Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0210483
Nº Convencional: JTRP00035375
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: BURLA
BURLA AGRAVADA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RP200301220210483
Data do Acordão: 01/22/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J ESPOSENDE
Processo no Tribunal Recorrido: 331/99
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CP95 ART205 ART217 ART218 N2 C.
Sumário: No crime de burla, a coisa, objecto do crime, transita para o agente, por entrega voluntária do proprietário ou detentor, em virtude de uma conduta enganosa do primeiro, por artifício fraudulento. Não é indispensável uma transmissão, mas o simples facto de se pôr à ordem ou dispor de outrem um objecto, cuja disponibilidade se obteve por artifício fraudulento, consumando-se o crime com esta entrega (material ou jurídica).
É elemento constitutivo do crime de burla a existência de um enriquecimento ilegítimo e que resulte prejuízo patrimonial para o sujeito passivo ou terceiro, e uma sucessiva relação de causa e efeito entre os meios empregues e o erro ou engano e entre estes e os actos que vão defraudar directamente o património do lesado ou de terceiro.
Integra o crime de burla a conduta do arguido que, aproveitando-se da relação de confiança estabelecida com o ofendido e devido ao estado de saúde deste, muito debilitado, o convenceu a entregar-lhe a quantia de 400.000$00, tendo alegado para tanto que seria mais seguro entregar-lhe o dinheiro para ela guardar, em vez de o confiar aos irmãos, e solicitou-lhe documentos dizendo-lhe que eram para efectuar o depósito numa instituição bancária, o que jamais fez.
Provado que o ofendido que já vivia em condições precárias, numa casa pequena, sem água canalizada nem electricidade, tendo como único rendimento a pensão de sobrevivência de 10.000$00, sendo sustentado pela irmã, o que era do conhecimento da arguida, ao ser despojado da quantia de 400.000$00, ficou ainda numa situação mais precária, sem possibilidade de prover às suas despesas, incluindo as relativas aos internamentos hospitalares, o que leva a concluir ter ficado, em consequência da actuação delituosa da arguida, numa situação económica difícil, ocorrendo assim a qualificação do crime de burla (artigo 218 n.2 alínea c) do Código Penal).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do PORTO

I – RELATÓRIO

No Tribunal da Comarca de....., em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, foi julgada a arguida:

MANUELA....., casada, enfermeira, nascida em 26 de Agosto de 1953 na freguesia de....., concelho de....., residente na Rua....., em....., titular do B.I. nº......
Por acórdão de fls.119 a 134, foi a arguida condenada pela autoria de um crime de burla qualificada (artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2 alínea c) do Código Penal), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, na condição de, no prazo de 90 dias, contados do trânsito em julgado desta decisão, a arguida pagar ao ofendido José..... a quantia de 450.000$00 (quatrocentos e cinquenta mil escudos), correspondente ao valor dos prejuízos que lhe causou.

A arguida interpôs recurso ordinário (fls.147), em cuja motivação, concluiu, em síntese:
a) - O tribunal julgou incorrectamente os pontos da matéria de facto enumerados na motivação de I a IX;
b) - O depoimento prestado pelo conjunto das testemunhas, designadamente pelas declarações do ofendido, sua irmã e Otilio...., impõem uma decisão diferente em sede da matéria de facto, de modo a que a mesma não integre, porque manifestamente impossível, a previsão da norma do crime de burla qualificada;
c) - A qualificação jurídica dos factos efectuada no acórdão recorrido, bem como a qualificação pela alínea c) do nº2 do art.218 do CP mostram-se incorrectamente efectuadas, pelo que não podia a recorrente ser condenada pelo crime de burla a gravada, violando-se o disposto nos arts.217, 218 nº2 c) CP;
d) - Da matéria de facto constante dos depoimentos das testemunhas e declarações do ofendido resulta que a recorrente deveria quando muito ser condenada pelo crime de abuso de confiança, previsto no art.205 nº1 do CP;
e) - A determinação da indemnização a atribuir ao lesado foi arbitrária e exageradamente determinada, pelo que o acórdão recorrido violou o disposto no art.51 nº1 a) CP, devendo a indemnização ser reduzida;
f) - O acórdão recorrido fez errada aplicação das normas do art.410 nº2 a) CPP e dos arts.51, 205 nº1, 217 e 218 do CP.
Na resposta, o Ministério Público preconizou a improcedência do recurso.
Realizou-se a audiência, mantendo-se a instância válida e regular.

