Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6439/17.5T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
INTENÇÃO DE APROPRIAÇÃO
Nº do Documento: RP202003046439/17.5T9VNG.P1
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O despacho de não pronúncia, tendo que ser fundamentado, não está sujeito às elevadas exigências de fundamentação das sentenças decorrentes do nº 2 do art.º 374º do Código de Processo Penal, podendo dizer-se que tal despacho se mostra fundamentado se deixar claro ao declaratário comum, mesmo sem uma “enumeração” formal, ao discutir os factos indiciados, quais os factos que se consideram como estando e como não estando indiciados suficientemente nos autos e os motivos ou razões de facto e de direito que levam o Juiz de Instrução a não submeter o arguido a julgamento.
II - A recusa de restituição, à partida, constitui uma atitude que manifesta claramente a intenção de apropriação, na medida em que implica a vontade de o agente se comportar como proprietário; estará, por isso, indiciada a prática de um crime de abuso de confiança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal n.º 6439/17.5T9VNG.P1
Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal do Porto – J1
Acordam em conferência na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
No processo nº 6439/17.5T9VNG foi proferido decisão instrutória decidindo não pronunciar o arguido B… pelos factos e imputação jurídica constantes da acusação pública contra si deduzida pelo Ministério Público (pela alegada prática de um crime de abuso de confiança).

Não se conformando com essa decisão, dela veio o MºPº interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]:
A) NULIDADE DA DECISÃO EM RECURSO, POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
1º O presente recurso vem interposto da decisão instrutória de não pronúncia do arguido B…, constante a fls. 201 a 207, a qual padece do vício da falta de fundamentação, já que não elenca os factos que considerou suficientemente indiciados e os que considerou não suficientemente indiciados, o que torna tal decisão nula.
2º De facto, a imposição de fundamentação das decisões dos tribunais resulta do disposto no artigo 205º, n.º 1 da CRP e a fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, quer na vertente de facto como na vertente de direito, resulta do disposto nos artigos, 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, al. b), aqui aplicável por força do art.º 308º, n.º 2, todos do CPP.
3º E, como vêm entendendo os nossos tribunais superiores, a decisão instrutória de não pronuncia que não enumere, de modo facilmente cognoscível, todos os factos que considerou, quer na vertente de suficientemente indiciados, quer na vertente oposta, é nula, por violação dos supra referidos preceitos legais – vejam-se, neste sentido e entre outros, Ac. da RP de 17/2/2010, processo n.º 58/07.1TAVNH.P1, Ac. da RE de 10/12/2009, processo n.º 71/06.6TAADV.E1, Ac. da RE de 20/12/2012, processo n.º 908/09.8PBCSC.E1, Ac. da RE de 26/2/2013, processo n.º 410/10.5GDPTM.E1, Ac. da RL de 775/2013, processo n.º 17/12.2GDFTR.E1, Ac. da RG de 3/6/2013, processo n.º 1182/11.1GBGMR.G1, Ac. da RG de 4/5/2015, processo n.º 154/14.9GBGMR.G1 e Ac. da RC de 13/11/2013, processo n.º 780/10.5PCCBR.C1, todos publicados no sítio, www.dgsi.pt.
4º Aliás, outro entendimento nos parece contrário a uma interpretação lógica dos citados preceitos legais – artigos, 205º, nº 1 da CRP, 97º, nº 5, 283º, nº 3, al. b), e 308º, nº 2, estes do CPP) –, interpretação que deverá ser, sempre, subordinada aos princípios que enformam as normas legais e constitucionais aplicáveis, tais como os princípios, da transparência das decisões judiciais, da garantia do direito do acesso aos tribunais, da confiança da comunidade nas decisões judiciais, do processo equitativo, na sua vertente de garantia da imparcialidade e independência, com possibilidade de um correto funcionamento das regras do contraditório, tudo se conjugando para que a decisão instrutória de não pronuncia deva conter, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos indiciados e não indiciados, com a suficiência exigida nesta fase processual.
5º Ora, lida a decisão em recurso, facilmente se verifica que o M.º JIC não elencou nenhum facto, nem os que considera suficientemente indiciados nem aqueles que entende não estarem suficientemente indiciados.
6º De onde se tem de concluir que tal decisão é nula, por falta de fundamentação, porque omite os factos que se entendem suficientemente indiciados e os factos não suficientemente indiciados, assim violando o disposto nos artigos, 205º, nº 1 da CRP, 97º, nº 5, 283º, nº 3, al. b), e 308º, nº 2, estes do CPP, nulidade que aqui se invoca – vício que não cabe nas hipóteses de arguição previstas no nº 3 do art.º 120º, do CPP, nem por via do art.º 119º, do CPP, e por ser uma lacuna nos termos do artºs 10º, nºs. 1 e 2 do Código Civil deve ser integrada por aplicação analógica do art.º 379º, nº 2, ex vi art.º 4º, primeira parte, a contrario sensu, do CPP.
B) RAZÕES DA DISCORDÂNCIA DA DECISÃO EM RECURSO
SEM PRESCINDIR, E PARA O CASO DE SE ENTENDER QUE A DECISÃO EM RECURSO NÃO PADECE DO VÍCIO DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
7º O Ministério Público não concorda com o M. JIC quando refere, na decisão em recurso, e se bem entendemos o fundamento para a não pronúncia, que a prova recolhida no inquérito resulta uma dúvida razoável da conduta do arguido.
8º Ora, a prova que fundamenta a acusação, é abundante e vem indicada a fls. 125, ali estando incluída, não só prova testemunhal, baseada na inquirição das 2 testemunhas, mas também prova documental que comprova muitos dos factos descritos na acusação e á qual o M. º JIC nem sequer aludiu, muito menos analisou.
9º E impunha-se que fosse devidamente analisada e ponderada toda a prova, documental e testemunhal, após o que, conjugada entre si, levaria à conclusão de que nos autos existem indícios suficientes de o arguido ter praticado os factos e crime que lhe vem imputado na acusação – um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº1, do CP.
10º Dessa prova, nos levam a concluir existirem nos autos indícios suficientes da prova que sustenta a acusação que, devidamente conjugada e por apelo às regras da experiência comum, de o arguido ter praticado os factos que lhe foram imputados na acusação e que são suscetíveis de integrar a prática do crime de abuso de confiança.
11º Por outro lado, não podemos esquecer que, quer a prova direta quer a indireta ou indiciária, são modos legítimos de se chegar ao conhecimento da realidade dos factos a provar, uma vez que de acordo com o princípio estabelecido no art.º 127º do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, e a prova indireta ou indiciária não é proibida.
12º Porém, o Mº JIC, para além de não fazer referência a toda a prova produzida no inquérito, na apreciação da mesma olvidou completamente a prova indireta ou indiciária, considerando ser tal insuficiente para submeter a arguida a julgamento, por ser mais provável a sua absolvição do que a sua condenação.
13º Ora a prova indiciária recolhida no inquérito, ainda que indireta, também tinha de ser valorada, e não o foi pelo Mmº JIC, no sentido de que, segundo as regras da experiência comum.
14º Acresce que, para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza (convicção da existência do crime). Basta-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase de inquérito ou de instrução não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
15º Pelo que, o Mmº JIC, ao não pronunciar a arguida pela prática dos factos constantes da acusação do MP, violou, não só o disposto no referido art.º 127º, como também o disposto no art.º 308º, n.º s 1 e 2, com referência ao art.º 283º, nº 2, todos do CPP.
16º Pois que, se o M.º JIC tivesse valorado toda a prova produzida no inquérito, nomeadamente aquela prova indiciária, em conjugação com a demais prova, documental, testemunhal e exames de dano corporal, indicada na acusação, contraposta às declarações da arguida que, embora tenha negado os factos, não viu as suas declarações corroboradas com outra prova, a conclusão teria de ser a de pronúncia do arguido.
17º Assim, e concluindo, deve a decisão em recurso ser revogada e substituída por outra que, atendendo ao exposto, pronuncie a arguida pelos factos descritos na acusação de fls. 123 e ss, suscetíveis de integrar a prática, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205º, nº1, do Código Penal.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito não suspensivo (meramente devolutivo, portanto).

O arguido apresentou resposta, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida.

O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer no qual se pronunciou no sentido de o recurso dever ser julgado procedente, aderindo à motivação do recurso apresentado, acrescentando o seguinte:
A - Quanto à nulidade da decisão em recurso por falta de fundamentação.
É patente, como resulta da simples consulta do despacho de não pronúncia ora recorrido, que dele não consta a enumeração dos factos considerados como suficientemente indiciados e de outros não tidos como indiciados, embora sejam feitas referências quer aos depoimentos das testemunhas quer à documentação junta aos autos.
Vem sendo entendido que tal facto consubstancia a nulidade, decorrente do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, ambas as normas do CPP.
Nesse sentido se pronunciaram, para além dos referidos na motivação de recurso, os recentes acórdãos:
- Do TRC de 16-06-2015, com o seguinte sumário: I. A falta de narração, no despacho de não pronúncia, dos factos considerados suficientemente indiciados e de outros não tidos como indiciados com suficiência consubstancia nulidade, decorrente do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, ambas as normas do CPP. e,
- Do TRG de 2-11-2015: I. O despacho de pronúncia e não pronúncia deve enumerar os factos indiciados e não indiciados. II. A omissão de falta de enumeração dos factos indiciados e não indiciados num despacho de não pronúncia traduz uma nulidade sanável e dependente de arguição.
Deste último extrai-se a seguinte fundamentação:
É por demais consabido que a decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume a natureza de ato decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP.
Além disso, tal como decorre do artigo 308º do CPP, o despacho de não pronúncia (aquele que aqui tem relevo) tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, do CPP, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
Com efeito, de modo a permitir que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se necessário saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.
Por isso, o despacho de não pronúncia há de elencar, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária».
(…)
A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho, tendo em vista o disposto no artigo 283.º, n.º3, alínea b).
Esta nulidade não faz parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do artigo 119º do C.P. Penal.
Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.
Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311º, nº 3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objeto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.
Por outras palavras: os casos referidos no nº 3 do artigo 311º que se contêm nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição.
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Mostra-se, cremos, pacífico que a falta de fundamentação do despacho de não pronúncia constitui nulidade.
A questão que se pode suscitar é a do prazo para a sua arguição e da entidade que a deve decidir.
Ora, o Ministério Público não esteve presente na leitura da decisão instrutória, como resulta da ata de 08.11.2019 (fl. 208), sendo dela notificado apenas em 11.11.2019 (fl. 213).
A motivação de recurso, no qual foi suscitada a nulidade do despacho ora recorrido, foi apresentado em 13.11.2019 (cfr. fl. 214).
Mostra-se por isso tempestivamente suscitada a nulidade do despacho ora recorrido.
