Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1197/07.4PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
DEPOIMENTO POR OUVIR DIZER
ARGUIDO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO AO SILÊNCIO
DIREITO DE DEFESA
CONSTITUCIONALIDADE
PROVA INDIRECTA
PROVA INDICIÁRIA
PROVA POR PRESUNÇÕES
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Nº do Documento: RP202301181197/07.4PBMTS.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – A jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem considerando admissível, ficando sujeito a livre apreciação pelo tribunal, o depoimento que reproduz o que se ouviu dizer ao arguido, sendo certo que essa admissibilidade e livre valoração não está condicionada pela confirmação pelo próprio arguido em audiência do que uma testemunha a ele possa ter ouvido dizer.
II – Embora tenda a considerar admissíveis os depoimentos indiretos quando a fonte do que o depoente ouviu dizer é o arguido, ainda que este se tenha recusado a depor ao abrigo do direito ao silêncio que lhe é atribuído, valorando-os nos termos do princípio da livre apreciação da prova, a jurisprudência ressalva a importância de a decisão dos factos provados não se basear apenas no conteúdo dos depoimentos indiretos, exigindo a existência e valoração de diferentes meios de prova que os corroborem.
III – O Tribunal Constitucional concluiu, no acórdão n.º 440/99, que “o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. […] Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional.”.
IV – Encontra-se consolidado o entendimento de que para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
V – Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
VI – Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros, pois que a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais.
VII – Assim sendo, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário, ou seja, além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1197/07.4PBMTS.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Matosinhos


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.


I. Relatório

No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 1197/07.4PBMTS, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Matosinhos, foi submetido a julgamento o arguido AA tendo, a final, sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o Tribunal decide:
A) Quanto à parte crime
1. Operando a alteração da qualificação jurídica, condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelos artigos 205.º, n.º1 e 4, al. a), do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão.
2. Operando a alteração da qualificação jurídica, condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de um ano de prisão.
3. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a), b) e e), ambos do Código Penal, na pena de oito meses de prisão.
4. Operando o cúmulo jurídico das penas de prisão referidas nos pontos 1. a 3., condenar o arguido AA na pena única de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, na condição de este demonstrar nos autos até ao final do período da suspensão ter entregue à sociedade “I..., Lda.” a quantia de €1500, correspondente a parte do pedido de indemnização civil.
5. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça de 2 UC (cf. artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais).
6. Ordenar a remessa aos serviços de identificação criminal, após trânsito da sentença, de boletins do registo criminal em relação ao arguido.
B) Quanto à parte cível
1. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por I..., Lda. parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, condenar o demandado AA, no pagamento do valor de €38.128,69 e de €1500, a título de danos patrimoniais, acrescido dos juros de mora legais de 4% ao ano (cf. Portaria n.º 291/2003 de 8 de abril), contados desde a notificação do pedido de indemnização, e €1500 (mil e quinhentos euros), relativamente aos danos não patrimoniais.
2. Custas do pedido de indemnização civil a cargo da demandante e do demandado na proporção do respetivo decaimento.
Notifique.”.
*
Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
“I. Ao recorrente foi, por douta sentença, ora recorrida, aplicada a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, operando o cúmulo jurídico, suspensa na sua execução por igual período, na condição de este demonstrar nos autos até ao final do período da suspensão ter entregue à sociedade “I..., Lda.” a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros);
II. O apelante foi, também, condenado no pagamento ao ofendido do montante €38.128,69 (trinta e oito mil cento e vinte e oito euros e sessenta e nove cêntimos) e de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de danos patrimoniais, acrescido dos juros de mora legais de 4% ao ano, contados desde a notificação do pedido de indemnização, e de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos;
III. Concluímos que, pelos fundamentos invocados, salvo o devido respeito por opinião diversa, que é muito, o Tribunal a quo incorreu em lapso, descurando certas circunstâncias determinantes, não podendo, deste modo, o recorrente concordar com a douta sentença nestes Autos proferida, pelo que a impugna.
IV. Sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova e analisada toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, sempre terá de se conjugar os elementos recolhidos da prova documental, pericial, bem como dos depoimentos das testemunhas arroladas na douta acusação pública.
V. Da motivação da decisão da matéria de facto plasmada na douta Sentença, ora recorrida, infere-se que, analisada toda a prova produzida em sede de julgamento, apenas o depoimento do representante legal da “I...”, parte civil na ação, foi tido como credível, bem como o de duas testemunhas acusatórias, apesar de padecerem de grave falta de informação e de não serem capazes de imputar diretamente ao arguido a prática do crime de que vinha publicamente acusado e do qual foi condenado.
VI. O facto de o arguido ter optado por se remeter ao silêncio foi extremamente prejudicial para este, verificando-se uma distorção indevida do princípio da proibição de autoincriminação.
VII. No decorrer do depoimento do legal representante da demandante civil em audiência de julgamento, o legal representante da demandante alegou que o arguido foi funcionário da sociedade “I...” entre janeiro a setembro de 2007, sendo o arguido o único que tinha a seu cargo as vendas, entregas e cobranças das mercadorias comercializadas, que consistiam em embalagens.
VIII. A determinada altura, um fornecedor (qual?) da sociedade solicitou o pagamento de uma fatura (qual?) relativamente à qual não havia qualquer nota de encomenda registada e, nessa sequência, o legal representante da demandante confrontou o arguido com tal situação, através de uma chamada telefónica. Este começou por não dizer que não era ladrão, mas acabou por reconhecer que tinha ficado com a mercadoria. Na continuação da referida conversa, o próprio arguido contou convenientemente ao legal representante da demandada que rubricava as faturas como se fossem os clientes a faze-lo, como comprovativo de ter recebido as mercadorias, tendo reconhecido expressamente que tinha ficado com valores monetários e materiais da empresa.
IX. O arguido terá ainda, durante a referida chamada telefónica, explicado à sua entidade empregadora todos os passos que deu para lograr o objetivo de levar a cabo a conduta criminosa. Tal processo baseou-se em casos em que os clientes fizeram encomendas, receberam as mercadorias, pagaram ao arguido, mas este fez constar os fornecimentos como não pagos, facilitado pelo facto de os pagamentos na data ainda serem muitas vezes feitos em numerário.
X. O arguido admitiu ainda ter solicitado, por vezes, à funcionária BB a emissão de documentos referentes a pedidos de fornecimentos junto de fornecedores, como se correspondessem a encomendas de clientes, tendo levantado as mercadorias junto daqueles, dando-lhes, no entanto, um destino diferente do devido, apondo nos documentos uma rubrica que confirmava a entrega e o recebimento das mercadorias.
XI. Tendo em consideração de que se trata do legal representante da “I...”, parte civil no presente Processo, dificilmente se poderia considerar tal discurso como isento e imparcial, mesmo que se ignorasse os lapsos e imprecisões temporais que caracterizaram o discurso, visto que o legal representante da demandada não especificou quais as empresas prejudicadas além da própria “I...”, quais as faturas que descobriu serem falsas, nem que outro destino dava o arguido às mercadorias que alegadamente “desviava”.
XII. O mesmo arguido que confessa o cometimento de determinado crime via chamada telefónica à sua entidade empregadora e que posteriormente denuncia o próprio contrato de trabalho com vergonha dos seus atos, posteriormente decide remeter-se ao silêncio quer em sede de inquérito quer durante a audiência de julgamento.
XIII. Tais comportamentos contraditórios de certo que não podem passar despercebidos ao olhar atento do Tribunal.
XIV. Por seu lado, a testemunha CC, no decorrer do seu depoimento em audiência de julgamento referiu que perguntou ao arguido se o que tinha ouvido sobre ele, que tinha abusado da confiança da sociedade, era verdade e este respondeu “meti a mão onde não devia”. Perante tal informação, a referida testemunha, ao invés de tentar apurar o sucedido para perceber exatamente a quê que o seu colega com quem trabalhava há vários anos e em quem confiava se estava a referir, como seria expectável do ponto do homem médio, terminou a conversa, explicando posteriormente ao Tribunal que ficou emocionado e não conseguiu falar muito mais com ele sobre o assunto em questão.
XV. O Tribunal formou a sua convicção no sentido de condenar o arguido, convicção essa que é imperativamente livre de dúvidas, com base, também, no depoimento da testemunha DD.
XVI. No decorrer do seu depoimento em audiência de julgamento, DD afirmou estar ciente de ter havido um grave problema na empresa onde trabalhava conjuntamente com o arguido, mas não se recordava a ponto de saber especificar fosse o que fosse acerca do problema.
XVII. Analisado o depoimento da testemunha BB, depreende-se que esta emitiu várias faturas a pedido do arguido, tal como era a sua função e que, num dado momento, o arguido lhe terá confessado ter pedido indevida e ilegitimamente a emissão de algumas faturas. Contudo, a testemunha não conseguiu especificar que faturas, concretamente, eram as alegadas faturas falsas, nem quais as empresas que teriam procedido às encomendas nem as empresas a que as mercadorias estavam destinadas.
XVIII. Aliada à falta de precisão do depoimento das testemunhas ouvidas, seria relevante ter presente que estas são funcionárias da sociedade demandante, o que pode pôr em causa a imparcialidade e a isenção do seu depoimento.
