Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | RAUL ESTEVES | ||
| Descritores: | RECONSTITUIÇÃO DO FACTO CONFISSÃO DIREITO AO SILÊNCIO | ||
| Nº do Documento: | RP201505131189/13.4JAPRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 05/13/2015 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | A “confissão” dos factos feita pelo arguido no decurso de uma reconstituição do facto realizada sem a presença de defensor e testemunhada por agentes do OPC que a transmitiram ao tribunal em sede de audiência de julgamento não pode ser valorada como prova, tanto mais que o arguido, logo depois da referida diligência, se remeteu ao silêncio. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto 1 Relatório Nos autos nº 1189/13.4JAPRT que correram os seus termos no Tribunal de Chaves, 1º Juízo, foi proferido acórdão que decidiu absolver o arguido B… da prática de oito crimes de incêndio florestal p.p. pelo art.º 274.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código Penal. Não conformado, veio o Digno Magistrado do Ministério Público interpor recurso, alegando para tanto o que consta de fls. 358 e seguintes dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, concluindo, em suma, nos seguintes termos: 1 – Há erro de julgamento relativamente aos factos assentes como não provados, devendo os mesmos serem dados como provados por haver provas que impõem diversa decisão de facto. 2- A reconstituição do facto realizada no processo constitui prova autónoma, não se encontrando sujeito ao regime de prova testemunhal, devendo bastar-se a si mesmo enquanto meio de prova. 3 – A analise conjugada dos autos de reconstituição dos factos, com registos fotográficos, concatenada com a demais prova documental produzida em audiência nomeadamente a dos dois inspectores da PJ permite ao Tribunal formular um juízo de culpabilidade quanto ao arguido e consequentemente dar como assente os factos não provados. Respondeu o arguido, pugnando pela manutenção da decisão proferida. Neste Tribunal o Digno Procurador-geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da procedência do recurso. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP, foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência. Cumpre assim apreciar e decidir. 2 Fundamentação. Atentas as conclusões do recorrente, podemos concluir que a única questão colocada a este Tribunal de recurso é o saber se haverá de ser alterada a factualidade não assente tendo em atenção o auto de reconstituição junto aos autos, mais precisamente qual o valor probatório do mesmo e a sua vinculação à apreciação critica da prova. Conforme resulta do acórdão recorrido, é a seguinte a factualidade fixada e correspondente fundamentação: Factos provados, 1) Entre os dias 21 de Abril e 10 de Junho de 2013, em vários terrenos e manchas florestais situadas nas imediações da Rua …, antiga …, bem como nas imediações do hipermercado “C…”, na localidade de …, nesta cidade de Chaves, foram ateados pelo menos oito focos de incêndio. 2) Assim, no dia 21 de Abril de 2013, cerca das 12h55m, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato seco existente num terreno situado em …, nesta cidade de Chaves, com o propósito de provocar um incêndio em toda a sua extensão. 3) Como consequência da actuação dessa pessoa, o fogo propagou-se e consumiu cerca de 0,01 hectares de mato. 4) Este terreno situava-se a poucas dezenas de metros de moradias, prédios habitacionais e ruas, de valor que não se logrou apurar, mas superior a € 20.400,00 (vinte mil e quatrocentos euros) que o fogo só não atingiu graças à rápida e pronta intervenção dos Bombeiros de Chaves – Salvação Pública e Flavienses, que impediram o seu alastramento. 5) No dia 05 de Maio de 2013, cerca das 13h07m, na Avenida …, em … - Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato seco existente num terreno aí situado, para que este ardesse em toda a sua extensão, fazendo-o em três locais distintos do mesmo, provocando um incêndio com três focos. 6) Como consequência do referido incêndio, arderam cerca de 0,80 hectares de mato. 7) No dia 21 de Maio de 2013, cerca das 17h00m, num monte situado lateralmente ao “D…”, sito no …, em …, nesta cidade de Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo a vários ramos de pinheiros, que ali se encontravam, provocando um incêndio que consumiu cerca de 0,01 hectares de mato. 8) No 26 de Maio de 2013, cerca das 17h55m na Rua …, em … - Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato seco aí existente, ateando dois focos de incêndio que consumiram cerca de 0,01 hectares. 9) No dia 02 de Junho de 2013, cerca das 14h30m, nas traseiras do “E…”, sito na Avenida …, em … – Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo à vegetação rasteira ali existente, em dois locais distintos, provocando dois focos de incêndio, que rapidamente consumiram cerca de 0,03 hectares de mato. 10) Nesse mesmo dia, pelas 17h10m, nas traseiras do …, em … - Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato que ali se encontrava, em consequência do qual arderam cerca de 0,01 hectares de mato rasteiro. 11) No dia 07 de Junho, pelas 09H15m, na R. …, em …, Chaves, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato que ali se encontrava, em consequência do qual arderam cerca de 20 m2 de mato. 12) No dia 10 de Junho de 2013, cerca das 13h44m, pessoa não identificada e de modo não apurado chegou fogo ao mato seco e arvoredo existente num terreno situado nas traseiras do supermercado “C…”, em … – Chaves, o qual rapidamente se alastrou e consumiu cerca de 0,01 hectares de mato/pinheiros. 13) Os vários incêndios, pelo menos nove, colocaram em perigo uma mancha florestal constituída na sua totalidade por cerca de 15 hectares de área fortemente povoada por mato rasteiro, bem como as habitações e os edifícios aí existentes nas proximidades, alguns deles situados a apenas dezenas de metros dos focos de incêndio, que só não foram atingidos devido à pronta intervenção das duas Corporações de Bombeiros de Chaves – Salvação Pública e Flavienses. 14) Esta mancha florestal era composta por diversos combustíveis finos e grossos (vivos e mortos), na sua maioria constituídos por várias gramíneas (ervas anuais), silvados, tecido arbustivo (giesta e tojo) e algum tecido arbóreo de pequeno e médio porte (pinheiro bravo). 15) Os oito focos de incêndio ateados nas circunstâncias e termos referidos ocorreram em áreas delimitadas e dispersas, enquadradas em duas zonas diferenciadas e distanciadas entre si cerca de 500 metros, nas quais foram consumidas áreas compreendidas entre 0,01 hectares e 0,80 hectares. 16) Os incêndios lavraram nessas oito áreas, sendo que quatro se situavam junto ao arruamento que liga à Rua … e os cinco restantes situavam-se nas imediações de um arruamento em terra batida, que dá acesso às traseiras do hipermercado “C…”. 17) As áreas ardidas são propriedade das sociedades “F…, S.A.” e “G…, S.A.”, legal e respetivamente representadas por H… e I…. 18) A G…, S.A.”, em consequência da conduta do arguido, teve de despender a quantia de € 150,00 para remoção de resíduos pela acção do fogo. 19) Os oito focos de incêndio ateados só não provocaram outros prejuízos mais avultados, com consequências graves para terceiros e para o próprio, devido à pronta intervenção das duas Corporações de Bombeiros de Chaves – Salvação Pública e Flavienses, que conseguiram reduzir a progressão do fogo, quer horizontal, quer verticalmente, impedindo que as habitações situadas a apenas algumas dezenas de metros, assim como as instalações das superfícies comerciais referidas e os cabos de alta tensão que atravessam toda aquela mancha florestal fossem atingidos. 20) O arguido sofre de sintomatologia ansiosa/depressiva. * Factos não provados:- que tenham sido ateados nove focos de incêndio; - que tenha sido o arguido quem ateou esses focos de incêndio; - que o arguido tenha ateado fogos sempre através de chama direta, com recurso a um isqueiro que habitualmente utilizava para acender cigarros: - após a deflagração do incêndio, o arguido manteve-se nas imediações a observar os acontecimentos e a ver as chamas a atingirem um limite máximo de dois metros, com progressão horizontal e vertical; - todos estes incêndios foram ateados pelo arguido alegadamente porque não aceita que a sua ex-mulher tenha refeito a sua vida com outro homem, vivendo maritalmente com o mesmo numa habitação em frente à sua. - o arguido estava ciente que as matas/pinhais/terrenos que incendiou não lhe pertenciam e agiu pela forma descrita para atear fogo a essas matas/pinhais/terrenos sem qualquer motivo justificativo, por gostar de ver o mato a arder e a rapidez com que o mesmo se alastrava. - ao agir da forma descrita, fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. - o segmento “ (…) mas tal não o torna incapaz de no momento da prática do facto avaliar a ilicitude de um comportamento incendiário ou de se determinar de acordo com essa avaliação e nem sequer a capacidade para avaliar a ilicitude desse ato ou a sua determinação de acordo com essa avaliação se encontra diminuída (…)” constante da douta acusação, não tem relevância para a decisão da causa, porque em processo penal não há que provar que o arguido não é inimputável; o que cumpre demonstrar é a imputabilidade ou a inimputabilidade; ora, ao referir a não inimputabilidade resvala a douta acusação para um dupla negação de complexa interpretação, que não interessa à decisão dos autos; * Provas a que o tribunal atendeu para decidir a matéria de facto pela forma que antecede e razões determinantes da convicção formada:a) Depoimento da testemunha I…, legal representante da empresa G…, SA, que se referiu um incêndio num terreno na …, no …, em Chaves, no qual arderam cerca de 500 m2, tendo o terreno cerca de 4 hectares, o que originou um prejuízo de cerca de € 150,00, tratando-se, contudo de mato rasteiro; referiu como data o dia 21 de Maio; b) Depoimento da testemunha H…, legal representante da empresa F…, SA, que disse que têm uns terrenos nesta cidade e que uma pessoa trata desses bens, tendo dito que teve conhecimento de que entre Abril e Junho do ano passado ali deflagraram alguns focos de incêndio; c) Depoimento da testemunha J…, pensionista, que conhece de vista o arguido, e disse ter assistido a duas ocorrências na zona onde vive, na …, uma em Abril e outra em Junho; na ocorrência de Abril não viu ninguém que pudesse estar relacionado com a ocorrência; em Junho, viu o incêndio praticamente a iniciar-se, num terreno com pinheiros e sobreiros, e havia lá ramagens de pinheiros no chão, proveniente de limpezas, tendo sido nesse material que se iniciou a combustão; ligou para o 112; disse ainda que foi um pouco à frente e viu um indivíduo que olhou para trás e fugiu para o meio do mato, mas não o perseguiu nem viu quem era; afirmou ainda que o incêndio, se não controlado, poderia atingir as casas que ali existiam; disse que conhece o arguido de vista e que já o viu por lá; este depoimento foi também tido em conta para dar como provado o valor das casas, uma vez que é do conhecimento comum que, havendo casas como as que a testemunha referiu, valem certamente acima do valor que a acusação mencionou; d) Depoimento da testemunha K…, agente da PSP, que estava de serviço às ocorrências e foi chamado em 26/05, tendo dito que os focos de incêndio ali ocorriam aos domingos e feriados à tarde; disse que uma dia alguém o informou que o arguido era visto muitas vezes a sair do monte; não identificou, todavia, o autor dessa informação, pelo que, por ser testemunho por ouvir dizer, não poderá ser valorado; reconheceu que não obteve mais informações; e) Depoimento da testemunha L…, agente da PSP, que foi chamado a uma ocorrência de 07 de Junho, na R. …, próxima da grande superfície comercia C…, tendo ardido apenas 20 m2 de mato; disse que foi a testemunha J…, referida em c), que lhe disse que terá sido uma pessoa de cerca de 50 anos, com cabelo grisalho; do depoimento destes dois agentes da PSP resulta que se tratou de fogo posto, atento o número de vezes que ocorreram incêndios e à sua proximidade temporal e geográfica, o que levou o tribunal a dar como provada intervenção humana, embora sem saber o concreto modo dessa actuação, e, muito menos, a sua autoria; f) Os depoimentos de M… e N…, agentes da PJ, apenas referiram as diligências efectuadas nos autos, designadamente, a identificação do arguido e a reconstituição do facto documentada nos autos, nenhum conhecimento tendo revelado sobre os factos em julgamento; g) Os depoimentos das testemunhas O…, filha do arguido, e P…, amiga deste e da filha, não foram atendidos porque procuraram convencer o tribunal da impossibilidade de ser o arguido o autor dos factos através do assegurar de uma presença constante do mesmo junto delas; ora, este álibi de ordem permanente, além de ingénuo, é inverosímil, porque ninguém nas condições do arguido está todo os dias, todo o dia, com a filha e uma sua amiga; de qualquer modo, também não existe prova de que o arguido praticou os factos em causa; contudo, o tribunal não pode deixar de dizer que este tipo de depoimentos não convencem, e são quase pueris; h) O auto de apreensão de fls. 36 e o auto de exame de fls. 37 demonstram que ao arguido foi apreendido um isqueiro, bem como as suas características, mas não que foi com esse isqueiro que foram ateados os incêndios; i) Os relatórios de ocorrência de fls. 60771 e de fls. 176/179, demonstram a existência da s ocorrências e as suas vicissitudes, mas não a sua autoria; j) O documento de fls. 183 demonstra o local onde surgiram os focos de incêndio e a sua envolvência ambiental; k) ora, como este tribunal colectivo já decidiu em outras ocasiões, o auto de reconstituição do facto de fls. 38/59 não pode ser tido totalmente em conta porque foi efectuado exclusivamente com base em declarações do arguido, sem a assistência de defensor, e perante agentes da Polícia Judiciária; esse auto de reconstituição pode ser tido em conta apenas na parte do relatório fotográfico e da apreensão pessoal que o agente de investigação retirou do local – tipo de vegetação, área ardida, bem como outras circunstâncias de carácter objectivo apreensíveis pelos sentidos de quem investiga; tudo aquilo que desse auto consta com base em declarações do arguido não pode ser atendido pelo tribunal como meio de prova; efectivamente, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pag. 419 e 420, notas 13 e 14, “(…) a leitura do auto em que se colham declarações dos participantes na dita reconstituição estão agora claramente reguladas (art.º 355.º, n.º 2, do CPP). O aproveitamento em julgamento de uma reconstituição em que o arguido preste declarações feita no inquérito ou na instrução obedece à regra do art.º 357.º, n.º 2, conjugado com o art.º 356.º, n.º 8, (…). O legislador teve o propósito claro de pôr cobro a situações de violação do direito ao silêncio e do princípio da imediação conhecidas nos tribunais, em que se aproveitava o registo audiovisual do depoimento de um arguido feito durante uma reconstituição apesar de ele se ter recusado a prestar declarações no julgamento Ac. STJ, de 05/01/2005, in CJ, Acs. Do STJ, XIII, 1, 159, revogando uma decisão correcta da primeira instância) ou até testemunhos de agentes que ouviram o “suspeito” confessar os factos durante uma reconstituição realizada antes mesmo de ter sido constituído como arguido com vista a “fundar suficientemente” a suspeita (Acórdão do STJ, de 22.4.2004, in CJ, ACs. STJ, XII, 2, 165). As garantias de defesa e o respeito pelo direito ao silencio impõem que as declarações do arguido feitas em reconstituição dirigida pelo Ministério Público ou pelo órgão de polícia criminal não possam ser lidas, visualizadas ou ouvidas em julgamento, salvo solicitação do arguido (artigo 357.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e artigo 356.º, n.º 8), Só as declarações prestadas pelo arguido em reconstituição dirigida pelo juiz de instrução podem ser visualizadas ou ouvidas em julgamento quando houver contradições entre elas e as declarações feitas na audiência (artigo 357.º, n.º 1, alínea b), e art.º 356.º, n.º 8).” Note-se o que a lei estatui a respeito deste meio de prova: Sempre que houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo – art.º 150.º, n.º 1, do CPP. Assim, o que este meio de prova visa é verificar a verosimilhança de uma determinada versão dos factos, podendo fazer-se tantas reconstituições quantas as diferentes versões do facto apresentadas, recolhidas ou formuladas durante a investigação; deste modo, a utilidade do meio em causa consiste em fornecer à acusação e, depois, ao tribunal, um instrumento para aferir das razoabilidade ou verosimilhança da versão ou versões em presença; na reconstituição efectuada nos autos nada disto sucede porque ninguém sabe ou sequer supõe (fundamentadamente) o que aconteceu e como aconteceu; pelo contrário, é o arguido que relata (primeiro em interrogatório e logo de seguida em reconstituição) o que fez, que os investigadores registam e transcrevem no auto em discurso indirecto, ou seja, trata-se de um auto de declarações do arguido acompanhada da encenação por si apresentada do que terá sucedido; ora, não há dúvida de que se a diligência tivesse sido presidida pelo juiz de instrução não poderia a mesma ser aproveitada como meio de prova porque o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento (tal como sucede com as declarações prestadas pelo arguido no gabinete do JIC); como defender então que este meio de prova se “autonomiza” e pode ser utilizado? Só se for devido à intervenção dos polícias! é certo que bem se conhece, e muito se respeita, até porque certamente eivada dos mais nobres princípios de Justiça, a Douta Jurisprudência que permite a utilização deste meio de prova com base naquela ideia de “autonomização”; todavia, não se conhece qualquer apoio Doutrinal a essa corrente, podendo citar-se vozes claramente discordantes, como a que acima se mencionou; e mesmo, se bem os interpretamos, os Doutos Acórdãos do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 09/09/2009 e 27/01/2010, relatados, respectivamente, pelos Exmos. Desembargadores Ernesto Nascimento e Luís Teixeira, disponíveis em www.dgsi.pt, sob os n.ºs convencionais, respectivamente, JTRP00042857 e JTRP00043459, apontam, pelo menos parcialmente, no sentido de uma restrição de utilização de este meio de prova em certos casos; o que, igualmente, se afigura claro é que antes da Justiça está a Lei, tal como determina o art.º 8.º, n.º 2, do Código Civil, independentemente de com ela se concordar ou não; l) o relatório de perícia médico-legal de psiquiatria, de fls. 200/201 também só pode ser atendido na parte em que aprecia questões técnico-científicas ligadas à personalidade do arguido, mas não já quanto ao tratamento dado à confissão que o arguido terá efectuado perante o médico que realizou o exame; na verdade, nada no código de processo penal permite valorar estas confissões, escritas ou orais, efectuadas a terceiro participante na investigação; m) temos, assim, um caso em que o arguido confessou em interrogatório efectuado pela polícia judiciária, confessou em reconstituição do facto efectuado por essa mesma polícia, confessou ao perito médico, mas não prestou declarações perante o juiz de instrução criminal nem em audiência de julgamento; aquelas confissões não podem ser valoradas porque não foram lidas em audiência de julgamento, nos termos já supra explicados; e para concluir que assim é, basta ter presente a actual redacção do art.º 141.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, na qual o juiz (ou o procurador) tem de informar o arguido de que não exercendo o direito ao silêncio as suas declarações poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência ou não preste declarações em julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova; e tenha-se presente que essa situação não se estende aos casos em que o interrogatório é feito por orgão de polícia criminal – cfr. art.º 144.º, n.º 2, nova redacção; n) finalmente, o tribunal deu como provados os factos que acima constam de 11) na sequência da douta promoção do Exmo. Senhor Procurador da República, exarada em audiência de julgamento, uma vez que eles resultam da própria participação e o arguido não se opôs a prossecução do julgamento também por eles. Alega o recorrente que não tendo o tribunal valorado como lhe competia, os autos de reconstituição dos factos, com registos fotográficos de fls. 38 a 59 dos autos, nos termos do disposto no artigo 355º nº 1 in fine e nº 2 do CPP, veio a não dar como assente a autoria dos crimes, razão pela qual impõe-se a alteração da factualidade não assente de molde a que seja o arguido responsabilizado, enquanto autor, dos crimes que lhe são imputados. Ora, na verdade e conforme resulta da fundamentação da matéria de facto, entendeu o Colectivo de Juízes não dever valorar os referidos autos, tendo referido a esse propósito o seguinte: “Ora, como este tribunal colectivo já decidiu em outras ocasiões, o auto de reconstituição do facto de fls. 38/59 não pode ser tido totalmente em conta porque foi efectuado exclusivamente com base em declarações do arguido, sem a assistência de defensor, e perante agentes da Polícia Judiciária; esse auto de reconstituição pode ser tido em conta apenas na parte do relatório fotográfico e da apreensão pessoal que o agente de investigação retirou do local – tipo de vegetação, área ardida, bem como outras circunstâncias de carácter objectivo apreensíveis pelos sentidos de quem investiga; tudo aquilo que desse auto consta com base em declarações do arguido não pode ser atendido pelo tribunal como meio de prova; efectivamente, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pag. 419 e 420, notas 13 e 14, “(…) a leitura do auto em que se colham declarações dos participantes na dita reconstituição estão agora claramente reguladas (art.º 355.º, n.º 2, do CPP). O aproveitamento em julgamento de uma reconstituição em que o arguido preste declarações feita no inquérito ou na instrução obedece à regra do art.º 357.º, n.º 2, conjugado com o art.º 356.º, n.º 8, (…). O legislador teve o propósito claro de pôr cobro a situações de violação do direito ao silêncio e do princípio da imediação conhecidas nos tribunais, em que se aproveitava o registo audiovisual do depoimento de um arguido feito durante uma reconstituição apesar de ele se ter recusado a prestar declarações no julgamento Ac. STJ, de 05/01/2005, in CJ, Acs. Do STJ, XIII, 1, 159, revogando uma decisão correcta da primeira instância) ou até testemunhos de agentes que ouviram o “suspeito” confessar os factos durante uma reconstituição realizada antes mesmo de ter sido constituído como arguido com vista a “fundar suficientemente” a suspeita (Acórdão do STJ, de 22.4.2004, in CJ, ACs. STJ, XII, 2, 165). As garantias de defesa e o respeito pelo direito ao silencio impõem que as declarações do arguido feitas em reconstituição dirigida pelo Ministério Público ou pelo órgão de polícia criminal não possam ser lidas, visualizadas ou ouvidas em julgamento, salvo solicitação do arguido (artigo 357.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e artigo 356.º, n.º 8), Só as declarações prestadas pelo arguido em reconstituição dirigida pelo juiz de instrução podem ser visualizadas ou ouvidas em julgamento quando houver contradições entre elas e as declarações feitas na audiência (artigo 357.º, n.º 1, alínea b), e art.º 356.º, n.º 8).” Note-se o que a lei estatui a respeito deste meio de prova: Sempre que houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo – art.º 150.º, n.º 1, do CPP. Assim, o que este meio de prova visa é verificar a verosimilhança de uma determinada versão dos factos, podendo fazer-se tantas reconstituições quantas as diferentes versões do facto apresentadas, recolhidas ou formuladas durante a investigação; deste modo, a utilidade do meio em causa consiste em fornecer à acusação e, depois, ao tribunal, um instrumento para aferir das razoabilidade ou verosimilhança da versão ou versões em presença; na reconstituição efectuada nos autos nada disto sucede porque ninguém sabe ou sequer supõe (fundamentadamente) o que aconteceu e como aconteceu; pelo contrário, é o arguido que relata (primeiro em interrogatório e logo de seguida em reconstituição) o que fez, que os investigadores registam e transcrevem no auto em discurso indirecto, ou seja, trata-se de um auto de declarações do arguido acompanhada da encenação por si apresentada do que terá sucedido; ora, não há dúvida de que se a diligência tivesse sido presidida pelo juiz de instrução não poderia a mesma ser aproveitada como meio de prova porque o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento (tal como sucede com as declarações prestadas pelo arguido no gabinete do JIC); como defender então que este meio de prova se “autonomiza” e pode ser utilizado? Só se for devido à intervenção dos polícias! é certo que bem se conhece, e muito se respeita, até porque certamente eivada dos mais nobres princípios de Justiça, a Douta Jurisprudência que permite a utilização deste meio de prova com base naquela ideia de “autonomização”; todavia, não se conhece qualquer apoio Doutrinal a essa corrente, podendo citar-se vozes claramente discordantes, como a que acima se mencionou; e mesmo, se bem os interpretamos, os Doutos Acórdãos do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 09/09/2009 e 27/01/2010, relatados, respectivamente, pelos Exmos. Desembargadores Ernesto Nascimento e Luís Teixeira, disponíveis em www.dgsi.pt, sob os n.ºs convencionais, respectivamente, JTRP00042857 e JTRP00043459, apontam, pelo menos parcialmente, no sentido de uma restrição de utilização de este meio de prova em certos casos; o que, igualmente, se afigura claro é que antes da Justiça está a Lei, tal como determina o art.º 8.º, n.º 2, do Código Civil, independentemente de com ela se concordar ou não” Compulsados os autos pode verificar-se que o arguido, na sequência de interrogatório por parte dos OPC acedeu a ir com elementos da Polícia Judiciária aos locais onde deflagraram os incêndios nos dias 5 de Maio, 26 de Maio, 7 de Junho e 10 de Junho, (e não a todos os que ocorreram e imputados em sede de acusação ao arguido), aí tendo referido aos referidos polícias o que tinha efectuado e como o tinha efectuado. Seguidamente, e já perante o Sr. Juiz de Instrução, bem como em sede de julgamento, o arguido remeteu-se ao silêncio. Não acompanhou as diligências de reconstituição qualquer defensor do arguido, tendo o mesmo prescindido da sua presença. No local foram tiradas as fotos que se mostram juntas aos autos, sendo aí visível o arguido. Ora, a questão não é pacífica, tendo sido colocada por diversas vezes junto dos Tribunais de recurso. As dificuldades advém da necessidade de garantir que a valoração desse auto de reconstituição não viole o disposto nos artigos 355º e seguintes do CPP, nomeadamente a possibilidade de através desse auto se concluir pela “confissão” do arguido. Vejamos então. Conforme resulta do artigo 150.º do CPP, é possível o recurso à reconstituição do facto em investigação “Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma” Para tanto, tal diligência – precedida de despacho a ordenar a sua realização e com um indicação sumária do seu objecto – consistirá na “reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo” Da economia do preceito, pode desde já retirar-se que a reconstituição do facto não tem em vista determinar, de forma imediata e final, a autoria do mesmo. O recurso a esse procedimento probatório apenas se justificará perante uma situação da vida real que careça de comprovação quanto à forma como ocorreu um determinado facto histórico, permitindo a lei que sejam realizadas diligências com relevância processual cujo objecto consiste na reprodução das circunstâncias que se supõem ou que se afirmam terem existido, (V.G., tempo, lugar, luminosidade, distâncias, instrumentos, materiais, etc.) e experimentar, nessas circunstâncias, através da repetição, o “modo”, como ocorreu o facto, tudo com vista a chegar a uma compreensão do “modo” efectivo de concretização do facto, suportada na verificação experimental da sua viabilidade. Estamos assim muito longe da possibilidade de tal diligência probatória poder servir para determinar de imediato e por si mesmo a autoria do referido facto, bem como estamos ainda mais longe de valorar, quanto à autoria do facto, uma reconstituição onde é o próprio arguido que “conduz” os investigadores que, sem qualquer esforço de investigação alicerçam a sua convicção na “condução” que o arguido efectua pelo local da ocorrência dos factos, descrevendo o seu comportamento e transmitindo toda a informação relevante para o efeito. Importa citar a este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra Ac. De 25.09.2013, disponível em www.dgsi.pt e que sintetiza o que acabou de se dizer: “II. Quer se adopte a posição mais restritiva - traduzida na negação á reconstituição do facto de poder probatório para atestar a existência ou inexistência de um determinado facto histórico, reservando a reconstituição para o campo da mera verificação do modo e condições em que hipoteticamente terá ocorrido o facto probando -, quer a posição mais alargada - sustentado que a reconstituição é um meio válido de demonstração da existência de certos factos -, não pode a mesma servir finalidades de obtenção, conservação da prova, designadamente por confissão, sob pena de a consideração/valoração do respectivo auto conduzir á violação do disposto nos artigos 355.º e ss. do CPP, por aquele apenas conter verdadeiras «declarações».” Ou seja, dúvidas não temos que os autos de reconstituição do facto constituem prova autónoma que pode ser valorado pelo Tribunal, sendo relevante, para tanto, o seu próprio conteúdo e os demais meios de prova que este veio corroborar, mas jamais para sustentar uma “confissão” do arguido. No caso sub judice, o arguido esteve sem defensor na diligência – sendo aqui despiciendo saber a razão – e a sua posição processual logo de seguida foi a de remeter-se ao silêncio. Tudo quanto dessa diligência resultou foram fotografias e os depoimentos das testemunhas que, como OPC, acompanharam a mesma, relatando em julgamento o conteúdo da mesma. Retirar daqui a autoria dos crimes, e punir o arguido como responsável a esse título, obrigaria ao seguinte raciocínio lógico: “Foi o arguido porque voluntariamente participou na diligência e disse que foi ele, e prova disso são as fotografias que foram recolhidas no âmbito de diligência de reconstituição e os depoimentos das testemunhas que acompanharam o arguido na referida diligência e o ouviram relatar o modo de execução” Ora, assim colocada a questão, torna-se evidente que não é possível valorar os autos de reconstituição como pretende o recorrente, pois a “confissão” do arguido na diligência, ainda que testemunhada pelos agentes da OPC e transmitida ao Tribunal no âmbito do seu testemunho, não pode ser utilizado com esse alcance, tanto mais que o arguido se remeteu ao silêncio. O testemunho dos OPC em sede de julgamento terão a sua relevância enquanto o seu objecto se referir às concretas circunstâncias em que decorreu a diligência de reconstituição e não já quanto ao que foi afirmado pelo arguido e que corresponda à sua auto-incriminação. Repare-se que na revisão do CPP operado pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro a protecção do direito ao silêncio do arguido foi especialmente acautelado perante a possibilidade de serem valoradas as suas declarações em sede de inquérito, tendo sido introduzido no artigo 141º nº 4 a propósito dos seus direitos, a alínea b) que ordena que o mesmo seja informado “ que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova” o que se mostra coerente com a alteração do artigo 357º do mesmo Código que agora permite a leitura das declarações do arguido “Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º” (nº 1 al. b), e mesmo nessas circunstâncias, refere o novo nº 2 desse artigo que “as declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º”. Temos assim como ajustada a posição do Tribunal a quo que entendeu não valorar os autos de reconstituição enquanto veículo de prova relativa às declarações prestadas pelo arguido, pelo que o recurso interposto haverá de julgar-se improcedente. 3 Decisão Pelo exposto julga-se improcedente o recurso. Sem custas Notifique Porto 13 de Maio de 2015 Raul Esteves Maria Manuela Paupério |