Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0409252
Nº Convencional: JTRP00006526
Relator: GUIMARÃES DIAS
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
PRÉDIO ENCRAVADO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RP199009200409252
Data do Acordão: 09/20/1990
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J BARCELOS
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC67 ART273 N1 ART193 N1 ART664.
CCIV66 ART1117 ART1119 ART1409 ART1499 ART1501 ART1523
ART1535 ART1555 ART2130 ART1376 ART1380.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1975/10/26 IN BMJ N250 PAG159.
ASS STJ DE 1986/03/18 IN DR IS DE 1986/05/17.
Sumário: I - As hipóteses de direito legal de preferência são exaustivamente indicadas no Código Civil, nos artigos 1117, 1119, 1380, 1409, 1499, 1501, 1523, 1535, 1559 e 2130.
II - A cada pedido destes corresponde uma diversa causa de pedir que, por se tratar de acções reais, é constituído pelos factos jurídicos de que deriva aquele direito de preferência.
III - Nada impede, porém, que um mesmo pedido - a atribuição da preferência - tenha diversas causas de pedir, por exemplo, a dos artigos 1380 e 1555, se o prédio é ao mesmo tempo confinante e encravado.
IV - À aplicação do artigo 1555 é indiferente o destino de ambos os prédios.
V - A causa de pedir não tem que ser qualificada juridicamente.
VI - A nossa lei consagra a teoria da substanciação segundo a qual o objecto da acção é o pedido definido através de certa causa de pedir.
VII - Invocada pelos AA uma causa de pedir, não pode o tribunal substituir-lhe outra; mas invocada certa causa com determinada qualificação jurídica, pode o tribunal qualificar diferentemente, do ponto de vista jurídico, a realidade alegada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
No Tribunal Judicial de Barcelos, Paulino .... e mulher Maria Celeste ........., residentes em ..........., ........., Barcelos, intentaram acção com processo sumário contra João Carlos......., Adriana Maria ........, Estela Maria ........., João Eduardo ......, Maria Gabriela ......., Guilherme ........, Manuel ..... e Maria Arminda ......, todos residentes no Porto, à excepção dos dois últimos, residentes no ..., ......., Barcelos, pedindo o reconhecimento aos autores, nos termos do artigo 1380 do Código Civil, do direito de preferência na venda do prédio identificado na petição inicial, e os autores colocados em substituição dos quintos réus compradores e recebendo estes o preço declarado na escritura e o montante das demais despesas havidas.
Os réus Manuel ........ e mulher Maria Arminda ....... contestaram o direito de preferência invocado pelos autores, que, de seguida responderam impugnando os factos articulados na contestação.
Da especificação e das respostas dadas aos quesitos resultaram os factos seguintes:
1 - Os autores, por si e antepossuidores, há mais de 10, 15, 20 e 30 e mais anos, possuem, sem interrupção no tempo, sem oposição de quem quer que seja, à vista de toda a gente e na convicção de exercerem o direito de propriedade, o prédio identificado no artigo 1 da petição inicial denominado "L........" de lavradio, situado no ......., freguesia ....., descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, sob o n. 138 e inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia, no artigo 803, nomeadamente, pagando as contribuições, cultivando-o, semeando e colhendo os produtos da terra.
2 - Por escritura pública de 1988/09/19 os réus Manuel ....... e mulher Maria Arminda ........ compraram o prédio referido no artigo 4 da petição inicial denominado "A..........." situado no lugar ........, freguesia ......, inscrito na matriz rústica nos artigos 804 e 805 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, sob o n. 96915 do Livro B-245; o qual não tem confrontações de comunicação directa com a via pública, fazendo-se o acesso ao caminho público ou estrada camarária, através do prédio dos autores que com aquele confronta em todo o seu comprimento.
3 - Tal acesso tem vindo a ser exercido pelos réus e antecessores em condições de estar adquirido por usucapião o direito de passagem.
4 - Aos autores não foi dado conhecimento da venda projectada e realizada, como não lhes foi dado conhecimento dos elementos do contrato em questão.
5 - Os réus compraram o referido prédio com destino a nele implantarem a construção da sua habitação e para igual fim aceitaram os autores a doação do seu prédio.
Com base nestes elementos foi a acção julgada provada e procedente e reconhecido aos autores o direito de preferência na compra do prédio identificado no artigo 4 da petição inicial colocando-os no lugar dos réus contestantes, determinando-se o pagamento das importâncias peticionadas e ordenando-se o cancelamento dos registos efectuados.
Inconformados com esta decisão os réus Manuel ....... e mulher apelaram para esta Relação, alegando em síntese o seguinte:
1 - Os autores limitaram o pedido nesta acção de preferência ao facto de serem proprietários do prédio confinante;
2 - Invocaram a situação do seu prédio estar onerado com servidão de passagem, apenas, para justificar que o seu direito se sobrepunha aos dos demais preferentes;
3 - Assim, a matéria de facto dada como provada, ou seja, a de que ambos os prédios se destinavam a construção urbana afastava o pretenso direito dos autores;
4 - Ao julgar-se na sentença recorrida a acção procedente e provada, foi ultrapassado o disposto nos artigos 660 e 661 do Código de Processo Civil o que determina a sua nulidade, nos termos do artigo 668 do mesmo diploma legal.
Por seu turno os autores contra-alegaram em resumo:
1 - Os autores alegaram todos os factos essenciais e necessários à procedência da acção;
2 - Esses factos foram dados como provados;
3 - Aplicando as regras de Direito aos factos, foi julgada procedente a acção com fundamento no artigo 1555 do Código Civil;
4 - Não foi assim violado o disposto nos artigos 664 e 665 do Código de Processo Civil.
O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público teve vista dos autos nada requerendo.
Foram colhidos os vistos legais pelo que cumpre, agora, apreciar e decidir.
A questão fulcral que se coloca neste recurso respeita à natureza da causa de pedir de que emerge o pedido formulado pelos autores na acção.
Isto é, se os factos articulados configuram como causa de pedir do direito de preferência que se pretende ver atribuído aos autores o enquadramento do artigo 1380 do Código Civil, preferência dada aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura; ou o do artigo 1555 do mesmo Código referente ao direito de preferência na alienação do prédio encravado e outorgado ao proprietário do prédio onerado com a servidão legal de passagem.
A nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido, definido através de certa causa de pedir - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, 1986, Tomo 4, página 86 e seguintes e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/75, Boletim do Ministério da Justiça n. 250, página 159 e Revista de Legislação e Jurisprudência n. 109, página 311.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm considerado, dominantemente, que a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito do autor e fundamenta, portanto, a sua pretensão e traduzindo-se num facto concreto tem de ser invocada na petição, ou nos termos do n. 1 do artigo 273 do Código de Processo Civil, sem o que não pode ser apreciada na sentença.
Assim, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção e o autor tem necessariamente de a indicar sob pena de ineptidão da petição inicial - artigo 193, n. 2, alínea a) do Código de Processo Civil - do que resulta a nulidade de todo o processado - artigo 193, n. 1 citado - e o indeferimento liminar da petição - artigo 474, n. 1, alínea a), ou a absolvição da instância - artigos 288, n. 1, alínea b) e 494, n. 1, alínea c), todos do Código de Processo Civil.
É sabido que a causa de pedir é caracterizada pela sua especificidade e adequação. Quer dizer que a causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circustâncias concretas e individualizadas; não podendo apresentar-se como manifestamente irrelevante ou contraditória com o pedido.
Por outro lado não tem de ser qualificada juridicamente, embora normalmente de facto o seja, bastando ao autor narrar factos e ao juiz, em seguida, qualificar juridicamente o que se verificar.
Logo, invocada pelo autor uma causa de pedir não pode o tribunal substituir-lhe outra; mas invocada pelo autor, como é uso, uma causa de pedir com certa qualificação jurídica, pode o tribunal qualificar diferentemente, do ponto de vista jurídico, a realidade.
É o que resulta do disposto no artigo 664 do Código de Processo Civil quando aí se refere que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes".
Por isso, o Tribunal não pode alterar a causa de pedir da aquisição dum direito real, nem substituí-la, dado o princípio da substanciação consagrado na nossa lei.
No mesmo sentido se pronunciou o Professor J. Alberto dos Reis, no seu Código de Processo Civil Anotado, V, página 93, ao referir que:
"O Tribunal só é livre na qualificação jurídica dos factos desde que não altere a causa de pedir.
Assim, o juiz ao suprir as deficiências ou inexactidões das partes, no tocante à qualificação jurídica dos factos ou à interpretação ou individualização das normas, tem de manter-se dentro do limite fundamental que lhe marca a acção não podendo alterar as afirmações que identificam a razão e justificam as conclusões".
Posto isto, vejamos, então, no caso em apreço qual a causa de pedir em que os autores baseiam o seu pedido de atribuição do direito de preferência.
A causa de pedir invocada pelos autores respeita ao direito de preferência baseado na situação de confinância de prédios rústicos, nos termos preceituados no artigo 1380, n. 1 do Código Civil e, também, à preferência do proprietário do prédio onerado com a servidão legal de passagem, no caso de venda; sendo certo que é feita referência à situação de encravemento do prédio dos réus para igualmente demonstrar que lhes caberá o direito de preferência relativamente aos demais proprietários de prédios confinantes.
Ensina nesta matéria o Professor Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, n. 105, página 234, que "pode bem acontecer que a causa de pedir invocada expressamente pelo autor não exclua uma outra que, na interpretação da petição, possa julgar-se compreendida naquela. Em casos deste género, a indicação feita, pelo autor, da causa de pedir tem de ser entendida de modo a corresponder ao sentido que ele quis atribuir a essa indicação, desde que tal sentido possa valer nos termos gerais da interpretação das declarações de vontade".
Acrescenta o mesmo Professor na obra citada, em nota, que este último requesito "resulta da necessidade de ao demandado ser dada a possibilidade de conhecer a causa de pedir, a fim de poder defender-se nessa base".
Ora, a indicação da causa de pedir no caso "sub judice" foi feita de modo a que os réus entendessem, como entenderam, que ela não só respeitava ao fundamento do direito de preferência previsto no citado artigo 1380, como também à preferência tipificada no artigo 1555 do mesmo Código.
No que respeita ao exercício do direito de preferência, o dito artigo 1380 limita-se a conferi-lo aos proprietários de terrenos confinantes, sem esclarecer se estes eram os terrenos aptos para a cultura ou efectivamente aplicados à exploração agrícola, ou se, atendendo a que o exercício desse direito se justificava, não somente como meio de evitar os parcelamentos ilegais, o preceito deve ser interpretado com a achega do artigo 1736 que proibe o fraccionamento de "terrenos aptos para a cultura" em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do país.
Por conseguinte, o direito de preferência reconhecido pelo artigo 1380 funciona, nestes outros casos, para a venda de terreno apto para a cultura em favor de proprietários de terrenos com as mesmas características - cfr. Acórdão da Relação do Porto de 09/03/73, Boletim do Ministério da Justiça, n. 226, página 276.
E, diremos nestes outros casos, porque por Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 18/03/86, in Diário da República, I Série, de 17/05/86 se alargou o conceito, considerando-se que o direito de preferência não depende da afinidade ou identidade de culturas dos prédios confinantes.
As hipóteses de direito legal de preferência são exaustivamente indicadas no Código Civil, nos artigos 1117, 1119, 1409, 1499, 1501, 1523, 1535, 1555 e 2130.
Fora delas não se pode verificar o direito real de preferência, a não ser que haja um pacto de preferência com eficácia real - cfr. Professor Mota Pinto, in Direitos Reais, 1970/71, página 140.
Obviamente decorre do que ficou dito que a cada pedido destes corresponde uma diversa causa de pedir, que por se tratar de acções reais, isto é, acções cujo objecto é um direito real, são constituídas pelos factos jurídicos de que deriva aquele direito - cfr. artigo 498, n. 4 do Código de Processo Civil.
Assim, a causa de pedir do direito de preferência consagrado no artigo 1380 não é a mesma do direito de preferência consignado no artigo 1555 e que atribui tal direito ao proprietário do prédio onerado com servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, sem curar de saber se se trata, ou não, de terrenos de área inferior à unidade de cultura.
Porém, nada impede que esse mesmo pedido - a atribuição da preferência - tenha diversas causas de pedir, nomeadamente aquelas que vimos referindo, e mencionadas nos artigos 1380 e 1555; porquanto não se verifica entre elas qualquer antagonismo, nem a eventual falta de prova em relação a uma determina a improcedência da outra.
Quer isto dizer que um prédio pode ser simultaneamente confinante e encravado, de modo a que, desde que se verifiquem os respectivos requisitos legais, ambos, ou apenas um deles, sejam causa determinante da atribuição do direito de preferência.
Ora, como se decidiu na senteça recorrida, era do conhecimento dos autores, para além da situação de preferentes por confinância, prevista no artigo 1380, invocada, a que lhes advém de donos de prédio onerado com servidão, concedida no artigo 1555, n. 1, sempre do Código Civil citado.
Todavia, apenas invocaram o referido artigo 1380 e não o artigo 1555, para cuja aplicação é indiferente o destino de ambos os prédios, muito embora dos factos provados conste "que o terreno em causa não tem confrontação ou comunicação directa com a via pública, fazendo-se o acesso ao caminho público ou estrada camarária, através do prédio dos autores que com aquele confronta em todo o seu comprimento.
Assim, entendemos que a pretensão material deduzida na acção está concretizada através da referência àqueles factos e sem contradição com o pedido formulado.
Por isso, a sentença recorrida ao julgar provada e precedente a acção não merece qualquer censura.
Nesta conformidade, face ao que expendido ficou acordam nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 20/09/90
Guimarães Dias
Bessa Pacheco
Tomé de Carvalho