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Por outro lado, no despacho de não pronúncia está o Tribunal obrigado à descrição dos factos que fundamentam a decisão, sob pena de nulidade, como decorre do disposto no art.º 308.º, n.ºs 1 e 2, com referência o disposto no art.º 283º, nº 3, al. b), do CPP[2].
Podendo o Tribunal usar da faculdade de remissão para os factos e as incriminações enunciadas no requerimento instrutório, a verdade é que não se mostra que o tenha feito.
Como bem se refere na motivação de recurso mostra-se violado o disposto nas normas conjugadas dos art.º 97º, nº 5, 283º, nº 3, al. b), e 308º, nº 2, todos, do CPP.
A situação descrita não se encontra prevista nas normas dos artºs 119º e 120º, nº 3, do CPP, devendo, por ser uma lacuna, ser integrada por aplicação analógica do art.º 379º, nº 2, do CPP, como resulta do art.º 4º, primeira parte do CPC.
A consequência dessa omissão – da descrição dos factos que fundamentam a decisão – é a nulidade do despacho, tendo a nulidade sido praticada na decisão instrutória, e não tendo o Ministério Público estado presente na sua leitura, a nulidade pode e deve ser arguida até à interposição do recurso da decisão instrutória, e no próprio recurso, como se mostra ser entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque[3] (cfr. art.º 379º/2, do CPP).
Consequentemente, deverá, nesta parte, ser julgado procedente o recurso e declarado nulo o despacho de não pronúncia ora recorrido.
B- Quanto às razões da discordância da decisão, de não pronúncia, ora recorrida.
Concorda-se, também, com os fundamentos do recurso apresentado pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância.
Importa ainda considerar que:
- Quanto à suficiência dos indícios:
Os indícios, relativos ao facto de o arguido reter na sua posse a documentação relativa aos serviços de contabilidade que prestou à firma “C…, Unipessoal, Lda., designadamente, “extratos, mapas, registos, anexos, chaves de acesso informático”, pertença da aludida sociedade, recolhidos no decurso do inquérito, resultam essencialmente dos depoimentos das testemunhas D… e E…, bem como na prova documental de fl. 7 a 13, 17, 68, 121 e 122, como se refere na motivação de recurso do Ministério Público, na 1.ª instância.
O arguido no decurso do inquérito usou do direito de não prestar declarações (cfr. fl. 106).
Sucede que com o RAI o arguido B… juntou documentos, nomeadamente, o documento de fls. 174 (carta que dirigiu à queixosa), no qual refere designadamente “não mais contactarei essa sociedade a não ser para regularização do débito/entrega da documentação”.
Do teor de tal comunicação resulta claramente indiciado que o arguido detém em seu poder documentação da queixosa.
Mostram-se por isso fortemente reforçados os indícios relativos à detenção pelo arguido de documentação pertencente à queixosa “C…, Unipessoal, Lda.”.
- Quanto ao direito de retenção:
Quer do teor do RAI, quer do teor do documento de fl. 174, resulta que o arguido B…, tendo sido contratado como contabilista pela queixosa “C…, Unipessoal, Lda.”, entende que não lhe foram pagas todas as quantias que lhe são devidas, e por isso, arrogando-se ser credor da queixosa, retém em seu poder a documentação àquela pertencente.
Ora, cessou já, como aliás o arguido reconhece, a relação contratual que ligava o arguido B… à queixosa “C…, Unipessoal, Lda.”, relação contratual essa não se mostra suficientemente caracterizada.
De todo o modo nenhuma outra prova se mostra junta aos autos, relativa à existência de um crédito do arguido B… sobre a queixosa “C…, Unipessoal, Lda.”, para além do teor do RAI e das comunicações do arguido de fl. 172, 174, 177, 178.
Importaria comprovar uma qualquer situação que pudesse sustentar o direito de retenção que o arguido se arroga.
Na verdade, como sustenta Germano Marques da Silva, a aplicação do princípio in dúbio pro reo não impõe ao Tribunal o dever de “desmontar uma por uma todas as circunstâncias ou que a mera alegação das mesmas pelo arguido implique a necessidade de provar a sua ausência” (…), “só se for introduzida no processo uma qualquer prova atinente a um facto excludente da responsabilidade é que o juiz tem o dever de se pronunciar sobre ela em conformidade com o princípio da presunção da inocência”[4].
Mostra-se fortemente indiciado que o arguido B… detém na sua posse documentos pertencentes à queixosa “C…, Unipessoal, Lda.”, documentação que lhe foi entregue, por título não translativo de propriedade, como consta da documentação junta aos autos.
Foi-lhe, repetidamente, solicitada a devolução dessa documentação.
Decorreu já um largo período de tempo sem que o arguido B… revele intenção de restituir a documentação que lhe foi entregue, por título não translativo de propriedade.
Com tal comportamento o arguido revela que se apoderou da aludida documentação com intenção de afazer sua.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
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Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Aquilo que importa apreciar e decidir é saber se:
● a decisão instrutória é nula porquanto não elenca os factos que considerou suficientemente indiciados e os que considerou não suficientemente indiciados?
● nos autos existem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe estava imputado na acusação deduzida pelo MºPº (crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º, nº do Código Penal)?
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Para apreciação do recurso importa ter presente o desenvolvimento processual relevante, que é o seguinte, como se alcança compulsando o processo:
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O MºPº, considerando que o arguido declarou não concordar com a suspensão provisória do processo, requereu a aplicação em processo sumaríssimo ao arguido, como autor, com dolo e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança previsto e punível pelo art.º 205º, nº 1, do Código Penal, de pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6,00, alegando estar indiciado suficientemente o seguinte:
1. O arguido é contabilista, e desde data não apurada até julho de 2016, dedicava-se à prestação de serviços de contabilidade e fiscalidade junto da sociedade comercial “C…, Unipessoal, Lda”, NIF ………., com sede na Avenida …, nº …, Loja …, em Vila Nova de Gaia e, nessa qualidade, conforme contrato de avença entre ambos firmado para o efeito.
2. No âmbito de tais funções de contabilidade, competia ao arguido, para além do mais, elaborar, preparar e apresentar junto das autoridades fiscais, designadamente das respetivas repartições de finanças, toda a documentação fiscal relativa ao atividade comercial da sociedade e proceder aos pagamentos necessários para regularização das dívidas fiscais.
3. Nesse contexto, a sociedade fez entrega ao arguido, junto do seu escritório sito na Rua …, n.º .., …, AF, em Vila Nova de Gaia, de todo a documentação, como extratos, mapas, registos, anexos, e chaves de acesso informático (para aceder ao sítio da internet da Autoridade Tributárias e Segurança Social), tudo pertencente à sociedade.
4. Sucede que, em data não concretamente apurada, mas situada em julho de 2016, cessou a prestação de serviços entre o arguido e a sociedade em causa, tendo esta solicitado ao arguido, por diversas vezes, que lhe entregasse os documentos e respetivas chaves de acesso à internet nas Finanças e Segurança Social, que este apenas o teve na sua posse no âmbito da relação contratual entre ambos celebrado.
5. O arguido, após várias interpelações, não fez até ao presente data, a entrega de tais documentos e chaves de acesso, que apenas lhe foram entregues para que, no âmbito das suas funções de contabilista, prestasse os serviços de contabilidade, fazendo-os seus, não dando qualquer justificação sobre o destino dado a tais documentos.
6. O arguido atuou como descrito com o propósito, concretizado, de fazer seus os documentos contabilísticos e chaves de acesso da sociedade ofendida, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que apenas lhe haviam sido confiados a título temporário e não translativo da propriedade, para que desempenhasse as suas funções como contabilista, consciente que contrariava com tal conduta a vontade da sociedade ofendida.
7. Agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, além de censurável, era legalmente punível.
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O arguido deduziu oposição a esse requerimento, sendo depois proferido despacho a ordenar o reenvio do processo para a forma comum.
Notificado da acusação, o arguido apresentou requerimento solicitando a abertura da instrução.
Depois de se proceder a debate instrutório foi proferida decisão instrutória (de não pronúncia) com o seguinte teor:
O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar.
Não há nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer.
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Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido B… (fls. 161/167), relativamente à acusação pública contra si deduzida pelo M. Público (fls. 123/127), pela alegada prática de um crime de abuso de confiança.
Fundamento desse requerimento de abertura de instrução é a alegação pelo arguido em como não praticou o crime que lhe é imputado, pois que reteve efetivamente documentação pertencente à empresa para a qual prestava serviços de contabilidade, o que fez como forma de pressão para a liquidação dos honorários que lhe eram devidos pela mesma.
Conclui assim pela sua não pronúncia, com o consequente arquivamento dos autos.
Apenas juntou documentos, não tendo requerida a realização de quaisquer outras diligências.
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Aberta a instrução, procedeu-se apenas ao debate instrutório, no decurso do qual o M. Público manifestou o entendimento que se recolheram indícios no inquérito em como o arguido cometeu o crime que lhe é imputado; o arguido concluiu como no seu requerimento de abertura de instrução, pela sua não pronúncia.
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O art.º 286.º, n.º 1 do C. Processo Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Ou seja, a atividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a acusação deduzida contra o arguido pelo M. Público quanto ao crime de abuso de confiança assenta em indícios suficientes em como o arguido praticou tal crime.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efetivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308º, nº 1 do C. Processo Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C. Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
A Relação de Lisboa, por acórdão de 21.MAI.15 (pr. 2/13.7GFPRT.L1-9) afirmou que, “…A jurisprudência tem considerado, nos tempos mais recentes, esta probabilidade razoável de, em julgamento, ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança, como uma “probabilidade elevada” ou “particularmente qualificada”, isto é, não se contenta com a mera hipótese de tal poder acontecer, mas, exige, antes, uma hipótese séria de tal poder vir a acontecer, em obediência ao princípio in dubio pro reo, aplicável a todas as fases do processo e da presunção de inocência.”, entendimento que a Rel. de Évora corroborou, por acórdão de 16.FEV.16 (pr. 408/13.1TABJA.E1): “Verificam-se indícios suficientes para pronunciar o arguido quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do mesmo, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia: “…fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:
- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;
- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento;
ou,
- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.
Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infração, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.”, diz-se no ac. da Rel. de Coimbra, de 08.JUL.15 (pr. 204/14.9PCCBR.C1).
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O crime de abuso de confiança que é imputado ao arguido, encontra-se previsto no art.º 205º do C. Penal, e visa proteger a propriedade, na vertente da garantia da fruição das utilidades de coisa móvel.
Supõe, para a respetiva comissão, que o agente do crime, tendo recebido certa e determinada coisa móvel alheia mas a título que não lhe confere a transmissão, para ele, dessa mesma coisa móvel, passa, a partir de certa altura, a fazer coisa sua essa coisa que lhe foi entregue.
Essa inversão do título de posse deve manifestar-se através de sinais visíveis, que revelem de modo inequívoco que passou a deter a coisa com ânimo de proprietário.