XIX. Apesar de se encontrarem sob juramento legal, a presença da tentação de não desagradar ao patrão, sempre presente na sala de audiências, ainda que por receio, não pode estar totalmente fora da equação.
XX. Apesar da aparente virtude impoluta demonstrada no depoimento das testemunhas ter sido convincente para o Tribunal, a prossecução da Justiça e a procura da verdade material impõem que não se descure tratar-se de depoimentos de trabalhadores numa ação onde a entidade patronal é interessada.
XXI. É relevante salientar que nenhuma das testemunhas presenciou efetivamente qualquer ato criminoso que tivesse sido cometido pelo arguido.
XXII. As sociedades em nome das quais o arguido alegadamente pediu para serem emitidas faturas, ou aquelas que viram a mercadoria encomendada não chegar porque o arguido teria vendido os bens a outra entidade que se desconhece nada disseram em juízo e nem a arroladas se encontraram.
XXIII. Algo que seria de difícil compreensão na medida em que teriam sido as principais visadas pelos atos do arguido, de tal forma que as boas relações comerciais que detinham com a “I...” ficaram comprometidas.
XXIV. As sociedades com quem o arguido contactou diretamente durante o ato criminoso e o próprio arguido são os únicos que tiveram conhecimento direto dos factos e os únicos que assistiram à eventual conduta criminosa.
XXV. Todos os restantes limitaram-se a relatar algo que o arguido convenientemente lhes terá contado.
XXVI. Convenientemente, sim, pois aparentemente o arguido confessou os seus crimes a qualquer pessoa que o tenha interrogado nesse sentido, inclusivamente à sua entidade patronal, menos ao Ministério Público e ao Tribunal, entidades perante as quais decidiu remeter-se ao silêncio, contrariando a coerência que manteve até então.
XXVII. O Tribunal, salvo respeito por opinião diversa, que é muito, ao valorar os depoimentos das testemunhas ouvidas desrespeitou o disposto no número 1 do artigo 128.º do Código de Processo Penal, artigo relativo ao objeto e limites do depoimento da prova testemunhal.
XXVIII. Não restarão dúvidas acerca da violação do princípio da estrutura acusatória do processo, e da imediação, com a agravante de tais depoimentos ferirem a proibição de autoincriminação, pois, as testemunhas relataram que o arguido lhes tinha confessado os factos, quando este se tinha recusado a depor.
XXIX. Ora, se o arguido não prestar declarações e seguidamente as testemunhas alegarem que o arguido lhes confessou o crime, sem outro meio de prova adicional, e o Tribunal valorar o depoimento destas, está a prejudicar o arguido por causa do seu silêncio, contrariamente ao que dispõe o artigo 343.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
XXX. É importante considerar que o direito ao silêncio concedido ao arguido não visa beneficiar este último, mas, por seu lado, também não o pode prejudicar. Contudo, tal acabou por suceder no caso ora em apreço.
XXXI. O arguido não possui antecedentes criminais registados, patenteando um passado de fidelidade ao direito e às regras pelas quais se rege a sociedade. Quer isto significar que aquele não revela uma tendência para o cometimento de crimes, assumindo as suas censuráveis e reprováveis condutas, em causa nestes autos, um carácter isolado e descontextualizado do seu normal comportamento. Aliás, não podemos descurar que já volveram mais de quinze anos do cometimento dos ilícitos, e não há notícia de que o arguido tenha voltado a incorrer na prática de crimes, mantendo o arguido durante esse hiato temporal uma vida em conformidade com o direito, tendo sido dado como provado pelo Tribunal que o arguido é tido em consideração por pessoa de bem.
XXXII. Por outro lado, o pedido de indemnização civil demonstra-se manifestamente desproporcional face aos parcos rendimentos do arguido, pois, encontrando-se este desempregado, facilmente se depreenderá que a condenação deste no pagamento ao ofendido do montante de € €38.128,69 (trinta e oito mil, cento e vinte e oito euros e sessenta e nove cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais e o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, se afigura bastante exagerado, desproporcional e muito além do suportável.
XXXIII. O valor apurado relativamente aos danos não patrimoniais foi determinado através de uma auditoria efetuada a pedido da sociedade “I...”, o que não é suficiente per si para provar que as diferenças de valores encontradas estão diretamente relacionadas com a conduta criminosa do arguido, não sendo possível imputar a este último a verificação de nexo de causalidade entre os danos e determinada conduta.
XXXIV. Por todas as asserções expendidas, a decisão judicial aqui recorrida não pode, obviamente, proceder, por falta de fundamento probatório, pois entende o recorrente que a factualidade acima descrita e dada como provada carece de correspondência com toda a prova produzida, consubstanciando, pois, um erro grosseiro na sua apreciação.
XXXV. Revela-se evidente a desconformidade entre o que resultou, de facto, provado em sede de julgamento e a matéria factual vertida na sentença e dada como assente.
XXXVI. Factualmente, não estariam reunidos os pressupostos necessários para a formação da convicção do Tribunal livre de dúvidas, pelo que, com base no respeito do princípio constitucional in dubio pro reo, se impunha decisão diferente.
XXXVII. Resulta que não existia prova bastante que permitisse ao Tribunal dar como provados os factos acima impugnados, tendo V. Ex.as todos os elementos ao dispor para alterar a matéria de facto nos termos do preceituado no artigo 431.º do C.P.P., o que ora, muito respeitosamente, se reclama.
XXXVIII. No caso sub judice os factos dados como provados na douta Sentença, ora recorrida, não têm correspondência com os depoimentos que o Tribunal a quo reputou como determinantes para a formação da sua convicção.
XXXIX. O Tribunal acolheu uma tese e fê-la valer a todo o custo.
XL. Uma correta motivação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do Processo impõe-se de forma a permitir um efetivo controlo da motivação do Tribunal.
XLI. A douta sentença de que ora se recorre, não revela qual o processo racional e lógico que conduziu da prova produzida à expressão da convicção do Tribunal a quo.
XLII. Impõe-se que o Tribunal ad quem, afira da arbitrariedade da decisão proferida claramente violadora dos critérios legais impostos ao julgador na valoração da prova, pelo que é flagrante a insuficiência de prova produzida em audiência de discussão e julgamento para a condenação do recorrente nos termos da douta Sentença recorrida.
XLIII. O recorrente entende que o Tribunal ad quem considerará que todas as questões da matéria de facto levantadas têm pertinência e, face a todo o exposto, estará em condições de modificar, nos termos do artigo 431.º, alínea a) do C.P.P., a matéria de facto dada como provada na douta sentença condenatória, tendo em conta que do processo constam todos os elementos de prova que lhe serviram de base, concluindo pela absolvição do ora recorrente pela prática dos crimes abuso de confiança, burla qualificada e falsificação de documento.
Termos em que, por tudo quanto acima se expôs, conclui-se que, no caso sub judice não se verificam as condições objetivas e subjetivas que justifiquem a condenação do arguido AA, pelo que se impõe a revogação da douta Sentença do Tribunal de primeira instância que a determina, com todas as consequências legais daí resultantes.”.
*
Também a demandante civil, discordando da procedência apenas parcial do pedido de indemnização civil, interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
“1. O presente recurso está circunscrito à parte da Sentença proferida nos presentes autos relativa à matéria da indemnização civil, nos termos do disposto nos artigos 400.º n. 2 e 3, 401.º n.º 1 al. c) e 403.º n.º al. b) do CPP;
II. Na qual foi pelo Tribunal a quo decidido no que respeita à parte cível:
“1. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por I..., Lda. parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, condenar o demandado AA, no pagamento do valor de €38.128,69 e de €1500, a título de danos patrimoniais, acrescido dos juros de mora legais de 4% ao ano (cf Portaria n.° 291/2003 de 8 de abril), contados desde a notificação do pedido de indemnização, e €1500 (mil e quinhentos euros), relativamente aos danos não patrimoniais.
2. Custas do pedido de indemnização civil a cargo da demandante e do demandado na proporção do respetivo decaimento“;
III. Não obstante o devido respeito pelo douto Tribunal a quo, não pode a aqui Recorrente conformar-se com tal decisão de procedência parcial do pedido de indemnização civil;
IV. Pois que, no que respeita à parte cível, a mesma padece desde logo de contradição insanável entre os factos provados, bem como, entre a própria fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no artigo 410.º do CPP;
V. Veio a Recorrente/Demandante em sede do seu Pedido Cível, enxertado nos presentes autos, requerer a condenação do arguido, face aos prejuízos sofridos em consequência dos comportamentos daquele, no valor de €40177,88, acrescida do valor de €3.000,00 derivados de despesas com uma Auditoria, perfazendo tais valores um montante global a título de danos patrimoniais de €43.177,88:
VI. Mais requerendo a condenação do arguido, no pagamento do montante de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais;
VII. Ora, se relativamente aos danos não patrimoniais, nada tem a Recorrente/Demandante a apontar, porquanto bem andou o Ilustre Tribunal a quo ao condenar o arguido nos precisos termos peticionados;
VIII. Já o mesmo não sucede relativamente aos danos patrimoniais peticionados, os quais certamente por mero lapso de raciocínio apenas foram parcialmente considerados;
IX. Pois que, resulta desde logo da Fundamentação da douta Sentença, nos factos considerados provados, nos pontos 2. a 10. (Fls 2. a 7 da Sentença), que o arguido fez seus, não os entregando á Demandante/Recorrente, como lhe era devido, os montantes parciais de €24.670,11 (vinte e quatro mil seiscentos e setenta euros e onze cêntimos) e €15,507,77 (quinze mil quinhentos e sete euros e setenta e sete cêntimos),
X. Perfazendo o somatório de tais valores a importância global de €40.177,88 (quarenta mil cento e setenta e sete euros e oitenta e oito cêntimos), o exato valor que a aqui Recorrente havia peticionado em sede do seu Pedido Cível.
XI. Não obstante, e certamente por mero lapso, consta erradamente dos pontos 11, 13, e 17. da Fundamentação — Factos Provados (FIs. 7 e 8 da Sentença). o montante de €38.128,69, como sendo o valor do dano patrimonial causado pelo arguido á Recorrente/Demandante.
XII. Ficando deste modo patente a manifesta contradição insanável entre os factos provados 2. a 10., e os factos provados, 11.,13. e 17., bem como, entre a própria fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no artigo 410.º do CPP.
XIII. Tendo, provavelmente, tal valor de €38.128,69 sido por lapso referido, por ser o valor constante da auditoria externa junta em audiência de julgamento pelo Legal Representante da Recorrente/Demandante, EE.
XIV. Bem como o valor por este declarado em sede de declarações prestadas em Audiência de Julgamento, como sendo o resultado da referida auditoria.
XV. Não obstante, resulta dessas mesmas declarações, prestadas no dia trinta de Maio de dois mil e vinte e dois, estando as mesmas gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com o inicio às catorze horas, trinta e um minutos e trinta e dois segundos e o seu termo às quinze horas, dezassete minutos e quarenta e nove segundos, que tal valor da auditoria não comportava o valor final dos danos provocados pelo arguido, por impossibilidade de apuramento de algumas faturas em falta, o que veio a suceder em momento posterior, conforme relatório interno elaborado pela sociedade e junto aos autos a Fls. 70 a 88:
XVI. Tal relatório foi elaborado em momento posterior à auditoria externa, com base nos elementos da mesma e contemplando ainda outras situações que se vieram a apurar após a referida auditoria externa, cujos valores (relatório interno) são os constantes dos factos provados 2. a 10. da douta sentença.
XVII. Tal situação, também mencionada nas conclusões da dita Auditoria (Fls. 73 da auditoria) que se encontra junto aos autos:
‘Preliminarmente (até resposta dos restantes Clientes contactados) encontrou-se a da de 38.128,69 € (atrás demonstrada) que, sendo da total e inteira responsabilidade do ex-funcionário AA, deve ser cobrada, nem que seja coercivamente visto que esses valores são da pertença efetiva da I...,” — sublinhado nosso.
XVIII. Resultando ainda expressamente da indicação, valoração e análise crítica da prova da douta Sentença, a Fls. 13 da mesma, que:
- conclusão alcançada pelo tribunal da veracidade do acervo fático vertido nos pontos 3. a 11., o tribunal fundou-se, mais uma vez, no declarado pelo legal representante da sociedade e nos depoimentos das três supra referidas testemunhas, conjugadamente com os documentos de folhas 70 a 88, as faturas juntas ao Anexo, e ainda com o teor do junto em audiência de julgamento referente a uma auditoria levada a cabo pela sociedade “B..., Unipessoal, Lda” em 2007 do qual decorre que foram analisadas individualmente todas as faturas discriminadas nos factos provados.” — sublinhado nosso.
XIX. Ora, pelo exposto, e compulsado todo o acervo probatório supra referido, dúvidas não restam que os valores corretos a considerar pela douta Sentença, terão forçosamente de ser os contantes dos pontos 2. a 10. dos factos provados, seja de €40.177,88, tal como expressamente resulta da simples soma aritmética dos montantes constantes das tabelas vertidas nesses precisos pontos 3. 4. e 6. dos factos provados.
XX. Pelo que se impõe forçosamente a correção do valor constante nos pontos 11. 13. e 17. dos factos provados em conformidade com tal valor, para €40.177,88, devendo os mesmos passar a ter a seguinte redação:
“11. O arguido não entregou à I...” a totalidade dos supra mencionados montantes recebidos, tendo ficado com o valor de mercadorias no total de €40.177,88.
13. O arguido agiu com o propósito de se locupletar à custa da sociedade “I...”, sabendo que obteria um aumento patrimonial no valor de €40.177,88, correspondente ao dinheiro das mercadorias de que se apropriou.
17. Tinha ainda conhecimento de que, ao atuar da forma descrita causava como causou prejuízo patrimonial à sociedade “I..., Lda.” no montante do valor de €40.177,88.”
XXI. De igual modo, padece de manifesta contradição insanável entre os factos provados 20. e 21. e a própria fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no artigo 410° do CPP, ocorrendo igualmente um erro notório na apreciação da prova.
XXII. Pois que, decorre dos factos provados 20 e 21. que:
- “20. Por causa da atuação do arguido a sociedade l... teve de recorrer a urna empresa externa a fim de proceder a uma auditoria para apuramento dos factos e valores resultantes da sua atividade.”
- “21. O que implicou um custo de €1.500.
XXIII. Ora em sede do ponto 50 do articulado do seu pedido cível (Fls. 115 dos autos), a Recorrente/Demandante peticionou como custo da Auditoria Externa o valor de €3.000,00 (três mil euros).
XXIV. Resultando expressamente da indicação, valoração e análise crítica da prova da douta Sentença, a Fls. IS da mesma que:
-. “Por fim, relativamente à factualidade vertida nos pontos 20 a 23 o tribunal considerou positivamente e conjugadamente as declarações do legal representante da demandada com o depoimento de BB. Mais considerou o teor do documento junto em audiência referente ao valor pago nela auditoria, o qual constitui meio de prova idóneo para o efeito»” — sublinhado nosso»
XXV. Ora, compulsado o supra mencionado documento da Auditoria junto em audiência, com respetivas faturas anexas emitidas pela empresa “B..., Unipessoal, Lda” (3 faturas), resulta desde logo manifestamente um valor pago pela Recorrente/Demandante bastante superior como custo da referida Auditoria, seja de €5.175,00 (cinco mil cento e setenta e cinco euros).
XXVI. Pois que a referida auditoria foi pela Recorrente /Demandante paga em 3 tranches mensais e sucessivas, dado o elevado valor da mesma, a saber:
- Fatura 12/2007, emitida em 11/1212007 no valor de 1.725,00 e paga em 03101/2008.
- Fatura 13/2007, emitida em 31/12/2007 no valor de 1.725,00 e paga em 05/02/2008.
- Fatura 1/2008, emitida em 01/02/2008 no valor de 1.725,00 e paga em 10/03/2008.
XXVII. Sendo esse valor de €5.175,00, o valor que efetivamente a Recorrente/Reclamante teve de suportar como custo pela Auditoria externa realizada em virtude das ações do arguido, e não como erradamente consta do ponto 21. dos factos provados de apenas €1.500,00»
XXVIII. Pelo que, e pese embora se reconhecendo a limitação do valor peticionado em sede de Pedido Cível apresentado, no montante de €3.000,00 como custo da referida auditoria, sempre teria de ser esse (não obstante o valor real seja de €5.175,00) o valor a considerar (€3.000,00) como custo efetivo da auditoria.
XXIX. Termos em que, se impõe forçosamente a correção do valor constante no ponto 21. dos factos provados em conformidade com tal valor, para €3.000,00 (três mil euros), que deverá passar a ter a seguinte redação:
“21. “O que implicou um custo de €3.000,00.”
XXX. Dúvidas não restando de que, padecendo a douta sentença de manifesta contradição insanável entre os factos provados e a própria fundamentação e decisão, nos termos do disposto no artigo 410° do CPP, ocorrendo igualmente um erro notório na apreciação da prova, a mesma deverá ser corrigida em conformidade.
XXXI. No que concerne aos danos patrimoniais invocados pela Recorrente/demandante, e que resultaram provados, os quais decorreram diretamente da atuação do arguido, e como tal, este terá de ressarcir a Recorrente/Demandante pelo valor de €40.177,88, referente ao valor global de que se apropriou e pelo valor de €3.000,00, referente ao valor pago pela auditoria à contabilidade da sociedade.
XXXII. Perfazendo tais montantes um valor global de € 43.177,88 a título de danos patrimoniais sofridos pela Recorrente/Demandante, acrescida de juros de mora legais de 4% ao ano, contados desde a notificação do pedido cível.
XXXIII. Aos quais acresce a quantia de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais tal como doutamente decidido em sede da Sentença proferida.
XXXIV. Nos precisos termos peticionados e provados pela Recorrente/Demandante nos presentes autos, devendo em conformidade proceder na totalidade o pedido cível apresentado.”.
*
Os recursos foram admitidos para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
*
A Exma. Magistrada do Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso interposto pelo arguido e consequente manutenção da decisão recorrida, posição condensada no seguinte conjunto de conclusões (segue transcrição):
“1. O recurso intentado pelo recorrente descontextualizou completamente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e apenas fez verter na motivação as partes que interessam ao recorrente, olvidando-se toda a outra prova produzida.
2. O tribunal “a quo” julgou criteriosa e prudentemente a prova produzida em audiência de discussão.
3. Efetivamente, nenhum dos depoimentos das restantes testemunhas inquiridas foi apto a abalar a convicção.
4. Por outro lado, não se verifica contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - cfr. art. 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.
5. Os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida resultam claramente da prova produzida nos autos, a qual foi corretamente apreciada pela Mma. Juíza, fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
6. Não existe erro notório na apreciação da prova.
7. Resulta do texto da sentença porque razão se chegou a determinado resultado, como também se procedeu ao seu exame crítico.
8. A sentença, dá a conhecer o processo racional que levou o juiz ao convencimento, no que toca à prova testemunhal.
9. O Tribunal indicou as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal, tal como explicou os factos que teve dúvidas e por isso os considerou como não provados.
10. O Tribunal indicou as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e a decisão proferida teve por base prova bastante para proferir a decisão sobre a referida matéria fáctica.
11. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção, cfr. Ac. TRP de 10.11.2004, Processo n.º 0414155 in www.dgsi.pt.
12. Assim, pelo exposto e por respeito a tais princípios, deve o Venerando Tribunal da Relação manter a decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto.
13. Não foi violado qualquer direito de não incriminação do arguido, tal como decidido no douto Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 20.04.2006 (disponível site www.dgsi.pt), referente ao mediático “caso Joana”, que o Tribunal “a quo” esteve bem ao valorar os depoimentos indiretos cuja fonte eram os arguidos, submetendo-os ao princípio da livre apreciação da prova (arts. 125.º e 127.º do CPP), uma vez que os factos dados como provados não se basearam apenas no conteúdo destes depoimentos, existindo outros meios de prova a comprová-los, tal como sucedeu in casu.
14. Deve por isso manter-se o facto como provado, não foi violado o artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que consagra o Princípio In Dubio Pro Reo e, ainda os artigos 127º e 340º do Código de Processo Penal.
15. Por não se estar perante dúvidas, não se aplica o princípio in dubio pro reo.
16. Tal princípio significa que "em caso de dúvida razoável" após a produção de prova, tem de atuar em sentido favorável ao arguido.
17. Porém, não é uma qualquer dúvida que obriga à aplicação do princípio, mas apenas a dúvida consistente, séria e razoável, persistente após a produção de todas as provas pertinentes e da respetiva avaliação, globalmente considerada de acordo com a lei e as regras da experiência comum.
18. O Tribunal indicou as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal, não tendo ficado com dúvidas acerca dos factos.
19. Da indemnização, por se encontrarem preenchidos os requisitos da responsabilidade civil e tendo sido fixada com criteriosa ponderação das realidades da vida, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias cuja influência se fazem sentir, é esta devida e adequada.
20. Nestes termos não há, pois, qualquer fundamento para revogar a douta sentença proferida, devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pelo recorrente.
21. A pena é inteiramente justa, adequada, conveniente e proporcional.
22. A indemnização, por se encontrarem preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, é adequada e nesta parte, o recurso apresentado pela demandante, após a devida análise, entendemos que assiste razão à recorrente.”.
*
A demandante civil e o arguido responderam aos recursos respetivamente interpostos, pugnando pela respetiva improcedência.
*
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, e salientando a inobservância, pelo arguido/recorrente, do ónus de impugnação especificada, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso.
*
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
A título prévio, importa observar que o arguido anuncia, no recurso, pretender impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal de primeira instância. Contudo, é manifesto que não foi observado o ónus de impugnação especificada, não tendo o recorrente procedido à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados – cuja identidade desconhecemos, uma vez que não se encontram individualizados -, por referência às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP), o que preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla [1], sem prejuízo, porém, da possibilidade de análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP.
Efetuada esta observação, podemos equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Quanto ao recurso do arguido:
a) Vício de erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP) e violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.
b) Desproporcionalidade do montante indemnizatório.
2) Quanto ao recurso da demandante civil:
a) Quantificação do montante indemnizatório referente aos danos patrimoniais.
*
Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
*

Factos provados e não provados (transcrição):
“II – Fundamentação
Factos Provados
Com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade “I..., Lda.” tem sede na Quinta ..., ..., Funchal, Madeira é legalmente representada por EE e tem uma unidade fabril sita na rua ..., ..., em ..., Matosinhos.
2. O arguido foi funcionário da referida sociedade entre janeiro e setembro de 2007, desempenhando funções de “comercial/vendedor” nas referidas instalações de Matosinhos, as quais consistiam em visitar clientes da sociedade, contratar o fornecimento de mercadorias, fazer as respetivas entregas e cobrar as importâncias correspondentes, bem como angariar novos clientes, funções que foram sempre exclusivamente desempenhadas por si.
3. Entre 19 de janeiro e 26 de setembro o arguido recebeu dos clientes abaixo indicados as encomendas inscritas nas faturas infra e efetuou as entregas das mercadorias respetivas nas instalações das sociedades destinatárias:
DATA FACTURA N •• CLIENTE MONTANTE
19-Jan 17 L..., Lda. 104,30€
02-Fev 37 W..., Lda. 45,98€
05-Fev 41 P..., Lda. 22,29 €
06-Fev 42 W..., Lda. 77,83€
12-Fev 45 N... Lda. 45.98€
12-Fev 48 P..., Lda. 22,29€
14-Fev 54 W..., Lda. 45.98€
14-Fev 55 P..., Lda. 102,66€
21-Fev 69 W..., Lda. 36,78€
21-Fev 72 N... Lda. 9.91€
28-Fev 80 P..., Lda. 29,72€
01-Mar 81 W..., Lda. 36,78€
02-Mar 84 W..., Lda. 18,39 c
06-Mar 87 K... Lda. 5,98€
07-Mar 88 P..., Lda. 91,87€
08-Mar 91 N... Lda. 19,82€
08-Mar 92 K... Lda. 7.08€
08-Mar 93 K... Lda. 16,04€
08-Mar 97 M..., Lda. 65,61€
09-Mar 98 M..., Lda. n87€
09-Mar 101 W..., Lda. 81,38€
12-Mar 106 P..., Lda. 33,43 €
13-Mar 109 K... Lda. 23,12€
14-Mar 114 P..., Lda. 33,43€
16-Mar 119 Doces C..., Lda. 26,86€
16-Mar 120 M..., Lda. 16,41€
19-Mar 124 W..., Lda. 51,49€
19-Mar 125 M..., Lda. 420,72€
20-Mar 130 P..., Lda. 606,75€
22-Mar 132 Y..., Lda. 51,80€
23-Mar 135 K... Lda. 291,25€
26-Mar 143 W..., Lda. 1.067,93€
26-Mar 144 K... Lda. 27.10€
27-Mar 146 N... Lda. 94,26€
27-Mar 147 FF 33,43€
28-Mar 149 O..., Lda. 545,20€
28-Mar 152 U..., Lda. 250,74€
29-Mar 155 K... Lda. 261,29€
29-Mar 157 O..., Lda. 438,14€
04-Abr 172 P..., Lda. 566,28 €
04-Abr 173 O..., Lda. 300,09 €
05-Abr 177 FF 436,33 e
05-Abr 180 Á..., Lda. 287,50 €
05-Abr 181 O..., Lda. 130,32 €
05-Abr 184 A..., Lda. 198,10€
09-Abr 186 Y..., Lda. 144,84€
11-Abr 187 M..., Lda. 74,42 €
16-Abr 192 L..., Lda. 209,15 e
16-Abr 193 FF 19,36€
02-Mai 226 N... Lda. 793,05 €
10-Mai 245 L..., Lda. 414,38 €
11-Mai 247 K... Lda. 371,26 €
11-Mai 248 L..., Lda. 111,56€
ll-Mai 249 Y..., Lda. 154,87 €
14-Mai 252 N... Lda. 55,18€
15-Mai 253 P..., Lda. 171,09€
16-Mai 257 U..., Lda. 44,58€
18-Mai 261 D..., Lda. 34,13€
22-Mai 267 O..., Lda. 1.061,54€
23-Mai 270 H..., Lda. 1.082,20€
23-Mai 271 J..., Lda. 667,50€
23-Mai 272 M..., Lda. 553,14€
25-Mai 274 T..., Lda. 98,25€
28-Mai 277 H..., Lda. 511,10€
31-Mai 286 K... Lda. 13,73€
01-Jun 289 U..., Lda. 759,13€
04-Jun 291 D..., Lda. 851.04€
04-Jun 292 P..., Lda. 582,91€
06-Jun 298 K... Lda. 13,73€
12-Jun 304 P..., Lda. 41,60€
12-Jun 306 K... Lda. 201,83€
13-Jun 311 FF 436,04€
14-Jun 312 S..., Lda. 163,35€
15-Jun 314 P..., Lda. 565,83€
20-Jun 319 D..., Lda. 583,78€
20-Jun 321 U..., Lda. 573,90€
21-Jun 325 H..., Lda. 587,01€
21-Jun 326 H..., Lda. 587,01€
21-Jun 327 Y..., Lda. 238,01€
22-Jun 331 Y..., Lda. 457,50€
04-Jul 346 K... Lda. 531,21€
05-Jul 349 A..., Lda. 2.191,46 e
05-Jul 352 D..., Lda. 582,01€
09-Jul 358 T..., Lda. 93,63€
11-Jul 361 Y..., Lda. 665,50€
20-Jul 371 A..., Lda. 46,10€
23-Jul 372 J..., Lda. 865,16€
24-Ago 399 D..., Lda. 758,38€
04-Set 403 J..., Lda. 875,86 e
05-Set 404 J..., Lda. 31,76€
12-Set 410 J..., Lda. 962,27€
14-Set 415 A..., Lda. 810,13€
26-Set 427 J..., Lda. 1.279,80€
TOTAL = 30.021,78€

4. Sequentemente para pagamento dos montantes totais daquelas faturas, abaixo inscritos na rubrica “Facturas emitidas”, o arguido recebeu de cada um dos clientes as quantias abaixo indicadas na coluna “Pagas” e apenas entregou nos serviços financeiros da “I...” as quantias referidas na coluna “Entregues”, pelo que reteve, fazendo seus, os montantes parciais inscritos na coluna “Não entregues”, no valor total de €24.670,11:

CLIENTE QUANTIAS TOTAIS FACTURAS EMITIDAS PAGAS ENTREGUES NÃO ENTREGUES
W..., Lda. 1.462,54€ 1.462,54€ 0,00€ 1.462,54€
L..., Lda. 839,39€ 839,39€ 0,00€ 839,39€
N... ,2 Lda. 1.018,20 € 1.018,20€ 157,41€ 860,79€
P..., Lda. 2.870,24€ 2.870,24€ 2.304,32 € 565,92€
M..., Lda. 1.152,17 € 1.152,17 € 508,20€ 643,97€
FF 925,16€ 925,16 €0,00 €925,16€
K... Lda. 1.763,62 € 1.763,62 €0,00 €1.763,62€
O..., Lda. 2.475,29 € 1.847,05 €0,00€ 1.847,O5€
Doces C..., Lda. 26,86€ 26,86 €0,00€ 26,86€
Y..., Lda. 1.712,52 € 1.712,52 €0,00€ 1.712,52€
A..., Lda. 3.245,79 € 2.389,56€ 198,10€ 2.191,46€
U..., Lda. 1.628,35 € 1.628,35 €0,00€ 1.628,35€
Á..., Lda. 287,50€ 1.462,54€ 0,00€ 287,50€
J..., Lda. 4.682,35€ 4.650,59€ 667,50€ 3.983,09€
H..., Lda. 2.767,32€ 2.767,32€ 0,00€ 2.767,32€
D..., Lda. 2.809,34 € 2.809,34€ 0,00€ 2.809,34€
T..., Lda. 191,88 € 191,88€ 0,00€ 191,88€
S..., Lda. 163,35 € 163,35 € 0,00€ 163,35€
TOTAL = 24.670,11€

5. O arguido tinha por obrigação entregar de imediato nos serviços financeiros da sociedade as quantias que fosse recebendo dos clientes, o que nunca fez.
