Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8156/19.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO COMERCIAL
PRÉDIO NÃO CONSTITUIDO EM PROPRIEDADE HOTIZONTAL
Nº do Documento: RP202402058156/19.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A lei reguladora do direito de preferência do arrendatário é a vigente na data em que se concretizou o acto de transmissão.
II - O objecto da preferência é o «local arrendado» e não o prédio onde se insere o arrendado.
III - O direito de preferência do arrendatário comercial, nos termos do artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº64/2018, de 29 de Outubro, está limitado ao local arrendado, objecto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência, nem sobre essa parte, nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda deste.
IV - Estando em causa a venda de um prédio e não a venda de uma “coisa juntamente com outra ou outras”, não é aplicável o regime previsto no artigo 417º do Código Civil.
Reclamações: Processo nº 8156/19.2T8PRT-A.P1
Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo
Relatora: Anabela Morais
Primeiro Adjunto: Manuel Fernandes
Segundo Adjunto: António Mendes Coelho

I_ Relatório
A Autora AA intentou a presente acção com processo especial para divisão de coisa comum contra BB e CC, alegando, em síntese, que A. e RR. são proprietários, em comum, sem determinação de parte ou direito, de o prédio identificado no art. 1º da petição inicial e que o mesmo é indivisível em substância, peticionando que seja posta fim à indivisão.
Os Réus contestaram a acção e deduziram reconvenção, peticionando o reconhecimento de que são proprietários exclusivos do aludido imóvel.
I.1_ Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, constando do dispositivo:
Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais:
- Julgo a presente acção provada, e nessa medida procedente, e em consequência:
- Declaro que a Autora e os Réus são proprietários, em comum, do prédio descrito no ponto 1) dos factos provados, sendo o mesmo indivisível em substância.
-  Condeno os Réus a reconhecerem que a Autora e os Réus são proprietários, em comum, do prédio descrito no ponto 1) dos factos provados, sendo o mesmo indivisível em substância.
- Julgo a reconvenção improcedente, por não provada.
- Absolvo a A. e os RR. dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé.
Custas da acção e da reconvenção a cargo dos Réus/reconvintes, por força do disposto no art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC”.
*
I.2_ Em 20/4/2021, foi proferido despacho de cujo teor consta:
“A requerente AA instaurou a presente acção especial de Divisão de Coisa Comum contra BB e CC.
Alegou que são proprietários, em comum, sem determinação de parte ou direito, de um prédio, melhor identificado no art. 1º do requerimento inicial.
Afirmou ainda que não pretende permanecer na indivisão do referido imóvel, mais alegando que o mesmo é indivisível em substância.
Devidamente citados, os RR. contestaram a acção e deduziram reconvenção, peticionando o reconhecimento de que os RR. são proprietários exclusivos do aludido imóvel.
A reconvenção foi admitida.
Nos termos do disposto nos artºs 926º, nº 3, 266º, nº 3, 6.º, n.º 1, 547.º e 548.º, todos do Código de Processo Civil, foi determinado que os autos passassem a seguir os termos do processo comum.
Foi suscitado e apreciado incidente de verificação e fixação do valor da reconvenção.
Dispensou-se a realização de audiência prévia, e foi proferido despacho saneador por escrito, fixando-se o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença em 20/12/20, que julgou a presente acção provada, e nessa medida procedente, e em consequência:
- Foi declarado que a Autora e os Réus são proprietários, em comum, do prédio descrito no ponto 1) dos factos provados, sendo o mesmo indivisível em substância.
- Foram os Réus condenados a reconhecerem que a Autora e os Réus são proprietários, em comum, do prédio descrito no ponto 1) dos factos provados, sendo o mesmo indivisível em substância.
Foi a reconvenção julgada improcedente, por não provada.
Foram A. e RR. absolvidos dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé reciprocamente deduzidos.
Assim, face ao decidido, concluímos que o prédio dos autos é indivisível.
Atenta a declaração de indivisibilidade do imóvel comum, o processo deverá prosseguir com a realização da conferência de interessados prevista no artigo 929º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Para a realização da conferência de interessados com vista à tentativa de
obtenção de acordo dos comproprietários para a adjudicação da coisa a algum ou
alguns deles, inteirando-se os demais em dinheiro, nos termos do artigo 929º, nº 2,
do Código de Processo Civil, designo o dia 17-6-2021, às 09.15 horas (e não antes
por manifesta indisponibilidade de agenda e de sala de audiências afecta a este Juízo).
Notifique, fazendo menção ao objecto da conferência…”.
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I.3_ Em 10/11/2023, AA e CC apresentaram requerimento com o seguinte teor:
Tendo ponderado a última proposta apresentada para a compra do imóvel, pelo valor de 305.000,00€ (trezentos e cinco mil euros) e face à desfavorável conjuntura de mercado, vêm, respeitosamente, informar que a proposta mereceu aceitação.
Termos em que se requer, a notificação do encarregado da venda e o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais”.
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I.4_ Por carta, datada de 8/2/2023, expedida para A..., Lda. foi a mesma  notificada:
“… para nos termos do artigo 1091º do CC e artigo 823º do CPC, em 10 ( dez) dias, informar aos autos se pretender usar o direito de preferência na venda realizada sob o imóvel, cuja proposta, já aceite, se anexa e pelo preço dela constante.
Nos termos do n.º 1 do artigo 824.º do CPC o preferente que pretenda exercer o seu direito deverá juntar com a sua comunicação cheque visado/bancário à ordem do agente de execução com 5% do valor da proposta.
Findo tal prazo, se o preferente não usar do seu direito será o imóvel adjudicado, nos termos constantes da proposta aceite”.
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I.5_ A..., Lda., na qualidade de arrendatária do prédio sito na Rua ..., no Porto, apresentou Requerimento, em 16/2/2023 – referência 44758738 -, com o seguinte teor:
“A A..., Lda. é arrendatária no prédio sito na Rua ..., no Porto.
2. Nessa qualidade, foi na data de 09 de Fevereiro de 2023 notificada pelo Sr. Agente de Execução para declarar nos presentes autos se pretende exercer o direito de preferência na venda do supra identificado imóvel no prazo de 10 dias.
3. Sucede que, nos termos do art. 1091.º do Código Civil, o prazo legal de que o arrendatário dispõe para exercer o direito de preferência é de 30 dias.
4. Apresenta-se assim manifesta a existência de lapso na notificação recebida quando alude a um prazo de 10 dias para o dito exercício.
5. Sem prejuízo, e por estar em prazo, desde já se confirma de forma expressa a intenção de vir a exercer o direito de preferência na aquisição do prédio dentro do prazo legal.
6. Requer-se, contudo, a V/Exa. se digne ordenar a rectificação da notificação recebida no passado dia 09 de Fevereiro, por forma a dela constar o prazo legal prescrito pelo art. 1091.º do CC….”.
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I.6_ Em 20/2/2023, foi proferido o seguinte despacho – referência 44758738:
Com cópia do requerimento apresentado notifique o Sr. Agente de Execução para informar o que tiver por conveniente.
Notifique os interessados nos autos para, querendo, se pronunciarem”.
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I.7_ A..., Lda., na qualidade de arrendatária do prédio sito na Rua ..., no Porto, apresentou Requerimento, em 2/3/2023 – referência 44889924 -, com o seguinte teor:
“1. Por requerimento apresentado nos presentes autos na data de 16 de Fevereiro de 2023, a Requerente, notificada na qualidade de arrendatária no prédio sito na Rua ..., Porto, respondeu à notificação para o exercício do direito legal preferência, dando aí nota da sua intenção de exercer o respectivo direito no prazo legal.
2. Requereu igualmente a rectificação da notificação recebida - que unicamente aludia ao prazo supletivo de 10 dias - no sentido de da mesma passar a constar a referência ao prazo de 30 dias que decorre do art. 1091.º do Código Civil.
3. Embora a Requerente não tenha até à presente data sido notificada da rectificação da antedita notificação, procedeu já ao depósito da quantia de €15.250,00 (quinze mil, duzentos e cinquenta euros), correspondente a 5% da proposta aceite de €305.000,00 (trezentos e cinco mil euros), através de cheque bancário à ordem do Sr. Agente de Execução.
4. Nestes termos, por ter legitimidade e se encontrar em prazo, deverá o exercício do direito de preferência ser tido como validamente efectuado, mais requerendo seja a preferente notificada para proceder ao depósito do remanescente do preço no prazo de 15 dias, nos termos e para os efeitos do art. 824.º, n.º2 do CPC e, consequentemente, para os demais trâmites processuais com vista à aquisição do imóvel”.
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I.8_ Por despacho de 10/11/2023, decidiu o Tribunal de Primeira Instância:
“Nos autos veio a Requerente A..., Lda., invocando a  qualidade de  qrrendatária no prédio sito na Rua ..., Porto, requerer a sua notificação para proceder ao depósito do remanescente do preço no prazo de 15 dias, nos termos e para os efeitos do artigo 824.º, n.º 2 do CPC e, consequentemente, para os demais trâmites processuais com vista à aquisição do imóvel.
Efetivamente, estabelece o artigo 824º n.º 2 do CPC que aceite alguma proposta, o proponente ou preferente é notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, da secretaria, a totalidade ou a parte do preço em falta.
Com efeito, nos termos do artigo 1091º do CC - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
- O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º.
- O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º.
- A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.
- É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
- No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.
- Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da Existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como Fundamento para esse prejuízo.
- No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
- Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.
O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18/9 veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.
Por outro lado, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2016, de 09 de dezembro, pronunciou-se no sentido de não julga inconstitucional a norma extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio.
O prédio cuja venda se pretende nos autos não está constituído em propriedade horizontal.
Nestes ternos, determina-se, antes de mais, a fim de aferir dos pressupostos do  invocado direito de preferência, a notificação da arrendatária para juntar aos autos o respetivo contrato de arrendamento.
Oportunamente, comprovada nos autos a invocada qualidade, deverá ser dado cumprimento ao estatuído no artigo 824º n.º 2 do CPC.
Notifique”.
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I.9_  Por Requerimento de 27/3/2023 – referência  45143467 -,  A..., Lda. procedeu à junção do “contrato de trespasse no âmbito do qual adquiriu, na data de 11 de Dezembro de 1985, o respectivo direito ao arrendamento”, constando dessa escritura, datada de 11de Novembro de 1985, intitulada “Trespasse”, que DD  e EE, em representação da sociedade “B..., Limitada” “disseram (…) que dão de trespasse à sociedade que os segundos representam  “A..., Limitada”, “livre de passivo e de qualquer encargo, um estabelecimento de talho instalado no rés do chão do prédio sito na Rua ..., da freguesia ..., desta cidade, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ...…”.
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I.10_ Em 4/5/2023, foi proferido o seguinte despacho:
“Resulta dos documentos juntos aos autos que a sociedade A..., Lda. é arrendatária apenas da parte do prédio, onde se encontra instalado o estabelecimento comercial “A...” e não da totalidade do prédio - prédio urbano, sito na Rua ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., da cidade do Porto, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ... (anterior artigo nº ..., da freguesia ...).
Estabelece o artigo 1091.º do CC que - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes; b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado. - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção. - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes. - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto. - Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo. - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior; c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado. - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.
Neste âmbito, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 299/2020, de 18/9, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.
Com efeito, tal como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 27-10-2022, O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.
Do exposto, decorre que não resultando dos autos que a Requerente A..., Lda. é arrendatária da totalidade do prédio e não se encontrando o prédio constituído em propriedade horizontal, inexiste direito de preferência.
Nestes termos, improcede a pretensão da Requerente A..., Lda.
Notifique.
Dê conhecimento ao Agente de Execução.
D.N.”
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Inconformada, a Recorrente “A..., Lda.” interpôs recurso do despacho de 4/5/2023, formulando as seguintes conclusões:
(…)
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Não foi apresentada resposta.
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Por despacho proferido em 25/10/2023, foi admitido o recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II_ Questões a decidir:
Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Assim, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se existe na esfera jurídica da  Recorrente, o direito legal de preferência de que a mesma se afirma titular, na compra e venda do prédio urbano, sito na Rua ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., da cidade do Porto, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ... (anterior artigo nº ..., da freguesia ...).
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III. Fundamentação de facto
Os factos a considerar, relevantes para a decisão são os que decorrem do relatório supra, sem prejuízo dos mais que se ponderarão na apreciação do objecto do recurso.
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IV. Fundamentação de direito
Insurge-se a Recorrente com o despacho proferido pelo Tribunal a quo que não lhe reconheceu o direito legal de preferência na compra e venda do prédio, na sua totalidade.
Invoca, entre o mais, que no «enquadramento dos autos, é efectivamente inócuo aos actuais proprietários verem a sua propriedade transmitida para a Recorrente ou para terceiros, já que a aquisição caberia, quanto ao prédio como um todo, ao preferente, além de nem sequer ter ocorrido qualquer negociação» e que o direito de preferência que «pretende exercer resulta de uma alienação num processo judicial, em que o surgimento de um proponente na aquisição do prédio terá decorrido de uma aceitação dos termos de uma licitação e não de uma negociação, o que elimina o argumento da falta de “liberdade de escolha do outro contraente», não se verificando «qualquer prejuízo para os proprietários pela transmissão a favor da Recorrente» cuja posição «desconsiderada em absoluto, carece igualmente de tutela».
Sustenta a Recorrente que «[e]fectuando-se uma análise da situação de facto à luz da actual redacção dos arts.1091.º, n.º1, alínea a) e 9 e 417.º do CC, torna-se forçoso concluir pela inexistência de fundamento para o não reconhecimento deste direito à Recorrente. Da leitura conjunta destes preceitos, poder-se-ia admitir que a questão do reconhecimento do direito de preferência seria discutível se a Recorrente apenas tivesse manifestado a sua intenção de preferir única e exclusivamente, em termos proporcionais, a parte do locado sobre a qual incide o arrendamento, exigindo que o preço da sua quota parte fosse também reduzido proporcionalmente; no entanto, o que se passa é exactamente o oposto, em que é dado ao preferente o preço global para a aquisição da plena propriedade do prédio e este acede às exactas condições para a transmissão da totalidade».
Salienta que «no prédio em causa apenas a parte locada à Recorrente se encontra arrendada, ao passo que o resto do prédio se encontra devoluto de pessoas e bens e em mau estado de conservação, presentemente insusceptível de ser colocado no mercado de arrendamento».

A questão que importa apreciar e decidir consiste em saber se, face à redação do artigo  1091º do Código Civil, na compra e venda de um prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário comercial de uma parte ou delimitada desse prédio, sem autonomia jurídica, tem na sua esfera jurídica o direito legal de preferência.

Resulta da sentença proferida na acção de divisão de coisa comum que o imóvel em causa é o prédio urbano, composto por “casa de três pavimentos”, sito na Rua ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., da cidade do Porto, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ..., anterior artigo nº ..., da freguesia ..., composto por “casa de três pavimentos, sita na Rua ..., da freguesia ..., da cidade do Porto.

Consta da escritura datada de 11 de Novembro de 1985, intitulada “Trespasse”, que DD  e EE, em representação da sociedade “B..., Limitada” «disseram (…) que dão de trespasse à sociedade (…) “A..., Limitada”, livre de passivo e de qualquer encargo, um estabelecimento de talho instalado no rés-do-chão do prédio sito na Rua ..., da freguesia ..., desta cidade, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ...

O estabelecimento é trespassado com todos os elementos que o integram, designadamente (…) o direito ao arrendamento…».

O prédio onde se situa o locado não se encontra constituído em propriedade horizontal e a compra e venda relativamente à qual a Recorrente pretende exercer o direito de preferência tem por objecto o prédio, na sua totalidade.

Á situação dos presentes autos é aplicável a lei em vigor à data da celebração do negócio, ou seja, o artigo 1091º do Código Civil com as alterações introduzidas pela Lei nº64/2018, de 29 de Outubro [entrou em vigor em 30 de Outubro de 2018 - cfr. respectivo artigo 3º).

Dispõe o artigo 1091º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei nº64/2018, de 29 de Outubro que:

“1. O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;

b) …

2. ...

3. …

4 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.

5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.

6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.

7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.

8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.»

Argumenta a Recorrente que “[a] remissão para a fundamentação constante do Acórdão n.º299/2020 do Tribunal Constitucional aponta no sentido de ser do n.º8 do art. 1091.º do Código Civil que o ora Recorrente colhe a sua legitimidade para exercer o direito de preferência, o que não só não corresponde à situação em causa dos autos, nem a Recorrente tal invocou”.

Todavia, resulta do nº 5 do artigo 1091º do Código Civil que os nºs 6 a 9 deste preceito legal apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.

Em anotação ao artigo 1091º do Código Civil, escreve Elsa Sequeira Santos [1], «O objecto da preferência é o local arrendado”. Este conceito fáctico de “local” não coincide com o conceito jurídico de prédio ou de fracção autónoma. Com efeito, o art. 1064º prevê que o regime deste contrato se aplica “ao arrendamento total u parcial de prédios urbanos e, ainda, a outras situações”.

Esta indefinição do que seja “local arrendado” deu origem a acesa discussão a que a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, visou pôr cobro. Era discutido na doutrina e na jurisprudência - e já era discutido no domínio do RAU – se o titular de arrendamento de um fogo de um edifício não constituído em propriedade horizontal tinha direito de preferência na alienação da totalidade do edifício. Não sendo o fogo uma fracção autónoma, não pode ser objecto de alienação separadamente do restante imóvel, pelo que o direito de preferência, a existir, teria de abranger todo o prédio.

A maioria da doutrina e da jurisprudência iam no sentido de o direito de preferência existir nestes casos (contra, entre outros, Oliveira Ascensão, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galão Telles, vol. III Direito do Arrendamento Urbano, Almedina, 2002, p. 254)[2].

Refere Elsa Sequeira Santos que «A eliminação da norma contida no nº2 do artigo 47º do RAU[3] (…) foi interpretada por alguma doutrina e jurisprudência como significando que deixara de poder acontecer uma situação em que existissem dois ou mais preferentes – o que tipicamente sucederia no concurso de preferências entre diversos inquilinos de partes de um edifício -, daqui se retirando a inexistência de preferência naqueles casos.

Continua a referida autora, «A expressão “local arrendado” foi usada pelos defensores de ambas as posições como corroborando a tese que perfilhavam. Assim, para a tese que entendia que não havia direito de preferência nestes casos, isso sucedia porque o “local arrendado” é apenas a parte do prédio objecto do arrendamento, e, não sendo esta parte autonomizável e passível de alienação, não há nada sobre que preferir”. Para os defensores da tese contrária, a lei garante a preferência sobre o “local arrendado”, não distinguindo a sua natureza jurídica, nem fazendo qualquer exclusão, pelo que a única forma de garantir a preferência sobre o local parcial seria afectar o local total». [4]

A Lei nº6/2006, de 27/2 voltou a consagrar, no artigo 1091º, o direito de preferência do arrendatário «na venda ou dação em cumprimento do local arrendado» e foi omitida qualquer referência a uma pluralidade de arrendatários, com direito de preferência. «Se na vigência do antigo RAU, a posição dominante, quer na doutrina, quer na jurisprudência, defendia a existência do direito de preferência mesmo não havendo coincidência entre o local arrendado e o prédio a alienar, depois da entrada em vigor da Lei nº6/2006, de 27/2, essa posição veio a alterar-se com a consolidação de uma corrente jurisprudencial que reconhece ao arrendatário direito de preferência  na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado apenas quando o contrato de arrendamento se refere a todo o prédio e não a parte dele (cfr. Ac. STJ 18.10.2018).[5] [negrito nosso]

Pronunciando-se sobre o direito legal de preferência, no Acórdão de 7/11/2019 [6], decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, “a questão em análise sobre a qual este Supremo é (de novo) chamado a pronunciar-se coloca-nos perante um problema de interpretação da lei, concretamente da norma do artigo 1091º, nº1, al. a), do CC (na redação aplicável), importando, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º, do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Nesta tarefa interpretativa, afigura-se-nos de toda a conveniência começar por delinear, em traços gerais, os antecedentes do regime jurídico do direito legal de preferência do arrendatário consagrado no art. 1091º, do CC, a fim de percecionar melhor os contornos da questão a decidir.

No citado Acórdão, após efectuada a análise da evolução do direito legal de preferência do arrendatário na legislação precedente, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça:
“O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, manteve a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento, repondo em vigor, no seu art. 3º, o art. 1091º, do CC (…) [que] face ao anterior art. 47º do R.A.U., deixou de fazer referência a «prédio urbano» e a «fração autónoma» (substituindo estas expressões por «local arrendado»). Além disso, eliminou qualquer referência a licitação entre os diversos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência.

Nesta conformidade, conhecendo o legislador a controvérsia gerada pelo art. 47º, do RAU e devendo presumir-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art. 9º, do CC), ao remover – voluntária e conscientemente - do art. 1091, nº1, al. a), do CC as expressões que permitiam justificar, segundo alguns, a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, parece-nos que deixou bem clara a sua intenção de restringir a preferência do arrendatário na venda ou dação do local objeto do contrato de arrendamento («local arrendado») aos casos em que o mesmo seja autonomamente transacionável, o que implica necessariamente a prévia submissão do prédio ao regime da propriedade horizontal”.[7]
Nesse Acórdão, pode ainda ler-se: “ao atribuir a preferência ao arrendatário, o legislador terá pretendido facultar-lhe o acesso à habitação ou instalações próprias, pondo termo ao arrendamento. E não mais que isso!
Sendo assim, admitir a preferência para além do local efetivamente arrendado traduzir-se-ia numa vantagem dada ao arrendatário que transcende o fim visado pela lei então em vigor.
Tal como observava Menezes Cordeiro, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pág. 262, “transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários.”.
Também Oliveira Ascensão perfilhava idêntica posição, in «Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano», Revista da Ordem dos Advogados, ano 51.º, I, 1991, p. 68, ao afirmar que a preferência «não tem por fim propiciar a expansão do direito para além do seu objeto».
De igual forma, sobre a extensão do direito de preferência do arrendatário, Januário Gomes, in Vida Judiciária, n.º 108, 2007, pág. 9, referia que “…num quadro de desvinculação do regime do arrendamento, a manutenção de direitos de preferência na venda não faz muito sentido.”.
Seguindo esta mesma orientação, escrevia também José Pedro Carneiro Cadete, in “Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, págs.7-8[7], que: “… a extensão do objeto da preferência a todo o prédio indiviso levantava vários problemas, nomeadamente nos casos em que existia mais do que um arrendatário de uma parte daquele. Por outro lado, extrapolava o objetivo da preferência no arrendamento, na medida em que não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse.”.
Idêntico caminho é seguido por Maria Olinda Garcia, in “O Arrendamento Plural. Quadro Jurídico e Natureza Jurídica”, pág. 163, aludindo ao princípio da coincidência entre o objeto do locado e o objeto da compra e venda. Em sentido contrário, pode, contudo, citar-se Pinto Furtado, in Manual de Arrendamento Urbano, 5ª ed., vol. II, pág. 817.
Em convergência com esta linha interpretativa, e na vigência do art. 1091º, do CC (na redação aplicável ao caso dos autos e que é – repete-se – a introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro), se tem pronunciado este Supremo Tribunal, designadamente nos acórdãos de 21.1.16, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, (Tavares de Paiva), de 24.5.18, proc. 1832/15 (relatado pela ora relatora) e de 18.10.2018, proc. nº 3131/16.1T8LSB.L1.S1, (Abrantes Geraldes).

Os arestos mencionados debruçam-se sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que não poderiam deixar de ser por nós especialmente ponderados, designadamente por força do disposto no art. 8º, nº3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”

Refere, ainda, «finalmente, que a interpretação normativa que acolhemos vai buscar ainda contributos ao disposto no art. 7º, nº3, da Lei nº 42/17, de 14 de junho, no qual se estabelece que “os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor”.

Na verdade, como se referiu no já mencionado acórdão deste STJ de 18.10.2018, a referida estatuição legal “deixa bem evidente a necessidade que foi sentida de assegurar uma tutela específica para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no art. 1091º do CC.

Com tal medida o legislador procurou prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal.”.

Com tais fundamentos, concluiu, o Supremo Tribunal de Justiça, no citado Acórdão:

«Nessa medida, a solução que defendemos colhe dos mencionados acórdãos argumentos reforçados no sentido de:

- O direito legal de preferência previsto no art. 1091º, do CC, na redação em vigor em 20.3.2019, estar confinado ao local que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;

- Se o prédio não estiver constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada».

No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 16/12/2021 [8]:

“1 – O artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal na venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.

2 – Tal interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica.”

Pronunciando-se sobre as alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, na redacção do artigo 1091.º, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 14/9/2023 [9]:
«Já no n.º 9 do mesmo artigo previu-se a possibilidade do prédio se encontrar na sua totalidade onerado com vários contratos de arrendamento, conferindo-se aos arrendatários a possibilidade de se coligarem no exercício do direito de preferência na compra do imóvel adquirindo-o num regime de compropriedade, na proporção da permilagem dos locados.
As soluções de proteção ao arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal aprovadas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, não contemplaram, pois, a possibilidade de este preferir na compra da totalidade do imóvel, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com a Lei n.º 42/2017, de 14 de Junho, que conferiu esse direito ao arrendatário de parte do imóvel em que esteja instalado um estabelecimento ou uma entidade de interesse histórico e cultural”.
Concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, “a atribuição de um direito de preferência aos arrendatários comerciais, industriais ou profissionais liberais, que se iniciou nos primeiros anos do século passado, justifica-se pelo interesse social e económico das atividades prosseguidas no local arrendado, as quais são favorecidas pela total disponibilidade do prédio onde se exercem e pela estabilidade e continuidade dessa exploração no prédio arrendado, tutelando assim, além do interesse económico do arrendatário, outros interesses, como a preservação de postos de trabalho, dos clientes ou utentes dos estabelecimentos e, sobretudo, das atividades instaladas no local arrendado. Como referiu AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, aqui, desvaloriza-se a propriedade do senhorio em detrimento de um outro valor: a proteção da atividade produtiva ou comercial – a proteção da empresa, numa palavra.
Já a atribuição do direito de preferência aos arrendatários habitacionais, com início em 1977, visou proporcionar a estes contraentes o acesso a casa própria, conferindo-lhes a estabilidade máxima na habitação, relevando a ligação do arrendatário com o imóvel locado por ele habitado durante um período de tempo significativo.
Se as limitações que qualquer direito de preferência causam à livre transmissão dos bens que a elas estão sujeitos, restringindo severamente a sua liberdade de disposição, eram coerentes com o vinculismo que caraterizou os arrendamentos quase durante todo o século XX, com a adoção progressiva de políticas liberalizadoras do mercado de arrendamento, essas restrições começaram a ser olhadas com desconfiança, tendo chegado a ser advogada e mesmo projetada a eliminação deste direito de preferência.
Se esta ideia não chegou a ser concretizada, com a aplicação do NRAU formou-se a consciência de que admitir a preferência na compra de um bem que excedia o local arrendado, como até aí vinha ocorrendo na preferência na compra da totalidade do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, pelo arrendatário de parte desse prédio, era conferir um benefício ao arrendatário que transcendia os fundamentos da atribuição de uma medida fortemente restritiva da liberdade de disposição do direito de propriedade, proporcionando a inadmissível intervenção daquele em lucrativos negócios imobiliários.
Daí que essa possibilidade não voltou a ser retomada, tendo-se procurado proteger o interesse do arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal através das soluções imaginativas, adotadas nos descritos n.º 8 e 9, do artigo 1091.º, do Código Civil, após as alterações promovidas pela atribulada Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.
Contudo, a norma do n.º 8, do artigo 1091.º, que resultou das alterações introduzidas pela Lei 64/2018, de 29 de outubro, foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 299/2020, de 16 de junho de 2020, do Tribunal Constitucional, por se ter entendido que a solução nela contida limitava desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, previsto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.
Face à consequente amputação do n.º 8, do artigo 1091.º, do Código Civil, o legislador não teve até hoje qualquer reação, tendo sobrevivido a previsão do n.º 9, do mesmo artigo, como instrumento de proteção ao arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, o qual, pode suscitar a interrogação sobre se qualquer um dos arrendatários pode adquirir a totalidade do prédio, face ao desinteresse dos demais, ou mesmo quando ele é o único arrendatário de uma parte do prédio.
Esta questão já se havia colocado, antes da declaração de inconstitucionalidade do n.º 8, do artigo 1091.º, do Código Civil, face à redação do referido n.º 9, do mesmo artigo, quando diz que podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam (sublinhado nosso), exercer os seus direitos de preferência em conjunto, sobre a compra da totalidade do prédio, o que aparenta que esse exercício não tem que ser desencadeado por todos os arrendatários, podendo preferir apenas alguns deles ou, no limite, só um deles, o que abriria a porta a que também o único arrendatário parcial de um imóvel pudesse preferir na compra da totalidade do prédio.
Na altura, entendeu-se que nessas situações o direito de preferência que a lei reconhecia ao arrendatário era apenas o previsto no n.º 8, do artigo 1091.º - direito à compra da quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão – permitindo o n.º 9 apenas que, existindo uma pluralidade de arrendatários, estes adquirissem em conjunto as suas quotas partes, as quais, somadas, abrangeriam a totalidade do direito de propriedade sobre o prédio. A faculdade admitida pelo n.º 9 não funcionava, pois, como uma alternativa ao direito reconhecido no n.º 8, sendo apenas uma vertente desse direito, aplicável apenas nas situações em que, existindo uma pluralidade de arrendatários de partes de um imóvel que somadas correspondiam à sua totalidade, todos eles pretendessem preferir na sua compra. Nessas situações, a preferência de cada arrendatário continuava a incidir sobre a quota-parte do prédio correspondente à permilagem de cada um dos locados, nos termos previstos no n.º 8, apenas se diferenciando, na medida em que a soma das quotas partes do prédio objeto de preferência perfaziam a totalidade do imóvel.
A expressão utilizada no n.º 9 - “que assim o pretendam” -, apenas traduzia a não obrigatoriedade deste exercício conjunto dos diversos direitos de preferência, podendo cada arrendatário se o preferir exercer isoladamente o seu direito de aquisição da quota-parte do imóvel correspondente à permilagem do seu locado, ao abrigo do disposto no n.º 8, sendo elucidativa a menção nesse n.º 9, que a aquisição se dava apenas “na proporção”, pelo que, em caso algum, um arrendatário poderá adquirir no direito de propriedade em jogo mais do que nele corresponde ao objeto do arrendamento.
Ora, após a declaração de inconstitucionalidade do n.º 8, do artigo 1091.º, do Código Civil, mesmo que se entenda que a nulidade dessa norma não afetou a aplicabilidade do disposto no n.º 9, do mesmo artigo, por pressupor a vigência da norma declarada inconstitucional, o disposto neste último preceito não se alterou, não ganhando uma dimensão que até aí não dispunha. A preferência reconhecida a uma pluralidade de arrendatários do mesmo imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, pelo n.º 9, do artigo 1091.º, do Código Civil, continua a reportar-se a uma aquisição, por cada um dos arrendatários, de uma quota do direito de propriedade na proporção da permilagem do locado no valor total da transmissão, pelo que, ao abrigo deste artigo, nenhum arrendatário de parte do imóvel poderá preferir na aquisição da totalidade do direito de propriedade e com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no n.º 8, do mesmo artigo, ficou irremediavelmente afastada a possibilidade do direito de preferência poder ser exercido apenas por alguns dos arrendatários parciais do prédio”.

Pronunciando-se sobre as alterações introduzidas pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 16/12/2021, já  citado, refere:
«Conforme resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º do CCiv., na sua actual redacção, os nºs 6 a 9 deste preceito legal apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.
Por outro lado, os nºs 1 a 3 mantêm a redacção anterior e o nº 5 corresponde, na sua primeira parte, ao anterior nº 4, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 6/2006, de 20 de Fevereiro, apenas se ressalvando a menção às especificidades previstas nos números seguintes em caso de arrendamento habitacional.
Somente o actual nº 4 é inovador, mas incide apenas sobre a forma como se dá conhecimento ao preferente da venda da coisa e o prazo de resposta deste, matéria que nenhum relevo tem para o caso dos autos».
No Acórdão citado, concluiu o Tribunal da Relação de Guimarães que a questão direito de preferência legal conferido ao arrendatário comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, na venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio, à luz do artigo 1091º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, «deve merecer a mesma resposta que já era dada no âmbito da anterior redacção do aludido preceito legal (…)», ou seja, «em face do artigo 1091º do CCiv., o arrendatário comercial de uma parte não autónoma de prédio urbano não goza do direito legal de preferência na venda de todo o prédio (fora do âmbito de aplicação do artigo 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14 de Junho)», sendo os fundamentos os seguintes:
i) O elemento literal: «O que a norma consagra, expressa e literalmente, é o “direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado”. O direito de preferência tem inequivocamente por referência o «local arrendado» e não qualquer outra realidade. Portanto, o objecto da preferência é o «local arrendado» e não o prédio onde se insere o arrendado».
ii) O artigo 9º, nº 3, do Código Civil:  de harmonia com o critério de interpretação previsto no artigo 9º, nº 3, do Código Civil, «[o] que se deve presumir é precisamente que o legislador quis utilizar a expressão “local arrendado” de forma uniforme e com o apontado sentido literal e gramatical. Esse sentido é bem nítido no artigo 1067º do CCiv., na parte em que, a propósito do “fim do contrato”, estabeleceu, no seu nº 2, que «quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões». Deixou aí bem claro que o “local arrendado” é o objeto físico do contrato de arrendamento».
iii) «O artigo 1091º, nº 1, é uma norma de natureza excepcional, pelo que não comporta aplicação analógica (artigo 11º do CCiv.). Portanto, mesmo que se considerasse que havia uma lacuna e que procediam as razões justificativas da regulamentação do caso análogo (v. art. 10º, nºs 1 e 2, do CCiv.), não se poderia recorrer à analogia.[10]
iv) «Os elementos introduzidos no artigo 1091º do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, permitem a conclusão de que o arrendatário comercial de uma parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal não goza de preferência na alienação do prédio como um todo. Desde logo, se na alienação do prédio urbano indiviso todo e qualquer arrendatário de parte deste pudesse exercer a preferência decorrente do disposto na alínea a) do nº 1 do dito artigo, seja relativamente a todo o prédio ou apenas quanto à parte que lhe está arrendada, o estabelecido nos nºs 8 e 9 seria tecnicamente desadequado e substancialmente incompreensível. Dificilmente se pode entender que a lei permite a aquisição de todo o prédio pelo arrendatário urbano não habitacional de apenas uma sua parte, quando apenas admite, como inovação (v. o processo legislativo, incluindo o veto presidencial), a aquisição de uma quota-parte ou proporção do todo pelos arrendatários habitacionais de uma parte não autónoma, deixando por regular a situação dos arrendamentos para outros fins de partes não autónomas». Para quê estabelecer um regime restritivo e burocrático para os arrendatários habitacionais, cujo objectivo declarado da lei foi protegê-los, e deixar para os arrendatários não habitacionais, devido à ausência de regulação, um direito mais amplo do que o daqueles? (…) Acresce que o nº 9, que subsiste por não se mostrar afectado pela referida declaração de inconstitucionalidade do nº 8, reconhece aos arrendatários do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal o direito de preferência sobre a totalidade do imóvel, o qual, sendo exercido na venda do prédio, implica a aquisição do mesmo em compropriedade, na respectiva proporção.
O problema é que tal regime apenas é aplicável, tal como resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º, «em caso de arrendamento para fins habitacionais». Não só isso resulta expressamente da letra do preceito, como foi intenção do legislador proteger o direito à habitação. O âmbito de aplicação dos nºs 6 a 9 restringe-se aos arrendamentos habitacionais.
v) O artigo 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14 de Junho: «O regime estabelecido neste diploma permite extrair duas ilações. Por um lado, que havia a necessidade de assegurar uma tutela própria para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no artigo 1091º do CCiv.(…)
Ora, se o legislador sentiu a necessidade de acautelar a situação dessas específicas lojas (além dos estabelecimentos, ainda beneficiam do regime as entidades arrendatárias reconhecidas como de interesse histórico e cultural ou social, o que alarga substancialmente o âmbito da norma), regra geral arrendamentos para fins de comércio ou indústria inseridos em prédios não constituídos em propriedade horizontal, então a conclusão lógica é que não estavam a coberto pelo direito de preferência consagrado no artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv.. De outro modo, não faria sentido estar a legislar relativamente a uma situação que já estava legalmente contemplada e prevenida.
Isto evidencia que antes da redacção dada ao artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tinha direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. Por outro lado, se assim era na vigência da anterior redação do artigo 1091º, por maioria de razão o é, relativamente aos arrendamentos para fins diferentes da habitação, em face da actual redacção do aludido preceito.
Uma vez que a intervenção legislativa apenas inovou no que respeita aos arrendatários habitacionais de imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, reconhecendo-lhes o direito de preferência a exercer nos termos do nº 9 do artigo 1091º, e tendo já anteriormente acautelado o direito de preferência dos arrendatários «de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local», naturalmente que isso permite concluir que ficaram, propositadamente, fora do âmbito daquela norma do Código Civil todos os demais arrendamentos de partes de prédio não constituído em propriedade horizontal.

vi) “[P]arecendo-nos evidente que a anterior redacção do artigo 1091º do CCiv., já consagrava o princípio da coincidência entre os limites do objecto do arrendamento e os limites do objecto em relação ao qual se exerce a preferência, que havia sido defendida por Oliveira Ascensão ainda no âmbito do RAU, a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, ao dar nova redacção àquele preceito, não pretendeu propriamente afastar tal consagração no seu nº 1. Limitou-se a plasmar, no que respeita aos arrendamentos habitacionais (nºs 6 a 9), uma peculiar expressão daquele princípio, ao falar em aquisição de «quota-parte» e «na proporção», querendo com isso significar que balizava a aquisição em função da dimensão relativa do local arrendado”.

Ora, aqui chegados e aderindo nós à argumentação acima exposta, estabelecendo a referida alínea a) do nº1 do artigo 1091º do Código Civil  que o direito de preferência se constitui em relação ao local arrendado, ou seja, o arrendatário apenas pode preferir quando esteja em causa a venda ou dação em cumprimento do local arrendado, o direito legal de preferência de que a Recorrente se afirma titular  não integra a sua esfera jurídica, atenta lei substantiva aplicável ao caso por estar em causa a compra e venda de um prédio relativamente ao qual é titular de um contrato de arrendamento que incide sobre parte desse prédio, sem autonomia jurídica que permita que por si possa ser objecto de um qualquer negócio jurídico.
O imóvel em causa é o prédio urbano, composto por casa de três pavimentos, sito na Rua ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., da cidade do Porto, inscrito na matriz urbana, sob o artigo nº ..., anterior artigo nº ..., da freguesia ....
O arrendamento incide sobre o rés-do-chão desse prédio que não se encontra constituído em propriedade horizontal.
A compra e venda relativamente à qual a Recorrente pretende exercer o direito de preferência incide sobre o prédio, na sua totalidade.
Em conclusão, a Recorrente não goza do direito legal de preferência na compra e venda do imóvel porquanto, conforme dispõe o artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº64/2018, o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objecto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência, nem sobre essa parte (sem autonomia jurídica), nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.
Com recurso à leitura articulada das normas constantes do artigo 1091.º, n.º1, alínea a) e nº 9, e do artigo 417.º, ambos do Código Civil, sustenta a Recorrente que “torna-se forçoso concluir pela inexistência de fundamento para o não reconhecimento” do direito de preferência, no caso concreto, acrescentando “[d]a leitura conjunta destes preceitos, poder-se-ia admitir que a questão do reconhecimento do direito de preferência seria discutível se a Recorrente apenas tivesse manifestado a sua intenção de preferir única e exclusivamente, em termos proporcionais, a parte do locado sobre a qual incide o arrendamento, exigindo que o preço da sua quota parte fosse também reduzido proporcionalmente; no entanto, o que se passa é exactamente o oposto, em que é dado ao preferente o preço global para a aquisição da plena propriedade do prédio e este acede às exactas condições para a transmissão da totalidade”.

Conforme resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º do Código Civil, na sua actual redacção, os nºs 6 a 9 deste preceito legal apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.
Ainda que o referido nº 9 se aplicasse aos presentes autos – o que não sucede -, não conferia à Recorrente o direito legal de preferência sobre a totalidade do prédio [cfr. conclusões vertidas nas alíneas NN, OO, PP, QQ, RR e SS] porquanto, o direito de preferência conferido a cada arrendatário está confinado à fracção autónoma ou à parte do prédio que constitui o objecto concreto do contrato de arrendamento.
Sobre o nº 9 do artigo 1091º do Código Civil, esclarece Maria João Vasconcelos [11],  “Sendo a norma apenas aplicável aos arrendamentos para fins habitacionais, por força do disposto no nº5, (…) poderá ainda perguntar-se se a aplicação deste número 9 pressupõe que todos os arrendatários  manifestem intenção de exercer os seus direitos de preferência em conjunto ou, se pelo contrário, a norma se aplica ainda que haja arrendatários  que não pretendam exercer o seu direito. Apesar de a expressão «os arrendatários»[…], que assim o pretendam» sugerir que poderá haver arrendatários que não pretendam exercer o seu direito, sem que isso impeça a aquisição do prédio pelos demais, pensamos que este entendimento não pode ser sufragado. Com efeito, se a aplicação do nº9  não fosse afastada caso apenas um do arrendatários pretendesse exercer o seu direito, estar-se-ia a permitir um situação que é vedada pelo nº 1 do mesmo preceito, ou seja, a permitir que apesar do arrendamento dizer respeito apenas a uma parte do imóvel, o arrendatário possa preferir na venda de todo o imóvel”.
Invoca a Recorrente o artigo 417º do Código Civil que dispõe:
“ 1. Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.
2. O disposto no número anterior é aplicável ao caso de o direito de preferência ter eficácia real e a coisa ter sido vendida a terceiro juntamente com outra ou outras”.
Poder-se-á, fazendo apelo ao artigo 417º, nº 1, do Código Civil, defender que, sendo o local arrendado vendido com o prédio, na sua totalidade e por um preço global, assiste à Recorrente o direito de preferência na compra e venda?
Entende-se que não, na esteira do defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2016 [12]:
«A previsão legal exige a venda de uma coisa juntamente com outra ou outras. Portanto, no mínimo, a venda tem de abranger duas coisas. Em concreto, tal não aconteceu.
Apenas foi vendido uma coisa, o prédio urbano.
Ainda que existisse autonomia física do andar arrendado, inserido nesse mesmo prédio urbano, ele não tinha autonomia jurídica ante o conceito de coisa definido pelos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC.
A autonomia jurídica só seria alcançada se o prédio fosse constituído em propriedade horizontal – artigos 1414.º e 1415.º, ambos do CC.”
Por fim, e por tudo quanto vimos expondo, e sem considerandos desnecessários, para efeitos de atribuição do direito legal de preferência é irrelevante a  circunstância de “o resto do prédio se encontra[r] devoluto de pessoas e bens e em mau estado de conservação, (…) insusceptível de ser colocado no mercado de arrendamento”; bem como a circunstância de ser “inócuo aos actuais proprietários verem a sua propriedade transmitida para a Recorrente ou para terceiros” e de [o] direito de preferência de que a Recorrente pretende exercer resulta[r] de uma alienação num processo judicial, em que o surgimento de um proponente na aquisição do prédio terá decorrido de uma aceitação dos termos de uma licitação e não de uma negociação” porquanto, como resulta da alínea a) do nº1 do artigo 1091º do Código Civil, o objecto da preferência é o «local arrendado» e não o prédio onde se insere o arrendado e como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 18.10.2018, proferido no processo 3131/16.1T8LSB.L1.S1,  «os preceitos que consagram direitos de preferência legal, atento o seu caráter excecional, não consentem o seu alargamento a situações que dela não resultem claramente».
Em conclusão, a Recorrente, sendo arrendatária de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não lhe assiste o direito legal de preferência na compra e venda desse prédio.
Pelo exposto, improcede o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas
Atento o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Assim, são da responsabilidade da Recorrente as custas da apelação, face à improcedência do recurso.
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V_ Decisão
Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas no recurso pela Recorrente (artº 527 do C.P.C.).
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Sumário:

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Porto, 5/2/2024
Anabela Morais
Manuel Domingos Fernandes
Mendes Coelho
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[1] Elsa Sequeira Santos, em Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), Almedina, vol. I, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 1378.
[2] Elsa Sequeira Santos, em Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), Almedina, vol. I, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 1378.
[3] O Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, reafirmou o direito legal de preferência do arrendatário urbano, para habitação, comércio e indústria ou exercício de profissão liberal, estabelecendo o artigo 47º do RAU que:
“1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano;
2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”.
[4] Elsa Sequeira Santos, em Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), Almedina, vol. I, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 1379.
[5] Maria João Vasconcelos, Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações – Contratos em Especial, UCP Editora, pág. 522.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/11/2019, proferido no processo nº 14276/18.3T8PRT.P1.S2, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Sobre a evolução do direito de preferência do arrendatário na legislação precedente, veja-se, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/2/2018, proferido no processo nº3131/16.1T8LSB.L1-2, com um voto de vencido; e o Acórdão de 12/9/2023, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 4357/19.1T8LSB.L2-7 : “8. Face ao teor do art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, reescrito pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada, ou seja, aquele normativo não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 16/12/2021, proferido no processo nº 24/21.4T8GMR.G1, acessível em www.dgis.pt.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/9/2023, proferido no processo nº135/20.3T8PVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Sobre a natureza excepcional do instituto do direito de preferência, consta do Acórdão do STJ, de 18.10.2018, proferido no processo 3131/16.1T8LSB.L1.S1, citado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães: «os preceitos que consagram direitos de preferência legal, atento o seu caráter excecional, não consentem o seu alargamento a situações que dela não resultem claramente, tanto mais que se trata de direito real de aquisição, com eficácia erga omnes e que nem sequer está sujeito a registo”.
[11] Maria João Vasconcelos, em Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações – Contratos em Especial, UCP Editora, pág. 526.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2016, proferido no processo nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

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