“No crime de abuso de confiança, para que se verifique o requisito entrega de coisa móvel não é necessário um prévio ato material de entrega da coisa, bastando que o agente se encontre investido num poder sobre a mesma que lhe dê a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar, podendo tratar-se de uma entrega quer direta quer indireta, cabendo aqui a entrega jurídica da coisa.
O dolo, neste crime, consiste na vontade do agente em inverter o título de posse, na sua vontade de passar de possuidor alieno domine em possuidor uti dominus, diz-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 23.ABR.98 (pr. 212/98).
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Da prova indiciária recolhida em inquérito, quer documental, como testemunhal, resulta que o arguido, confessadamente, reteve documentação pertencente à ofendida C…, Unipessoal, Lda, para a qual desempenhou, até certa altura, serviços de contabilidade.
Fê-lo – sustenta o requerente da presente instrução – como modo de pressão para a liquidação dos honorários que lhe erem devidos pela referida pessoa moral, decorrentes da cessação dessa prestação de serviços.
Percorrendo o inquérito, verifica-se a existência de correspondência havida entre a queixosa e o arguido, em que aquela o interpela no sentido da devolução de documentação e poder dele, relativa à atividade dela e que se encontrava em poder do acusado (fls. 7/8, 9, 11/12), facto confirmado pelo novo contabilista da queixosa (a fls. 24/25) e pela legal representante da ofendida (a fls. 45/46).
Ainda em sede de inquérito, o arguido não prestou declarações (fls. 107).
Juntamente com o requerimento de abertura da instrução, o arguido fez chegar documentação aos autos (fls. 169/184), de cuja leitura – em especial o de fls. 172 – resulta que o arguido alude ao seu crédito sobre a queixosa do valor de 2 mil e duzentos euros, o que reafirma pela carta de 27.MAR.17 (fls. 174), na qual, além do mais, o arguido afirma não mais contactar a queixosa senão para “…regularização do débito/entrega de documentação…” (sublinhado e realce acrescentados), propósito que reitera pelo e-mail que enviou ao novo contabilista da ofendida (a fls. 177: “…enviei carta registada à sua cliente no sentido de regularizar a situação ou seja, levantar a documentação pagamento do valor de € 2.200,00…” – sublinhado e realce acrescentados).
Ou seja, subsiste a dúvida razoável se, de facto, o arguido pretendeu apropriar-se da documentação que reconhecidamente lhe não pertencia; o que ressuma dos autos é que – insatisfeito e desagradado pela cessação do contrato de prestação de serviços por banda da ofendida e pelo alegado incumprimento desta quanto aos seus honorários – reteve essa documentação na sua posse, como meio de pressão para lograr o pagamento do que entendia lhe era devido.
Do ponto de vista deontológico, ético e até moral pode questionar-se a correção dessa atitude do arguido.
Do ponto de vista criminal é difícil afirmar-se que essa sua conduta preencha o disposto no art.º 205º, nº 1 do C. Penal, no segmento “…se apropriar de coisa móvel alheia…”, pois que não se recorta de modo nítido que o acusado quisesse ter os documentos para si (animus rem sibi habendi).
No caso em apreço, considerando o teor das comunicações dirigidas pelo arguido quer à queixosa como ao novo contabilista dela, não é seguro poder afirmar-se existirem sinais, manifestações e exteriorização – de maneira objetivamente reconhecível – que o arguido quis integrar os documentos em causa no seu património.
A inversão do título de posse, própria deste crime, carece de ser demonstrada por atos objetivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se dono fosse, o que não sucede nos autos com a nitidez e clareza necessárias.
Ante este quadro factual, qual é a resposta a dar à questão a que já acima se referiu: em julgamento, se a prova aí produzida for a que vem de referir-se, é mais provável a condenação do arguido ou a sua absolvição?
Face à prova recolhida em inquérito e em instrução – que suportou a acusação dirigida contra o arguido – a mesma não parece ser capaz de passar e de ultrapassar a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo; ponderando na sua globalidade os indícios recolhidos em inquérito e na instrução subiste e permanece dúvida razoável se o arguido efetivamente se pretendeu apropriar dos documentos pertencentes à queixosa.
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Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efetivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308º, nº 1, 1ª parte, do C. Processo Penal NÃO SE PRONUNCIA o arguido B… pelos factos e imputação jurídica constantes da acusação pública contra si deduzida pelo M. Público a fls. 123/127.
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Da nulidade da decisão instrutória (objeto de recurso):
Conforme resulta do art.º 286º do Código de Processo Penal o requerimento de abertura da instrução visa que se inicie fase processual para comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Têm legitimidade para requerer abertura de instrução o arguido ou o assistente, aquele (o arguido) relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiver deduzido acusação (art.º 287º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal).
Nesta situação, o arguido visará que seja proferido despacho de não pronúncia, que será proferido em duas situações: quando se reconhece e declarem nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa (art.º 308º, nº 3 do Código de Processo Penal); e, quando não foram recolhidos indícios suficientes da prática do(s) crime(s) (art.º 308º, nº 1 do Código de Processo Penal).
No despacho de não pronúncia – como no despacho de pronúncia – não existem factos provados e factos não provados, mas apenas factos suficientemente indiciados ou não suficientemente indiciados.
A questão está em saber se tais factos (suficientemente indiciados, e/ou não suficientemente indiciados) têm que ser elencados no despacho de não pronúncia, ou pelo menos em que medida têm que dele constar.