II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. - Considerando que o objecto e âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação as questões essenciais que importa decidir, são as seguintes: erro na apreciação da prova; o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a qualificação jurídica dos factos (crime de burla, burla agravada ou abuso de confiança); a indemnização arbitrada ao ofendido, como dever da suspensão da execução da pena de prisão.

2.2. – O julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da 1ª instância:

2.2.1 - Os factos provados:

1 – A arguida exerce a actividade profissional de enfermeira, fazendo-o, à data dos factos, no Centro de Saúde da...., concelho de.......
2 – O ofendido José..... é doente, pelo que se deslocava e desloca, com frequência, a esse Centro de Saúde para fazer curativos.
3 – Era a arguida que, normalmente, fazia esses curativos ao ofendido, quer no Centro de Saúde, quer na residência deste, onde se deslocava às vezes para o efeito, incluindo aos fins de semana.
4 – Tal relação profissional criou entre o ofendido e a arguida uma relação de confiança, desta conhecida.
5 – No dia 13 de Setembro de 1999, cerca das 14 horas, a arguida deslocou-se uma vez mais a casa do ofendido, sita na Rua....., ....., ......, para lhe fazer curativos.
6 – Era do conhecimento da arguida que o ofendido tinha recebido, através do seu irmão, poucos dias antes dessa data, a quantia em dinheiro de esc.400.000$00 (quatrocentos mil escudos) – em notas do banco de Portugal – proveniente da Segurança Social, que se destinava a custear as suas despesas de saúde e que ele guardara na mesa de cabeceira do seu quarto de dormir, o que ela também sabia.
7 – Tinha também a arguida conhecimento que o ofendido ia ser internado, poucos dias depois, no Hospital....., em....., a fim de ser submetido a uma intervenção cirúrgica.
8 – Aproveitando-se da relação de confiança existente entre ambos e do facto de o ofendido, devido ao seu estado de saúde e à proximidade da prevista intervenção cirúrgica, se encontrar muito debilitado quer física quer psicologicamente, a arguida, alegando que seria mais seguro ser ela a guardar-lhe aquela importância em vez de a entregar aos seus irmãos, que certamente a gastariam em pouco tempo, convenceu o ofendido a entregar-lhe aquela quantia de 400.000$00 em dinheiro, que este retirou da mesa de cabeceira e lhe passou para a mão.
9 – Para reforçar a confiança do queixoso na restituição do dinheiro e nas suas boas intenções, a arguida solicitou-lhe o bilhete de identidade e o cartão da Segurança Social, dizendo-lhe que tais documentos serviriam para efectuar o depósito daquela quantia numa instituição bancária e assim a salvaguardar dos irmãos dele, depósito esse que jamais efectuou.
9 – Ao actuar pela forma descrita, usando aquele estratagema para deitar a mão ao dinheiro do ofendido, a arguida fê-lo com a intenção de se apropriar, como se apropriou, da mencionada quantia de 400.000$00 em dinheiro, desígnio que já formulara.
10 – A arguida apropriou-se dessa quantia em dinheiro, fazendo-a sua, integrando-a no seu património e dando-lhe destino que não foi possível apurar, bem sabendo que obtinha para si um benefício patrimonial indevido à custa do correspectivo empobrecimento do ofendido.
11 – Agiu a arguida deliberada e conscientemente, apropriando-se da quantia em dinheiro de 400.000$00 que sabia pertencer ao ofendido, contra a vontade deste, aproveitando-se do facto de ele ter concordado que ela lhe guardasse tal importância durante o período em que estivesse internado, comportamento que o induziu a praticar já com aquele seu propósito, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
