Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1178/19.5T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: DÍVIDAS DO FALECIDO
HERANÇA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202101281178/19.5T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não existe qualquer instrução de prova a realizar quando as diligências probatórias requeridas não sejam dirigidas a quaisquer factos controvertidos, em virtude de estarem estabilizados os factos essenciais da causa de pedir, sendo neste caso admissível que se profira despacho-saneador sentença que conheça do mérito da ação.
II - A responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do “de cujus” apenas existe e na medida do valor dos bens partilhados, de acordo com a relevância da sua quota-parte.
III - Havendo apenas o reconhecimento por sentença de uma indemnização a favor dos herdeiros por via do falecimento do “de cujus”, decorrente de um acidente de viação, cujo valor lhes foi liquidado, o qual lhes adveio como um direito próprio, e não existindo qualquer acervo hereditário, não existe qualquer responsabilidade desses herdeiros relativamente a uma dívida que o falecido tinha anteriormente e documentalmente declarado reconhecer a sua existência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 1178/19.5T8VLG-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes;
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos e Filipe Caroço.
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1. No processo n.º 1178/19.5T8VLG-A do Juízo de Execução de Valongo, J1, da Comarca de Porto, em que são:
Recorrente/Embargada: B…
Recorridos/Embargantes: C…, D…, E…,

foi proferido despacho saneador-sentença em 15/jul./2020, que julgou procedentes os embargos e improcedente a litigância de má-fé, julgando extinta a execução.
1.1. Os executados em 25/jun./2019 deduziram embargos à execução invocando desconhecer se a sua falecida mãe alguma vez tivesse confessado qualquer dívida a favor da exequente, que seria datada de 2012, e a existir se a mesma já foi paga. Mais sustentam que a sua mãe não deixou qualquer património, quer bens imóveis ou móveis, nem contas bancárias, suscitando a prescrição dessa eventual dívida (310.º, al. a) Código Civil) e a suspensão da execução (733.º, n.º 1, al. c) NCPC), invocando ainda que a exequente litiga de má-fé.
1.2. A exequente contestou em 02/set./2019 invocando que na sequência do processo n.º 20121/16.7T8PRT, intentado pelos executados contra a seguradora F…, em virtude da ocorrência de um acidente de viação que vitimou a mãe dos embargantes, foi essa seguradora condenada a pagar aos segundos o seguinte: a) 24.000,00€ (vinte e quatro mil euros em conjunto aos dois embargantes a título de compensação pela perda da vítima b) 6000,00€ (seis mil euros) em conjunto aos dois embargantes, pelos danos não patrimoniais na vítima que antecederam a morte c) 9000.00€ (nove mil euros) para cada um dos embargantes pelos danos não patrimoniais próprios. Mais sustentaram que não ocorre qualquer prescrição nem há lugar à pretendida suspensão, não concebendo que em algum momento tenham litigado de má-fé.
2. A embargada insurgiu-se contra a referida sentença, tendo em 13/set./2020, interposto recurso, pugnando pela sua revogação e a sua substituição por outra que julgue improcedente os embargos ou, se assim não se entender, deverá o tribunal recorrido pronunciar-se sobre os meios de prova, proferindo despacho saneador e remetendo o processo para julgamento. Para o efeito apresentou as seguintes conclusões:
A. O tribunal ad quo proferiu uma sentença antes de ser apresentados todos os meios de prova.
B. Na conclusão final “Temos, assim, que os valores recebidos pelos executados em virtude da morte da sua mãe não integram a herança desta, não respondendo pela dívida dos autos. E não tendo esta deixado outros bens, não pode a execução prosseguir contra os seus herdeiros nos termos pretendidos pela exequente, tendo que proceder os presentes embargos.”, padece de um erro.
C. Considerando que nem foram ainda admitidos todos os meios prova e apreciados, e face a que alguns dos meios não estão que não estão na posse de terceiros, nunca poderia ter sido proferido esta sentença.
