Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
304/22.1T8CPV.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
VIOLAÇÃO DA SERVIDÃO
Nº do Documento: RP20240219304/22.1T8CPV.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A servidão de passagem não impede os donos do prédio serviente de usarem o caminho, que dá acesso ao prédio dominante, também a seu favor, estando apenas sujeitos ao encargo de não praticarem atos que impeçam ou limitem o exercício da servidão.
II - Assim, a circunstância de um determinado caminho ser usado quer a favor do prédio serviente quer a favor do dominante, não impede a constituição da servidão de passagem por usucapião a favor do segundo, desde que reunidos os demais requisitos.
III - A referência do artigo 1543º do Código Civil ao “proveito exclusivo de outro prédio” é destinada a afirmar o caráter real do encargo em que se traduz a servidão.
IV - A privação, durante cerca de três meses, de passagem de carro por caminho de servidão de que decorreu a limitação do uso e fruição do imóvel dominante - que era usado pelos seus proprietários aos fins de semana e férias - e a ansiedade e perda de sono que daí decorreram para estes é merecedora de tutela do direito, sendo adequada a sua indemnização pelo valor de 800€, com recurso à equidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 304/22.1 T8CPV.P1, Juízo de competência genérica de Castelo de Paiva



Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeira adjunta: Ana Paula Amorim
Segunda adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:


1. AA e BB, propuseram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e DD pedindo que fosse “reconhecida, constituída e decretada”  servidão de passagem sobre prédio rústico de que os Réus são proprietários a favor de dois imóveis seus, e a condenação daqueles na abstenção da prática de atos turbadores dessa servidão, bem como no pagamento de indemnização de €6.000,00 (três mil euros) por danos patrimoniais e não patrimoniais que dizem decorrer das suas condutas que os tem impedido do uso da referida servidão. A esse valor pretendem, ainda, que acresçam juros de mora vencidos (desde a data de citação) e vincendos, bem como sanção pecuniária compulsória.
Alegaram ser proprietários de dois prédios contíguos a um imóvel dos Réus, os quais lhes advieram por aquisição originária (usucapião) e derivada (compra e venda) e que o acesso a ambos é feito através de um caminho que passa sobre o prédio dos Réus desde há, pelo menos, 80 anos, sendo tal caminho aparente e o único que permite o acesso aos seus imóveis.
Segundo afirmam, os Réus têm impedido o acesso aos seus imóveis através de tal caminho o lhes causou graves prejuízos traduzidos em perda de colheitas, plantas decorativas e arbustos, e, ainda, à derrocada de terras devido a obra inacabada, bem como foi para eles fonte de angústia e de outros padecimentos morais.
2. Os Réus contestaram afirmando que a passagem pelo sobredito caminho tem sido facultada pontualmente, nomeadamente por ocasião de obras no prédio dos Autores, por mera tolerância sua, já que os imóveis destes não se encontram encravados, antes estando servidos por um caminho público com que confrontam. Impugnam os danos alegados pelos Autores.
3. A 20-02-2023 foi proferido despacho que convidou os Autores a esclarecer se tinham deduzido os seus pedidos em relação de subsidiariedade e, em caso afirmativo, qual dos pedidos seria o principal – se o de reconhecimento, de constituição por usucapião, ou o de constituição de servidão legal de passagem por encravamento do prédio. No mesmo despacho foi facultado contraditório sobre o valor a atribuir à causa.
4. Os Autores esclareceram pretender deduzir o pedido fundado na alegação de usucapião como principal e o de reconhecimento de servidão legal de passagem como pedido subsidiário.
5. A 24-03-2023 foi proferido despacho que fixou o valor da ação, dispensou a audiência prévia e afirmou a validade e regularidade da instância bem como determinou o objeto do litígio e selecionou os temas da prova. Foram admitidos os requerimentos de prova e designada audiência de julgamento.
6. A mesma realizou-se em quatro sessões com produção da prova admitida, junção de novos documentos em audiência de julgamento e de parecer técnico apresentado pelos Autores. Já no decurso da audiência de julgamento os Autores pediram a condenação dos Réus como litigantes de má-fé (por requerimento de 07-06-2023 com a referência 14680006) e, durante os debates orais o Mandatário dos Autores comunicou a desistência do pedido de indemnização por danos patrimoniais.
7. A 09-07-2023 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente com o seguinte dispositivo:
“a) Reconhece-se a constituição, por usucapião, da servidão de passagem que onera o prédio rústico denominado «...», descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva sob o nº ...11 e inscrito sob o artigo matricial rústico nº ...74 da freguesia ..., Concelho de Castelo de Paiva, Distrito de Aveiro, sito no Lugar ... da citada freguesia ..., a favor dos prédios descritos nos factos provados n.º 1.a. e 1.b., consistente na passagem, a pé e de carro, para acesso a estes prédios, a partir do caminho público denominado ..., sobre aquele prédio denominado «...», através de um caminho com a largura aproximada de 2,60 metros e numa extensão de aproximadamente 102 metros, que se inicia no entroncamento daquele caminho público e termina no início dos prédios dos autores;
b) Condenam-se os réus a reconhecer a servidão identificada em a) e a absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam ou dificultem a passagem dos autores pelo referido caminho de servidão;
c) Condenam-se os réus a pagar aos autores a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos dos juros de mora à taxa supletiva legal em vigor para as transações civis, desde a data da notificação da presente sentença até efetivo e integral pagamento;
d) Condenam-se os réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 100,00 (cem euros) por cada dia em que impeçam ou dificultem o uso da servidão pelos autores;
e) Absolvem-se os réus do demais peticionado.”.

II - O recurso:

É desta sentença que recorrem os Réus, pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de improcedência da ação.

Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

(…)


*

Os Autores contra-alegaram sustentando a confirmação da sentença de primeira instância e requerendo, para a hipótese de procedência do recurso, a ampliação do objeto do mesmo à apreciação do seu pedido subsidiário de reconhecimento de servidão legal.

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões dos Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1) Apurar se há que alterar o elenco da matéria de facto quanto às alíneas 9, 15 a 18, 25, 29 dos factos provados e a) e c) dos não provados.
2) Em caso afirmativo, aferir o reflexo dessa alteração no mérito da decisão;
3) Procedendo o recurso, conhecer do pedido subsidiário formulado pelos Autores na petição inicial.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo Tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa (sublinhar-se-ão desde já aqueles que os Recorrentes pretendem que sejam alterados):

Provados:

“1. Encontram-se registados a favor dos autores os seguintes imóveis:

a. prédio misto, composto de casa de habitação de dois pavimentos, logradouro e quintal, com a área total de 3684 m2 , sendo que destes 3600m2 são destinados a cultura, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva sob o nº ...27, inscrito sob os artigos matriciais urbano n.º ...00 e rústico n.º ...70 da freguesia ..., concelho de Castelo de Paiva, distrito de Aveiro, sito no Lugar ... da citada freguesia;

b. prédio urbano, composto por casa de habitação de dois pavimentos, quinteiro e quintal, com a área total de 4073 m2 , sendo que destes 4000m2 são destinados a quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva sob o nº ...27, inscrito sob o artigo matricial urbano n.º ...9 da freguesia ..., concelho de Castelo de Paiva, distrito de Aveiro, sito no Lugar ... da citada freguesia.

2. A parte urbana do imóvel identificada em 1.a. está descrita como confrontando a nascente e poente com caminho e a sul e norte com herdeiros de EE, enquanto que a parte rústica está descrita como confrontando a norte com carreiro, a nascente com a FF, a sul com GG e a poente com HH e outro.

3. O imóvel identificado em 1.b. está descrito como confrontando a norte e nascente com II, a sul com JJ e a poente com KK.

4. Desde pelo menos o ano de 1942 e até ao presente que tais imóveis estão e sempre estiveram na esfera familiar dos autores de forma ininterrupta, uma vez que foram construídos pelos seus avós, que ali viveram e constituíram família, tendo sido ali que a autora e os irmãos nasceram, cresceram e viveram até se tornarem homens e mulheres.

5. O que é do conhecimento de todos.

6. Por escritura pública outorgada em 31 de agosto de 1999, os autores declararam comprar o prédio identificado em 1.a. e por escritura pública outorgada em 2006, os autores declararam comprar o prédio identificado em 1.b..

7. Encontra-se registado em nome dos réus o prédio rústico denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva sob o nº ...11 e inscrito sob o artigo matricial rústico nº ...74 da freguesia ..., Concelho de Castelo de Paiva, Distrito de Aveiro, sito no Lugar ... da citada freguesia ....

8. Este imóvel está descrito como confrontando a norte com caminho, a sul com LL, a nascente com II e a poente com MM, com área de 4000m2.

9. Os prédios dos autores e dos réus são todos confrontantes entre si, embora as confrontações constantes do registo predial não estejam atualizadas.

10. Os prédios identificados em 1. estão inscritos na matriz das Finanças desde o ano de 1942, tendo sido adquiridos e os imóveis construídos pelos avós da autora, nomeadamente o avô LL.

11. Sobre o prédio dos réus, existe um caminho em terra batida, com a largura aproximada de 2,60 metros e numa extensão de aproximadamente 102 metros, o qual se inicia no entroncamento do Caminho denominado ..., e termina no início dos imóveis dos autores.

12. A passagem descrita no facto precedente encontra-se delimitada no seu início pelo caminho público que liga ... a ...; no seu fim pelo início dos prédios dos autores, onde existem pilares colocados pelos autores; à esquerda por morro de terra com altura variável entre 1 e 4 m de altura; e à direita por cultura de vinha, esteios, arame e canais de regadio.

13. Tal caminho pertence aos réus e é usado para manutenção das culturas ali existentes (vinha em bardo, em sistema de condução de vinha contínua baixa, que consiste numa linha de esteios, com 1,5 a 2m de altura, espaçados entre si).

14. A passagem está no limite do terreno dos réus, onde causa o menor prejuízo para estes, sem atravessar qualquer muro ou cultura.

15. O mencionado caminho está visivelmente marcado no solo em toda a sua extensão através de rodados das viaturas e terra calcada de anos, sem vegetação, sinais que se mantêm desde há mais de 20 anos.

16. O acesso aos imóveis dos autores pelo menos há 60 anos, quer pelos autores, quer pelos seus ante possuidores, é feito através do caminho identificado no facto provado n.º 11, com a convicção de que a tanto tinham direito.

17. Por onde circulam pessoas, bens, animais, carroças, e nas últimas décadas veículos a motor, nomeadamente automóveis, tratores, máquinas e até camiões.

18. O que fazem de forma ininterrupta, à vista de todos e sem objeções dos réus ou dos seus antecessores, pelo menos até fevereiro de 2022.

19. No dia 14 de fevereiro de 2022, o réu instaurou Petição/Exposição junto do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva, peticionando o seguinte: «O requerente e proprietário do artigo rústico denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia .... Em determinada data permitiu no início do artigo a passagem de materiais e pessoas para acesso a uma obra onde se construiu um artigo urbano. A obra foi concluída e as pessoas continuaram a usar o meu artigo como passagem. Ora, bem perto existe um caminho público, não precisando ninguém usar o meu artigo como passagem. Consultei os serviços da Câmara e obtive informação que existe uma petição para Rua .... Não fui consultado para tal, por isso venho solicitar a reposição da área do meu artigo rústico, como inicialmente existia com a finalidade de fechar a passagem».

20. A Junta de Freguesia ..., juntamente com a Câmara Municipal de Castelo de Paiva, proferiu decisão final no processo n.º ..., depois de analisado o peticionado pelos ora réus, identificado no facto precedente, no sentido de não avançar com a atribuição da denominação toponímica de “Rua ...” ao caminho identificado no facto provado n.º 11, por não haver certeza se o mesmo era público.

21. Após a decisão administrativa do processo n.º ..., proferida em junho de 2022, os réus, em dia não concretamente apurado, mas no intervalo dos dias 18 a 23 de julho, colocaram algumas pedras e um portão com dizeres «privado» no início do caminho identificado em 11., junto ao caminho ..., e entre os dias 23 de 30 de julho de 2022, um portão tipo cerca em ferro, com dizeres «privado» no início do caminho identificado em 11., junto ao caminho ..., amarrado nas duas extremidades, impedindo a passagem de viaturas e pessoas, ao que acrescentaram uma rede com cerca de 1m de altura, em toda a largura do caminho. 2

2. Em virtude do facto que antecede, os autores não conseguiram aceder de carro aos seus prédios entre os dias 23 de julho e 14 de outubro de 2022.

23. Até então, os autores acediam aos seus prédios 2 a 3 dias por semana, sobretudo aos fins de semana, com amigos e familiares próximos.

24. A conduta dos réus perturbou o uso e fruição dos imóveis pelos autores, nomeadamente no acesso, no convívio, na realização de refeições, na receção de amigos, no descanso, nos momentos de lazer, na limpeza das habitações, e na pernoita dois a três dias por semana.

25. Devido à conduta dos réus, os autores sentiram incómodos, ansiedade e dormiram mal durante cerca de 3 meses, tendo tido de recorrer às autoridades duas vezes e, depois, de instaurar um procedimento cautelar.

26. A conduta dos réus tem origem num desentendimento que autor e réu tiveram em fevereiro de 2022, acerca da limpeza dos terrenos, durante o qual este disse àquele «então vais ver o que vai acontecer ao caminho», sendo que antes disso autores e réus sempre tiveram boas relações e vizinhança.

27. Acima do caminho identificado em 11., existe um caminho público que liga ... a ... e à estrada municipal, e que ladeia os terrenos dos réus.

28. Para aceder aos prédios dos autores, existe uma passagem que os liga à estrada que vem de ... até ..., cuja propriedade não foi concretamente apurada.

29. Não existe outro caminho que permita aos autores, ou permitisse aos seus antecessores, o acesso aos seus imóveis sem que isso lhes cause acrescido ou incomportável incómodo.”.

Não provados:

“a) Os autores, por volta do ano 2000, solicitaram a autorização dos réus para transporte de materiais para os seus prédios que se encontravam em reconstrução, passando pelo caminho do prédio dos réus, à data propriedade da família ..., que nisso consentiu, por cortesia de vizinhos e de forma temporária.

b) Não existem sinais visíveis de um qualquer caminho no prédio dos réus, que demonstrem antiguidade.

c) O caminho identificado no facto n.º 11 não é o único acesso aos imóveis dos autores. d) A delimitação e configuração do caminho existente no prédio dos réus foi feita para permitir a livre circulação dos autores e dos seus antecessores.

e) Os réus e seus antecessores nunca plantaram nem exerceram qualquer tipo de uso ou de cultura no espaço livre e desocupado pelo caminho.

f) Os autores decidiram ajardinar recentemente esse espaço querendo agora servir-se abusivamente de terreno alheio que pertence aos réus para constituírem alternativa àquilo que não querem usar.

g) Um eventual melhoramento do acesso identificado no facto provado n.º 28 – caso os autores entendessem necessário –, não seria economicamente inviável.

h) Os réus ocultaram ao Tribunal, de forma deliberada, documentos pertinentes para a descoberta da verdade, com o intuito de a dissimular.”.


*

1 – Os Recorrentes pretendem que sejam alterados os factos dados por provados nas alíneas 9, 15 e 25, dados por não provados os constantes das alíneas 16 a 18 e 29 e por provados os das alíneas a) e c).

Para tanto, indicaram alguns meios de prova que entendem que conduzem a diferente decisão, tendo identificado passagens da gravação de alguns dos depoimentos que têm por relevantes, bem como transcreveram parte dos mesmos.

Mais explicaram as razões pelas quais entendem que cada um desses meios de prova deve conduzir a decisão diferente da adotada pelo Tribunal a quo.

Estão, assim, reunidos os ónus a que estão sujeitos os recorrentes que pretendem a alteração da matéria de facto, tal como previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, pelo que cumpre proceder à reapreciação da prova indicada.

Seguiremos a ordem pela qual os factos sob censura foram enumerados pelos Recorrentes tratando em conjunto as matérias que se relacionem entre si, bem como as que são objeto de pedido de reapreciação com base nos mesmos meios de prova (alíneas 15, 16, 17, 18 e 29 dos factos provados e a) e c) dos não provados).


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Quanto à alínea 9 dos factos provados:

Pretendem os Recorrentes a alteração da redação desta alínea.

A redação resultante da sentença é esta: “Os prédios dos autores e dos réus são todos confrontantes entre si, embora as confrontações constantes do registo predial não estejam atualizadas.”.

Os Recorrentes pretendem ver eliminado o trecho “(…) embora as confrontações constantes do registo predial não estejam atualizadas”.

Alegam que dos documentos mencionados na motivação da matéria de facto (“(…) as certidões do registo predial juntas com a petição inicial (cf. os artigos 7.º e 110.º do Código do Registo Predial); - as cadernetas prediais, que permitiram aferir das dimensões dos prédios e a data de inscrição na matriz; - a escritura pública junta como documento n.º 7, que evidencia a compra e venda;”) resulta que existe um caminho que ladeia os prédios dos Autores.

Sustentam que da inspeção ao local dos depoimentos de NN e da Autora e dos “Documentos” resulta que tal caminho existe. Não indicam, no que tange a este ponto da matéria de facto, qualquer passagem dos depoimentos de NN e da Autora a reapreciar, afirmando, contudo, que da sentença não resulta o motivo pelo qual o Tribunal entendeu que as “confrontações estão desatualizadas”.

A fundamentação da prova da referida alínea 9 é a seguinte: “(…) o facto provado n.º 9, 1.ª parte, foi admitido por acordo por ocasião dos articulados, tendo resultado de prova diversa, como sejam o depoimento de NN e da prova por inspeção judicial”.

A redação dessa alínea resulta claramente do que foi alegado no artigo 13 da petição inicial que tem a seguinte redação: “Os imóveis atrás identificados são todos confrontantes entre si, pese embora as confrontações constantes do registo predial não estarem totalmente atualizadas.”.

Ora, ao contrário do que consta da motivação acima transcrita, o teor da alínea 13 da petição inicial não está admitido por acordo, tendo sido impugnado nos termos do artigo 574º, número 1 do Código de Processo Civil.

Da prova ouvida a pedido dos Recorrentes não resultou, como infra se verá, qualquer referência à alegada falta de atualidade das confrontações constantes do registo predial, apesar de, pela natureza das coisas, sendo as confrontações com outros imóveis feitas por referência aos proprietários confrontantes, ser plausível que a identificação destes não seja já a constante das descrições prediais.

Assim procede a pretensão dos Recorrentes devendo ser eliminado o trecho final (segunda oração), da alínea 9 dos factos provados.


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Alíneas 15) a 18) e 29) dos factos provados.

Está provado na alínea 15) que “O mencionado caminho está visivelmente marcado no solo em toda a sua extensão através de rodados das viaturas e terra calcada de anos, sem vegetação, sinais que se mantêm desde há mais de 20 anos.”. Os Recorrentes querem que a redação desta alínea passe a ser a seguinte: “O mencionado caminho está visivelmente marcado no solo em toda a sua extensão através de rodados das viaturas e terra calcada de anos, sem vegetação.”.

A censura dos Recorrentes dirige-se, pois, à menção da antiguidade dos vestígios visíveis no caminho em discussão nos autos.

Agrupando a apreciação deste facto com os das alíneas 16, 17, 18 e 29 afirmam os Recorrentes que foi errada a valoração pelo Tribunal de documento camarário de que entendem não resultar que o caminho objeto dos autos era usado de modo generalizado pela população. Apelam ao depoimento de OO, PP, QQ, RR, SS e da Autora mulher e ao conteúdo de fotografias juntas aos autos.

Defendem, ainda, que é contraditória com o teor do facto provado número 13 a afirmação pelo Tribunal a quo de que o caminho em discussão é usado pelos Autores nos termos dados por provados nas alíneas 16 a 18.

A redação da alínea 13 dos factos provados é a seguinte:

“Tal caminho[1] pertence aos réus e é usado para manutenção das culturas ali existentes (vinha em bardo, em sistema de condução de vinha contínua baixa, que consiste numa linha de esteios, com 1,5 a 2m de altura, espaçados entre si”.

Os factos que os Recorrentes querem ver julgados não provados são os seguintes:

“15. O mencionado caminho está visivelmente marcado no solo em toda a sua extensão através de rodados das viaturas e terra calcada de anos, sem vegetação, sinais que se mantêm desde há mais de 20 anos.

16. O acesso aos imóveis dos autores pelo menos há 60 anos, quer pelos autores, quer pelos seus ante possuidores, é feito através do caminho identificado no facto provado n.º 11, com a convicção de que a tanto tinham direito.

17. Por onde circulam pessoas, bens, animais, carroças, e nas últimas décadas veículos a motor, nomeadamente automóveis, tratores, máquinas e até camiões.

18. O que fazem de forma ininterrupta, à vista de todos e sem objeções dos réus ou dos seus antecessores, pelo menos até fevereiro de 2022.”.

Não se evidencia qualquer contradição entre o primeiro e os segundos. Ao contrário do afirmado pelos Recorrentes, o facto de os mesmos usarem o referido caminho e de o mesmo se situar, comprovadamente, no limite do seu prédio, mas dentro dele, não impede ou contradiz a circunstância de servir, também de acesso ao prédio dos Recorridos. De facto, estando em causa uma servidão de passagem resulta da própria definição legal da mesma que se tratará de um encargo imposto num prédio em proveito de outro prédio pertencente a um dono diferente (cfr. artigo 1543º do Código Civil). A menção do artigo 1543º ao “proveito exclusivo” do prédio dominante não tem, como aprecem pretender os Recorrentes, o sentido de que eles mesmos, enquanto donos do prédio serviente, não possam usar tal caminho de servidão. Da servidão decorre apenas uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido “de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão”[2].

A expressão adotada pelo legislador no artigo 1543º - “proveito exclusivo de outro prédio” -  mais não pretendeu senão afirmar que a servidão não pode ser pessoal, ou seja, visa “traduzir uma utilidade real de um prédio a favor de outro”[3] ou, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, [4]Quer pôr no devido relevo, tanto a inerência da servidão aos prédios a que ativa  ou passivamente ela respeita, como a circunstância de não ser lícita (…) a imposição de quaisquer encargos que não se relacionem com asa necessidades próprias de outro prédio”.

Donde, não procede essa via de censura à decisão da matéria de facto, baseada na alegada contradição, já que o facto de o caminho em discussão se situar em prédio dos Réus e ser também por eles utilizado não contende com o seu uso pelos Autores e seus antecessores ao longo dos anos.


***

Foram ouvidos os depoimentos indicados pelos Recorrentes, tendo-se optado pela sua audição integral pois os excertos indicados e transcritos eram muito segmentados e não permitiam a apreciação total do sentido desses depoimentos. Foram tais depoimentos concatenados com as fotografias e demais documentos identificados pelos Recorrentes e, ainda, com os que foram exibidos e referidos aos depoentes ao longo dos seus depoimentos.

***

A testemunha OO disse ter trabalhado, por volta do ano de 2010, em obras levadas a cabo pelos Autores, conhecendo também os Réus/Recorrentes. Foi confrontada com a fotografia de vista aérea do local em causa que constitui o documento número 9 da petição inicial tendo identificado as casas de ambas as partes e, perante tal imagem disse que o caminho ali marcado a azul (que corresponde ao que os Autores querem ver reconhecido como de servidão), foi aquele por onde passou quanto foi trabalhar na casa dos Autores, sem ter pedido autorização a ninguém. Disse que, por vezes se cruzava com outras pessoas ao passar nesse caminho sem nunca ter sido impedido de o fazer. Segundo disse ainda, usou tal caminho porque era o único acesso e porque foi por ali que foi atrás de quem o contratou quando foi “ver o trabalho”.

*

A testemunha PP, construtor civil, disse conhecer os Réus, mas não os Autores. Afirmou conhecer o terreno dos primeiros e saber onde é a casa dos Autores. Segundo disse, conhece o prédio dos Réus por ter sido dos seus pais tendo sido a sua mãe a vendê-lo ao Réu há cerca de 30 anos. Disse que na altura da venda o terreno estava a monte. Perguntado como era, antes da venda, a entrada para o prédio dos Réus, disse que o caminho era bastante íngreme, num “estradão” que vai dos ... para ... e que tem ideia de não ser usado há muito tempo. Desconhecia se tal caminho tinha ou não natureza pública. Disse que desse estradão se virava à direita para entrar no terreno que foi dos seus pais e hoje é dos Réus e que no limite oposto deste há um combro/morro não havendo, por ali, qualquer acesso a qualquer casa, salvo a pé. Acrescentou que à data da venda aos Réus, nem se podia ali transitar porque o caminho estava cheio de mato embora, disse, muitos anos antes os pais lá tenham cultivado centeio.

Foi confrontado com fotografia que está junta com o documento número 1 da contestação dizendo que a entrada de que se recordava era um pequeno “quelho” e não a que se vê na fotografia, que, contudo, disse lhe parecer estar no mesmo local.

Disse saber que foram feitas obras na casa que é hoje dos Autores e que nessa altura (que não identificou temporalmente, mas terá sido necessariamente antes da compra do imóvel dos Réus à sua mãe), a mãe comentou com ele, que lhe tinham pedido para passar ali para levar materiais para a obra.

Ora, tal não se coaduna com o que antes alegara no sentido de que, seguindo em frente desde a entrada do prédio a partir do caminho, havia um combro no limite oposto que impedia a passagem de carros para as casas que hoje são dos Autores. Se assim fosse, nunca um carro poderia passar com os referidos materiais para a obra. Disse, depois, que apesar desse combro, era muito mais fácil passar pelo caminho em causa com os materiais, mesmo que um carro “não subisse” o combro, do que ficar mais aquém do prédio dos Réus com o carro e ter de os transportar a pé. Desta afirmação deduz-se que no momento das obras ali feitas pelos Autores (para que teriam pedido a dita autorização de passagem à sua mãe) o acesso ao prédio dos Autores continuaria, segundo a testemunha, impedida pelo dito combro no final do caminho que já então atravessava o prédio dos Réus. O que não se revela plausível, na medida em que a passagem seria, na sua versão, destinada à execução de obras o que obrigaria à passagem de materiais, mas também de trabalhadores e máquinas. Pelo que, ali existindo o referido combro intransponível por carro, não se percebe para que pediriam, então, os Autores passagem por tal caminho.

Deste depoimento decorreu, ainda, que a testemunha não conhece outro caminho para a casa dos Autores já que só comparou duas alternativas: a de se passar de carro até ao combro ou de se ficar aquém, junto da entrada do prédio dos Réus. O que acentua, desde já se adianta, a não prova do facto constante da alínea c) dos factos não provados.

A instâncias do mandatário dos Autores, ainda sobre a referida autorização pedida à sua mãe, não explicitou como deduziu por onde foi pedida e concedida a referida autorização, apenas tendo dito que deduziu que seria pelo mesmo local por onde antes já se passava, segundo ele, apenas a pé.

O que reitera que mesmo antes desse alegado pedido de autorização, já os donos dos prédios que hoje são dos Autores por ali transitariam.

Ora, a quinta foto junta a 30-11-2022 (referência 13822035) revela que já na data da mesma se passava com um jipe (cuja matrícula é de março de 2020) pelo caminho em causa nos autos não havendo, pois nessa data, qualquer combro ou barreira a separar tal caminho do prédio dos Autores. Da referida foto decorre claramente que o jipe que ali se vê provém do caminho em disputa e é manifesta a sua antiguidade sendo crível, pelas razões que infra se verão, que se trata de imagem de 2000/2001.

A testemunha disse, ainda, desconhecer se naquele lugar vivia alguém antes dos Autores.

Mais afirmou nunca ter visto nenhum trabalhador da Junta de Freguesia a limpar o caminho que dava acesso ao prédio da mãe, hoje dos Réus.

Ora, dos meios de prova testemunhais ouvidos e dos demais sumariados na motivação da sentença, bem como dos documentos infra melhor analisados, resulta inequívoco que o avô da Autora mulher habitou ali até à sua morte e que o caminho de ... é conservado há muito pela Junta de Freguesia ....

Foi manifesto que a testemunha tinha, desde há muitos anos, parco conhecimento do uso e até da configuração relativa dos prédios de Autores e Réus.

A instâncias da Mmª juíza disse que há muito tempo não passa nos prédios e caminhos em discussão afirmando claramente desconhecer como se acede “às casas” dos Autores.

Como já se afirmou e infra melhor se verá, este depoimento é contrariado pelos documentos número 8 e pelas respostas da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia à indagação feita oficiosamente pelo Tribunal.

Tal depoimento, aliás, foi desvalorizado pelo Tribunal no confronto com os demais que estão sumariados na motivação da decisão sob recurso, por não ter revelado o mesmo grau de conhecimento de outras testemunhas. Como se pode ler na sentença, “revelou um conhecimento do mesmo bem mais superficial do que as testemunhas que se vem de descrever”.

Como também bem salientado na motivação da matéria de facto, “Conforme se pode retirar do processo camarário que compõe o documento n.º 8 da petição inicial, de facto, terá havido uma alteração da configuração do caminho – que a própria testemunha também descreve – e que a mesma se deveu à necessidade de passar por ali com as máquinas para as obras dos autores. Donde, não tendo a testemunha conseguido pormenorizar os termos da autorização que mencionou (…) (e nem a data, acrescentamos nós), “(…) o Tribunal – acreditando embora no seu relato, que se afigurou isento e desinteressado – não pôde, com base apenas neste depoimento (e no do réu, cuja falta de credibilidade foi supra escalpelizada), e por confronto com o contributo (que se afigurou genuíno) da autora, das testemunhas que trabalharam para os autores, e do documento ínsito no processo camarário, concluir pela prova do facto referente à autorização dada meramente a título temporário e para as obras.”.

Ouvido e analisado o depoimento da testemunha PP nos termos acima expostos, concorda-se inteiramente com esta apreciação.


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QQ, agente da PSP reformado, perguntado sobre o seu estado civil disse “não sei Srª Drª, sei que há lá um caminho público” o que demonstra que sabia o objeto do litígio e o que lhe iria ser perguntado. Apesar disso, a serenidade e segurança do seu depoimento não fez pôr em causa a sua credibilidade. Disse ter saído dali há muitos anos e conhecer mal ambas as partes. Conhecia bem o local onde viveu durante muito tempo, tendo 77 anos à data do seu depoimento. Confrontado com as imagens que fazem parte do documento 8 da petição inicial e com o documento número 1 da contestação explicitou como se ia para casa do “Sr. LL” (avô da Autora mulher) indicou com a mão um caminho pelo qual este acedia à sua habitação dizendo que o caminho em causa nos autos era o único que dava acesso àquela casa. Isso porque, afirmou, o caminho que liga o ... a ..., que disse ser público, não dá acesso à referida casa. Assim, para ir para a mesma, tinha que se virar à direita numa bifurcação situada no referido caminho público de ..., seguindo por um outro, numa cota inferior.

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RR, com 57 anos à data do seu depoimento, disse ser vizinha dos Réus desde criança e não conhecer os Autores. Afirmou conhecer o caminho .../... e confrontada com o documento número 1 da contestação descreveu o percurso que os Réus fazem entrarem no seu prédio, identificando a vinha que se vê do lado direito como sendo destes. Afirmou que, quando era criança, ia ali cortar centeio para o seu tio, que era o caseiro do prédio que hoje é dos Réus e na altura era da família ....

Disse saber onde residia o Sr. LL, avô da Autora e, confrontada com as imagens que fazem parte do documento número 8 da petição inicial identificou o conjunto de casas que lhe foi indicado, explicando que o acesso às mesmas era feito por um caminho, que indicou mas que não é visível como tal (com marcas de passagem), em nenhuma das fotos que constituem o documento 8 ou o 9 da petição inicial. Admitiu, contudo, que o caminho em causa “não era muito bom”, mas que dava acesso a uma casa do sr. LL e que chamavam a tal lugar “calhaus”.

A instâncias do mandatário dos Autores disse ter deixado de residir no local com 21 anos (cerca de 36 anos ante do seu depoimento, portanto) e ter regressado há cerca de três anos. No entanto, às várias questões sobre onde passavam hoje pessoas que se dirigiam a casa dos Autores e o Réu quando tratava da vinha já disse, “que não estava a vigiar os vizinhos”. Acabou por admitir que via passar os donos da casa “dos calhaus” de jipe pelo caminho da vinha dos Réus. Perguntada em concreto sobre a entrada para o prédio dos Réus disse ser muito raro passar por ali e desconhecer se a entrada da vinha deles tem ou não um cadeado.

A instâncias da Mmª Juíza disse que o caminho que tinha identificado como de acesso à casa dos Autores se chamava “...” (nome que mais nenhum depoente usou) descrevendo-o como vindo de ... para baixo (...) passando pela casa dos Autores, caminho onde disse existir um tanque. Segundo a mesma era por ali que passavam as pessoas para irem para as casas ali situadas e para os prédios contíguos. O que, disse, deixou de ser tão frequente com o abandono do cultivo dos terrenos pelo que agora, admitiu, ninguém por ali passa. Desconhece-se, porque a testemunha não foi clara, desde quando deixou de se passar no referido caminho junto ao tanque, mas, recorde-se, a testemunha deixou de ali residir cerca de 36 anos antes de depor e só ali voltou a morar três anos antes do seu depoimento.

Quanto à forma como se passa então, mais recentemente, para as casas do que disse ser o “lugar dos calhaus” disse estar convencida que era por esse caminho público, mas admitiu desconhecer se nos últimos 20 anos se passa ou não pelo mesmo ou por outro percurso. Perguntada pela Mmª juíza o que sucedia se alguém daquelas casas se sentisse mal respondeu “se sentir mal, está mal porque não vai lá uma ambulância, não vai lá nada (…) ali só se passa de jipe”. Questionada, então, por onde passaria o jipe disse que podia ir pelo caminho antigo (cujo trajeto que tinha identificado no mapa embora ali não fosse visível) e que, se o mesmo não estiver em condições, “a Junta tem que o reparar”.

Do que resulta que o referido caminho junto ao tanque – passagem do caminho de ... para a casa dos Autores – não dá para que se passe de carro. Como infra melhor se verá, tal conclusão resulta também de outros meios de prova, nomeadamente de fotografias que revelam a natureza acidentada, em rampa de um carreiro que poderá ter ligado, há muitos anos, o caminho de ... com o prédio dos Autores, mas que dificilmente se descerá a pé e que não tem largura para passar qualquer veículo


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SS, filho dos Autores, que tinha 33 anos à data do depoimento descreveu o acesso à casa dos pais como consta da petição inicial e descreveu os sinais visíveis desse caminho, que disse ser ladeado por um morro/combro que acompanha toda a extensão do caminho pela sua esquerda e que à direita é ladeado por esteios que delimitam uma vinha.

Disse ter conhecido o imóvel desde os seus oito anos e recordar-se que era o pai quem limpava esse caminho antes de o prédio dos Réus ter começado a ser cultivado. Disse que o Réu marido chegou a limpar uma ou duas vezes, a pedido dos pais, o prédio destes.

Afirmou que só se vai até à casa dos pais de jipe ou a pé e que quando vai lá de carro o deixa estacionado mais abaixo e sobe até casa dos pais a pé pelo referido caminho junto à vinha.

Referiu ter sabido da colocação de um portão no caminho pelos Réus cerca de um ano antes do seu depoimento, através da mãe, que disse que lhe telefonou muito revoltada, sentimento que disse que ambos os pais mantinham até à data do seu depoimento, desde logo porque ficaram impedidos de aceder de jipe à sua casa e assim ficaram atrasadas as obras que tinham em curso.

Identificou o local onde se situam os pilares que delimitam a entrada do prédio dos pais, que disse terem sido ali colocados entre 2000 e 2015, não conseguindo precisar a data com mais rigor.

Disse que se se seguir no caminho de ... vindo do ... e se não se virar à direita para aceder a casa dos pais, antes continuando a subir, há um tanque, mais acima desconhecendo de quem são os terrenos que ali se situam e de quem é esse tanque e afirmando ser impossível aceder por esse lado para casa dos pais. Disse que podiam atravessar a pé os campos, cujo proprietário desconhece, que separam a casa dos pais do caminho de ..., mas que junto ao tanque o caminho é difícil, por muito acidentado. Segundo explicou, seguindo essa via, iria dar-se à traseira das construções sitas no prédio dos pais.

Admitiu nunca ter visto o Réu quando passava para casa dos pais.

Daqui pretendem os Recorrentes retirar a conclusão de que o eventual uso do caminho pelos Autores podia ter sido feito sem o seu conhecimento, não sendo o uso dos Autores visível e público.

Todavia, como se demonstra das diversas fotografias juntas aos autos, mesmo as aéreas e do vídeo junto com a petição inicial, são manifestamente aparentes e antigos os sinais de uso do referido caminho até aos prédios dos Autores. O facto de quer estes quer os Réus não residirem no local, usando as casas apenas aos fins de  se semana e nas férias explica que a frequência com que se cruzavam, mas não impõem que se conclua que os Réus desconhecessem por completo que era por ali que os Autores passavam para acesso ao seu prédio.


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A Autora mulher afirmou que sempre passou para casa dos seus avós, que agora é sua, pelo caminho de ..., seguindo deste pela direita junto à vinha dos Réus. Foi segura em afirmar que, continuando pelo caminho de ... provinda do ... e seguindo pela esquerda  não consegue aceder à sua casa. Disse que os seus avós sempre passaram no caminho junto ao prédio dos Réus, a pé, de carro de bois e de trator. Disse desconhecer desde quando passou a ser por ali a passagem, pois sempre se lembra de ser a única. Recordou que em vida do seu avô o mesmo também tinha que deixar “limpa uma leira” do seu prédio na continuação do caminho, porque por o mesmo caminho passava também um vizinho para um imóvel que ficava para além do seu.

Negou que alguma vez tenha sido pedida autorização aos Réus ou ao seu antecessor para ali passarem, pois, disse, sempre ali transitaram pacificamente. Explicou que há muitos anos, quando se plantava centeio no prédio que hoje é dos Réus, já ali havia um caminho, por onde passava o seu pai, de carro de bois com um arado, quando ia lavrar os terrenos do avô.

Afirmou que o Réu, quando procedeu à plantação da vinha a deixou com a configuração atual, deixando livre o caminho em causa, exatamente por saber que tinha que dar aquela passagem que sempre ali existiu.

Explicou que a colocação do portão pelos Réus foi consequência de uma chamada de atenção do seu marido ao Réu por ter deixado lenha da poda no caminho, o que, contudo, este apenas fez depois de tal lenha já ali estar há algum tempo e porque, nesse dia, ao passar, o Autor viu o Réu na poda e se proporcionou dizer-lhe que não deixasse a lenha no caminho porque tinha que passar sobre ela com o jipe. Nessa altura, disse, o Réu ficou muito revoltado e disse que iam deixar de poder ali passar porque o caminho nem era deles. Admitiu que depois de o Réu ter colocado grades para impedir a passagem ainda conseguiram passar a pé para sua casa, tendo, depois, os Réus, colocado uma rede na referida grade o que os levou a ter de avançar “pelo combro” – referindo-se à passagem entre o caminho de ... e a sua casa, junto ao tanque visível na foto número 11 da inspeção ao local, o que, afirmou, é muito difícil. Referiu espontaneamente que, mais tarde, foram lá de novo tendo deixado o carro estacionado mais abaixo do caminho público e que quando regressaram alguém tinha tirado as válvulas dos pneus.

Afirmou que de julho e até à decisão da providência cautelar esteve impedida de ir a casa, salvo nas duas ocasiões referidas, o que lhe tirou noites de sono por ter ali investido muito dinheiro, por ter muito gosto na casa que era do avô e porque, afirmou, se achasse que a casa não tinha acesso nunca teria ali investido o que investiu. Afirmou que não tentou voltar lá depois de ter passado por cima da cerca a pé, porque não conseguia entrar senão dessa forma e porque se sentia vigiada e foi seguida, quando o fez, pelo filho dos Réus. Assim, porque não se queria “chatear” não tentou ir de novo.

Revelou isenção na admissão de que não ficou impedida de fazer a vindima porque só tem uma videira de uvas de mesa, enxertada pelo próprio Réu. Descreveu as árvores de fruto que lá tem plantadas e disse que, nessa altura, várias tinham fruta para colher embora outras já tivessem colhido. Segundo explicou apesar de ainda conseguir lá ir a pé pelo combro, deixou de ir porque se sentia inibida. Disse desconhecer o valor do seu prejuízo admitindo que as frutas eram para consumo próprio e para dar. Afirmou ainda que algumas coisas que tinha no frigorífico ficaram estragadas no tempo em que lá deixaram de poder ir.

Explicou que a casa dos seus avós nunca ficou desabitada tendo, contudo, desde a morte do seu avô, passado a ser usada apenas ao fim de semana e nas férias pela sua mãe.

Segundo ela, sempre conseguiu aceder ao prédio em causa de jipe, mas não de carro.

Afirmou que a Junta de Freguesia sempre arranjou o caminho de ... até à sua entrada, entendendo que esta é junto da bifurcação com o referido caminho de .... O que disse ser seu entendimento, pois acha que o caminho é dela na medida em que, explicou, não tem outro.

Disse que outras pessoas passam no caminho de ..., mas que neste, a partir da bifurcação à direita com a entrada do caminho em disputa nos autos, para quem segue pela esquerda, a Junta já não arranja o referido caminho e que a partir dali mesmo de jipe é muito difícil passar sendo impossível descer de jipe desse caminho para o seu terreno.

A instâncias da Mmª Juíza que foi ao local e se referiu a esse possível acesso como um “carreiro”, disse que não podia entrar por ali por “não fazer rappel”. Disse mesmo que era muito perigoso ir por ali alegando que já sofreu uma queda naquele local, em passeio, pelo que nunca mais ali quis passar.

Admitiu que muitas das vezes que passou para sua casa poderá não ter sido vista pelos Réus ou mesmo pelos seus antecessores, mas que muitas outras o Réu marido a viu, bem como ao seu marido. O próprio Réu, segundo disse, ali passou para ir ao terreno dela para trabalhar no mesmo, o que fez várias vezes.

Não conseguiu precisar quantas vezes terá encontrado ou visto o Réu ao passar pelo caminho para sai casa, mas disse que era frequente, quando lá iam, sobretudo aos fins de semana e férias.

Exibidas as fotos constantes do documento número 8 da petição inicial e os documentos 1, 3, 4 e 5 juntos a 30-11-2022 (referência 13822035) identificou o jipe que tinha na altura, o seu pai, a sua irmã e o seu cunhado e um seu filho que disse ter, então, cerca de cinco anos, o que é plausível face á sua aparência, todos junto da construção em pedra que ali então existia e que ela e o seu marido restauraram. Datou a fotografia como sendo de 2001 ou próxima desse ano, pois o filho ali retratado tem agora 27 anos. Segundo disse o seu jipe tinha entrado pelo caminho em causa, pois não tinha mais por onde passar. Mas, disse, nessa data a casa ainda nem era dela, era do seu cunhado e da sua irmã, também ali presentes, como se vê na fotografia.


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No auto da inspeção ao local está identificada na fotografia número 11 uma local de possível passagem entre o caminho de ... e a casa dos Autores ao lado de um tanque que fica do lado direito quem vai de ... para .... Da referida fotografia é nítido que tal passagem é em rampa acentuada e muito próxima do referido tanque que fica em nível de cota muito inferior. Bem como é nítido que nela não há qualquer vestígio ou marca de que seja usada como caminho por quem quer que seja. Tal rampa situa-se a sudeste do prédio dos Autores (considerada a imagem aérea, legendada, constante do auto de inspeção ao local).

Donde, a mera referência de que um dos prédios dos Autores confronta com caminho a nascente e a poente (o artigo 100) não é bastante para que se conclua que há de facto ligação do referido prédio com via pública.

Desde logo é manifesto que das fotografias aéreas não resulta vestígio de qualquer caminho público, ou outro, a poente. Acresce que o caminho a nascente/sul não dá acesso ao referido prédio dado o caráter acidentado da rampa ali existente que nem permite uma passagem segura a pé. Além do que, como infra se verá na análise do documento número 8 junto à petição inicial, a Junta de freguesia e a Câmara consideraram, até à queixa do Réu ali apresentada em 2022, o “Caminho ...” como público, sendo ele o identificado pelos Autores como de servidão. Donde, a referência ao caminho situado a nascente que consta da matriz pode dizer respeito, exatamente, ao caminho de servidão que se discute nos autos e que foi considerado público pela própria autarquia.
Do artigo 12º, número 1 do Código do IMI (DL 287/2003 de 12 de novembro) resulta que as matrizes prediais sãos “registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários.”
Tais inscrições são feitas com base na declaração do sujeito passivo, nos termos do previsto no artigo 13º, número 1 do mesmo Diploma e devem especificar, nos termos do artigo 91º do mesmo, “a localização e nome do prédio, quando o tenha, confrontações ou número de polícia, quando exista”.
Nos termos do artigo 12º, número 5, as inscrições matriciais só constituem presunção de propriedade para efeitos tributários.
Donde, quanto à delimitação do imóvel reivindicado por referência as suas área e confrontações constantes quer na Conservatória do Registo Predial quer junto da Autoridade Tributária, não estava o Tribunal vinculado por qualquer presunção decorrente da lei.


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O documento número 8, várias vezes exibido aos depoentes acima identificados, contém uma declaração do presidente da junta de Real e refere-se ao caminho em disputa nos autos, que foi ali identificado como “Rua ...” que partia do caminho de .... Do seu teor resulta que até 30-06-2022 o caminho em disputa nos autos era identificado pelo Sistema de Informação Geográfica (SIG) a como “Rua ...” embora não fosse limpo pela Junta que apenas tratava da manutenção do caminho de .... Da imagem que consta de fls. 17 desse documento, fotografia aérea identificada como sendo do IFAP/ICNF[5] e onde estão identificadas as localizações dos contadores do fornecimento de água da rede pública, consta a identificação do caminho em causa como “Rua ...”. Todavia, a 30-06-2022 o Presidente da Câmara de Castelo de Paiva informa que iria ser retirada tal designação toponímica por falta de certeza sobre a natureza pública desse caminho.

O documento em apreço retrata um processo camarário de averiguação sobre a dominialidade do caminho em discussão dos autos que foi iniciado por participação dos Réus, em 14 de fevereiro de 2022.

Dele resulta que pelo menos até essa data a Junta de Freguesia ... e a Câmara Municipal de Castelo de Paiva qualificavam tal caminho era público, razão pela qual tinha toponímia. O que é consentâneo com a declaração da Autora que além dos prédios que eram do seu avós e agora são seus, o referido caminho servia ainda outros, situados para além daqueles.


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Tendo o Tribunal, oficiosamente, averiguado junto da Câmara de Castelo de Paiva e da Junta de Freguesia ... sobre a natureza do caminho de ... e do que deste parte seguindo em direção à casa dos Autores e se discute nos autos, obteve as seguintes informações:

A Câmara Municipal de Castelo de Paiva afirmou que nas cartas militares das décadas de 1940 e de 1970 têm representação gráfica do caminho e da casa que hoje é dos dos Autores sendo que aquele faz ligação a estas. Os referidos caminho e casas eram as que foram assinaladas em imagem anexa ao ofício do Tribunal que solicitou tal informação e que, segundo a ata de 17 de maio de 2023 é a que consta de fls. 6 verso do documento 8 da petição inicial[6].

A informação foi, pois, pedida – de forma muito oportuna –, com rigor e detalhe não havendo por que duvidar da reposta, emanada de entidade pública e isenta.

A Junta de Freguesia ..., por sua vez, informou que as cartas militares e o Serviço de Informação Geográfica sugerem a existência de um caminho público a confluir com o caminho de ... no lugar de ....

Ou seja, a antiguidade do caminho em discussão é indiscutível tendo mesmo sido durante muitos anos qualificado como público e assim nomeado pela autarquia que, contudo, terá revisto essa qualificação em consequência de denúncia dos Réus.

Não resulta das regras da experiência, como pretendem os Recorrentes, que antes da plantação da vinha, quando o prédio dos Réus era cultivado a centeio – o que nem se logrou apurar até quando terá acontecido, sabendo-se apenas que quando lhes foi vendido estava a  monte como afirmou a testemunha PP -, nenhum agricultor deixaria uma faixa de terreno com a largura de 2, 60 para agricultar tais prédios. Pelo contrário, tendo-se provado que tal faixa foi sempre usada para acesso aos prédios que hoje são dos Autores, é manifesto concluir que apenas por causa desse seu destino, de servidão de passagem, tal faixa era mantida livre, o que os Réus também fizeram ao plantar a sua vinha.

Da concatenação destes meios de prova resulta a absoluta falta de fundamento para a pretendida alteração dos factos provados sob as alíneas 15) a 18) e 29), que se mantêm inalteradas.


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Quanto à alínea 25) dos factos provados os Recorrentes, mais uma vez, indicam o depoimento da Autora mulher, transcrevendo-o em parte, e defendem a sua insuficiência para a prova da referida alínea.

Quanto a esta matéria, contudo, o Tribunal já ouvira o depoimento do seu filho, a testemunha SS, como consta da análise do seu depoimento acima sumariado. A Autora foi consentânea e segura na descrição do transtorno e desgosto sentido no tempo em que esteve impedida de ir a sua casa pelo caminho em questão e da preocupação que o conflito dos Réus lhe gera a si e ao seu marido.

Donde, a prova reapreciada não é de molde a pôr em causa a convicção gerada no Tribunal a quo sendo os depoimentos da Autora e da testemunha SS bastantes à prova do facto da alínea 25, por seguros e explicativos e porque são plausíveis os padecimentos por eles descritos, em face do conflito vivido.


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As alíneas a) e c) dos factos não provados, que os Recorrentes querem ver julgados provados, têm o seguinte teor:

“a) Os autores, por volta do ano 2000, solicitaram a autorização dos réus para transporte de materiais para os seus prédios que se encontravam em reconstrução, passando pelo caminho do prédio dos réus, à data propriedade da família ..., que nisso consentiu, por cortesia de vizinhos e de forma temporária; (…)

c) O caminho identificado no facto n.º 11 não é o único acesso aos imóveis dos autores.”.

Nenhum dos meios de prova indicados pelos Recorrentes, como acima se descrevem, confirma o teor da alínea a) salvo o de depoimento de PP que apenas disse que a sua mãe comentou que tal autorização lhe fora pedida, sem indicar quando tal aconteceu e nem saber descrever por onde era pretendia a referida passagem e por onde foi autorizada.

Como resulta da análise crítica desse depoimento que acima se fez, o mesmo revelou que a testemunha tinha um conhecimento muito parco da configuração dos terrenos e do caminho em causa e revelou-se contraditório ao afirmar existir um combro entre o caminho em discussão e o prédio dos Autores que não permitia que se passasse de carro, quando, alegadamente, foi isso que os mesmos terão pedido à sua mãe e o que por ela foi autorizado já que estavam a realizar obras no imóvel.

Quanto à alínea c) dos factos não provados, remetendo-se pelo que acima já se explanou sobre o que as imagens do local constantes da petição inicial e do auto de inspeção revelam e para os depoimentos supra analisados, é manifesto concluir que o caminho alternativo indicado pelos Réus não confronta diretamente com o prédio dos Autores e que do referido caminho para a casa destes há um pequeno declive, acidentado, que mal permite a passagem a pé e por onde é impossível passar de carro.

Transcreve-se, por inteiramente pertinente, a fundamentação da convicção do Tribunal a quo decorrente da inspeção ao local - que, pela própria natureza dessa prova não pode ser cabalmente apreendida por este Tribunal - que, a este propósito é exaustiva e lógica e confirma o que acima se afirmou sobre esta matéria:

Através dessa prova, o Tribunal conseguiu compreender que, de facto, existe uma forma de aceder ao prédio dos autores a partir do caminho público que liga ... a ... – junto ao tanque mencionado por várias testemunhas e visível na imagem de vista aérea, de fls. 17 do documento n.º 8 da petição inicial, e ainda na fotografia n.º 11 do auto de inspeção ao local –, mas que essa passagem não tem marcas visíveis ou delimitação, não está identificada, nem é percetível se se trata de um verdadeiro caminho ou se é apenas parte dos prédios ali existentes. No fundo, o que ali existe é um espaço amplo e não delimitado, desconhecendo o Tribunal se, ao passar ali, invadiu propriedade privada ou se usou um acesso público. Percecionou-se, ainda, que, a ser um caminho – seja ela público ou privado –, o mesmo tem uma inclinação muito acentuada e que não permite a passagem em segurança pelo menos de veículo, sendo que a passagem a pé é bastante exigente e algo perigosa, até. Nessa mesma inspeção judicial, o Tribunal conseguiu medir o caminho, para uma cabal compreensão da sua extensão e largura. Percecionou, ainda, as distâncias e a falta de visibilidade entre a casa dos réus e a vinha, pelo menos a partir da maioria das zonas desses prédios, assim melhor compreendendo os depoimentos prestados e a respetiva verosimilidade.”.


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Por tudo o exposto, a matéria de facto apenas será alterada quanto à alínea 9) dos factos provados que passará a ter a seguinte redação:

Os prédios dos Autores e dos Réus são todos confrontantes entre si.


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2-

Dão-se aqui por reproduzidos os factos já acima transcritos com a alteração da alínea 9 acima determinada, cumprindo, agora, conhecer do mérito do recurso quanto às questões de direito invocadas.
a) Da pretendida revogação de decisão que reconheceu a constituição de servidão de passagem por usucapião.

A revogação da sentença pretendida pelos Recorrentes quanto ao reconhecimento da servidão de passagem constituída por usucapião tinha exclusivamente por base a pretendida alteração da matéria de facto, com especial relevo dado à existência de um outro caminho, público, que alegadamente confrontaria com o prédio dos Autores – o que não se provou -, e à inexistência de um uso contínuo, público e pacífico pelos Autores e seus antecessores sobre o caminho de servidão desde há mais de 20 anos - o que se provou.

Mantendo-se os pressupostos de facto em que se baseou a decisão de direito não há qualquer razão para a sua revogação já que, como bem salientado pelo Tribunal recorrido ficou demonstrado que “há mais de 20 anos que os autores e seus antepossuidores acedem aos seus prédios através de uma passagem devidamente demarcada, e visível por marcas de rodados, situada no extremo do prédio dos réus, onde nada é plantado. Fazem-no e sempre o fizeram na convicção de que o podem fazer. Não se tratou de passagem por mera tolerância dos réus. Não. Na verdade, esta foi uma posse boa para a usucapião, por manifestada em atos típicos do exercício do direito de passagem, acompanhados pela convicção de o fazerem por direito próprio.”.

Os Recorrentes alegam que a lei não permite a constituição de servidões clandestinas e várias vezes referem que a passagem dos Autores sobre o seu terreno não podia redundar em reconhecimento de constituição de qualquer direito de passagem por não ser deles, Réus, conhecida. O facto dado por provado na alínea 18, todavia, contraria tal alegação, tendo ficado provado que a passagem dos Autores pelo caminho em causa, da forma dada por provada nas alíneas 16 e 17, foi feita à vista de todos sem objeção dos Réus ou dos seus antecessores. Tal facto eram um dos que foi objeto de censura, pretendendo os Apelantes vê-lo declarado não provado, pretensão que improcedeu.

Dos factos provados resulta, assim, que os Autores passam há mais de 20 anos no caminho em causa, de forma visível, sem pedir autorização a quem quer que seja e sem a oposição de ninguém, tendo tal passagem deixado marcas visíveis e aparentes.

Mais, falhou a prova de que tal passagem por esse caminho era desnecessária por terem os Autores como aceder ao seu prédio por caminho público.

Donde, nos termos do previsto nos artigos 1261º, 1262º e 1296º do Código Civil os Autores podiam invocar a sua posse como fundamento para a constituição da servidão de passagem por usucapião, como previsto no artigo 1547º, número 1 do mesmo Diploma.

Não tendo os Recorrentes alegado outros fundamentos para a revogação da decisão que não a alteração dos factos provados e não provados que veio de se analisar e não tendo a única alteração feita qualquer relevância para a decisão, improcede a sua pretensão sendo desnecessária mais demorada fundamentação.


b) Da pretendida revogação na condenação dos Réus no pagamento de indemnização de 800 € aos Autores.

Esta pretensão dos apelantes resulta da requerida alteração da matéria de facto contida na alínea 25, pretensão que, como se viu não foi acolhida. De facto, permanece provado que “Devido à conduta dos réus, os autores sentiram incómodos, ansiedade e dormiram mal durante cerca de 3 meses, tendo tido de recorrer às autoridades duas vezes e, depois, de instaurar um procedimento cautelar”.

Donde falha esse pretendido fundamento para revogação da decisão ora em análise.

Alegam ainda os Apelantes que  “ O Tribunal justificou de forma vaga a arbitragem de uma compensação de 800€ por uma alegada boa relação de vizinhança que foi agora interrompida.(…) O Tribunal não se pode permitir fixar uma indemnização de 800€ por uma consideração de tal forma vaga e insustentada e por mera referência a valores no âmbito de outros processos que pouco ou nada têm a ver com os dos autos.

Ora, como resulta do manancial dos factos provados, o que relevou para a fixação da referida indemnização foi o seguinte (que é bem mais do que uma compensação pelo termo de uma boa relação de vizinhança):

“19. No dia 14 de fevereiro de 2022, o réu instaurou Petição/Exposição junto do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva, peticionando o seguinte: «O requerente e proprietário do artigo rústico denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia .... Em determinada data permitiu no início do artigo a passagem de materiais e pessoas para acesso a uma obra onde se construiu um artigo urbano. A obra foi concluída e as pessoas continuaram a usar o meu artigo como passagem. Ora, bem perto existe um caminho público, não precisando ninguém usar o meu artigo como passagem. Consultei os serviços da Câmara e obtive informação que existe uma petição para Rua .... Não fui consultado para tal, por isso venho solicitar a reposição da área do meu artigo rústico, como inicialmente existia com a finalidade de fechar a passagem».

20. A Junta de Freguesia ..., juntamente com a Câmara Municipal de Castelo de Paiva, proferiu decisão final no processo n.º ..., depois de analisado o peticionado pelos ora réus, identificado no facto precedente, no sentido de não avançar com a atribuição da denominação toponímica de “Rua ...” ao caminho identificado no facto provado n.º 11, por não haver certeza se o mesmo era público.

21. Após a decisão administrativa do processo n.º ..., proferida em junho de 2022, os réus, em dia não concretamente apurado, mas no intervalo dos dias 18 a 23 de julho, colocaram algumas pedras e um portão com dizeres «privado» no início do caminho identificado em 11., junto ao caminho ..., e entre os dias 23 de 30 de julho de 2022, um portão tipo cerca em ferro, com dizeres «privado» no início do caminho identificado em 11., junto ao caminho ..., amarrado nas duas extremidades, impedindo a passagem de viaturas e pessoas, ao que acrescentaram uma rede com cerca de 1m de altura, em toda a largura do caminho.

22. Em virtude do facto que antecede, os autores não conseguiram aceder de carro aos seus prédios entre os dias 23 de julho e 14 de outubro de 2022.

23. Até então, os autores acediam aos seus prédios 2 a 3 dias por semana, sobretudo aos fins de semana, com amigos e familiares próximos.

24. A conduta dos réus perturbou o uso e fruição dos imóveis pelos autores, nomeadamente no acesso, no convívio, na realização de refeições, na receção de amigos, no descanso, nos momentos de lazer, na limpeza das habitações, e na pernoita dois a três dias por semana.

25. Devido à conduta dos réus, os autores sentiram incómodos, ansiedade e dormiram mal durante cerca de 3 meses, tendo tido de recorrer às autoridades duas vezes e, depois, de instaurar um procedimento cautelar”.

26. A conduta dos réus tem origem num desentendimento que autor e réu tiveram em fevereiro de 2022, acerca da limpeza dos terrenos, durante o qual este disse àquele «então vais ver o que vai acontecer ao caminho», sendo que antes disso autores e réus sempre tiveram boas relações e vizinhança.”.

Como se viu, está reconhecida a existência de uma servidão de passagem “que onera o prédio rústico denominado «...», descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva sob o nº ...11 e inscrito sob o artigo matricial rústico nº ...74 da freguesia ..., Concelho de Castelo de Paiva, Distrito de Aveiro, sito no Lugar ... da citada freguesia ..., a favor dos prédios descritos nos factos provados n.º 1.a. e 1.b., consistente na passagem, a pé e de carro, para acesso a estes prédios, a partir do caminho público denominado ..., sobre aquele prédio denominado «...», através de um caminho com a largura aproximada de 2,60 metros e numa extensão de aproximadamente 102 metros, que se inicia no entroncamento daquele caminho público e termina no início dos prédios dos autores.”.

A constituição da servidão em causa por usucapião tem por consequência que os seus efeitos se retrotraem à data do início da posse, nos termos do previsto no artigo 1288º do Código Civil.

Ora, ficou provado que os Réus impediram o gozo do referido direito dos Autores, direito esse de natureza real, por motivo de discussão sobre a limpeza dos terrenos e que, por isso estes deixaram de poder de usufruir dos seus imóveis como antes faziam, aos fins de semana, tendo por isso prescindido de momentos de lazer e descanso e tendo ficado ansiosos com a situação de litígio com os seus vizinhos. O que se prolongou por quase três meses

Bem se concluiu, pois na sentença recorrida que conduta dos Réus foi ilícita, na medida em que violou direito real dos Autores, culposa, na medida em que se traduziu em dolo, direto, ao impedir fisicamente a passagem dos mesmos para o seu imóvel, e foi causadora dos descritos danos.

Os danos, no caso, consubstanciam-se nos padecimentos morais sofridos pelos Autores, que estão provados e decorrem da apurada atitude dos Réus. Esses padecimentos são consequência direta das atitudes dos Apelantes sendo inquestionável a afirmação da sentença da existência de nexo de causalidade entre os seus apurados comportamentos, ilícitos, e os apurados danos.

Os Apelantes pretendem, contudo, que tais danos não são de indemnizar.

No que tange ao ressarcimento por danos não patrimoniais a solução legal vigente entre nós optou por uma cláusula geral, expressa no artigo 496º do Código Civil, que, todavia, tutela apenas os danos mais graves excluindo a compensação de meros incómodos, transtornos ou aborrecimentos.

Dado o óbvio afastamento quer da possibilidade restauração natural, como em todos os casos em que não puder ser averiguado o valor exato dos danos, há que julgar com recurso à equidade – artigo 566º, número 1 e 3 do Código Civil.

A necessidade de recurso à equidade resulta desde logo da aplicabilidade aos autos do artigo 496º do Código Civil, pois estamos apenas perante danos de natureza não patrimonial pelo que não cabe repor a situação patrimonial prévia ao dano, mas tão-só compensá-lo.

Os danos não patrimoniais apenas não devem ser indemnizados se, pela sua gravidade, não se julgarem merecedores da tutela do direito. A este propósito referem Pires de Lima e Antunes Varela que “…a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não há luz de factores subjectivos, de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada, concluindo, pois, que cabe ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é merecedor da tutela jurídica”[7].

Ora, no caso em apreço, como os factos provados revelam à saciedade, não estamos perante um mero transtorno passageiro e diminuto ou um “aborrecimento”, pelo que deve ser fixada uma indemnização.

O recurso à equidade, menos capaz de assegurar uniformidade de critérios, permite uma certa margem de discricionariedade e uma maior e melhor ponderação das circunstâncias concretas de cada caso: o dano sofrido; as caraterísticas da vítima; o reflexo dos mesmos no seu quotidiano, etc.

É absolutamente adequada e recomendável a ponderação feita pelo Tribunal a quo de decisões jurisprudenciais de tribunais superiores em que se tenham fixado indemnizações por danos idênticos.

De facto, essa forma de ponderação permite evitar arbitrariedade e desigualdade de tratamento de situações idênticas. Donde, não só não é de censurar, como fazem os Apelantes, como é de reconhecer como adequada tal ponderação de outras decisões judiciais, o que, aliás, ocorre de forma recorrente em diversas sentenças e Acórdãos quando se trata de ressarcir danos em situações em que não se pode lançar mão do critério previsto no artigo 566º número 2 do Código Civil (que manda que se calcule  diferença entre duas situações patrimoniais do lesado: a que tem após o dano e a que teria se os mesmos não tivessem sido sofridos).

Está em causa, nos autos, calcular o ressarcimento do dano consistente: no impedimento de uso de servidão de passagem pelos Autores desde 23 de julho a 14 de outubro de 2022; na consequente diminuição do gozo do seu prédio, para onde deixaram de poder transportar mantimentos e outros objetos de volume ou peso não suscetível de ser transportado a pé; na ansiedade que tal situação lhes causou; e no litígio, também judicial, que por causa dos Réus tiveram de manter.

A quantia fixada pelo Tribunal recorrido, de 800 €, é, perante estes danos, absolutamente adequada, sendo oportuna e exaustiva a descrição que ali faz de três decisões de tribunais superiores em que foram fixadas indemnizações por violação do direito de passagem[8] tendo sido feita a ponderação das diferenças relevantes entre as situações ali julgadas e a situação dos autos.

Como tal, confirma-se, também neste ponto, a sentença recorrida.


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Face à improcedência da apelação dos Réus fica prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário formulado pelos Autores que apenas requereram a ampliação do objeto do recurso a tal questão para o caso de procedência da pretensão dos Recorrentes.

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V – Decisão:

Nestes teremos julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos Recorrentes nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.



Porto, 19/2/2024
Ana Olívia Oliveira
Ana Paula Amorim
Teresa Fonseca
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[1] Por remissão para a alínea 11 será o caminho “(…) em terra batida, com a largura aproximada de 2,60 metros e numa extensão de aproximadamente 102 metros, o qual se inicia no entroncamento do Caminho denominado ..., e termina no início dos imóveis dos autores.”.
[2] In Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, Volume II, 2ª edição, página 614.
[3] Direitos Reais, Menezes Cordeiro, Lex, página 724.
[4] Op. cit., página 615.
[5] Instituto de Financiamento à Agricultura e Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas.
[6]
[7] Op. cit. I volume, página 499.
[8] Com particular acuidade a referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-12-2016, em que se confirmou condenação de indemnização de 900 € pelos danos não patrimoniais sofridos pelos Autores e decorrentes de impossibilidade de uso de servidão de passagem (disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/21bb1b722732c77e8025808e003aadc7?OpenDocument).