12 – O ofendido vive em condições precárias, numa casa pequena, sem água canalizada nem electricidade, tendo como único rendimento a quantia de 10.000$00 mensais a título de pensão de sobrevivência, sendo sustentado por uma sua irmã, o que era do perfeito conhecimento da arguida.
13 – Ao ser despojado daquela quantia de 400.000$00 pela arguida, ficou o ofendido numa situação ainda mais precária, nomeadamente para custear as suas despesas com a saúde e alimentação, vendo-se reduzido à mencionada pensão de 10.000$00 por mês e ao apoio da irmã.
14 – Sabia a arguida que, à míngua dessa quantia, ficava o ofendido reduzido ao rendimento de 10.000$00 mensais e ao apoio familiar para poder manter-se e sobreviver, deixando-o em situação de, por si só, não poder prover às suas despesas, que incluíam as relativas aos internamentos hospitalares.
15 – Em data indeterminada, situada entre 27 de Setembro e 26 de Novembro de 1999, período em que o ofendido esteve internado no Hospital....., sendo contactada por Júlio....., irmão do ofendido, que a informou que este estava necessitado de dinheiro para fazer face a algumas despesas, entregou-lhe 35.000$00 em dinheiro para que os fizesse chegar, como ele fez, ao José......
16 – A arguida exerce a profissão de enfermeira há mais de 20 anos, sendo tida como boa profissional e dedicada aos doentes, por médicos que trabalharam no Hospital de......, em....., ao tempo que aquela também ali exercia funções.
17 – Vive com o marido e com uma filha, com cerca de 18 anos de idade, que sofre de neoplasia incurável, em casa arrendada. Aufere o vencimento mensal ilíquido de cerca de 400.000$00 mensais.
18 – A arguida é de condição económica e social médias. É delinquente primária.
19 – Desde 14 de Setembro de 1999 a arguida entrou de licença por doença (baixa médica), não mais comparecendo no Centro de Saúde da..... – seu local de trabalho desde 1 de Agosto de 1999, por aí ter sido colocada, a seu pedido, por transferência – até hoje, ressalvados dois dias no passado mês de Abril, em que trabalhou, após os quais gozou 22 dias úteis de férias, entrando novamente de “baixa”.
20 – No dia 31 de Dezembro de 1999, sabedora de que o ofendido havia instaurado procedimento criminal contra si – queixa apresentada no Posto da GNR de..... em 22.12.99 – a arguida deslocou-se a casa deste, comprometendo-se a restituir-lhe a importância de 400.000$00, o que, porém, não fez até hoje.
21 – Pelo menos desde 14 de Setembro de 1999 a arguida tem enfrentado problemas de saúde, exacerbados pela grave doença de sua filha, que tem acompanhado a Lisboa, por diversas vezes, a consultas médicas e tratamentos.
22 – A chamada de atenção da comunidade, por parte da arguida, para a grave situação de carência em que o arguido vivia, numa casa sem janelas ou portas, sem saneamento, sem electricidade ou água canalizada, nomeadamente através dos contactos que estabeleceu junto do Presidente da Junta de Freguesia da..... e do, então, Presidente da Câmara Municipal de....., contribuiu para a melhoria dessas condições.
2.2.2 – Os factos não provados:

A arguida tenha entregue a quantia de 400.000$00, pertencente ao queixoso, ou qualquer outra importância, ao seu advogado, nomeadamente após ter sido notificada da acusação deduzida nestes autos, ou em qualquer outro momento.