D. Não podendo ser dado como provados o ponto 10).
E. Faltam ainda ser juntos ao processo documentos, e ser produzida prova testemunhal, bem como depoimento de parte.
F. O direito que nasce da obrigação de indemnização pela perda da vida nasce no momento em que ocorre o fato gerador da responsabilidade civil, o qual ocorre sempre e necessariamente antes do falecimento, uma vez que está é consequência daquele.
G. Ao contrário do consta da sentença proferida pelo tribunal ad quo, o direito à indemnização que se pretendeu ver penhorado e que se prende com os danos próprios - dores, sofrimento, angustia e antevisão da morte - e a indemnização devida pelo dano da própria morte, ou seja, pela perda do direito à vida, adquire-se por via sucessória do falecido.
H. O crédito descrito no ponto 4) a 6) dos fatos dados como provados têm de integrar o património da herança e como tal o embargante/executado ao receber a referida quantia será por maioria de razão responsável pelas divida da herança até ao limite desse montante.
I. Perfilhamos a tese da aquisição do direito indemnizatória por via sucessória, sendo que este direito transmite-se mortis causa.
J. Neste mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-05-1985 e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-05-2012.
K. Ao decidir como decidiu o tribunal ad quo viola por errada interpretação e aplicação artigo 496º/2ºe 3, 2068, 2071, 2131 e 2157 do Código Civil, artigo 3º, 417º 452º/2 615º/1 d) do C.P.C.
3. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação, onde foi autuado em 04/dez./2020, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer, obstando à apreciação do recurso
5. O objeto do recurso prende-se com a extemporaneidade do despacho saneador-sentença (a) e a natureza da indemnização reconhecida aos executados pelo falecimento da sua mãe (b).
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II. FUNDAMENTOS DO RECURSO
1. O despacho saneador-sentença: factos e motivação
Dos documentos juntos aos autos e do acordo e confissão das partes resultam assentes os seguintes Factos:
1- Em dois de agosto de dois mil e doze a exequente e G… subscreveram o documento junto de fls 5 a 8 dos autos da ação executiva de que estes são apenso e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
2- Nos termos do referido documento a referida G… confessou-se devedora à exequente da “quantia de dez mil euros que dela recebeu a título de empréstimo” comprometendo-se a restituir a referida quantia em duas prestações, a primeira no valor de quatro mil euros até ao dia vinte de agosto de dois mil e doze e a segunda no valor de seis mil euros até ao dia dez de setembro de 2012.
3- Em 29 de outubro de 2015 faleceu G…, no estado de divorciada de H…, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os filhos C… casado no regime de comunhão geral de bens com E… e D… casado no regime de comunhão de adquiridos com I….
4- No processo nº. 20121/16.7T8PRT interposto pelos aqui executados contra a F…, S.A. e que correu termos no Juízo Central do Porto. Juiz 5, foi a referida seguradora condenada a pagar aos executados os seguintes valores:
- em conjunto, a título de compensação pela perda da vítima direta G…) o valor de €24.000,00;
- em conjunto, a título de indemnização pelo sofrimento da vítima direta que antecederam a morte a quantia de €6.000,00;
- a cada um dos aqui executado, a título de compensação pelos sofrimentos próprios devido à morte da vítima a quantia de €9.000,00.
7 – A decisão atrás referida transitou em julgado em 5 de abril de 2019.
8 – Os aqui executados requereram a execução da decisão atrás referida, que correu termos sob o nº. 11351/19.0T8PRT do Juízo de Execução do Porto, Juiz 3.
9 – A referida execução foi extinta pelo pagamento em 23 de julho de 2019.
10 – Para além dos valores referidos em 6, os executados não receberam, em virtude do óbito da sua mãe, quaisquer outros bens.
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2. Os fundamentos do recurso
a) A extemporaneidade do despacho saneador-sentença
O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 – NCPC) quanto à instrução probatória do processo estabelece no seu artigo 410.º que “A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova” – sendo nosso o negrito, assim como adiante. Posteriormente no artigo 574.º, n.º 2 preceitua que “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.”. E no que concerne às finalidades do despacho saneador, consagra no artigo 595.º, n.º 1 al. b) que este destina-se a “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”. Isto significa que só há lugar ao designado saneador-sentença se estiverem estabilizados os factos, não havendo qualquer necessidade de realização da instrução probatória.