É claro que, sendo a decisão instrutória um despacho, deve a mesma ser fundamentada, por força do disposto no art.º 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, que estabelece que «os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
Ou seja, quer o despacho de pronúncia quer o despacho de não pronúncia, devem ser obrigatoriamente fundamentados, de facto e de direito, pelo Juiz de Instrução, mas pergunta-se se tal significa que tais despachos têm que enunciar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não se recolheu prova indiciária bastante.
Se é certo que com a exigência de especificação no ato decisório dos «motivos de facto e de direito da decisão» (referidos no nº 5 do art.º 97º do Código de Processo Penal) não se pretende aludir concretamente à enunciação de factos, no que tange à decisão instrutória, aquela disposição normativa tem de ser conjugada com o art.º 308º também do Código de Processo Penal, cujo nº 2 manda correspondentemente aplicar ao despacho referido no número anterior (que estabelece o critério orientador para o juiz proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o disposto nos números 2, 3 e 4 do artigo 283º do Código de Processo Penal.
Assim, referindo-se esta última disposição legal à “acusação pelo Ministério Público”, por aplicação da mesma, é inquestionável que o despacho de pronúncia tem que conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Mas o que interessa no caso em apreço é o despacho de não pronúncia, e quanto a este o dever de fundamentação existe, mas decorrendo do nº 5 do art.º 97º do Código de Processo Penal que, como se disse, não alude/exige concretamente a enunciação de factos.
É certo que, para que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeição do arguido a julgamento, tem que conhecer quais os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pelo tribunal a quo, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelo crime imputado na acusação, de molde a poder confirmar ou não o despacho de não pronúncia.
Todavia, tal não implica uma exigência da enunciação dos factos que são considerados suficientemente indiciados ou não suficientemente indiciados.
Por isso, sem desconhecer a jurisprudência que em larga escala defende que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes, afigura-se-nos ser de aceitar que o despacho de não pronúncia, tendo que ser fundamentado, não está sujeito às elevadas exigências de fundamentação das sentenças decorrentes do nº 2 do art.º 374º do Código de Processo Penal, podendo dizer-se que o despacho de não pronúncia se mostra fundamentado se deixar claro ao declaratário comum, mesmo sem uma “enumeração” formal, se deixar claro, repete-se, ao discutir os factos indiciados, quais os factos que se consideram como estando e como não estando indiciados suficientemente nos autos e os motivos ou razões de facto e de direito que levam o Juiz de Instrução a não submeter o arguido a julgamento[5].
Precisando melhor: no despacho de não pronúncia o juiz começa por apreciar as nulidades, questões prévias e incidentais, e não as havendo, passará à discussão dos indícios, justificando a decisão de não pronúncia, importando que nesta discussão esteja percetível ao declaratário comum que factos estão e não estão suficientemente indiciados de modo a não se justificar a submissão do arguido a julgamento.
E assim o Tribunal da Relação estará em condições de fazer a apreciação sobre a adequação ou não da decisão de não pronúncia nos termos acima expostos, o que não se confunde com a forma da elaboração do despacho (elencando em “lista” os factos suficientemente indiciados e não suficientemente indiciado, ou referindo em texto os mesmos, justificando a decisão de não pronúncia tomada).
Em resumo, como refere o acórdão do TRG de 17.12.2013[6], embora se possa considerar a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia a de fazer uma enumeração dos factos «indiciados» e «não indiciados», o legislador, ao contrário do que acontece para a sentença (art.º 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), não exige que assim seja, exigindo sim a especificação no ato decisório dos «motivos de facto e de direito da decisão» como se expôs.
Posto isto, pergunta-se se o despacho de não pronúncia proferida neste processo está ou não está fundamentado (e se concluirmos que não se verá as consequências que daí advêm).
O despacho de não pronúncia proferido pelo tribunal a quo não elenca os factos que o Mmº Juiz considerou como indiciados e os factos que considerou como não indiciados, não estando expresso em forma de lista quais, de entre os que constam da acusação que o MºPº deduziu, que considerou suficientemente indiciados e quais considerou não suficientemente indiciados.
Mas tal significa que o despacho de não pronúncia proferido não está fundamentado em conformidade com o referido nº 5 do art.º 97º do Código de Processo Penal?
Subjacente à acusação deduzida no processo está a seguinte factualidade: a sociedade comercial queixosa celebrou com o arguido contrato de avença/prestação de serviços, por via do qual forneceu a este documentação vária, e em 2016 esse contrato cessou, mas o arguido não devolveu a documentação em causa, que apenas lhe fora entregue para prestação dos serviços, e apesar de ser instado a devolvê-la, agindo com o propósito de fazer sua a documentação apesar de saber não ser sua e lhe ter sido apenas entregue para prestar os serviços.
Lendo a decisão de não pronúncia retira-se que é considerado suficientemente indiciado que o arguido reteve documentação pertencente à sociedade queixosa para a qual prestou serviços de contabilidade, e também que esta o interpelou para devolver a documentação, e foi considerado que “subsiste a dúvida razoável se, de facto, o arguido pretendeu apropriar-se da documentação que reconhecidamente lhe não pertencia”, o que determinou a não pronúncia.
Ou seja, do despacho proferido extrai-se que foram considerados suficientemente indiciados os pontos 1 a 6 da acusação (exceto, no ponto 5, a expressão “fazendo-os seus”, e no ponto 6 o primeiro segmento), a saber (inscrevendo-se entre parêntesis reto e em letra diferente as expressões consideradas não indiciadas):
1. O arguido é contabilista, e desde data não apurada até julho de 2016, dedicava-se à prestação de serviços de contabilidade e fiscalidade junto da sociedade comercial “C…, Unipessoal, Lda”, NIF ………., com sede na Avenida …, nº …, em Vila Nova de Gaia e, nessa qualidade, conforme contrato de avença entre ambos firmado para o efeito.
2. No âmbito de tais funções de contabilidade, competia ao arguido, para além do mais, elaborar, preparar e apresentar junto das autoridades fiscais, designadamente das respetivas repartições de finanças, toda a documentação fiscal relativa ao atividade comercial da sociedade e proceder aos pagamentos necessários para regularização das dívidas fiscais.
3. Nesse contexto, a sociedade fez entrega ao arguido, junto do seu escritório sito na Rua …, n.º ..., …, em Vila Nova de Gaia, de todo a documentação, como extratos, mapas, registos, anexos, e chaves de acesso informático (para aceder ao sítio da internet da Autoridade Tributárias e Segurança Social), tudo pertencente à sociedade.
4. Sucede que, em data não concretamente apurada, mas situada em julho de 2016, cessou a prestação de serviços entre o arguido e a sociedade em causa, tendo esta solicitado ao arguido, por diversas vezes, que lhe entregasse os documentos e respetivas chaves de acesso à internet nas Finanças e Segurança Social, que este apenas o teve na sua posse no âmbito da relação contratual entre ambos celebrado.
5. O arguido, após várias interpelações, não fez até ao presente data, a entrega de tais documentos e chaves de acesso, que apenas lhe foram entregues para que, no âmbito das suas funções de contabilista, prestasse os serviços de contabilidade, [fazendo-os seus,] não dando qualquer justificação sobre o destino dado a tais documentos.
6. O arguido [atuou como descrito com o propósito, concretizado, de fazer seus os documentos contabilísticos e chaves de acesso da sociedade ofendida,] bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que apenas lhe haviam sido confiados a título temporário e não translativo da propriedade, para que desempenhasse as suas funções como contabilista, consciente que contrariava com tal conduta a vontade da sociedade ofendida.

E ficando sérias dúvidas, além de sobre as expressões dos pontos 5 e 6 acabadas de transcrever entre parêntesis reto e em letra diferente, o constante do ponto 7 [agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, além de censurável, era legalmente punível].
Quer isto dizer que, ainda que não tenha sido observada no concreto despacho de não pronúncia a melhor técnica para exposição dos factos suficientemente indiciados e os factos não suficientemente indiciados num despacho dessa natureza (em consonância com o que acima se expôs), permitindo a redação do despacho de não pronúncia proferido pelo tribunal a quo extrair quais são eles, é de considerar tal despacho fundamentado.
Assim, considerando que in casu não foi violado, por falta de fundamentação, o disposto no art.º 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, fica prejudicado conhecer sobre as consequências da omissão ou insuficiente enumeração dos factos considerados suficientemente e não suficientemente indiciados (sendo certo que mesmo que se considerasse que essa omissão/insuficiência se verificava a mesma não afetaria o ato praticado, sendo mera irregularidade a arguir perante o tribunal a quo[7]).
Deste modo, concluímos que não se verifica a apontada (em recurso) nulidade da decisão recorrida, importando ver se o sentido da decisão proferida devia ter sido outro, mais propriamente se existe “dúvida razoável” que leva a considerar nesta fase os factos dos pontos 6 (parte) e 7 não suficientemente indiciados.
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Da existência de indícios suficientes da prática do crime:
Nos termos do art.º 205º, nº 1 do Código Penal incorre na prática do crime de abuso de confiança quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade.
O dolo é necessário relativamente à totalidade dos elementos do tipo objetivo de ilícito, e não especificamente à apropriação.
Com efeito, neste crime não se exige [como se exige no crime de furto – art.º 203º do Código Penal], uma intenção de apropriação.
Porém, para se poder dizer estar preenchido o elemento subjetivo teremos que ter a apropriação radicada, eminentemente, numa certa intenção, numa certa atitude subjetiva nova, o dispor da coisa como própria, a intenção de se comportar relativamente a ela como proprietário; exige-se que o animus se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute [8]. O agente há de saber que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que detém em seu poder, e mesmo assim querer apropriar-se dela, isto é, integrá-la no seu património.
Neste sentido se escreveu no acórdão do TRG de 07.11.2005[9] que, recebendo o arguido coisa por título não translativo da propriedade e não a devolvendo, do simples facto de não haver devolução não se pode retirar que ele se apropriou dela e a fez sua, ou seja, não se pode retirar a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da coisa. Importará que a recusa de restituição se possa entender como implicando a vontade de o agente se comportar como proprietário[10].
O relator do acórdão acabado de citar, Miguez Garcia, escreve em “O Direito Penal Passo a Passo”[11], a propósito da apropriação, que ajuda na boa compreensão do abuso de confiança o reconhecimento de uma espécie de lado externo (objetivo) da apropriação, mas também a presença de um lado subjetivo. Quando A insta B a comprar-lhe a coisa que lhe fora confiada a título de empréstimo por C pratica objetivamente um ato de apropriação: como que declara que quer fazer sua a coisa que sabe ser alheia. Do ponto de vista subjetivo pode no entanto faltar a vontade de apropriação, porque porventura o agente está em erro sobre a natureza alheia da coisa, acreditando que aquilo que pretende vender é realmente seu, para depois acrescentar exige-se pois que o animus se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute.
Mas é claro que a recusa de restituição à partida constitui uma atitude que manifesta claramente a intenção de apropriação, na medida em que implica a vontade de o agente se comportar como proprietário, o mesmo é dizer de apropriação.
