Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3858/11.4TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
OBRIGAÇÕES
PERÍODO DE CESSÃO
RECUSA
Nº do Documento: RP202106173858/11.4TBSTS.P1
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O insolvente a quem haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante fica obrigado, no período da cessão, a entregar imediatamente ao fiduciário os rendimentos, obtidos a qualquer título, durante esse período que excedam o valor judicialmente fixado para lhe assegurar, bem como ao seu agregado familiar, um sustento minimamente digno.
II - Antes de terminado o período de cessão, o juiz, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, deve recusar a exoneração a verificar-se alguma das circunstâncias elencadas nas alíneas a), b) ou c) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3858/11.4TBSTS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. No âmbito do processo que, a requerimento do devedor B…, decretou a sua insolvência, e tendo o mesmo requerido exoneração do passivo restante, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Face a todo o exposto, decide-se recusar ao devedor insolvente a exoneração do seu passivo restante, nos termos e com os efeitos previstos no art.º 243.º e 245.º (este “a contrario”), ambos do CIRE.-
Custas pelo insolvente. -
Notifique, registe e publicite (art.º 247.º do CIRE)”.
2. Inconformado com essa decisão, dela veio o insolvente interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
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………………………………
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se existe ou não fundamento para determinar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante liminarmente deferida;
- se podia o juiz conhecer oficiosamente dos respectivos requisitos e determinar a recusa da exoneração, não tendo a mesma sido requerida.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em primeira instância foi considerada assente factualidade com relevância para a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, decisão que não foi recursivamente impugnada:
a) B…, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, foi declarado insolvente no âmbito do presente processo, após se ter apresentado nessa conformidade, em 14.09.2010 (v. fls. 48);
b)Em 16.09.2011, o Tribunal proferiu despacho convidando o devedor apresentante a esclarecer a razão pela qual identificou o seu estado civil como “divorciado” quando na certidão do seu assento de nascimento junto não constava qualquer averbamento do alegado divórcio (v. fls. 65);
c)Nessa decorrência, veio o devedor referir que apesar do divórcio ainda não se encontrar averbado, já teria dado entrada na Conservatória do Registo Predial de Braga, entendendo que os efeitos patrimoniais retroagem à data da propositura da acção, tudo como flui da exposição de fls. 69 dos autos;
d)Aos 21.09.2011 foi proferida sentença de insolvência (fls. 71-74, cujo teor aqui se dá por reproduzido), tendo ali sido nomeado administrador da insolvência C…, e realizada assembleia de credores em 30.11.2011 (onde esteve presente o mandatário do insolvente), ali foi referido pelo identificado administrador da insolvência que teria tido conhecimento da existência de um processo de partilha do insolvente, mas cujo número e juízo desconhecia, e requereu um prazo de 5 dias para terminar o seu relatório, o que veio a ser deferido pelo Tribunal, tudo conforme consta da respectiva acta de fls. 136-137 dos autos;
e) Posteriormente, veio o AI juntar exposição dando conta de que o insolvente teria sido gerente de sociedades que tiveram insucesso (D…, Lda., e E…, Lda.), e que daí resultou reversões da Segurança Social e do Estado por dívidas de impostos, bem como responsabilidade em avales prestados, e que tendo o insolvente se divorciado, terá realizado partilha da casa de morada de família, a qual foi adjudicada à sua ex- mulher, mais tendo o AI aí referido que haveria agora que analisar se de tal facto havia resultado prejuízo para a massa insolvente e, em conformidade, proceder ou não à resolução da partilha, tudo conforme teor de fls. 141-142 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
f)Na assembleia de credores realizada em 29.12.2011 (continuação da anterior) o AI referiu que se encontrava a diligenciar pela viabilidade da liquidação do património, mais concretamente do bem imóvel, tendo ali sido dado por deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação do activo e concedido o prazo de dez dias para o AI se pronunciar quanto ao pedido de exoneração do passivo restante (cfr. fls. 143-144);
g)O Ministério Público pronunciou-se contra a concessão liminar da pretensão exonerativa (fls. 146), e em 14.03.2012 é proferido despacho inicial, admitindo o pedido exonerativo formulado pelo insolvente, no qual nada se esclareceu ou fixou no que concerne ao rendimento disponível/indisponível a considerar para efeitos de cessão (v. fls. 153, cujo teor aqui se dá por reproduzido);
h)Aos 19.02.2016, o insolvente vem aos autos solicitar o encerramento do processo, dado que não lhe podia ser imputado atraso na liquidação do activo, e o pedido de exoneração já lhe havia sido admitido em 15.03.2012 (cfr. fls. 221 verso);
i)Em face do facto aludido na alínea anterior, o Tribunal profere o despacho de fls. 224, cujo teor aqui se dá por reproduzido, na sequência do qual, veio a ser clarificado que o início do período de cessão operaria em 23.01.2017, e nesta decorrência foi solicitado ao insolvente que actualizasse o seu quadro vivencial (cfr. fls. 236, cujo teor aqui se dá por reproduzido); j)A fls. 244 dos autos, o insolvente vem referir que se encontra a trabalhar por conta de outrem com data de admissão em 05.12.2016, com um vencimento base de € 800,00, que tem uma filha maior, estudante no Ensino Superior, e que vive em casa de familiares (emprestada) – cfr. fls. 244-245 cujo teor se tem aqui por reproduzido;
k)Por despacho judicial datado de 04.07.2017, é fixado o valor do rendimento indisponível a considerar durante o período de cessão, em 1,5 SMN, valor a ser reportado a 12 meses do ano civil, despacho que veio a transitar em julgado (v. fls. 248 dos autos);
l)No despacho a que se alude na alínea k), é também decidida a destituição do AI que se encontrava em funções, pois que desde a sua nomeação não havia criado o apenso da liquidação e ter-se-á limitado a juntar apenso de apreensão, onde constava pretensamente apreendido o imóvel que pertencia ao insolvente e sua ex-mulher, sem que tivesse sido realizado qualquer registo a favor da massa insolvente;
m)Em face dos factos ora relatados, o Tribunal emitiu certidão à CAAJ, para os efeitos tidos por convenientes (v. fls. 248-249, cujo teor integral aqui se tem por reproduzido, e fls. 272);
n)Nomeado novo administrador da insolvência e fiduciário (Dr.ª F…), veio esta esclarecer, por exposição junta aos autos em 10.10.2017, que o insolvente havia sido casado com G… e que o divórcio foi decretado por decisão proferida e transitada em julgado no dia 12-10-2011 (após a sua apresentação à insolvência), e que nesse mesmo dia, já após a declaração de insolvência, foi celebrada partilha do património conjugal, na qual ficou o imóvel pertença do casal adjudicada à ex-mulher, quando tal imóvel, do ponto de vista formal, veio a ser apreendido a favor da massa (conforme auto de apreensão junto aos autos) em 31.10.2011;
o) Mais informou a AI Dr.ª F… que se vê impossibilitada de resolver o negócio de partilha de património conjugal a favor da massa insolvente, uma vez que tal direito já se encontra prescrito nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do CIRE, também não detendo elementos suficientes para afirmar de forma sustentada que aquela partilha possa ser declarada nula por simulação, em razão do que lhe restou a possibilidade de notificar o insolvente para entregar à massa insolvente as tornas que terá recebido por efeitos daquela partilha, cujo recebimento pelo mesmo foi declarado no valor de € 38.178,49, tudo conforme decorre do teor de fls. 258 a 271, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;
p) Mais informou a Sr.ª AI que após a notificação do devedor insolvente para aqueles apontados efeitos, este veio referir que quando recebeu as tornas estava desempregado, e gastou esse valor com os alimentos que devia à filha, despesas escolares e de saúde, e no seu sustento básico, pois que até 2015 manteve-se desempregado;
q) Perante o relato destes factos, o Tribunal entendeu que poderia estar perante materialidade justificadora da cessação antecipada do pedido de exoneração, e determinou a audição dos intervenientes processuais a tal respeito, tendo o Ministério Público pugnado pela cessação antecipada (fls. 281), bem como a Fiduciária (fls. 331- 332, cujo teor aqui se dá por reproduzido);
r) Ouvido o insolvente, pelo mesmo foi justificado que nunca houve qualquer intuito fraudulento da sua parte e que o imóvel foi adjudicado à sua ex-mulher porque o insolvente já não detinha condições financeiras para ficar com o mesmo, e que após a sua ex-mulher ter ficado com o imóvel logrou liquidar a totalidade da dívida, após ter sido interpelada para pagar, em 11.06.2012, o montante de € 34.642,94, ao Banco H…, em razão do que deixou este de figurar como credor nestes autos, tudo conforme teor de fls. 273-276, que aqui se dá por reproduzido;
s)Por exposição de 30.10.2018, a Sr.ª AI veio propor o encerramento do processo por insuficiência da massa, atenta a inexistência de registo a favor da massa do imóvel apenas formalmente apreendido, e por considerar que uma viatura automóvel que havia sido igualmente apreendida não justificava a sua liquidação, tendo o Tribunal emitido despacho de encerramento do processo por insuficiência da massa em 19.03.2019 (cfr. fls. 277, 278, e 292);
t) Por exposição de 03.10.2019, o insolvente volta a referir que não é já detentor de qualquer valor das tornas recebidas, e que as mesmas divididas pelos anos de 2011 a 2015 em que se manteve desempregado, atento o valor de 1,5 SMN que por mês lhe estava afecto para a sua sobrevivência (e respectivo agregado), perfazia um valor mensal de € 795,39, pelo que nada teria que entregar à fidúcia – cfr. fls. 339.340;
u)Em face desta explicação, o Tribunal determinou que o insolvente procedesse à comprovação da sua situação de desempregado, o que o insolvente não fez, referindo que àquela data os membros dos Órgãos Estatutários das pessoas colectivas não tinham qualquer protecção ao nível de desemprego, e que apenas a partir do DL 12/2013, de 25.01.2013 é que foi criado tal regime, e solicitados comprovativos documentais das despesas realizadas com a sua filha durante aqueles anos, limitou-se a juntar a prova documental de fls. 349 a 362, alegando que a restante documentação que detinha teria já sido inutilizada (cfr. fls. 345 a 362, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido, para os devidos e legais efeitos.
v) Da lista junta pelo AI aquando da elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, constam reconhecidos créditos no valor global de € 125.315,89 (v. fls. 139).

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Já do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Não obstante o objectivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, figura inovadora que o CPEREF não previa, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.
Ou seja: através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, de, decorridos cinco anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão dos rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.
A exoneração do passivo restante constitui, deste modo, “uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”[1].
Como sustenta Luís Menezes Leitão[2], a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste», visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”[3].
Assim caracterizada a figura da exoneração do passivo restante, torna-se evidente que a sua concessão não pode ser feita de forma automática, antes estando dependente e condicionada pela necessidade de preenchimento de determinados requisitos: “a concessão da exoneração do passivo restante tem de ser pedida pelo devedor, mas depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”[4].
Para além disso, pressupõe um processamento próprio, onde se destacam, como principais fases, o pedido de exoneração, o despacho liminar ou despacho inicial e o despacho final.
Perante a formulação de pedido de exoneração do passivo restante, o juiz, ouvidos os credores e o administrador da insolvência, pronunciando-se sobre a admissibilidade de tal pedido, profere despacho liminar no qual defere ou indefere a pretendida exoneração do passivo.
Trata-se, repete-se, de um juízo liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade ou de indeferimento da exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá o pedido quando nenhuma circunstância tida pela lei como obstáculo ao seu deferimento ocorra; indeferi-lo-á quando se verifique alguma circunstância apontada pela lei como causa de indeferimento liminar, designadamente alguma das tipificadas no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
Essa decisão liminar, como a sua designação pressupõe, não se confunde com a decisão final da exoneração a que alude o artigo 244.º do CIRE, a ser proferida após o termo da cessão.
Salienta Assunção Cristas[5]: “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável”.
Dispõe o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE que “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência...”.
E o n.º 4 do mesmo dispositivo legal prescreve: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda[6], em anotação ao artigo 239.º, “o n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida.
Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património [al. a); cf., ainda, al. d)]”.
Segundo Maria do Rosário Epifânio[7], “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento de insolvência (o “período da cessão”)(...), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário(...)”.
E acrescenta a mesma autora: “o rendimento disponível é integrado por todos os rendimentos que o devedor aufira, a qualquer título[...] (art. 239.º, n.º 3, proémio), exceto[...]: os créditos previstos no art. 115º que tenham sido cedidos a terceiro, e durante o período de eficácia da cessão (art. 239.º, n.º 3, al. a)); o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar [...], (com o limite máximo, salvo decisão fundamentada do juiz em sentido contrário, do triplo do salário mínimo nacional – art. 239.º, n.º 3, al. b), i) [...], para o exercício da sua atividade profissional (art. 239.º, n.º 3, al. b) ii) e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou mais tarde (art. 239.º, n.º 3, al. b), iii)) [...]”, acrescentando a mesma autora que “Uma das obrigações que recai sobre o devedor consiste em ter de entregar de imediato ao fiduciário a parte dos rendimentos que receba e que sejam objecto de cessão artigo 239.º, n.º 4, c) do CIRE”[8].
O ora apelante apresentou-se à insolvência. Nesse requerimento indica ser de € 77.805,96 o seu passivo, alegando ser de € 0,00 o seu activo, afirmando que “...por ser uma pessoa singular, quer beneficiar da exoneração do passivo restante”.
Juntou, em anexo àquele requerimento, declaração da qual consta, entre o mais que “Tenho, igualmente, conhecimento das obrigações durante o período de cessão, estabelecidos no n.º 4 do art. 239.º do CIRE”.
Com data de 14.03.2012 foi proferido o seguinte despacho: Entendemos inexistirem fundamentos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.Assim, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante peticionado pelo devedor/insolvente e, em consequência, determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período da cessão – o rendimento disponível que os devedores venham a auferir se considere cedido ao fiduciário, Dr. C…, que ora se nomeia, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 240.º e seguintes do CIRE.
Notifique, publique e registe, nos termos do disposto no artigo 247.º do CIRE.
Em tal decisão, cuja validade não foi recursivamente questionada, nada se esclareceu ou fixou no que concerne ao rendimento disponível/indisponível a considerar para efeitos de cessão, conforme se dá conta na alínea g) da matéria considerada assente.
Só muito posteriormente, através do despacho de fls. 224, se determinou que o início do período de cessão operaria em 23.01.2017, vindo o despacho proferido a 4.07.2017, já transitado, na sequência da informação prestada pelo insolvente a fls. 244, fixar o valor do rendimento indisponível a vigorar durante o período da sessão em 1,5 SMN, valor reportado a 12 meses do ano civil.
A alegada partilha do património conjugal do ex-casal B… e G… ocorreu, na sequência do divórcio que dissolveu o casamento de ambos, na Conservatória do Registo Civil de Braga a 12.10.2011, constando do instrumento que titula a referida partilha que “O partilhante B… declara ter recebido as tornas devidas pela partilha”, esclarecendo o mesmo nos autos ter sido de € 38.178,49 o valor recebido a título de tornas.
Como resulta do ponto o) da matéria considerada assente, a administradora da insolvência, nomeada em substituição do anterior administrador, entretanto destituído, informou nos autos que, vendo-se “impossibilitada de resolver o negócio de partilha de património conjugal a favor da massa insolvente, uma vez que tal direito já se encontra prescrito nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do CIRE, também não detendo elementos suficientes para afirmar de forma sustentada que aquela partilha possa ser declarada nula por simulação”, restou-lhe a possibilidade de notificar o insolvente para entregar à massa insolvente as tornas que terá recebido por efeitos daquela partilha, cujo recebimento pelo mesmo foi declarado no valor de € 38.178,49.
A essa notificação respondeu o insolvente nos termos que constam da alínea p), o qual, por exposição de 03.10.2019, voltou a referir que não era já detentor de qualquer valor das tornas recebidas, e que as mesmas divididas pelos anos de 2011 a 2015 em que se manteve desempregado, atento o valor de 1,5 SMN que por mês lhe estava afecto para a sua sobrevivência (e respectivo agregado), perfazia um valor mensal de € 795,39, pelo que nada teria que entregar à fidúcia.
Dispõe o artigo 243.º do CIRE:
“1- Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
[...]”.
Em anotação ao artigo 243.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas, referem Carvalho Fernandes e João Labareda[9] que “...a segunda parte do n.º 3 determina que a exoneração será sempre recusada se o devedor, tendo-lhe sido determinado que preste informações sobre o cumprimento das suas obrigações, ou convocado para as prestar em audiência, não as fornecer no prazo que lhe for estabelecido, ou faltar a essa audiência, sem invocar, em qualquer dos casos, motivo razoável.
A recusa da exoneração constitui, quando se verifiquem estas situações, uma sanção para o comportamento indevido do devedor”.
Segundo o acórdão da Relação de Lisboa de 23.03.2017[10], “São [...] pressupostos da cessação antecipada da exoneração:
a)-A violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração
b)-que tal violação decorra de uma actuação dolosa ou com grave negligência do insolvente;
c)-que em consequência de tal actuação do insolvente, com dolo ou negligência grave, a satisfação dos credores da insolvência se mostre prejudicada, i.e., a verificação de um nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos”.
Importa notar que enquanto a revogação da exoneração pressupõe uma actuação dolosa do devedor faltoso, da qual resulte um prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência, a cessação antecipada do procedimento da exoneração basta-se com a culpa grave, sem necessidade de a conduta infractora revestir a modalidade de dolo, não se exigindo que o prejuízo seja relevante[11]: “a razão de ser da diferença reside, por certo, no facto de a revogação ser mais grave, nas suas consequências, por fazer cessar efeitos jurídicos já produzidos[12].
Refere a sentença sob recurso: “...conforme a Sr.ª administradora da insolvência Dr.ª F… já havia deixado consignado nos autos, não detemos elementos (probatórios) suficientemente fortes, objectivos e sustentados para que assim possamos concluir, em razão do que, para os devidos e legais efeitos, teremos que partir da circunstância afirmada e assumida/confessada pelo insolvente de que, efectivamente recebeu o valor de € 38.178,49 em 12.10.2011, é dizer, beneficiou de valor monetário substancial já depois da sua declaração de insolvência e já depois de ter formulado o pedido de exoneração do passivo restante (consta de fls. 263 dos autos que o “partilhante B… declara ter recebido as tornas devidas pela partilha”).
A ter sido assim, não há quaisquer dúvidas de que, àquela data, o insolvente teria que ter entregue aquele valor à massa insolvente, o correspondente ao valor da meação do aludido bem, e o certo é que nada entregou, alertou ou informou”.
E mais à frente, acrescenta: “Somando tudo o que se vem de dizer, legítimo se torna concluir que o insolvente não entregou, como devia e estava obrigado, à massa insolvente o valor que recebeu a título de tornas, nem o administrador da insolvência (àquela data) tratou de diligenciar pela sua efectiva apreensão, dado que apreendeu formalmente o imóvel, sem cuidar de registar tal apreensão a favor da massa, sem cuidar de atempadamente tornar/declarar ineficaz aquela partilha, etc.-“.
Tal conclusão não pode deixar de gerar estranheza e até surpresa...
A ter existido efectivamente partilha dos bens que integraram o património conjugal e a ter o insolvente recebido tornas[13], tal recebimento ocorreu em data contemporânea ou anterior a 12.10.2011, data do instrumento formal que titula a partilha.
O despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante só foi proferido a 14.03.2012 – logo, decorridos vários meses sobre o declarado recebimento das tornas -, e ainda assim sem sequer fixar o valor do rendimento disponível do insolvente, beneficiário da referida exoneração, que devia ser entregue ao fiduciário...
Só muito mais tarde o despacho de fls. 224 viria a clarificar que o início do período de cessão operaria em 23.01.2017, tendo o despacho proferido a 4.07.2017 fixado o valor do rendimento indisponível a vigorar durante o período da sessão em 1,5 SMN, valor reportado a 12 meses do ano civil, a partir do qual foi, finalmente, possível determinar o valor dos rendimentos, obtidos ou auferidos durante o período de sessão[14], que o insolvente estava obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, obrigação que decorre da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.
Não tendo as alegadas tornas sido recebidas durante o período da cessão, não constituía obrigação do insolvente proceder à sua entrega à Sr.ª fiduciária.
Como consta do ponto o) dos factos dados por assentes, a administradora da insolvência, nomeada em substituição do anterior administrador, entretanto destituído, informou nos autos que, vendo-se “impossibilitada de resolver o negócio de partilha de património conjugal a favor da massa insolvente, uma vez que tal direito já se encontra prescrito nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do CIRE, também não detendo elementos suficientes para afirmar de forma sustentada que aquela partilha possa ser declarada nula por simulação”, restou-lhe a possibilidade de notificar o insolvente para entregar à massa insolvente as tornas que terá recebido por efeitos daquela partilha, cujo recebimento pelo mesmo foi declarado no valor de € 38.178,49”.
Sobre o insolvente não recaía qualquer obrigação de entregar o valor das tornas alegadamente recebidas antes de proferido o despacho a que alude o artigo 239.º e determinado o valor do rendimento disponível, sobre o qual incide a obrigação prevista no n.º 4, alínea c) do referido normativo, não podendo a via encontrada pela Sr.ª fiduciária constituir alternativa válida para suprir eventuais prejuízos que do comportamento do primitivo administrador da insolvência, nomeado por indicação do próprio devedor que se apresentou à insolvência, resultaram para os credores do insolventes, cujos interesses não foram suficientemente acautelados.
Assim, não se configurando, em concreto, nenhuma das situações elencadas no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, inexiste fundamento legal que justifique a recusa da exoneração determinada na decisão impugnada, a qual, de resto, também só ser deve decretada “a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor”, como resulta do corpo do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE[15].
Não pode, assim, subsistir a decidida recusa da exoneração do passivo restante, quer por não se mostrarem preenchidos algum dos requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 243.º do mencionado diploma, quer por tal recusa não ter sido requerida, de forma fundamentada, por quem a lei reconhece legitimidade para o efeito, pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação dos demais fundamentos recursivamente invocados pelo apelante.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida.
As custas do recurso serão suportadas pelo recorrente, por tirar proveito da decisão, não havendo lugar à sua condenação em custas de parte ou procuradoria por não ter sido apresentada resposta às suas alegações.

Porto, 17.06.2021
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.

Nos termos do artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, para os efeitos do disposto n.º artigo 153.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, atesto que o presente acórdão foi aprovado com voto de conformidade do Ex.mo Juiz Desembargador Adjunto, Dr. Aristides Almeida, que compõe este colectivo, que não pode assinar.

Judite Pires (assina digitalmente)
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira (assina digitalmente)
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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, p. 183 e segs.,
[2] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, 4ª ed., págs. 236, 237 e segs.
[3] Cfr. também em idêntico sentido, Catarina Serra, “O novo regime português da insolvência – Uma introdução”, Coimbra, Almedina, 2008 (3ª edição), págs. 102 e 103.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, págs. 276, 277.
[5] Revista “Themis”, Ano 2005, Edição Especial, “Novo Direito da Insolvência”- “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” págs. 169-170.
[6] Obra citada, pág. 788.
[7] “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 7.ª ed., págs. 385/387.
[8] Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., pág. 389.
[9] Obra citada, pág. 798.
[10] Processo 1438/14.1TJLSB.L1-2, www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 22.11.2016, processo n.º 152/13.0TBMIR.C1, www.dgsi.pt.
[12] Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 802.
[13] Questão acerca da qual não cabe a esta instância formular qualquer juízo.
[14] Cfr. n.º s 2 e 4 do artigo 239.º do CIRE.
[15] Como precisam Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 797, em anotação ao artigo 243.º do CIRE, “A cessação antecipada do procedimento de exoneração, por esta dever ser recusada, depende de requerimento dirigido ao juiz por quem para tanto tenha legitimidade. Segundo o n.º 1 do presente artigo, ela cabe a qualquer credor da insolvência e, também, verificadas certas circunstâncias, ao administrador da insolvência e ao fiduciário”.