No caso em apreço os executados alegaram nos seus embargos, entre outras coisas, que “A mãe dos Embargantes não deixou qualquer património, quer bens imóveis quer contas bancárias, situação facilmente verificável junto da autoridade fiscal e Banco de Portugal” (item 8.º). Quanto a esta matéria a exequente sustentou na sua contestação que, “Todavia, tal alegação não corresponde à verdade” (item 11.º), invocando a indemnização que lhes foi reconhecida no âmbito do processo nº 20121/16.7T8PRT, precisando esses valores indemnizatórios (itens 12.º a 19.º), não precisando quaisquer outros bens que tivessem integrado o acervo hereditário e viessem a beneficiar os executados. Destarte podemos dar como assente o item 10.º dos factos provados, estando estabilizados os factos essenciais para se conhecer do mérito dos embargos. Daí que não tenham sido preteridas quaisquer outras diligências probatórias, porquanto não existe qualquer instrução de prova que se tenha de realizar. Nesta conformidade improcede este fundamento de recurso.
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b) A natureza da indemnização reconhecida aos executados pelo falecimento da sua mãe
O Código Civil estabelece no seu artigo 483.º, n.º 1 que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Tratando-se de indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, temos de distinguir entre os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais. Assim e no que concerne aos primeiros regula-se mais adiante no artigo 495.º, regula o seguinte: “1 – No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral. 2 – Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima. 3 – Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”. No subsequente artigo 496.º, n.º 2, na redação conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30/ago. (DR I, n.º 168), estipula-se que “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, acrescentando o n.º 3 que “Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.”
Como se pode constatar o direito de indemnização a terceiros por danos patrimoniais no caso de morte é um direito próprio (jure proprio), o qual está especificamente consagrado em benefício de quem prestou qualquer tipo de assistência à vítima, designadamente cuidados clínicos ou hospitalares (495.º n.º 1 e 2 Código Civil)) ou então a quem estava em condições de beneficiar direito a alimentos ou já estavam a ser prestados, como decorrência de uma obrigação natural (495.º n.º 3 Código Civil). Por sua vez, a indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte também surge por via própria (496.º, n.º 2 e 3 Código Civil) e não por via sucessória. E tal ficou mais claro com a citada Lei n.º 23/2010, de 30/ago., que veio reforçar as medidas de proteção jurídica à união de facto, mormente em caso de morte de um dos seus membros, mas que não integrou o “unido de facto sobrevivo” na classe dos sucessíveis enunciada no artigo 2133.º do Código Civil – o que se passou a consagrar no artigo 2020.º n.º 1 é que “O membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.
O mesmo Código Civil no que concerne aos encargos da herança estipula no seu artigo 2068.º que “A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentária, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados.”. Por sua vez, agora a propósito da liquidação da herança e no que concerne à fixação da responsabilidade das dívidas, preceitua-se no artigo 2097.º do Código Civil que “Os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos”, explicitando-se no posterior artigo 2098.º, através do seu n.º 1 que “Efetuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança”. Daqui decorre que a responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do “de cujus” apenas existe e na medida do valor dos bens partilhados, de acordo com a relevância da sua quota-parte.
Em suma, não tendo havido qualquer acervo hereditário na sequência do falecimento da sua mãe e sendo a indemnização que lhes foi reconhecida em consequência desse óbito, em virtude de ter ocorrido um acidente de viação, um direito próprio, têm plena procedência os embargos, pelo que nenhuma censura temos a fazer ao despacho-saneador recorrido.
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Na improcedência do recurso, as suas custas ficam a cargo da recorrente – cfr. artigo 517.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto por B…, e, em consequência, confirma-se o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas deste recurso a cargo da recorrente.

Notifique.

Porto, 28 de janeiro de 2021
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço