Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JORGE LANGWEG | ||
Descritores: | PROVA INDICIÁRIA REGRAS DA EXPERIÊNCIA PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA JIC INDÍCIOS SUFICIENTES PRONÚNCIA PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO PRINCÍPIO DA ORALIDADE PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO CRIME DE PECULATO DE USO CONTINUAÇÃO CRIMINOSA CRIME ÚNICO | ||
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Nº do Documento: | RP202306281596/17.3JAPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | JULGADO PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A prova indiciária é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, com a amplitude prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo enquanto critérios valorativos a experiência comum e a lógica do homem médio. II - A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória da pronúncia exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. III - A questão da presunção de inocência não se coloca na fase da indiciação produzida na fase da instrução do mesmo modo como se coloca num julgamento, pois a formulação de um juízo indiciário do cometimento de factos delituosos pelo agente, base da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim não fosse, a fase da instrução não se distinguiria da fase do julgamento. IV - O juiz de instrução não beneficia, em toda a sua extensão, dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração, o que não lhe permite, também por esse motivo, atingir o grau de certeza que é exigido e atingido em sede de julgamento. V - A existência de meros indícios subjacentes a um despacho de pronúncia, pela sua própria natureza ontológica, acarreta, necessariamente, uma natural margem de dúvida. A prolação de um despacho de pronúncia pressupõe apenas, que a possibilidade de condenação em julgamento penal seja razoável (artigos 283º, 2 e 308º, 1 e 2, do C.P.P.). VI - Integram a prática de um crime continuado de peculato de uso p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 21º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal, as condutas de um vereador municipal que consistem na utilização de uma viatura municipal em proveito próprio, em deslocações de lazer, apesar de apenas poder utilizá-lo em viagens de serviço, agindo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 1596/17.3JAPRT.P1 Data do acórdão: 28 de Junho de 2023 Desembargador relator: Jorge M. Langweg Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Instrução Criminal do PortoSumário: ……………………….. ……………………….. ……………………….. Acordam, em conferência, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o Ministério Público; I – RELATÓRIO 1. Em 28 de Outubro de 2022 foi proferida nos autos principais uma decisão instrutória de não pronúncia do arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso real, de:a) um crime, continuado, de peculato de uso p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 21º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal; e b) um crime, continuado, de peculato p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal. 2. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, terminando a respetiva motivação com as seguintes conclusões: “Por despacho de fls. 853 a 857, o Ministério Público acusou o arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso real, de, - um crime, continuado, de peculato de uso, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 21º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal; e, - um crime, continuado, de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal. Por despacho de fls. 1030 a 1037, datado de 28-10-2022, foi decidido pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal não pronunciar o arguido AA pela prática dos ilícitos criminais de que foi acusado pelo Ministério Público. O Mmº Juiz de Instrução Criminal estribou a sua decisão nos seguintes fundamentos: “(…) No caso em apreço, percorrendo a matéria probatória indiciária constante do inquérito e da instrução, verifica-se que o arguido, enquanto vereador da C. Mun. de ..., utilizou uma viatura automóvel que lhe havia sido entregue pelo respectivo município para o exercício das suas funções de vereador em diversas ocasiões, fora da área geográfica do município ..., inclusivamente em viagens ao Algarve; que igualmente abasteceu tal viatura com combustível, através da utilização de um cartão que para o efeito lhe for a igualmente entregue por aquela autarquia, designadamente nessas deslocações longínquas; e que nas referidas deslocações foi utilizado o dispositivo Via Verde, o qual igualmente se encontrava instalado na referida viatura automóvel para ser utilizado pelo arguido – enquanto vereador da C. Mun. de ... - nessas deslocações em serviço do autarquia. A defesa do arguido (…) contextualizou tais deslocações, arguindo que as mesmas ocorreram em ocasiões em que o seu agregado familiar se encontrava de férias no Algarve, tendo o arguido aproveitado para aí se dirigir, mas em serviço e em prol da autarquia de que faz parte (nomeadamente para visitar algumas autarquias do Algarve - Lagos, Portimão, Albufeira, Olhão, Vila Real de S.to António ou Tavira – ou da Nazaré a fim de se inteirar de soluções implementadas nesses municípios relativamente a equipamentos sociais; para assistir a operações de limpeza da faixa combustível vegetal na zona da Caniçada, da Póvoa do Lanhoso e do Gerês e de onde retirou ensinamentos para a intervenção realizada e a realizar em ...; para se deslocar à sua moradia sita na freguesia ..., em ...). Percorrendo a prova indiciária recolhida em instrução, nomeadamente o depoimento das testemunhas inquiridas nessa fase processual (BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH), o alegado pela defesa do arguido, supra referido, encontrou eco nas respectivas declarações, ou seja, que nas deslocações elencadas na acusação pública que efectuou com a viatura oficial do município ..., o arguido fê-lo ao serviço da autarquia (…). Ou seja, permanece dúvida inarredável acerca dos factos imputados ao arguido pelo M. Público, tanto mais que – conforme foi assinalado pela sua defesa em sede de conclusões – não faria sentido a família do arguido se deslocar na respectiva viatura particular para o Algarve, por ex., fazendo-se o arguido transportar para o mesmo destino na viatura da autarquia (…)”. O Ex.mo Sr. Juiz a quo apreciou e valorou deficientemente a prova testemunhal e documental recolhida em inquérito, dando irrazoável e especial relevo às justificações e prova testemunhal apresentadas pelo arguido em sede de instrução. No período a que se reportam os factos (anos de 2018 e 2019) o arguido exercia funções de vereador na Câmara Municipal ..., em regime de permanência, sendo responsável pela conservação do espaço público, pelo ambiente, pela promoção da habitação e pela educação e formação na autarquia. E, para uso individual e exclusivo nas suas deslocações de serviço, entre finais do ano de 2017 e inícios do ano de 2018, foi atribuído ao arguido, pela autarquia, a viatura municipal com a matrícula ..-UM-.. e, associados a essa viatura, um cartão Galp Frota e um dispositivo Via Verde, sendo que os abastecimentos de combustível efectuados com recurso àquele cartão Galp Frota e o valor das portagens devido pelas passagens nos pórticos assinados da Via Verde eram pagos pela Câmara Municipal .... Findo o inquérito, considerou-se suficientemente indiciado que o arguido utilizou aquela viatura municipal, não só ao serviço da autarquia e no exercício das suas funções, mas também para fins pessoais e em viagens de lazer, nas quais abastecia a viatura de combustível com recurso àquele cartão Galp Frota e passava por pórticos da Via Verde, despesas que vieram a ser debitadas à Câmara Municipal ... e por esta pagas, no valor global de 664,40 € (seiscentos e sessenta e quatro euros, e quarenta cêntimos). O Ministério Público considerou ser imputável ao arguido a prática dos crimes de peculato (despesas de Via Verde e de combustível Galp) e de peculato de uso (utilização da viatura municipal), nas deslocações melhor descritas no libelo acusatório e das quais aqui destacamos, porque particularmente relevantes, as seguintes: a. Periodo de 14 a 22 de Julho de 2018, deslocação de ... até .../Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até Setubal e desta cidade até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Municipio); b. Periodo de 13 e 14 de Outubro de 2018, deslocação de ... até ao Gerês, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Municipio); c. Periodo de 2 a 5 de Março de 2019, deslocação de ... até Nazaré, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Municipio); d. Periodo de 27 de Julho a 3 de Agosto de 2019, deslocação de ... até Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Municipio). Resultaram indícios suficientes de tais factos, porquanto, em sede de inquérito, na sequência de buscas às instalações da Câmara Municipal ... e pesquisa informática aos sistemas informáticos aí encontrados (fls. 340 e ss), foram localizados e apreendidos diversos documentos e ficheiros informáticos, com relevo e designadamente, os boletins itinerários de janeiro de 2017 a novembro de 2019 – fls. 375 a 590 -, as listagens da Via Verde e Galp Frota – fls. 611 a 640 -, o correio eletrónico do arguido (utilizador AA...@...pt) e agendas (calendário) do mesmo – suporte digital e auto de análise de fls. 643 a 667. Assumindo igualmente especial relevância o facto de se ter apurado que, à data dos factos, o Departamento dos Recursos Humanos da Câmara Municipal não dispunha de informação acerca das férias dos vereadores, porquanto estes, ao contrário de todos os outros funcionários, não prenchiam o respectivo mapa de férias. No que respeita ao gozo de férias por parte do arguido, analisados os recibos de vencimento do mesmo, respeitantes ao período compreendido entre Janeiro de 2018 a Dezembro de 2019 (cfr. fls. 693 a 715), resultaram indícios de que o arguido, enquanto vereador, recebeu subsídio de alimentação praticamente em todos os dias úteis, independentemente de estar ou não em gozo de férias pessoais, não se descortinando, dessa forma, em que período concreto dos anos de 2018 e 2019 o mesmo esteve de férias – fls. cfr. auto de análise de fls. 717 a 719 – estranhando-se tal procedimento camarário, em face do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 57-B/84, de 20 de Fevereiro. Relativamente ao período de 14 a 21 de Julho de 2018 e à deslocação e permanência em Lagos, o arguido refere que, no ano de 2018, as suas férias pessoais decorreram entre 13 a 24 de Agosto de 2018. Analisado o seu recibo de vencimento respeitante ao mês de Agosto de 2018 (fls. 700), constata-se que, nesse mês, o arguido auferiu o valor de 104,94 €, correspondente a 22 dias úteis. Sabendo-se que o mês de Agosto de 2018 compreendeu 22 dias úteis e constatando-se que o arguido auferiu subsídio de refeição correspondente a todos os dias úteis desse mês, conclui-se, indubitavelmente, que, contrariamente ao por si alegado, não gozou quaisquer férias no mês de Agosto de 2018. Acresce o facto de que, na agenda electrónica do arguido, constava expressamente, para o período de 14 a 21 de Julho de 2018, o evento: “FÉRIAS: ...” – cfr. fls. 804. Também não podemos acreditar que as fotografias juntas pelo arguido a fls. 927 sejam suficientes, por si só, para justificar que a deslocação a Setúbal tenha ocorrido no exercício de funções, uma vez que as mesmas são apenas demonstrativas que alguém (não se percebe se o arguido ou terceira pessoa), no dia 21 de Julho de 2018, pelas 18h43m, tirou fotografias de um parque situado em ..., Setúbal! Não podia o Meritisimo Juiz a quo considerar plausível a versão apresentada pelo arguido em sede de instrução, pois resultam, a nosso ver, claros e suficientes indícios de que, no período de 14 a 22 de Julho de 2018, o arguido utilizou a viatura municipal em proveito próprio, para deslocações de foro pessoal, que em nada estavam relacionadas com o exercício das suas funções como vereador da Câmara Municipal ...! Relativamente ao período de 13 e 14 de Outubro de 2018 e à deslocação até ao Gerês, alegou o arguido que se limitou a utilizar um fim de semana para colher em outras autarquias ensinamentos sobre técnicas inovadoras ou mais eficientes ou sobre novos equipamentos sobre limpeza de matas e eliminação ou controle dos materiais combustíveis; que, na altura, era necessária e premente uma intervenção de fundo no monte S Brás e na limpeza da respetiva mata, e que no Gerês estava em curso uma operação de limpeza em grande escala numa mata com grande densidade. Se acaso a sua deslocação ao Gerês estivesse estritamente relacionada com as suas funções e ao serviço da Câmara Municipal ..., porque não foram juntos pelo arguido aos autos comprovativos de tão grande pesquisa ao serviço da autarquia (manuscritos, notas fotografias, contactos úteis, planfletos…)? Por outro lado, os depoimentos prestados, já em fase de instrução pelas testemunhas BB (cfr. fls. 1022) e CC (cfr. fls. 1003), foram claros e precisos: o arguido e esposa, e cada uma das testemunhas e respectiva esposa, tinham por hábito passarem fins-de-semana juntos, e foi isso que aconteceu no Gerês ou na Nazaré. As testemunhas iam à sexta-feira e o arguido ia ter ao local de destino no dia seguinte, Sábado, fazendo uso da viatura municipal para o efeito. Acresce o facto de que, na agenda electrónica do arguido, constava expressamente, para os dias em causa, o evento: “fim de semana com amigos: gerês” – cfr. fls. 800 e 805. Não podia o Meritisimo Juiz a quo considerar plausível a versão apresentada pelo arguido em sede de instrução, pois resultam, a nosso ver, claros e suficientes indícios de que, nos dias 13 e 14 de Outubro de 2018, o arguido utilizou a viatura municipal em proveito próprio, para deslocações de foro pessoal, que em nada estavam relacionadas com o exercício das suas funções como vereador da Câmara Municipal ...! Relativamente ao período de 2 a 5 de Março de 2019 e deslocação e permanência na Nazaré, alegou o arguido, em síntese, que se tratou de uma viagem em condições idênticas às do Algarve e Gerês: uma deslocação em serviço ao concelho da Nazaré e concelhos adjacentes para conhecer soluções implementadas ao nível da gestão do espaço público, designadamente, das zonas balneares. Se acaso a sua deslocação à Nazaré e concelhos limítrofes estivesse estritamente relacionada com as suas funções e ao serviço da Câmara Municipal ..., porque não foram juntos pelo arguido aos autos comprovativos de tão grande pesquisa ao serviço da autarquia (manuscritos, notas fotografias, contactos úteis, planfletos,…)? Os depoimentos prestados, já em fase de Instrução, por BB (cfr. fls. 1022) e CC (cfr. fls. 1003), foram claros e precisos: o arguido e esposa, e cada uma das testemunhas e respectiva esposa, tinham por hábito passarem fins-de-semana juntos, e foi isso que aconteceu na Nazaré. Acresce o facto de que, na agenda electrónica do arguido, constava expressamente, para os dias em causa, o evento: “Nazaré: fim de semana com amigos” – cfr. fls. 800 e 805. Em face do que ficou dito, não podia o Meritisimo Juiz a quo considerar plausível a versão apresentada pelo arguido em sede de instrução, pois resultam, a nosso ver, claros e suficientes indícios de que, nos dias 2 a 5 de Março de 2019, o arguido utilizou a viatura municipal em proveito próprio, para deslocações de foro pessoal, que em nada estavam relacionadas com o exercício das suas funções como vereador da Câmara Municipal ...! Relativamente ao período de 27 de Julho a 3 de Agosto de 2019 e deslocação e permanência em Lagos, alegou o arguido, em síntese, que, no ano de 2019, as suas férias pessoais decorreram entre 19 a 30 de Agosto de 2019, motivo pelo qual, entre 27 de Julho e 3 de Agosto de 2018, não estava em gozo de férias. Não negou que aproveitou a estadia da família em férias para visitar e estar com a família alguns dias, mas referiu ter aproveitado a viagem, para, simultaneamente, numa altura em que não se realizam reuniões de trabalho do executivo municipal, viajar pela EN ...25, por ..., ..., e Vila Real de Santo António, para observar a marginal de ... (...), os passadiços da orla costeira de ... e a Zona Pedonal de Vila Real de Santo António. O arguido começa por referir que, no ano de 2019, as suas férias pessoais decorreram entre 19 a 30 de Agosto de 2019. Ora, analisado o seu recibo de vencimento respeitante ao mês de Agosto de 2019 (fls. 712), constata-se que, nesse mês, o arguido auferiu o valor de 100,17 €, correspondente a 21 dias úteis. Sabendo-se que o mês de Agosto de 2019 compreendeu 21 dias úteis e constatando-se que o arguido auferiu subsídio de refeição correspondente a todos os dias úteis desse mês, conclui-se que o arguido não gozou quaisquer férias no mês de Agosto de 2019 (contrariamente ao por si alegado!). Se acaso a sua deslocação ao Algarve estivesse estritamente relacionada com as suas funções e ao serviço da Câmara Municipal ..., porque não foram juntos pelo arguido aos autos comprovativos de tão grande pesquisa ao serviço da autarquia (manuscritos, notas fotografias, contactos úteis, planfletos,…)? Não podia o Meritissimo Juiz a quo considerar plausível a versão apresentada pelo arguido, pois resultam, a nosso ver, claros e suficientes indícios de que, no período de 17 de Julho a 3 de Agosto de 2019, o arguido utilizou a viatura municipal em proveito próprio, para deslocações de foro pessoal, que em nada estavam relacionadas com o exercício das suas funções como vereador da Câmara Municipal ...! As finalidades da instrução estão expressas no nº 1 do art. 286º do C.P.P.: a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou o controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento. Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º, aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável, de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança. Como no julgamento, também na pronúncia vale o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do CPP) e as regras da experiência, e é permitido ao juiz formar a sua convicção com base em todos os elementos de prova que não sejam proibidos por lei, com a particularidade de não se pretender alcançar a certeza dos factos, mas apenas uma probabilidade séria de que ocorreram. No entanto, não se impõe ainda a certeza processual (para além de toda a dúvida razoável) que deve preceder um juízo condenatório, sendo mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação. Não se impõe uma verdade requerida pelo julgamento, mas apenas uma possibilidade razoável de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, embora objetivamente analisada, com o sentido geral de que o arguido deverá ser pronunciado quando os elementos probatórios, de acordo com a livre apreciação da prova a que se reporta o art. 127.º do CPP, se apresentam tendencialmente mais propensos a uma condenação que a uma absolvição. Da prova indiciária recolhida em inquérito, resultam à saciedade elementos que nos permitem concluir que o arguido AA praticou os ilícitos criminais que lhes foi imputado, pelo que se impunha ao Tribunal a quo submeter o mesmo a julgamento. In casu, a matéria probatória recolhida demonstra suficientemente que o arguido utilizou a viatura municipal ..-UM-.., não só exclusivamente ao serviço da autarquia e no exercício das suas funções, mas também para fins pessoais e em viagens de lazer, nas quais abastecia a viatura de combustível com recurso ao cartão Galp Frota e passava por pórticos da Via Verde, despesas que vieram a ser debitadas à Câmara Municipal ... e por esta pagas, no valor global de 664,40 € (seiscentos e sessenta e quatro euros, e quarenta cêntimos). Entendemos assim que, em sede de instrução e ainda que numa visão perfunctória, os indícios recolhidos não se alinham com uma decisão de não pronúncia quanto à participação do arguido pelos factos vertidos na acusação. Atenta toda a prova produzida, quer em sede de inquérito, quer já em sede de instrução, o Tribunal a quo, ao não pronunciar o arguido pelos crimes de que vem acusado, fez errada apreciação e valoração da prova recolhida. Com efeito, será em sede de audiência de discussão e julgamento e com a concentração, imediação e oralidade, que lhe serão próprias, que terá de se produzir a prova perante o mesmo julgador e dissipar quaisquer dúvidas que existam, pois estamos certos que os indícios recolhidos são suficientes e permitem a formação sobre um juízo de culpabilidade do arguido. Devia, desta feita, o Mmº Juiz de Instrução Criminal ter decidido pronunciar o arguido pelo crimes de que vinha acusado, porquanto os indícios existentes em inquérito da atuação do arguido, como vereador da Câmara Municipal ..., são suficientes para submeter o mesmo a julgamento. Dúvidas não temos que existe erro notório na apreciação da prova, sendo que o erro em que o Mmº Juiz a quo incorreu é patente e percetível para o cidadão comum, depois de analisada toda a prova colidida em sede de inquérito e já em sede de instrução. Assim sendo, a Decisão Instrutória violou o disposto nos artigos 277º, nº 2, a contrario, 283ª e 308º, nº1, do CPP. Deverá a Decisão Instrutória ora recorrida ser revogada e substituída por uma outra que pronuncie o arguido pela prática dos ilícitos criminais de que vem acusado pelo Ministério Público. (…)” 3. O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. 4. O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência: " Vejamos agora em síntese e em sentido inverso os argumentos relevantes para confirmar a decisão proferida e demonstrar que o arguido utilizou a viatura à sua disposição naqueles períodos por estar ao serviço da autarquia e disponível para qualquer emergência e não em seu benefício pessoal. Assim O arguido era vereador a tempo inteiro, sem horário de trabalho e permanecendo com exclusão das férias à disposição da autarquia, mesmo nos feriados e fins de semana porque em relação aos pelouros do ambiente, conservação de espaços públicos e habitação que lhe estão atribuídos existe sempre uma forte possibilidade de o requerente ter de intervir a qualquer hora do dia ou da noite e, por conseguinte, fora dos horários de funcionamento dos serviços públicos, para resolver problemas urgentes. A viatura que lhe estava distribuída destinava-se a ser usada durante a execução de serviços para a autarquia, mas também nas viagens a partir do local onde estivesse a residir ou para o local onde estivesse a residir vide depoimento do anterior presidente da Câmara, a testemunha FF , vide declarações do arguido e vide atual Regulamento sobre utilização de viaturas e que consagrou uma prática de há muitos anos. Em nenhum dos períodos referido na acusação o arguido se encontrava de férias e como tal estava obrigado a permanecer a tempo inteiro ao serviço da autarquia (imagine-se que quando estava em Gerês tinha de acorrer de imediato para resolver questão urgente incêndio por exemplo. Deslocava-se de táxi? Obrigava um dos amigos a transportá-lo a ...?). A par disso, o requerente tem uma vida profissional esgotante, despendendo o grosso do seu tempo em reuniões com munícipes, serviços sob a sua direção e com colegas vereadores ou em sessões da câmara e a despachar processos da autarquia e por isso, para exercer outras atividades compreendidas dentro das suas funções mas menos prementes e sem prazos fixos de decisão, aproveita parte dos fins de semana ou feriados ou os períodos em que a maioria das pessoas goza férias (Julho e agosto) e, como tal, a atividade normal,do dia a dia,da câmara sofre uma substancial redução, para levar a cabo tais tarefas - vide declarações do arguido e depoimento das testemunhas ouvidas em instrução. Perceba-se, por isso, porque usou fins de semana e dias de Verão para efetuar as diligencias referidas no RAI e ficar a par de soluções mais inovadoras que estavam a ser adotadas noutros municípios, nas áreas abrangidas pelos seus pelouros. O arguido nunca se limita, nas decisões de caráter técnico que tem de tomar, a ouvir o respetivo departamento ou serviços técnicos e a seguir as indicações destes, antes e por norma, nessas reuniões para discutir questões técnicas relacionadas com os pelouros que dirige muito especialmente na área do ambiente e espaços públicos, o arguido domina perfeitamente o tema porque se vai preparando para ele, estudando, lendo e sobretudo, observando, no terreno, soluções inovadoras de que vá tendo conhecimento noutros locais - vide depoimentos da testemunha e ex-Presidente da autarquia, FF, GG e HH, técnicos do pelouros de que o arguido é vereador um deles relatou até em tribunal que a intervenção activa do vereador aqui arguido na discussão dos assuntos técnicos, estranhos à sua formação profissional, levou estes técnicos a (pejorativamente ou não) dar-lhe o apelido de “Arquiteiro”. . Nas deslocações em causa nenhuma vantagem tinha em usar a viatura da autarquia porque poderia ir perfeitamente, sem aumentar custos, ou no carro da família ou no carro dos amigos; ou seja seguir sozinho, nesses casos em que ia ao encontro da família ou de amigos, na viatura da autarquia nenhuma poupança lhe traria porque poderia ter seguido numa daquelas viaturas. Só que nem a família nem os amigos estão obrigados a acompanhá-lo nessas visitas técnicas que fez nem em usar as suas viaturas para esse efeito. Finalmente e como bem salienta o MP, o arguido tinha (e tem) por hábito passar fins de semana com as testemunhas BB e CC e respetivos cônjuges. Ora a investigação só detetou o uso da viatura municipal nesses dois anos de 2018 e 2019 em dois fins de semana o que tudo significa que a regra não era o uso da viatura municipal (se o fosse teria sido detetada pela investigação) mas sim a utilização de viatura própria ou dos amigos. O que tudo nos conduz à conclusão da excecionalidade dessas duas utilizações (Gerês e Nazaré). E a explicação para a exceção à regra só pode ser a que o arguido adiantou e que as testemunhas confirmaram: a sua deslocação ao Gerês e à Nazaré não teve apenas motivação lúdica ou de recreio mas também de trabalho, no qual os amigos não estavam obrigados a acompanhá-lo nem a emprestar-lhes as suas viaturas. O que tudo demonstra a razoabilidade a credibilidade das explicações dadas pelo arguido e da finalidade por que usou tal viatura nesses períodos Em sede de direito O tema da definição do conceito de indícios suficientes (necessários à pronúncia do arguido) está tratado até à exaustão e de modo praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência e o esforço que se exige ao aplicador do direito não é a repetição do tratamento conceptual dessa matéria, mas sim a subsunção do caso em análise a tal conceito. Por isso e nesse campo atrevemo-nos apenas a citar em síntese final o que afirma a Ex.ma Procuradora nas alegações e com a qual, nesse aspeto, concordamos na íntegra: “a livre apreciação da prova a que se reporta o art 127 do C P P se apresentam tendencialmente mais propensos a uma condenação que a uma absolvição. E ainda particularmente sustentada e forte levando a séria convicção de que a futura condenação será, em julgamento, o resultado que já se adivinha. O caso concreto à luz desse conceito só poderia ter conduzido como conduziu ao arquivamento. Toda a prova suscetível de ser produzida sobre os factos em causa já o foi em sede de inquérito e posteriormente em sede de instrução. Os elementos recolhidos no inquérito apenas demonstram o que o arguido nunca questionou: a utilização da viatura municipal com abastecimento de combustível nas datas e locais referidos na acusação. A circunstância de ocorrerem em fins de semana e em período de férias para a maioria dos cidadãos que não para o arguido, nada permite concluir quanto afirmação do MP de que o uso se destinou a fins privados do arguido. O arguido com exceção das férias, está permanentemente ao serviço da autarquia, sem horário de trabalho; o arguido tem direito a usar essa viatura e a transportar-se nela de e para a sua residência, excluindo o período de férias. A prova produzida em instrução é de molde a permitir a conclusão de que se submetido a julgamento o arguido seria com toda a probabilidade absolvido, já que usou a viatura ao serviço da autarquia, como confirmado pelo depoimento das testemunhas e pelas circunstâncias envolventes desse uso, circunstâncias essas acima expostas na síntese final. Termos em que, negando provimento ao recurso e confirmando a douta decisão recorrida, farão Vªs Exªs a esperada e costumada Justiça.” 5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso. 6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal]. Questões a decidir Do thema decidendum do recurso: Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso. A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito. Atento o teor do relatório produzido nesta decisão, importa decidir a questão substancial suscitada neste recurso: Nos presentes autos encontra-se consubstanciada prova indiciária suficiente da prática, pelo arguido AA, em autoria material e em concurso real, de: a. um crime, continuado, de peculato de uso p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 21º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal; e b. um crime, continuado, de peculato p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal? * Para decidir a questão que constitui o objeto do recurso, importará, primeiramente, recordar a fundamentação da decisão instrutória recorrida.* Extrato da decisão:* * * * II – FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES «(…) Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido AA (fl.s 876/885), relativamente à acusação contra si deduzida pelo M. Público pela alegada prática de um crime continuado de peculato de uso e de um crime continuado de peculato (fl.s 853/857). Fundamento desse requerimento de abertura de instrução é a alegação do assistente em como as acusadas utilizações da viatura automóvel que lhe foi atribuída pelo município ... o foram sempre ao serviço da autarquia, jamais a tendo utilizado para finalidades estranhas ao exercício das suas funções de vereador. Conclui assim a defesa do requerente pela sua não pronúncia dela pelos factos vertidos na acusação. Requereu a realização de diligências instrutórias. * Declarada aberta a instrução, procedeu-se ao requerido interrogatório do requerente da instrução e à inquirição das testemunhas arroladas pela respectiva defesa. Efectuou-se depois o debate instrutório, no qual o M. Público entendeu existirem indícios nos autos suficientes para pronunciar o arguido pela prática dos crimes de peculato que lhe são imputados; a defesa do arguido reiterou o que foi vertido no requerimento de abertura da instrução, ou seja, pela não pronúncia dele. * O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.“.Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a o despacho de acusação proferido pelo M. Público no termo do inquérito arguido é congruente com a prova indiciária recolhida nessa fase processual e na instrução. Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito. Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. “. Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C. Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.“. Conforme se refere no acordão de 02.JUN.15 da Relação de Évora (pr. 1083/13.9GDSTB) “A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706. Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena. E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”. Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição? Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar-se despacho de não pronúncia. * Os crimes de peculato que o M. Público entende terem sido cometidos pelo arguido consistem em alguém, titular de cargo político, e no exercício das correspondentes funções, ilicitamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções (art.º 20.º, n.º 1 da Lei 34/87, de 16.JUL) ou fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de coisa imóvel, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares (art.º 21.º, n.º 1 da Lei 34/87, de 16.JUL).A ilicitude da apropriação, no caso do peculato, de modo idêntico à ilegitimidade da apropriação no crime de abuso de confiança, é elemento objectivo do tipo ("…no furto o que tem de ser ilegítima é a intenção de apropriação." – F. Dias, Comentário Conimbricense, Tomo II, pág. 105). O dolo (elemento subjectivo do tipo) é necessário relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo (ob. cit. pág. 107). Daí que também tenha que haver dolo quanto à ilicitude da apropriação ou da utilização ilícita, o que equivale a dizer que o agente deve saber que essa apropriação ou utilização acarreta uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade e querer, apesar disso, realizar o tipo (ob. cit. pág. 105). Assim, no peculato o dolo está excluído se a pessoa julga que tem o direito de dispor da coisa, sendo essencial a inversão do título pela própria essência do abuso de confiança, e isso implica que a consciência da ilicitude seja elemento do tipo. O que caracteriza o tipo - em confronto com o furto, onde também há uma apropriação, - é que no abuso de confiança e no peculato (este último, uma forma qualificada do primeiro) não há subtracção; no abuso de confiança há detenção da coisa por parte do próprio agente; o crime ocorre depois da detenção da coisa, quando o agente, invertendo o título jurídico que legitima essa detenção (precária), se arroga dono da mesma. Assim, para o preenchimento do tipo legal do crime de peculato, o titular de cargo político apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular que lhe tenha sido entregue, seja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. Trata-se de um delito específico em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo, no caso, um titular de cargo político, diversamente do que sucede com os tipos legais de crime, em geral, nos quais os factos podem ser levados a cabo por qualquer pessoa. * No caso em apreço, percorrendo a matéria probatória indiciária constante do inquérito e da instrução, verifica-se que o arguido, enquanto vereador da C. Mun. de ..., utilizou uma viatura automóvel que lhe havia sido entregue pelo respectivo município para o exercício das suas funções de vereador em diversas ocasiões, fora da área geográfica do município ..., inclusivamente em viagens ao Algarve; que igualmente abasteceu tal viatura com combustível, através da utilização de um cartão que para o efeito lhe fora igualmente entregue por aquela autarquia, designadamente nessas deslocações longínquas; e que nas referidas deslocações foi utilizado o dispositivo Via Verde, o qual igualmente se encontrava instalado na referida viatura automóvel para ser utilizado pelo arguido – enquanto vereador da C. Mun. de ... - nessas deslocações em serviço do autarquia.A defesa do arguido não nega que o requerente da instrução efectuou as deslocações que a acusação lhe imputa (ao Algarve em Julho de 2018 e respectivo regresso ao norte do País, com passagem por Setúbal; à zona da serra do Gerês, em Outubro de 2018 e respectivo regresso a ...; à Nazaré, em Março de 2019; a ..., em Julho e em Agosto de 2019; e novamente ao Algarve, em Julho de 2019, etc.), mas contextualizou tais deslocações, arguindo que as mesmas ocorreram em ocasiões em que o seu agregado familiar se encontrava de férias no Algarve, tendo o arguido aproveitado para aí se dirigir, mas em serviço e em prol da autarquia de que faz parte (nomeadamente para visitar algumas autarquias do Algarve - Lagos, Portimão, Albufeira, Olhão, Vila Real de S.to António ou Tavira – ou da Nazaré a fim de se inteirar de soluções implementadas nesses municípios relativamente a equipamentos sociais; para assistir a operações de limpeza da faixa combustível vegetal na zona da Caniçada, da Póvoa do Lanhoso e do Gerês e de onde retirou ensinamentos para a intervenção realizada e a realizar em ...; para se deslocar à sua moradia sita na freguesia ..., em ...). Percorrendo a prova indiciária recolhida em instrução, nomeadamente o depoimento das testemunhas inquiridas nessa fase processual (BB, CC, DD, EE,FF, GG e HH), o alegado pela defesa do arguido, supra referido, encontrou eco nas respectivas declarações, ou seja, que nas deslocações elencadas na acusação pública que efectuou com a viatura oficial do município ..., o arguido fê-lo ao serviço da autarquia ou para se deslocar para a sua residência, sendo que nesta última circunstância, estava autorizado pela autarquia a usar essa viatura também nas suas deslocações de casa onde esteja a residir para o trabalho e no regresso a casa no final do dia, sendo que o arguido, tal qual qualquer outro vereador a tempo inteiro, usava a viatura indistintamente em qualquer dia da semana ou feriado ou fim de semana. No que respeita às testemunhas inquiridas em sede de inquérito (II, a fls. 720; JJ, a fls. 595; KK, a fls. 592; e LL, a fls. 603), apenas resultaram demonstrados os termos em que era possível a utilização das viaturas facultadas pelo município ... aos respectivos vereadores, não sabendo em concreto quais as utilizações abusivas que o arguido fez dessa viatura. Ou seja, permanece dúvida inarredável acerca dos factos imputados ao arguido pelo M. Público, tanto mais que – conforme foi assinalado pela sua defesa em sede de conclusões – não faria sentido a família do arguido se deslocar na respectiva viatura particular para o Algarve, por ex., fazendo-se o arguido transportar para o mesmo destino na viatura da autarquia… Ora, conforme já se referiu supra, nesta fase processual da instrução importa aquilatar da probabilidade, maior ou menor, da condenação em julgamento do arguido face à prova recolhida; mais que procurar a verdade material a todo o transe – função que cabe ao juiz do julgamento - ao juiz de instrução criminal importa mais prognosticar o desfecho de um hipotético julgamento com a prova indiciária recolhida. Assim, e em conclusão: se a prova produzida em audiência de julgamento for aquela apurada em inquérito e em instrução, será mais provável a condenação ou a absolvição do arguido pelos imputados crimes de peculato? A resposta não pode deixar de ser que é mais provável a sua absolvição, que a sua condenação. Dito de outra maneira: os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente a partir dos quais é admissível concluir que – efectuado o julgamento - será mais provável a condenação que a absolvição do arguido AA pela comissão dos crimes de peculato. * Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem suficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIA o arguido AA pelos crimes de peculato e peculato de uso que o M. Público lhe imputa. (…)»* A - Questão prévia:III – FUNDAMENTAÇÃO Da falta de descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados: Analisada a decisão instrutória recorrida, constata-se que o tribunal apenas se pronunciou quanto aos factos indiciados e não indiciados nos seguintes termos: “(…) No caso em apreço, percorrendo a matéria probatória indiciária constante do inquérito e da instrução, verifica-se que o arguido, enquanto vereador da C. Mun. de ..., utilizou uma viatura automóvel que lhe havia sido entregue pelo respectivo município para o exercício das suas funções de vereador em diversas ocasiões, fora da área geográfica do município ..., inclusivamente em viagens ao Algarve; que igualmente abasteceu tal viatura com combustível, através da utilização de um cartão que para o efeito lhe fora igualmente entregue por aquela autarquia, designadamente nessas deslocações longínquas; e que nas referidas deslocações foi utilizado o dispositivo Via Verde, o qual igualmente se encontrava instalado na referida viatura automóvel para ser utilizado pelo arguido – enquanto vereador da C. Mun. de ... - nessas deslocações em serviço do autarquia. A defesa do arguido não nega que o requerente da instrução efectuou as deslocações que a acusação lhe imputa (ao Algarve em Julho de 2018 e respectivo regresso ao norte do País, com passagem por Setúbal; à zona da serra do Gerês, em Outubro de 2018 e respectivo regresso a ...; à Nazaré, em Março de 2019; a ..., em Julho e em Agosto de 2019; e novamente ao Algarve, em Julho de 2019, etc.), mas contextualizou tais deslocações, arguindo que as mesmas ocorreram em ocasiões em que o seu agregado familiar se encontrava de férias no Algarve, tendo o arguido aproveitado para aí se dirigir, mas em serviço e em prol da autarquia de que faz parte (nomeadamente para visitar algumas autarquias do Algarve - Lagos, Portimão, Albufeira, Olhão, Vila Real de S.to António ou Tavira – ou da Nazaré a fim de se inteirar de soluções implementadas nesses municípios relativamente a equipamentos sociais; para assistir a operações de limpeza da faixa combustível vegetal na zona da Caniçada, da Póvoa do Lanhoso e do Gerês e de onde retirou ensinamentos para a intervenção realizada e a realizar em ...; para se deslocar à sua moradia sita na freguesia ..., em ...). Percorrendo a prova indiciária recolhida em instrução, nomeadamente o depoimento das testemunhas inquiridas nessa fase processual (BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH), o alegado pela defesa do arguido, supra referido, encontrou eco nas respectivas declarações, ou seja, que nas deslocações elencadas na acusação pública que efectuou com a viatura oficial do município ..., o arguido fê-lo ao serviço da autarquia ou para se deslocar para a sua residência, sendo que nesta última circunstância, estava autorizado pela autarquia a usar essa viatura também nas suas deslocações de casa onde esteja a residir para o trabalho e no regresso a casa no final do dia, sendo que o arguido, tal qual qualquer outro vereador a tempo inteiro, usava a viatura indistintamente em qualquer dia da semana ou feriado ou fim de semana. No que respeita às testemunhas inquiridas em sede de inquérito (II, a fls. 720; JJ, a fls. 595; KK, a fls. 592; e LL, a fls. 603), apenas resultaram demonstrados os termos em que era possível a utilização das viaturas facultadas pelo município ... aos respectivos vereadores, não sabendo em concreto quais as utilizações abusivas que o arguido fez dessa viatura. Ou seja, permanece dúvida inarredável acerca dos factos imputados ao arguido pelo M. Público, tanto mais que – conforme foi assinalado pela sua defesa em sede de conclusões – não faria sentido a família do arguido se deslocar na respectiva viatura particular para o Algarve, por ex., fazendo-se o arguido transportar para o mesmo destino na viatura da autarquia… (…) Como a redação da decisão remete – tanto no segundo como no último parágrafo do texto acima reproduzido - para os termos da acusação, importa ainda recordar a descrição dos factos indiciados na acusação: 1º O arguido exerce as funções de vereador na Câmara Municipal ..., em regime de permanência, desde 23 de outubro de 2017, sendo responsável pela conservação do espaço público, pelo ambiente, pela promoção de habitação e pela educação e formação na autarquia [pelouros da ...]. 2º Em finais do ano de 2017/inícios do ano de 2018, foi-lhe atribuído para uso individual a viatura municipal com a matrícula ..-UM-.. [veículo automóvel da marca “BMW”] e, associados a essa viatura, um cartão “Galp frota” – cartão n.º ...05 do cliente ... - Câmara Municipal ..., associado ao veículo com a matrícula ..-UM-.. - e um dispositivo da “Via Verde”. 3º Tal viatura foi-lhe atribuída unicamente, como o arguido bem sabia, para uso nas suas deslocações de serviço. 4º Contudo, contrariamente a tal fim – ou seja, sem ser para deslocação de serviço e/ou em serviço - o arguido utilizou o referido veículo em seu proveito próprio, para lazer, nas seguintes datas e locais: 1. No dia 14 de julho de 2018, um sábado, para a sua deslocação para a ..., em Lagos, onde gozou férias pessoais, com a família, até ao dia 21 de julho de 2018; 2. Nas deslocações locais, durante o aludido período de férias [de 14 a 21 de julho de 2018]; 3. No dia 21 de julho de 2018, um sábado, para se deslocar de ..., em Lagos, para a região de Setúbal; 4. No dia 22 de julho de 2018, um domingo, para se deslocar da região de Setúbal para a região do Grande Porto; 5. No dia 5 de outubro de 2018, feriado nacional, para deslocações várias, em lazer, no Grande Porto [com passagens nos pórticos Via Norte E/O [10:19] – Custóias [10:20]; Aeroporto [11:22] – EN13 O/E [11:24]; Via Norte E/O [11:42] – Custóias [11:43]; Via Norte O/E [13:32] – Ponte Pedra [13:31]; 6. No dia 13 de outubro de 2018, um sábado, para a sua deslocação para o Gerês, para convívio com amigos; 7. No dia 14 de outubro de 2018, para regressar do antedito convívio com amigos, no Gerês, para o Grande Porto; 8. No dia 2 de março de 2019, um sábado, para se deslocar, em lazer, para a Nazaré, para convívio com amigos; 