2.2.3 – A motivação dos factos:

“A convicção do tribunal acerca dos factos provados baseou-se:
- Nas declarações do ofendido, José....., que esclareceu a forma ardilosa como a arguida o convenceu a entregar-lhe a quantia de 400.000$00 e a deixá-la à sua guarda e de como logo demonstrou ser sua intenção apropriar-se desse dinheiro em proveito próprio, sempre recusando proceder à sua restituição, ressalvadas as promessas feitas em 31 de Dezembro de 1999, depois de ter tomado conhecimento da participação criminal contra si.
Pronunciou-se ainda quanto à sua precária situação económica e de saúde e ao indispensável apoio que lhe vem sendo prestado pela sua irmã, nomeadamente no que se refere à sua alimentação diária, que aquela lhe fornece.
- No depoimento da irmã do ofendido, Maria....., que estava na casa do José.... quando o irmão entregou à arguida o dinheiro, que retirou da mesa de cabeceira onde o guardava, facto que presenciou, referindo tê-lo comentado ainda no mesmo dia com ele, ao que este respondeu, nessa altura: - “Se ela o tirou, ela volta a dá-lo!”
Disse ainda esta testemunha que, no seu entender «a arguida já estava com aquele fito...» de se apoderar do dinheiro do seu irmão.
Referiu-se ainda à precária situação do ofendido e ao facto de ser ela quem lhe assegura, ao menos, uma refeição diária e o apoio de que ele carece face à sua debilitada saúde.
- No depoimento de Otílio....., Presidente da Junta de Freguesia da....., conhecedor da precária situação social e económica do ofendido, que esclareceu que ele estava muito debilitado, física e psicologicamente, à época dos factos, tendo-lhe chegado a falar na possibilidade de se suicidar, referindo também ter-lhe a arguida solicitado apoio para a melhoria das condições de vida do ofendido.
- No depoimento de Alberto....., ex-Presidente da Câmara Municipal de....., que mencionou haver sido contactado pela arguida no sentido de serem melhoradas as condições de habitabilidade da casa do arguido, que ele depois visitou, na sequência do que foram ali realizados vários melhoramentos.
- No depoimento de Júlio....., irmão mais novo do ofendido, a quem a arguida fez entrega dos 35.000$00 referidos no elenco dos factos provados e a quem disse que, posteriormente, restituiria os 400.000$00.
- Nos depoimentos das testemunhas de defesa, Natália....., médica, que conhece a arguida há mais de 30 anos e com quem trabalhou no Hospital de....., referindo-se às suas qualidades profissionais como enfermeira, aos rendimentos que tal actividade lhe proporciona e à forma altruísta como sempre a viu tratar os doentes e António....., médico reformado, que mencionou o facto de conhecer a arguida do Hospital de....., onde exerceu as funções de enfermeira durante muitos anos, pronunciando-se acerca do seu profissionalismo, seriedade e honestidade, apesar de, segundo disse, ter sido sempre uma mulher infeliz, triste e sóbria e de ter uma filha que sofre de doença grave e incurável, factos que, de um modo geral, foram confirmados pelas testemunhas Carmen....., parturiente e depois amiga da arguida e António J....., Chefe de Finanças aposentado, amigo pessoal da arguida há vários anos.
- Nas declarações da arguida, que confessou ter-lhe o queixoso entregue a quantia de 400.000$00 para que a guardasse, negando, porém, qualquer intenção de dela se apropriar, antes dando a versão de que sempre foi seu objectivo restituir aquela quantia até saber da queixa crime, momento em que decidiu não devolver o dinheiro até que visse o seu nome “limpo” com o julgamento do caso.
Disse ainda a arguida que entregou a quantia de 400.000$00 ao seu advogado, pouco depois de ter sido notificada da acusação nestes autos e que não a restituiu ao queixoso em face da queixa-crime, nem a depositou à ordem deste processo, ou consignou em depósito, por não saber que o poderia fazer (donde se deduziria, a ser verdade, que o seu advogado também não a teria esclarecido dessa possibilidade).
Referiu-se à grave doença da filha, às deslocações a Lisboa para consultas e tratamentos, à sua situação de “baixa médica” e ao facto de, desde 14.09.99, apenas ter trabalhado 2 dias e ter gozado férias de seguida, com nova “baixa” até agora.
Baseou-se ainda na apreciação do documento de fls. 6 e 7, no que se refere à data de apresentação da participação criminal pelo queixoso (22 de Dezembro de 1999), e de fls. 13, datado de 23.12.99, onde são solicitadas diligências à GNR de..... para localização e interrogatório da arguida, através das quais esta terá sabido, ou desconfiado, da existência da queixa-crime contra si.
No que se refere ao facto não provado:
Foi determinante a ausência de qualquer prova sobre o mesmo, apenas referido pela arguida nas suas declarações e, posteriormente, pelo seu defensor nas respectivas alegações orais, sendo certo que tal situação seria completamente ilógica, nomeadamente em função da gravidade dos factos imputados à arguida, em contraposição com a potencial valoração atenuativa da integral restituição do dinheiro, nomeadamente se efectuada logo após a notificação da acusação, ou mesmo até ao início da audiência de julgamento".

