade de um facto, o que é questão diversa da forma como essa valoração tem de estar motivada na sentença. Isto é, se bem entendemos o recurso, o vício apontado à sentença não é o de o tribunal ter valorado deficientemente as provas, mas sim o de não ter exposto com suficiência o modo como as valorou.
Do nosso ponto de vista, a leitura que o tribunal recorrido fez do dever de fundamentação não viola os requisitos do comando constitucional. A motivação é suficiente: permite a compreensão das razões do julgamento; é coerente: contém uma adequação entre o significado da prova e o facto provado e é razoável: o juízo crítico apoia-se em regras lógicas e racionais.

3.4. Violação do princípio do contraditório
Segundo o arguido, o tribunal, ao fundamentar a decisão na leitura das declarações da assistente, já falecida, interpretou o artigo 127º do CPP contra o artigo 32º nº 5 da Constituição, onde se consagra o princípio do contraditório, na medida em que a defesa ficou impedida de questionar a autora dessas declarações sobre as razões de ciência que a levaram a proferi-las.
O direito ao exame contraditório das provas é inerente ao princípio da defesa efectiva num processo equitativo, que está consagrado nos artigos 20º nºs 1 e 2 e 32º nºs 1, 3 e 5 da Constituição, no artigo 6º nº 3 al. c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e nos artigos 47º e 48º nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
O direito a um processo penal equitativo apenas consente essa limitação ao direito ao exame contraditório das provas em situações de manifesta impossibilidade ou de protecção de outros interesses fundamentais. Não havendo razões ponderosas para limitar o contraditório no exame de prova testemunhal, ao defensor tem de ser facultada a possibilidade de assistir pessoalmente à inquirição (o princípio da imediação não está estabelecido apenas em benefício da apreciação da prova pelo julgador), de formular as questões que considere relevantes e de objectar à formulação daquelas que tenha por inadmissíveis. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem considerado que a violação injustificada do direito do defensor contra-interrogar uma testemunha da acusação viola o disposto no artigo 6º nºs 1 e nº 3 al. d) da Convenção (ver por exemplo, a decisão do caso Taal c. Estónia, de 22NOV2005, processo 13249/02).
O artigo 356º nº 4 do CPP admite expressamente a leitura em audiência das declarações prestadas perante autoridade judiciária, em situações excepcionais de impossibilidade ou excessiva dificuldade de comparência dos depoentes. Trata-se de situações em que, por opção legislativa, o direito de defesa deve ceder perante os valores da descoberta da verdade e da efectividade da acção penal, também eles com acolhimento na Constituição. A compressão do direito ao exame contraditório das provas só será admissível se não for desproporcionada em relação aos interesses prosseguidos.
No caso que estamos a apreciar, a questão da inconstitucionalidade não tem directamente a ver com a admissibilidade da prova, antes está diluída no juízo probatório que o tribunal retirou das provas. A norma que o arguido considera desconforme ao artigo 32º nº 5 da Constituição não é o artigo 356º nº 4 do CPP, que se refere à admissibilidade do meio de prova, mas sim a do artigo 127º do CPP, que se refere à formação da convicção do tribunal com base numa prova não sujeita a contraditório.
O arguido não impugnou a decisão recorrida no que respeita ao julgamento da matéria de facto, nem tão pouco invocou qualquer argumento do qual pudesse resultar indiciado que a convicção do tribunal, apoiada num depoimento lido em audiência e não contraditado, poderia ter sido diferente se a depoente tivesse sido contra-interrogada sobre a razão do seu conhecimento dos factos – razão essa, aliás, que está expressa de maneira evidente no depoimento. Ou seja, o arguido não exerceu o direito ao contraditório sobre a formação do juízo do tribunal sobre os factos provados, no qual pudesse sustentar a demonstração da violação do seu interesse, pretendendo apenas contestar a admissibilidade da prova.
Não vemos assim que a admissão do depoimento em causa, como meio de prova, sem sujeição a um contraditório pleno, traduzido na possibilidade de a defesa interrogar a assistente sobre a sua razão de ciência, tivesse constituído uma ofensa desproporcionada ao princípio do contraditório, previsto no artigo 32º nº 5 da Constituição, não justificada pela necessidade de assegurar os interesses da descoberta da verdade e da efectividade da acção penal.
Improcede em conclusão o recurso.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Fixa-se em 3,5UC a TJ devida pelo recurso, a cargo do arguido recorrente.

Porto, 26 de Outubro de 2017
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado