Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
716/17.2T9STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: ESCUSA
JUIZ
RELAÇÕES DE AMIZADE
Nº do Documento: RP20180321716/17.2T9STS-A.P1
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE ESCUSA
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º754, FLS.259-261)
Área Temática: .
Sumário: Deve ser deferida a escusa, se do pondo de vista objectivo existe a susceptibilidade de pela comunidade ser posta em causa a isenção e imparcialidade do juiz em face da relação de proximidade com o assistente, seu colega, com quem mantém relações de amizade e com quem conviveu profissionalmente no mesmo tribunal de comarca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 716/17.2T9STS-A.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Porto
I – RELATÓRIO:
No âmbito do processo comum do qual foi extraída a certidão que constitui estes autos o Mmo Juiz de Instrução Criminal deduziu pedido de escusa de intervenção, com fundamento na existência de motivo grave e sério, adequado a gerar um sentimento de desconfiança sobre a sua imparcialidade.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A. O pedido de escusa é formulado nos termos seguintes:
B…, juiz de direito em exercício de funções como juiz de instrução criminal (J3) no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, vem requerer (…) a escusa de intervir no processo de instrução n.º 716/17.2T9STS, no qual é assistente C…, que deduziu acusação particular contra as arguidas D… e E… (requerentes da instrução) pela prática de crimes de injúria com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts 181.º e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do C.Penal, de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts 180.º e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do C.Penal.
Como fundamento para tal pedido, cabe referir (…) que o requerente tem relação de amizade com o assistente, também juiz de direito, tendo ambos frequentado o XV Curso Normal de Formação do Centro de Estudos Judiciários e sido contemporâneos, no exercício de funções como juízes (o assistente em Juízo Cível e o requerente em Juízo Criminal), durante três anos (entre 2005 e 2008), no tribunal da então designada comarca de Santo Tirso.
(…)
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A certidão encontra-se instruída com cópia da acusação particular e do requerimento de abertura de instrução, no âmbito do processo nº 716/17.2T9STS pendente no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, comarca do Porto.
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C. Apreciação do pedido de escusa:
De harmonia com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Pode constituir fundamento de recusa, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º do Código Processo Penal.
O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições supra referidas (cf.s n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º, do CPP).
Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça, «aos juízes na sua missão de julgar é exigido, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade (cf. artigos 4.º e 7.º, do EMJ). E julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o curso do pensamento com sujeição apenas à lei, à consciência e as decisões dos tribunais superiores; ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida. Esse dever de independência e imparcialidade pode ser posto em crise colocando juiz na situação de ter de o declarar, pedindo escusa de intervir na decisão ao tribunal competente, mas num apertado contexto, de nem sempre fácil apreensão, para que aponta o artigo 43.º n.ºs 4, 1 e 2, do CPP, ao fundá-lo em motivo sério e grave adequado a considerá-lo suspeito e impedido de bem decidir»[1].
A escusa constitui assim um desvio excecional ao princípio do juiz natural, consagrado constitucionalmente enquanto salvaguarda dos direitos dos arguidos (cfr. artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa), desvio que se mostra justificado nas situações em que se revela imperioso prevenir os efeitos perversos desse princípio, através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz, também garantidos constitucionalmente (cf. artigos 203.º e 216.º da Constituição da República Portuguesa), quer como pressuposto subjetivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objetivo na sua perceção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas[3][2].
A avaliação da seriedade e gravidade do motivo de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz deve assentar em critérios de objetividade.
No caso concreto, o Mmo Juiz invoca a suscetibilidade de ser posta em causa a sua imparcialidade, sem discriminar se na vertente subjetiva e/ou objetiva, baseando-se na relação de amizade que mantem com o assistente, tendo ambos frequentado o mesmo Curso de Formação no Centro de Estudos Judiciários, bem como no relacionamento decorrente de ter exercício funções no mesmo tribunal que o assistente, na comarca de Santo Tirso.
Avaliados os elementos invocados, julga-se não existirem razões para colocar em causa a imparcialidade do Senhor Juiz, sob o ponto de vista subjetivo, não se vislumbrando motivos para admitir que o seu relacionamento pessoal e profissional com o assistente possam ter repercussões na intervenção nos autos como Juiz Instrução Criminal.
Todavia, analisada a situação sob a perspetiva objetiva, considera-se que existe efetiva suscetibilidade de, perante a comunidade em geral, ser posta em causa a isenção e imparcialidade do Senhor Juiz Instrução Criminal, tendo em conta a sua proximidade com o assistente, com quem mantém relação de amizade, e em função da circunstância de ter convivido profissionalmente no mesmo tribunal da comarca de Santo Tirso com o assistente, enquanto juiz de direito, a prestar serviço no Juízo Cível, quando o requerente exercia funções em Juízo Criminal.
De assinalar que neste domínio o que importa acautelar é que não se suscitem dúvidas na comunidade de que o juiz mantém íntegra a sua imparcialidade, pois que «decisivo não é, afinal, determinar se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade mas se existe o perigo de a sua intervenção no processo ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade»[3].
Ora, no caso presente, face aos específicos contornos assinalados, é de admitir que o cidadão médio, representativo da comunidade, não olhe com indiferença a circunstância de existir uma relação de amizade entre o Juiz Instrução Criminal e o assistente, mas, antes é razoavelmente de supor que ao cidadão comum se suscitem dúvidas e desconfianças sobre a isenção e imparcialidade do Senhor Juiz, na apreciação dos fundamentos apresentados no requerimento de abertura de instrução.
Assim, perante as circunstâncias expostas, conclui-se pela verificação de fundamento legal para a escusa de intervenção do Mmo Juiz requerente, na fase da instrução.
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III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em deferir o pedido de escusa formulado pelo Senhor Juiz, Dr. B…, para intervir na instrução, no âmbito do processo n.º 716/17.2T9STS, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos- Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Sem tributação (cfr. artigo 45.º, n.º 7, do Código Processo Penal).
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Porto, 21-03-2018
Maria dos Prazeres Silva
Borges Martins
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[1] Cfr. Acórdão de 31-01-2012, proc. 944/07.9TAOAZ-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2005, proc. 05P909, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2010, proc. 3755/05.2TDPRT.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.