2.3 - Do recurso da matéria de facto:

A revisão do Código de Processo Penal pela Lei 59/98 de 25/8 instituiu um novo regime jurídico sobre o recurso da matéria de facto das decisões dos Tribunais Colectivos, como resulta da conjugação das normas dos arts.363, 412, 428, 431.
Não obstante a manutenção do texto do art.363, os elementos histórico e sistemático de interpretação das alterações introduzidas pelo diploma legal apontam para que a documentação da prova sirva não só como instrumento de auxílio do Tribunal de 1ª Instância, mas agora essencialmente de efectiva garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Deste modo, após a revisão de 1998, o Tribunal da Relação passou a reapreciar a prova produzia em audiência de julgamento em 1ª Instância, com base na sua gravação e/ou transcrição, independentemente dos vícios do nº2 do art.410 do CPP.
A recorrente, ao invocar o erro na apreciação da prova, mais não fez do que atacar o princípio da livre apreciação da prova, discordando da valoração efectuada pelo Tribunal a quo, designadamente das declarações e depoimentos prestados em audiência.
Ora, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.412 nº2 e 4 do CPP.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao Tribunal da 1ª Instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Também FIGUEIREDO DIAS para quem a decisão do juiz há-de ser sempre “uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" (Direito Processual Penal, vol.I, ed. De 1974, pág.204).
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado.
E para que não se torne arbitrária, a lei impõe a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, “com uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal“ (art.374 nº2 do CPP).
Ao discorrer sobre o princípio da livre apreciação da prova, GERMANO MARQUES DA SILVA sublinha que a convicção do julgador, sendo sempre uma convicção pessoal, deve ser objectivável e motivável, “não uma objectividade científica (sistemático-conceitual e abstracto-generalizante), é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal)“ (Curso de Processo Penal, II, pág.132 e 133).
Por isso, não é concebível que uma correcta exposição sobre os “critérios lógicos que constituíram o substracto racional da decisão“ colida com as regras da experiência.
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Como se refere no Ac da RC de 6/3/2002 (C.J. ano XXVII, tomo II, pág.44), “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".

Os pontos de factos que a recorrente considera incorrectamente provados (art.412 nº3 a) CPP), são os elencados nos números 6), 8), 9), 10), 11), 12), 14), 16) e 21) da rubrica “ os factos provados“.
Sobre eles, o Tribunal baseou a sua convicção nas declarações do ofendido, José....., no depoimento da testemunha Maria..... e nas declarações da arguida, apenas na parte em que confessou a entrega pelo ofendido da quantia de 400.000$00 para que a guardasse.
Ora, a recorrente ao invocar o erro na apreciação da prova, mais não fez do que atacar o princípio da livre apreciação, contrapondo a sua valoração da prova, mas que é processualmente irrelevante.
De resto, o acórdão recorrido apresenta uma lógica impecável, tanto na descrição dos factos provados e não provados, como na fundamentação, onde se faz um exaustivo exame crítico das provas, através do qual o Tribunal a quo objectivou a sua convicção, de forma consistente, sem que se mostrem violadas as regras da experiência comum.

2.4. - Do vício do art.410 nº2 alínea a) do CPP:

A recorrente limitou-se a alegar que o acórdão recorrido fez errada aplicação da norma do art.410 nº2 alínea a) do CPP, sem que houvesse justificado tal asserção.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tributário do princípio acusatório, tem de ser aferido em função do objecto do processo, delimitado pela acusação ou pronúncia, o que significa que só ocorre quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação.
Daí que a insuficiência consista em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão, por se verificar uma lacuna, deficiência ou omissão no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.
Noutra formulação, podendo e devendo fazer-se uma total reconstrução dos factos com vista à subsunção na concreta previsão legal, houve uma falha naquela reconstrução, o que necessariamente se repercute na qualificação jurídica dos mesmos, acarretando anormal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual, a qual, por isso, não poderá ser a decisão justa que devia ter sido proferida (cf., por ex., Ac STJ de 13/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.199, Ac RP de 27/9/95, C.J. ano XX, tomo IV, pág,231, Ac RC de 27/10/99, C.J. ano XXIV, tomo IV, pág.68).
A insuficiência da matéria de facto para a decisão não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.
Porém, os vícios do art.410 nº2 do CPP têm de resultar do texto da decisão recorrida, “por si ou conjugada com as regras da experiência comum”, como é entendimento jurisprudencial uniforme, sem recurso a elementos que lhe sejam externos (cf., por ex., Ac STJ de 9/4/97, BMJ 466, pág.392, de 27/1/98, BMJ 473, pág.178, de 9/12/98, BMJ 482, pág.68), não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, ou até mesmo em audiência, nem a documentos (Ac STJ de 19/12/90, BMJ 402, pág.232, de 22/9/93, C.J. ano I, tomo III, pág.210).
E como decidiu o Tribunal Constitucional, não são inconstitucionais as normas resultantes da conjugação dos arts.433 com o corpo do nº2 do art.410 do CPP, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que “o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si ou conjugada com as regras da experiência comum” (Ac TC de 15/10/98, DR II Série de 13/11/98).
Por outro lado, tais vícios não podem, designadamente, ser confundidos com a divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos do art.127 do CPP e com respeito pelo disposto no art.125 CPP, o Tribunal a quo alcançou sobre os factos.
Como se refere no Ac STJ de 9/12/98, BMJ 482, pág.68, “quando o recorrente pretende contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal colectivo ou do júri teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invocar como vício a alínea a) do art.410 do CPP, está a confundir a insuficiência da matéria de facto com insuficiência da prova para decidir, sendo a sua convicção irrelevante”.
Do texto da decisão recorrida não se evidencia tal vício, e, por outro lado, a pretensão da recorrente não colhe, porque baseada em elementos externos ao próprio acórdão, socorrendo-se, para tanto, nos depoimentos prestados em audiência.
Neste contexto, não se verificando erro na apreciação da prova, nem o vício da insuficiência, a decisão da matéria de facto tem-se por definitivamente fixada, sem que mereça qualquer reparo.
2.5. – Do recurso de Direito:

A recorrente discorda da qualificação jurídica dos factos, que o Tribunal a quo enquadrou no crime de burla qualificada (arts.217 e 218 nº2 alínea c) do CP), referindo que quando muito deveria ter sido condenada pelo crime de abuso de confiança (art.205 do CP).
Porém, não lhe assiste razão, pois o acórdão recorrido contém uma fundamentação jurídica inatacável, analisando cada um dos elementos do tipo legal do crime de burla, de forma dogmaticamente correcta e com uma consistente retórica-argumentativa.
O crime de burla (art.217 CP), inserido no capítulo dos crimes contra o património em geral, pressupõe, como elementos típicos: a intenção do agente em obter, para si ou terceiro, um enriquecimento ilegítimo (segundo o critério do enriquecimento sem causa); que o agente para tal astuciosamente induza em erro ou engano o ofendido; e que através desses meios determine o ofendido à prática de actos causadores de prejuízos patrimoniais.
O bem jurídico protegido é o património, mas para obter essa lesão é preciso provocar uma situação que limite a liberdade de disposição da pessoa, limitação esta conseguida através de erro ou engano, provocados astuciosamente.
Pune-se, assim, a acção não só pelo facto de lesar o património, mas também pela forma como a lesão é conseguida (desvalor da acção).
No crime de burla, a coisa, objecto do crime, transita para o agente, por entrega voluntária do proprietário ou detentor, em virtude de uma conduta enganosa do primeiro, por artifício fraudulento.
A entrega da coisa significa um acto material pelo qual o objecto passa das mãos do burlado para as do agente ou de terceiro, ou seja, posto à sua disposição. Não é indispensável uma transmissão, mas o simples facto de se pôr à ordem ou dispor de outrem um objecto, cuja disponibilidade se obteve por artifício fraudulento, consumando-se o crime com esta entrega (material ou jurídica).
Contudo, não basta o simples erro ou engano, só relevando quando provocados “astuciosamente”, ou seja, através de manobra fraudulenta, que significa maquinação, um facto material acrescentado à mentira para lhe reforçar credibilidade.
E tendo o enriquecimento resultado necessariamente de erro ou engano, será sempre ilegítimo.
Em suma, para a verificação do crime de burla há que considerar: em primeiro lugar uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha o erro ou engano o lesado; em segundo lugar, deverá existir um enriquecimento ilegítimo e que resulte prejuízo patrimonial para o sujeito passivo ou terceiro; finalmente uma sucessiva relação de causa e efeito entre os meios empregues e o erro ou engano e entre estes e os actos que vão defraudar directamente o património do lesado ou de terceiro.
Em termos factuais, comprovou-se uma deslocação patrimonial da quantia de 400.000$00 do ofendido para a arguida.
Esta deslocação foi obtida de forma fraudulenta ou astuciosa, na medida em que a arguida, aproveitando-se da relação de confiança estabelecida com o ofendido e devido ao seu estado de saúde, por se encontrar muito debilitado, convenceu-o a entregar-lhe aquele montante.
Para tanto, alegou que seria mais seguro entregar-lhe o dinheiro para ela o guardar, em vez de o confiar aos irmãos, e solicitou-lhe documentos dizendo-lhe que eram para efectuar o depósito numa instituição bancária, o que jamais fez.
Daí o inevitável enriquecimento ilegítimo, com o consequente prejuízo patrimonial, sendo patente a dupla causalidade entre os meios entregues e o engano, e entre estes e a defraudação do património, tendo a arguida agido com a intenção de apropriação.
Por isso, a actuação da arguida reconduz-se ao tipo legal do crime de burla, e não ao de abuso de confiança, como chegou a reivindicar a recorrente na motivação do recurso.
Com efeito, ainda que ambos os delitos sejam de “realização intencionada”, a sua distinção radica na causa subjacente à entrega da coisa.
Enquanto que no abuso de confiança a entrega é feita voluntariamente, mas sem fraude (por título não translativo de propriedade), ficando o agente na situação de possuidor ou detentor precário, surgindo a inversão do título de posse e a intenção de apropriação em momento posterior à entrega, já na burla, embora a entrega da coisa seja também voluntária, a liberdade de disposição está, no entanto viciada, por erro ou engano provocados astuciosamente pelo sujeito activo.
Ou seja, no crime de abuso de confiança, a apropriação incide sobre uma coisa entregue licitamente ao agente, no crime de burla a actividade astuciosa que provoca o erro ou engano sobre os factos têm de preceder o enriquecimento ilegítimo e de certa maneira provocá-lo.
O artigo 218 nº2 alínea c) do CP qualifica o crime de burla se “a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.
O conceito operativo de “difícil situação económica”, também utilizado como circunstância modificativa agravante do crime de furto (art.204 nº1 i) CP), como “conceito objectivo-normativo”, carece de um preenchimento valorativo, apelando a uma “punctualização tópica” em face das circunstâncias concretas do caso, cuja agravação, em termos de política criminal, radica numa especial protecção à vítima.
Comprovou-se que o ofendido já vivia em condições precárias, numa casa pequena, sem água canalizada, nem electricidade, tendo como único rendimento a pensão de sobrevivência de 10.000$00, sendo sustentado pela irmã, o que era do conhecimento da arguida. E ao ser despojado da quantia de 400.000$00, ficou ainda numa situação mais precária.
Como se observou no acórdão recorrido, não fosse o apoio da sua irmã, estaria em risco sério a própria subsistência do ofendido.
Por outro lado, está demonstrado que a arguida sabia que, sem essa quantia, o ofendido ficava reduzido à sua pensão e ao apoio familiar para sobreviver, sem possibilidades de prover às suas despesas, incluindo as relativas aos internamentos hospitalares, verificando-se, assim, o nexo de causalidade entre a sua conduta e o resultado, bem como a culpa, na modalidade do dolo directo (cf., por ex., Ac STJ de 19/5/95, C.J. ano III, tomo I, pág.183, de 27/6/96, C.J. ano IV, tomo II, pág.202).
Nesta medida, porque o ofendido, em consequência da actuação delituosa da arguida ficou em situação económica difícil, ocorre a qualificação do crime de burla (art.218 nº2 c) do CP).