Em conformidade com o exposto, é de admitir que a apropriação não é «ilegítima» quando ela não contraria as regras do direito civil, podendo o agente invocar as causas de justificação do estado de necessidade jurídico-civil (art.º 339º do Código Civil), da ação direta (art.º 336º do Código Civil), do direito de retenção (art.º 754º do Código Civil) ou da compensação (art.º 847º do Código Civil)[12].
Na decisão de não pronúncia proferida pelo tribunal a quo considerou-se haver uma dúvida razoável (leia-se não estar suficientemente indiciado) de que a vontade do arguido fosse a de integrar a documentação no seu património, de ficar com a mesma e usá-la como coisa sua, considerando que resulta dos autos que o arguido “insatisfeito e desagradado pela cessação do contrato de prestação de serviços por banda da ofendida e pelo alegado incumprimento desta quanto aos seus honorários – reteve essa documentação na sua posse, como meio de pressão para lograr o pagamento do que entendia lhe era devido”, não sendo, por isso, de excluir a intenção de restituição.
Como se sabe, o princípio in dubio pro reo, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, CRP), constitui princípio probatório, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal e impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos imputados ao arguido, o tribunal deve decidir a favor deste, o qual também é de ter presente em fase de instrução, não para antecipar o julgamento, mas na apreciação da suficiência dos indícios para justificar a submissão do arguido a julgamento (cfr. art.º 308º Código de Processo Penal[13]).
A dúvida do tribunal a quo, que refere legitimar a aplicação do princípio in dubio pro reo, sobre o propósito concretizado de fazer sua a documentação, suporta-se na possível existência de uma «causa de justificação», mais propriamente no facto de a “retenção” da documentação (incluindo chave de acesso ao sistema informático da Autoridade Tributária) ter na base pretender o arguido um “meio de pressão” do pagamento de honorários que estariam em falta.
Todavia, não se alcança que as regras do direito civil acolham uma tal atuação (desde logo não se alcança enquadramento no “direito de retenção” previsto no art.º 754º do Código Civil), pelo que se nos afigura não se poder dizer decorrer dessa possível «causa de justificação» estarmos perante uma dúvida razoável.
De resto, resulta de fls. 77ss indiciado que o arguido impulsionou injunção para cobrança de honorários e a sociedade deduziu oposição em que, entre o mais, alega não existir débito, tendo a injunção terminado por desentranhamento do requerimento inicial apresentado pelo aqui arguido por falta de comprovação de pagamento da taxa de justiça.
Assim, e porque está claramente indiciada a recusa da entrega da documentação (incluindo chave de acesso ao sistema informático da Autoridade Tributária), o juízo sobre a suficiência dos indícios (são apenas indícios que estão em causa) para justificar a submissão do arguido a julgamento tem que ser positivo.
Isto é, o despacho recorrido não pode subsistir, impondo-se a sua substituição por outro que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo MºPº para julgamento do arguido em processo comum com intervenção do tribunal singular.
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Em suma, o recurso procede nos termos expostos.
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida determinando a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo MºPº para julgamento do arguido em processo comum com intervenção do tribunal singular.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo arguido, que decai no recurso, em 3 UC’s (art.º 513º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal, art.º 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa a este).
Notifique.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)
Porto, 04 de março de 2020
António Luís Carvalhão
Liliana de Páris Dias
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[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados (que no geral não se mantêm, porque interessa o texto em si), sendo que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[2] Nota de rodapé (1) do parecer, com o seguinte teor: ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., 2009, UCE, p. 779, notas 3 e 4 ao art.º 309º.
[3] Nota de rodapé (2) do parecer, com o seguinte teor: ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., 2009, UCE, p. 307, notas 16 e 17 ao art.º 120º.
[4] Nota de rodapé (3) do parecer, com o seguinte teor: SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 2008, p. 126.
[5] Cfr. Ac. deste TRP de 17.10.2012, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 833/03.6TAVFR.P2 e Ac. do TRC de 03.07.2013, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1450/11.2TACBR.C1 (escrevendo-se neste último que o despacho de não pronúncia haverá que simplesmente se conformar pelo dever enunciado pelo n.º 5 do art.º 97.º do mesmo compêndio legal, e, dessarte, apenas deixar revelar, pelo respetivo teor, de modo objetivo e comummente percetível, a respeitante linha de raciocínio lógico-argumentativo e a própria razoabilidade jurídica).
No entanto, é sabido que vária jurisprudência vem exigindo sejam elencados os factos suficientemente indiciados e os factos não suficientemente indiciados, embora divergindo depois quanto às consequências resultantes da não observância dessa exigência (cfr. por exemplo Ac. desta Secção do TRP de 09.01.2019, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1069/14.6TAPRT.P1).
[6] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 74/12TAVLN.G1.
[7] Vd. Acórdãos deste TRP de 17.10.2012 e 12.10.2016, consultáveis em www.dgsi.pt, processos nº 833/03.6TAVFR.P2 e nº 276/11.8TAVLC.P2.
[8] Note-se que o legislador não criminaliza o “abuso de confiança de uso”.
[9] Consultável em www.dgsi.pt processo nº 1631/05-1.
[10] No mesmo sentido o acórdão deste TRP de 02.12.2009, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 542/08.0TAVRL.P1.
[11] Volume II, Almedina, 2015 – 2ª edição, pág. 131.
[12] Cfr. Ac. do TRE de 18.06.2013, citado em nota (4) ao art.º 205º do Código Penal consultável em www.pgdl.pt.
[13] Vd. a propósito Ac. do TRE de 16.10.2012, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 76/08.2MAPTM.E1.