6. Por outro lado, aproveitando-se do facto de ser o único vendedor/comercial da unidade fabril da “I...”, em Matosinhos, da abrangência das suas funções e da confiança de que gozava e especialmente nas instalações de Matosinhos, o arguido solicitou à funcionária administrativa BB, a emissão das faturas abaixo discriminadas:

DATA FATURA N.· CLIENTE VALOR
19-Jan 19 N... Lda. 60,10 c
22-Jan 21 F..., Lda. 46,40 €
29-Jan 31 N... Lda. 51,33 €
01-Fev 35 GG 134,31 €
06-Fev 43 F..., Lda. 68,44 €
21-Fev 67 N... Lda. 50,90€
26-Fev 74 N... Lda. 364,84€
26-Fev 75 Centro Social e Paroquial ... 28,00€
27-Fev 78 L..., Lda. 211,02 €
01-Mar 82 N... Lda. 115,87 €
02-Mar 85 N... Lda. 12,74€
07-Mar 89 G... Lda. 116,56 €
07-Mar 90 N... Lda. 23,60€
09-Mar 99 M..., Lda. 151,25 €
09-Mar 100 N... Lda. 135,35 €
13-Mar 108 G... Lda. 151,25 €
13-Mar 110 L..., Lda. 177,87 €
13-Mar 111 G... Lda. 78,41 €
15-Mar 116 N... Lda. 65,42 €
16-Mar 118 L..., Lda. 214,39 €
20-Mar 129 L..., Lda. 89,61 €
23-Mar 136 GG 26,86 €
23-Mar 137 N... Lda. 49,48 €
26-Mar 139 N... Lda. 23,60€
28-Mar 151 W..., Lda. 19,08 €
30-Mar 158 N... Lda. 81,27 €
04-Abr 175 N... Lda. 63,11 €
05-Abr 179 F..., Lda. 122,04€
05-Abr 185 Z..., Lda. 76,23 €
11-Abr 189 HH 9,21€
11-Abr 188 Centro Social e Paroquial ... 16,04€
13-Abr 190 HH 13,31 €
13-Abr 191 L..., Lda. 399,30 €
17-Abr 197 G... Lda. 143,14€
19-Abr 202 G... Lda. 117,94€
23-Abr 208 L..., Lda. 278,30€
24-Abr 210 N... Lda, 47,19 €
26-Abr 216 G... Lda. 159,72 €
27-Abr 219 F..., Lda. 75,34€
04-Mai 233 G... Lda. 72,41 €
04-Mai 234 L..., Lda. 278,30€
07-Mai 235 G... Lda. 333,11 €
09-Mai 241 L..., Lda. 181,50 €
10-Mai 246 N... Lda. 158,64€
15-Mai 255 M..., Lda. 145,20€
16-Mai 256 Leitaria ..., Lda. 133,10€
18-Mai 260 Leitaria ..., Lda. 452,54€
22-Mai 269 Leitaria ..., Lda. 81,G8€
30-Mai 281 Leitaria ..., Lda. 36,78 €
05-Jun 296 Centro Social e Paroquial ... 16,04€
OG-Jun 297 Leitaria ..., Lda. 65,01 €
11-Jun 301 Leitaria ..., Lda. 28,44 €
12-Jun 305 Leitaria ..., Lda. 312,18€
18-Jun 315 Leitaria ..., Lda. 58,08€
19-Jun 316 Leitaria ..., Lda. 60,50€
21-Jun 320 Y..., Lda. 501,36 €
22-Jun 330 Y..., Lda. 12,11 €
27-Jun 334 V..., lda. 217,38€
27-Jun 337 V..., lda. 330,33 €
04-Jul 347 V..., lda. 12,11 €
10-Jul 360 V..., lda. 282,39 €
16-Jul 365 V..., lda. 133,10€
17-Jul 366 Leitaria ..., Lda. 750,81 €
17-Jul 367 A..., Lda. 647,35 €
18-Jul 368 V..., lda. 78,65 €
25-Jul 378 V..., lda. 99,22€
26-Jul 380 V..., lda. 157.47 €
27-Jul 381 P..., Lda. 319,44 €
30-Jul 383 V..., lda. 92,38€
31-Jul 384 Centro Social e Paroquial ... 513,51 €
Ol-Ago 385 Centro Social e Paroquial ... 176,14€
02-Ago 386 Leitaria ..., Lda. 564,11€
03-Ago 387 V..., lda. 656,45 €
14-Ago 395 FF 436,62 €
16-Ago 397 Centro Social e Paroquial ... 432,66 €
22-Ago 398 T..., Lda. 771,11€
24-Ago 400 V..., lda. 388,62 €
04-Set 402 Centro Social e Paroquial ... 306,08 €
12-Set 408 Centro Social e Paroquial ... 59,96 €
14-Set 416 FF 53,24€
14-5et 417 Centro Social e Paroquial ... 53,24€
14-Set 411 V..., lda. 19,57€
20-Set 422 P..., Lda. 43,26€
20-Set 420 H..., Lda. 575,84€
21-Set 423 T..., Lda. 340,93 €
TOTAL = 15.S07,7

7. Para tanto, o arguido disse àquela funcionária que tais faturas se reportavam a fornecimentos de mercadorias encomendadas pelos cientes respetivos, sendo certo que tais fornecimentos não foram solicitados, nem pelos referidos clientes, nem por qualquer outra pessoa/empresa.
8. Na posse das referidas faturas o arguido procedeu, nas datas respetivas, ao levantamento das mercadorias correspondentes, que depois alienou a terceiros não apurados, sem entregar à “I...” as quantias respetivas.
9. Para além disso, e por forma a fazer crer à “I...” que as mercadorias haviam sido recebidas pelos clientes, o arguido apôs, pelo seu próprio punho, em cada uma das faturas, e como se se tratasse das rubricas dos funcionários das sociedades destinatárias, rubricas falsas, entregando sequentemente à “I...” tais documentos.
10. Mediante tal estratagema o arguido fez suas, porque as levantou e as vendeu posteriormente, as mercadorias inscritas nas referidas faturas, no valor de €15.507,77.
11. O arguido não entregou à “I...” a totalidade dos supra mencionados montantes recebidos, tendo ficado com o valor de mercadorias no total de €38.128,69.
12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram penalmente punidas e ainda assim não se inibiu de as adotar.
13. O arguido agiu com o propósito de se locupletar à custa da sociedade “I...”, sabendo que obteria um aumento patrimonial no valor de €38.128,69, correspondente ao dinheiro das mercadorias de que se apropriou.
14. O arguido sabia que deveria proceder à entrega imediata das quantias que lhe fossem entregues pelos clientes e, mesmo assim, quis faze-las suas, sabendo que tais valores não lhe pertenciam.
15. Por outro lado, com aquele propósito, o arguido agiu com a intenção de fazer constar das faturas emitidas transações de compra e venda que não tinham sido celebradas, sabendo que, por força da confiança que gozava junto da funcionária que emite as faturas da I..., das funções por si exclusivamente desempenhadas, a mesma não desconfiaria e as emitiria, assim lhe possibilitando levantar as mercadorias e apossar-se delas sem efetuar o pagamento das mesmas à I....
16. Mais pretendeu o arguido, com a mesma finalidade, fazer constar das supra referidas faturas rubricas não correspondentes a nenhum dos funcionários das empresas destinatárias, bem sabendo que tal facto, por não ser conhecido de nenhum dos demais funcionários da I... era determinante para que esta não desconfiasse da sua falsidade.
17. Tinha ainda conhecimento de que, ao atuar da forma descrita causava como causou prejuízo patrimonial à sociedade “I..., Lda.” no montante do valor de €38.128,69.
18. O arguido, ao agir da forma descrita, aproveitou-se da sua posição de exclusividade no desempenho das suas funções de vendedor/comercial e da confiança em si depositada pelos demais funcionários da I..., o que lhe facilitou a continuação criminosa e, sequentemente, diminuiu de forma sensível a sua culpa.
15. O arguido não tem antecedentes criminais.
16. O arguido regressou a Portugal há cerca de duas semanas, tendo estado emigrado cerca de quinze anos em Inglaterra onde trabalhou sempre na área dos transportes, e desde essa que não está a trabalhar reside em casa da sua mãe, com esta, que está reformada e é quem está a prestar-lhe ajuda.
17. Separou-se da sua mulher há cerca de um mês, com quem tem três filhos, dois já adultos e a trabalhar, e um menor, que residem com a mãe.
18. Completou o 12.º ano de escolaridade.
19. O arguido é tido em consideração por pessoa de bem.
(Do pedido de indemnização civil)
20. Por causa da atuação do arguido a sociedade I... teve de recorrer a uma empresa externa a fim de proceder a uma auditoria para apuramento dos factos e valores resultantes da sua atividade.
21. O que implicou um custo de €1.500.
22. O comportamento do arguido causou danos na imagem da demandante junto dos seus clientes atuais e potenciais.
23. Por causa do comportamento do arguido vários clientes afetados desistiram de trabalhar com a demandante, resultando daí perda de faturação.
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Factos não provados
Com relevância para decisão da causa inexistem factos não provados.”.
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Apreciando os fundamentos do recurso do arguido.
I) Erro notório na apreciação da prova - violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”.

Defende o arguido/recorrente que o tribunal a quo fundou a sua convicção em meios de prova insuficientes para a comprovação da factualidade suscetível de integrar os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito que lhe foram imputados, tendo valorado de forma legalmente inadmissível declarações “informais” do arguido, prestadas à margem do processo, assim violando o seu direito ao silêncio e à não autoincriminação, constitucionalmente tutelados, para além dos princípios que regem a valoração da prova (livre apreciação da prova e in dubio pro reo), incorrendo num “erro notório na apreciação da prova”.
Pelas razões que tivemos oportunidade de expor, a este tribunal de recurso está vedada a apreciação da decisão da matéria de facto na vertente da impugnação ampla, a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal. Contudo, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
O tribunal de primeira instância fundamentou nos seguintes moldes a decisão quanto à matéria de facto (segue transcrição):
“Indicação, valoração e análise crítica da prova.
A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.
Em concreto, o Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:
» O legal representante da demandante prestou declarações tendo, em síntese, referido que o arguido foi funcionário da sociedade I... entre janeiro a setembro de 2007, que era o primeiro ano desta com uma sucursal na zona do Porto, sendo o arguido o único que tinha a seu cargo as vendas, entregas e cobranças das mercadorias comercializadas, que consistiam em embalagens. Em determinada altura, um fornecedor da sociedade solicitou o pagamento de uma fatura relativamente à qual não havia qualquer nota de encomenda registada. Confrontou o arguido com tal situação, este começou por não dizer que não era ladrão, mas acabou por reconhecer que tinha ficado com a mercadoria. Quando o arguido lhe reconheceu que havia ficado com os valores referentes a vendas de mercadorias feitas, percebeu que a situação tinha uma escala maior do que o que a inicialmente percecionada. O próprio arguido lhe contou que rubricava as faturas como se fossem os clientes a faze-lo como comprovativo de ter recebido as mercadorias.
Mais disse que na referida conversa o arguido lhe reconheceu expressamente que tinha ficado com valores monetários e materiais da empresa em falta.
Explicou que a conduta do arguido se desenvolveu em situações distintas:
- casos em que os clientes fizeram encomendas, receberam as mercadorias, pagaram ao arguido, mas este fez constar os fornecimentos como não pagos, facilitado pelo facto de os pagamentos na data ainda serem muitas vezes feitos em numerário.
- situações em que o arguido solicitou à funcionária BB a emissão de documentos referentes a pedidos de fornecimentos junto de fornecedores, como se correspondessem a encomendas de clientes, tendo levantado as mercadorias junto daqueles, mas deu às mesmas destino que desconhece, apondo nos documentos uma rubrica (como se fosse feita pelo cliente) como tinham sido entregues e recebidos as mercadorias.
Referiu que alcançaram o valor em dívida no montante de €38.128,69, que foi alcançado através de uma auditoria externa que necessitaram de contratar por causa desta situação, tendo sido analisado com rigor o período em causa.
Por fim, esclareceu que tiveram que contactar todos os fornecedores e clientes, quanto a estes últimos alguns ficaram desagradados quer porque não tinham pedido qualquer mercadoria e constavam na conta corrente como estando em dívida quer porque já tinham pago as encomendas e estavam a ser-lhe solicitado mais uma vez o pagamento. Esta situação criou uma situação que abalou de forma muito grave a imagem da sociedade, uma vez que estavam a entrar no mercado, e criou-se uma desconfiança por parte dos clientes quanto à seriedade da sociedade. Na altura forneciam para confeitarias e pastelarias da zona do Porto, que era um grupo restrito de comerciantes, muito tradicional, personalizado e conhecidos entre si, pelo que a situação acabou por ter impacto de uma forma global nesta região.
» Foram inquiridas as seguintes testemunhas:
CC, atualmente reformado, referiu que foi colega de trabalho do arguido na sociedade I..., sendo o arguido vendedor e a testemunha chefe de produção na fábrica de Matosinhos. Em finais de setembro/outubro de 2007 ou 2008 recebeu telefonema do legal representante a dizer que o arguido tinha abusado da confiança da sociedade e para aguardar por ele para ficar com as chaves do carro e o computador. Que o confrontou perguntado se era verdade o que estavam a dizer que ele tinha desviado dinheiro, ele respondeu “é verdade, meti a mão onde não devia”. Quando ouviu isto, ficou emocionado e não conseguiu falar muito mais com ele sobre este assunto, nomeadamente dos montantes em concreto.
DD, disse ter sido trabalhador da sociedade I..., concretamente era distribuidor, e na mesma altura o arguido também era ali funcionário, exercendo as funções de comercial. Referiu que de vez em quando ia fazer entregas de mercadoria fazia a cobrança, concretamente quando eram vendas a pronto pagamento. Houve algumas situações em que quando ia fazer entregas a clientes lhe pediam para cobrar pagamentos em falta de fornecimentos anteriores e estes afirmaram que já tinham pago as mercadorias, mas não sabe a quem. Acrescentou que na altura o único comercial era o arguido. No dia em que o arguido foi despedido foi quem o levou a casa e recorda-se de aquele ter referido que tinha havido um grave problema, mas, considerando terem já passado 15 anos, já não se recorda se concretizou o que se havia passado.
BB, funcionária da sociedade demandante onde é assistente comercial, referiu que em determinada altura houve fornecedores que começaram a pedir pagamentos relativamente a fornecedores; contactados com eles foi dito que o arguido ia lá levantar mercadorias dizendo que era para clientes da sociedade I.... Acrescentou que antes desta situação se descobrir o arguido lhe pedia a emissão de faturas para venda a clientes, que depois vieram a apurar que as mercadorias acabavam por ser entregues por ele a outros destinatários que não os clientes que constavam das faturas. Como o arguido era o responsável pelas cobranças junto dos clientes ele dizia que aqueles ainda não tinham pago e por tal motivo a situação não foi detetada mais cedo. Só quando os fornecedores começaram a pedir o pagamento de fornecimentos que não constavam na contabilidade é que se percebeu toda a atuação do arguido, quer junto dos fornecedores quer junto dos clientes. Mais referiu que quando se percebeu a atuação do arguido, esteve cerca de duas a três horas reunida com ele, altura em que ele a ajudou a fazer o apuramento das situações, tendo-o confrontado com quase todas as faturas que estavam por pagar e este reconheceu que eram “falsas”, no sentido de que os clientes não tinham pedido aquelas mercadorias; que o arguido se prontificou a assinar uma nota de culpa o que veio a fazer. Já não se recorda do valor do dano decorrente da atuação do arguido, atento o número de anos já passados, mas seria entre 40 a 60 mil euros. Após, foi necessário analisar cada uma das vendas, tendo para o efeito contactado os clientes, após o que foram emitidas notas de crédito relativamente às faturas indevidamente emitidas e houve clientes que ficaram descontentes com esta situação, o que abalou a imagem da sociedade. A sociedade teve que suportar os prejuízos quer quanto aos fornecimentos quer quanto às vendas faturadas e não recebidas.
II, empregado fabril, referiu ser amigo do arguido desde a infância, crescido juntos, afirmando que aquele é uma boa pessoa, que nunca chegou ao seu conhecimento que quele tenha praticado qualquer tipo de crime.
Pela forma objetiva, desinteressada e distanciada com que todas as testemunhas depuseram, o declarado por cada uma foi valorado positivamente pelo tribunal.
» A prova documental é a vertida nos autos, que se detalhará sempre que se justificar pelo seu relevo probatório relativamente a determinados factos.
» Por fim, para além da prova direta dos factos, considerou-se, ainda, a prova indireta relativamente a parte da factualidade objeto de julgamento e que infra será expressamente mencionada. Sobre a prova indireta, entende Euclides Dâmaso Simões que o uso da mesma implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência).
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Tendo sido da valoração crítica, conjugada e ponderada da globalidade do supra mencionado acervo probatório que o Tribunal logrou formar firme convicção da veracidade sobre os factos julgados, cumpre, agora, analisar criticamente, a prova produzida em detalhe nos seus aspetos essenciais.
A certidão emitida pelo registo comercial, junta a folhas 29 a 31, fundou a convicção do tribunal relativamente à factualidade vertida no ponto 1.
Relativamente ao período de tempo e concretas funções exercidas pelo arguido como trabalhador da sociedade I..., Lda., como vertido no ponto 2., tal surgiu amplamente provado pelas declarações do legal representante desta sociedade conjugadamente com o depoimento das testemunhas CC, BB e DD, todos seus colegas de trabalho no período em causa.
A conclusão alcançada pelo tribunal da veracidade do acervo fático vertido nos pontos 3. a 11., o tribunal fundou-se, mais uma vez, no declarado pelo legal representante da sociedade e nos depoimentos das três supra referidas testemunhas, conjugadamente com os documentos de folhas 70 a 88, as faturas juntas ao Anexo, e ainda com o teor do documento junto em audiência de julgamento referente a uma auditoria levada a cabo pela sociedade “B..., Unipessoal, Lda” em 2007 do qual decorre que foram analisadas individualmente todas as faturas discriminadas nos factos provados.
Quanto à autoria dos factos pelo arguido, quer o legal representante da sociedade quer as testemunhas CC, BB declararam que aquele confirmou a cada um que os tinha praticado, explicando com detalhe o que o arguido referiu quanto à sua atuação. Quanto ao valor probatório do que o arguido disse ao legal representante da demandante e às referidas testemunhas, e relatado por cada um em audiência, o Tribunal Constitucional, no processo n.º 268/99, pelo acórdão n.º 440/99, de 08/97/1999, em situação paralela à subjacente, veio referir que «Recorda-se que a questão de constitucionalidade de que unicamente se vai conhecer é a que tem por objeto a norma constante do artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128º, n.º 1), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o tribunal pode valorar como meio de prova, sujeitando-o à sua livre apreciação, o depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata, quando este, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu direito ao silêncio».
E assim, a prova dos factos em análise, realizada pelas declarações do legal representante da demandante e das testemunhas, que ouviram a confissão pelo arguido, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso atual regime normativo uma prova indireta, uma «prova em segunda mão», mas dos artigos 128.º, 129.º e 130.º do Código de Processo Penal resulta que, embora o testemunho direto seja a regra, o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido, pois não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer, sofrendo, no entanto limitações. Assim, a disciplina contida no referido artigo 129.º, n.º 1 não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor (neste sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2008, proc. nº 0843468, disponível em www.dgsi.pt). Ora, no caso dos autos, acresce salientar que o arguido esteve presente na audiência de julgamento, ouviu os testemunhos prestados e remeteu-se ao silêncio, prescindindo, como tal, de apresentar a sua versão, pelo que não se pode pretender que o exercício desse direito ao silêncio inviabilize o depoimento de ouvir dizer. Cumpre salientar que tendo o arguido sido informado expressamente que tinha o direito de não prestar declarações, mas que se sujeitava à prova que viesse a ser feita em julgamento, não pode ser prejudicado por exercer tal direito, mas prescindiu de dar a sua visão pessoal dos factos e de esclarecer pontos de que tem um conhecimento pessoal. Há que salientar que o direito ao silêncio não visa beneficiar o arguido, condicionando a prova testemunhal, decorrendo antes do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que imputa ao arguido, facultando a este um comportamento que possa obstar à sua auto-incriminação. E no caso dos autos, da prova supra descrita, conjugada entre si, levou à conclusão, sem que qualquer dúvida se interpusesse, que o arguido atuou nos exatos termos vertidos na acusação pública.
Quanto à factualidade vertida nos pontos 12. a 14., para além do que já supra se foi referindo, que o arguido quis atuar do modo em que o fez nos termos apurados, é o que deflui, com clareza, em conjugação com as características de personalidade do mesmo e de harmonia com a experiência comum, projetada na sua atuação objetiva. Tais regras de experiência comum, e tendo em conta os padrões de entendimento e comportamento do homem médio, projetadas no contexto fático provado e as presunções naturais que delas emergem, não deixam margem para dúvidas de que a intenção real do arguido foi a apurada. E que o arguido atuou nos termos apurados, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, como provado, também defluiu da sua conduta objetiva praticada e apurada, tanto mais que nos autos não consta qualquer elemento que permita colocar em causa o arguido como pessoa de inteligência e determinação de vontade média que, necessariamente, estava na posse das suas faculdades mentais e, por isso, sabia do caráter ilícito das suas condutas e era capaz de se determinar de acordo com o juízo de licitude ou ilicitude que faz.
No que respeita à inexistência de antecedentes criminais do arguido, tal resultou da análise do respetivo certificado do registo criminal junto aos autos.
Relativamente às condições económico-financeiras do arguido, o Tribunal atendeu às declarações prestadas por este a esse propósito em sede de audiência de julgamento, declarações essas que se afiguraram credíveis e sinceras, sem que, em contrário, qualquer outra prova se haja produzido. Com base no depoimento de II resultou provada a factualidade vertida no ponto 19.
Por fim, relativamente à factualidade vertida nos pontos 20 a 23 o tribunal considerou positivamente e conjugadamente as declarações do legal representante da demandada com o depoimento de BB. Mais considerou o teor do documento junto em audiência referente ao valor pago pela auditoria, o qual constitui meio de prova idóneo para o efeito.”.

O art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», dispõe que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Decorre, assim, deste princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso é que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [2]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [3].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Já o “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[4]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [5].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No presente caso, o tribunal a quo explicitou claramente e de forma perfeitamente lógica na decisão recorrida as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [6] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.
O recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
É verdade que, como observa o arguido/recorrente, o tribunal “a quo” valorou declarações prestadas pelo demandante civil e por testemunhas que reproduzem relatos que o arguido lhes terá feito sobre os factos em apreço, traduzindo a sua “confissão” e consequente assunção de responsabilidade pela sua prática.
Contudo, e diversamente do que defende o recorrente, não só a prova em que se apoio o tribunal para fundar a sua convicção não se restringe a esses elementos, resultando claramente da leitura da decisão recorrida que foi igualmente tida em conta diversa prova documental, designadamente faturas e o relatório de auditoria externa, como também a valoração daquelas declarações não configura um procedimento proibido pela nossa lei processual penal ou constitucional.
Como é assinalado na decisão recorrida, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem considerando admissível, ficando sujeito a livre apreciação pelo tribunal, o depoimento que reproduz o que se ouviu dizer ao arguido, sendo certo que essa admissibilidade e livre valoração não está condicionada pela confirmação pelo próprio arguido em audiência do que uma testemunha a ele possa ter ouvido dizer [7].
Embora tenda a considerar admissíveis os depoimentos indiretos quando a fonte do que o depoente ouviu dizer é o arguido, ainda que este se tenha recusado a depor ao abrigo do direito ao silêncio que lhe é atribuído, valorando-os nos termos do princípio da livre apreciação da prova, a jurisprudência ressalva a importância de a decisão dos factos provados não se basear apenas no conteúdo dos depoimentos indiretos, exigindo a existência e valoração de diferentes meios de prova que os corroborem – tal como sucedeu no caso concreto, como bem assinala a magistrada do Ministério Público na resposta ao recurso.
É de notar que, chamado a pronunciar-se sobre esta matéria, o Tribunal Constitucional concluiu, no acórdão n.º 440/99, [8]que “o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. […] Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional.”.
Também as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova, criticadas pelo recorrente – designadamente, as constantes dos pontos 4) e 8), a 18), isto é, os factos relacionados com os atos de “falsificação” dos documentos e com o dolo do arguido -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum.
Neste âmbito, importa desde logo salientar que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [9].
Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.[10]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[11]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração da autoria dos crimes imputados ao arguido/recorrente e, bem assim, da verificação do dolo na respetiva execução.[12]
Deste modo, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo [13] (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [14].
Para além disso, e no que concerne à factualidade tida por provada pelo tribunal a quo e que suscitou a discordância do arguido/recorrente, mostra-se patente a inexistência de erro notório na apreciação da prova, ou de qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP. Com efeito, a decisão mostra-se, neste aspeto, coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
Improcede, por conseguinte, o presente fundamento do recurso.
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II) Determinação do quantum indemnizatório.
A determinação do montante indemnizatório que deve ser suportado pelo arguido/demandado suscitou a divergência de ambos os recorrentes, invocando o arguido a desproporção da quantia fixada pelo tribunal relativamente à sua condição socio-económica.
Assim, invoca-se no recurso que “o pedido de indemnização civil demonstra-se manifestamente desproporcional face aos parcos rendimentos do arguido, pois, encontrando-se este desempregado, facilmente se depreenderá que a condenação deste no pagamento ao ofendido do montante de €38.128,69 (trinta e oito mil, cento e vinte e oito euros e sessenta e nove cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais e o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, se afigura bastante exagerado, desproporcional e muito além do suportável.”.
Alega, ainda, que “o valor apurado relativamente aos danos não patrimoniais foi determinado através de uma auditoria efetuada a pedido da sociedade “I...”, o que não é suficiente per si para provar que as diferenças de valores encontradas estão diretamente relacionadas com a conduta criminosa do arguido, não sendo possível imputar a este último a verificação de nexo de causalidade entre os danos e determinada conduta.”.
A razão desta última discordância manifestada pelo arguido quanto à decisão recorrida prende-se com a valoração da prova e decisão da matéria de facto e esta, como vimos, mostra-se inatacável, pelas razões já atrás apontadas.
Com efeito, também quanto a este segmento factual o tribunal de recurso encontra-se impossibilitado de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla, sendo certo, para além disso, que não se deteta nesta parte da decisão recorrida qualquer vício decisório que importe suprir.
Relativamente à quantificação dos montantes indemnizatórios, escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:
“A obrigação de indemnizar resultante da prática de factos ilícitos pressupõe, nos termos do artigo 483.º do Código Civil:
1- A voluntariedade do facto praticado;
2- A ilicitude do mesmo;
3- A imputação do facto ao lesante a título de culpa;
4- O dano;
5- O nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em síntese, o itinerário probatório é exatamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que em relação a esta há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito. No que concerne aos danos patrimoniais invocados pela demandante, e que resultaram provados, temos como incontroverso que os mesmos decorreram diretamente da atuação do arguido. Como tal, este terá de ressarcir o demandante pelo valor de €38.128,69, referente ao valor global de que se apropriou e pelo valor de €1500, referente ao valor pago pela auditoria à contabilidade da sociedade. Mas, em face da apurada factualidade, impõe-se concluir que a demandante sofreu prejuízos de natureza não patrimonial decorrentes da atuação dolosa do arguido os quais, atenta já revelam gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, e, consequentemente, constituir o arguido no dever de indemnizar aquela - artigo 496.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Atendendo aos danos não patrimoniais sofridos pela demandante, bem como condição socio-económica do lesante, deve este indemnizar aquele no valor de €1500 (mil e quinhentos euros), relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo primeiro.”.
A questão da eventual desproporção da indemnização, invocada pelo recorrente, apenas releva, como é evidente, para a determinação do quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais, pois só esta está dependente de juízos de equidade de que o tribunal se deve socorrer.
Já a indemnização pelos danos patrimoniais, em regra, é de natureza fixa, independente de qualquer juízo de equidade ou de proporcionalidade: apurados e quantificados os danos, a indemnização corresponde ao seu valor pecuniário, desde que verificados todos os restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (designadamente, a ilicitude, a culpa ou o risco, e o nexo de causalidade entre a conduta e os danos).
O tribunal, atendendo à gravidade dos danos não patrimoniais causados à demandante e à situação sócio-económica do arguido/demandado – e, portanto, fazendo apelo a critérios de equidade (art.º 494.º do Código Civil) [15]– fixou a indemnização no montante de 1.500,00€, o que se nos afigura perfeitamente equilibrado.
Deste modo, improcede também este fundamento do recurso, sem prejuízo da análise do recurso apresentado pela demandante civil, quanto à determinação do montante indemnizatório pelos danos patrimoniais, o que se fará de seguida.
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II) Recurso da demandante civil - A questão da quantificação dos danos patrimoniais.
A sociedade “I..., Lda.” deduziu pedido de indemnização contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €43.177,88 a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, desde a ocorrência dos factos até efetivo pagamento, e de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo julgou o pedido de indemnização deduzido apenas parcialmente procedente, condenando o arguido/demandado no pagamento à demandante das quantias de €38.128,69 e de €1.500,00 – e, portanto, da quantia global de €39.628,69 - a título de indemnização dos danos patrimoniais, acrescidas dos juros de mora legais de 4% ao ano, contados desde a notificação do pedido de indemnização até integral pagamento.
No presente recurso, defende a recorrente a existência de “contradição insanável” entre os factos que o tribunal de primeira instância fez incluir nos pontos 2) a 10) da matéria de facto, por um lado, e os que descreveu nos pontos 11), 13) e 17) do mesmo segmento decisório.
Analisada a decisão recorrida, temos de concluir que, efetivamente, existe uma patente contradição entre os factos descritos naqueles pontos da matéria de facto, uma vez que, como bem salienta a recorrente, a soma aritmética do valor dos danos patrimoniais causados e ali enunciados é de €40.177,88 e não de €38.128,69, como o tribunal de primeira instância, erradamente, fez constar dos pontos 11), 13) e 17) e do dispositivo da sentença.
A manifesta contradição entre os factos provados enunciados nos pontos 4) e 10), por um lado, e 11), 13) e 17), por outro, e, para além disso, entre a fundamentação e a decisão, configura o vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, suscetível de ser suprido por este tribunal de recurso (cf. o art.º 431.º, alínea a), do mesmo diploma legal).
Deste modo, importa determinar a correção da redação dada aos pontos 11), 13) e 17) da matéria de facto provada, por forma a que, onde se lê €38.128,69, passe a ler-se €40.177,88.
Relativamente ao dano patrimonial referente ao valor despendido pela demandante com a auditoria realizada às contas da empresa, consta do ponto 21) da factualidade provada que tal despesa ascendeu ao montante de €1.500,00.
Para a demonstração desse dano e respetivo valor apoiou-se o tribunal de primeira instância, segundo consta da decisão recorrida, no “teor do documento junto em audiência referente ao valor pago pela auditoria”, conjugado com as declarações prestadas pelo representante da demandante civil e o depoimento da testemunha BB.
Contudo, a demandante havia peticionado a quantia de €3.000,00 para ressarcimento deste dano e, muito embora os documentos juntos aos autos comprovem a emissão de três faturas no valor de €1.725,00 (correspondente ao montante de €1.500,00, acrescido de IVA) emitidas pela empresa que realizou a auditoria às contas e a existência de três transferências bancárias naqueles montantes realizadas pela demandante, o tribunal a quo, por razões não esclarecidas, reduziu o valor deste dano para o montante de €1.500,00.
Admitimos que o tribunal de primeira instância possa, por lapso, ter considerado unicamente uma fatura e um único documento comprovativo da transferência realizada para o respetivo pagamento, dada a similitude dos elementos documentais em causa, mas uma análise atenta de tais elementos comprova que se trata de três faturas distintas (com números diferenciados e emitidas em três datas diferentes) e de três movimentos bancários igualmente diversos, realizados a débito a partir da conta titulada pela demandante.
Deste modo, impõe-se a correção do ponto 21) da matéria de facto provada que passará a dispor da seguinte redação:
“O que implicou um custo de, pelo menos, €3.000,00.”.
Com as correções agora determinadas à matéria de facto provada, verifica-se que, tal como sustenta a demandante civil, os danos patrimoniais que lhe foram causados com o comportamento ilícito e culposo do arguido/demandado ascendem ao montante global de €43.177,88 (€40.177,88 + €3.000,00), pelo que procede na totalidade o recurso por ela interposto para este tribunal da Relação.
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III - Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
1) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.
2) Conceder integral provimento ao recurso interposto pela demandante civil, com a consequência de que o arguido/demandado terá de pagar-lhe, a título de indemnização dos danos patrimoniais, a quantia global de € 43.177,88, acrescida de juros legais de mora, nos moldes determinados na sentença recorrida, para além do valor fixado pelo tribunal de primeira instância a título de indemnização de danos não patrimoniais.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 18 de janeiro de 2023.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
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[1] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[2] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[3] Cfr., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[5] Cfr. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[6] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cfr., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[7] Cfr., neste sentido, e a título exemplificativo, o acórdão deste TRP de 28/9/2022 (relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato), para além do acórdão do STJ de 20/4/2006 (relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[8] Relatado pelo Conselheiro Messias Bento e disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt.
[9] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[10] Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), “A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[11] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[12] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à autoria atribuída ao arguido quanto aos atos de falsificação dos documentos e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[13] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[14] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[15] Como refere Antunes Varela ("Das Obrigações em Geral", 5ª edição, p. 567) e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/6/2011 (disponível em www.dgsi.pt), os critérios de equidade a que o tribunal deverá atender para apurar o quantum indemnizatório devido a título de reparação de danos não patrimoniais serão, designadamente, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado, os padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.