O Tribunal a quo condenou a arguida na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, tendo decretado a suspensão da execução pelo período de 3 anos, condicionada ao dever da arguida pagar ao ofendido, no prazo de 90 dias, a partir do trânsito, a quantia de 450.000$00, correspondente aos valor dos prejuízos causados.
A recorrente insurge-se contra a indemnização arbitrada, por entender exagerada, alegando que o tribunal violou o art.51 nº1 do CP.
Também aqui não fundamentou a recorrente em que consiste tal violação, sendo certo que a faculdade de subordinar a suspensão ao dever de pagar ao lesado uma indemnização está legalmente prevista nesta norma, a qual não é inconstitucional (cf., por ex., Ac TC de 2/11/99, DR II série de 22/2/2000) e não tem como pressuposto formal que haja sido instaurada acção cível, em processo de adesão.
Por seu turno, não se mostra postergado o princípio da razoabilidade, postulado no art.51 nº2 do CP, face à comprovada condição económica e social da arguida.
A obrigação de pagar uma indemnização ao lesado, embora não constitua um efeito penal da condenação, assume natureza penal, por se integrar no instituto da suspensão da pena e, por conseguinte, como uma função adjuvante da finalidade da punição.
O montante da indemnização, para o efeito, deve obedecer aos critérios regulados na lei civil, por forma a corresponder o mais que possível ao que resulta da consideração desses critérios e não os exceder, e quanto à medida desse montante, ao prazo e modalidade de pagamento, à função específica ínsita naquela pena de substituição.
Pois bem, o Tribunal a quo fixou a quantia de 450.000$00, correspondente ao montante global do prejuízo, incluindo os incómodos e angústias sofridos pelo ofendido, abrangendo, assim, tanto os danos patrimoniais, como os não patrimoniais.
Tendo a arguida, em 26/11/99, apenas devolvido 35.000$00, significa que o tribunal valorou os danos não patrimoniais na importância de 85.000$00, o que atendendo aos critérios dos arts.483, 494, 496, 562, 563 e 566 do Código Civil se revela manifestamente escassa.
Como se vê, contrariamente à posição da recorrente, a indemnização arbitrada não é exagerada, pecando antes por defeito.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Negar provimento ao recuso e confirmar o douto acórdão recorrido.
2)
Condenar a recorrente nas custas, fixando-se em 6 Ucs a taxa de justiça.
3)
Remunerar o Ex.mo advogado, defensor oficioso com os honorários constantes da tabela anexa à Portaria n.1200-C/2000.
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PORTO, 22 de Janeiro de 2003
Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues
Orlando Manuel Jorge Gonçalves
José Manuel Baião Papão
Joaquim Costa de Morais