9. No dia 4 de março de 2019, durante esse convívio, em deslocações na região de Nazaré, Caldas da Rainha e Alcobaça; 10. No dia 5 de março de 2019, para se deslocar da zona de Valado dos Frades, Nazaré, para o Grande Porto; 11. No dia 7 de julho de 2019, domingo, para deslocações várias, em lazer, no Grande Porto [com passagens nos pórticos Ponte Pedra [11:53] – Ponte Pedra [11:53]; Ermesinde PV [11:56] – Medas [12:09]; Medas [20:11] – Ermesinde PV [20:25]; Via Norte E/O [20:28] – Custóias [20:29]; Via Norte O/E [21:03] – Ponte Pedra [21:03]]; 12. No dia 27 de julho de 2019, um sábado, para a sua deslocação para o Algarve, onde gozou férias pessoais com a família até ao dia 3 de agosto de 2019, 13. No dia 3 de agosto de 2019, sábado, para se deslocar da zona de Odiáxere, Lagos para o Grande Porto; e, 14. No dia 17 de agosto de 2019, um sábado, para deslocações, em lazer, no Grande Porto [com passagens nos pórticos Ermesinde PV [10:01] – Medas [10:13]. 5º Assim, nas circunstâncias de tempo antes referidas, o arguido utilizou o mencionado veículo automóvel – que, como bem sabia, lhe estava atribuído pela Câmara Municipal ... exclusivamente para exercício das suas funções de vereador - para fins alheios e diferentes àqueles para os quais esse veículo lhe foi atribuído. 6º Renovou em cada conduta a sua resolução, atuando em todas as apontadas ocasiões da mesma forma e sempre que se propiciou, e aproveitando a circunstância de, repetidamente, ter ao seu alcance o meio que facilitava a prática dos factos, a posse do veículo. 7º Nas deslocações de lazer antes referidas (artigo 4º do presente despacho), o arguido efetuou passagens em pórticos Via Verde, sujeitas a pagamento de quantias monetárias, que foram debitadas à Câmara Municipal ... e efetivamente pagas por esta autarquia. Com efeito, o arguido, com o veículo com a matrícula ..-UM-..: 1. No dia 14 de julho de 2018, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Grijó PV [às 07:37], de Paderne PV [às 12:22], de Guia E/O [às 12:30] e de Odiáxere E/O [às 12:45]; 2. No dia 21 de julho de 2018 efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Odiáxere O/E [às 12:19], de Guia O/E [às 12:36], de Paderne PV [às 12:44] e de Setúbal PV [às 15:12]; e, 3. No dia 22 de julho de 2018 efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Setúbal PV [às 09:11], de Pinhal Novo PV [às 09:18], da Ponte Vasco da Gama [às 09:22], de Alverca PV [às 14:13] e de Grijó PV [às 16:41], Totalizando o valor das portagens nos anteditos pontos 1., 2. e 3., a quantia total de 96,01€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 4. No dia 5 de outubro de 2018 efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Via Norte E/O [10:19] – Custóias [10:20]; de Aeroporto [11:22] – EN13 O/E [11:24]; de Via Norte E/O [11:42] – Custóias [11:43]; de Via Norte O/E [13:32] – Ponte Pedra [13:31]; Totalizando o valor das portagens no antedito ponto 4., a quantia total de 1,80€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 5. No dia 13 de outubro de 2018, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Via Norte E/O [11:16] – Custóias [11:17], de Via Norte O/E [15:18] – Ponte Pedra [15:19], de Maia PV [16:12] – Braga Sul [16:32]; 6. No dia 14 de outubro de 2018 efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Braga Sul [17:41] – Maia PV [18:00], de Via Norte E/O [18:33] – Custóias [18:34], de Aeroporto [18:55], Ponte Pedra [19:00]; Totalizando o valor das portagens nos anteditos pontos 5. e 6., a quantia total de 8,70€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 7. No dia 2 de março de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Grijó PV [11:16] – Mealhada – Cant. [11:50]; de Mealhada – Cant. [14:00] – Torres Novas [15:09]; de Torres Novas [15:10] – Leiria [15:29]; de Pousos N/P [15:31] – Cortes N/P [15:33]; de Leiria Sul [15:35] – Valado Frades [15:47]; 8. No dia 4 de março de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Valado Frades [10:30] – Tornada PV [10:40]; de Tornada PV [14:40] – Alfeizerão [14:45]; 9. No dia 5 de março de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Valado Frades [11:17] – Leiria Sul [11:34]; de Pombal [14:23] – Grijó PV [15:44]: Totalizando o valor das portagens nos anteditos pontos 7., 8. e 9., a quantia total de 40,10€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 10. No dia 7 de julho de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Ponte Pedra [11:53] – Ponte Pedra [11:53]; de Ermesinde PV [11:56] – Medas [12:09]; de Medas [20:11] – Ermesinde PV [20:25]; de Via Norte E/O [20:28] – Custóias [20:29]; de Via Norte O/E [21:03] – Ponte Pedra [21:03]: Totalizando o valor das portagens no antedito ponto 10., a quantia total de 5,25€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 11. No dia 27 de julho de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Grijó PV [07:49] – Paderne PV [12:20]; de Guia E/O [12:28] – Mexilhoeira E/O [12:43], Totalizando o valor das portagens no antedito ponto 11., a quantia total de 47,10€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; 12. No dia 3 de agosto de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Odiáxere O/E [10:30] – Guia O/E [10:46]; de Paderne PV [10:54] – Pombal [14:12]; de Pombal [16:00] – Grijó PV [17:07], Totalizando o valor das portagens no antedito ponto 12., a quantia total de 47,90€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de ...; e, 13. No dia 17 de agosto de 2019, efetuou passagens nos pórticos Via Verde de Ermesinde PV [10:01] – Medas [10:13], Totalizando o valor das portagens no antedito ponto 13., a quantia total de 2,05€, que foi paga, como o arguido bem sabia, pela autarquia de .... 8º O arguido sabia que o dispositivo “Via Verde” instalado no veículo ..-UM-.. era acionado nas passagens nos pórticos, devidamente assinalados, da “Via Verde”, e que, consequentemente, o valor das portagens devidas por tais passagens era direta e necessariamente debitado à Câmara Municipal ..., 9º Tendo perfeito conhecimento de que quando efetuou essas passagens (as referidas no artigo 7º do presente despacho) nos pórticos “Via Verde” se encontrava em lazer e não no exercício das suas funções de vereador. 10º Contudo, apesar desse conhecimento, aproveitando-se da circunstância de ter instalado no veículo o citado dispositivo, ao invés de, em períodos de lazer, fora do exercício das suas funções de vereador, usar as vias e pórticos com cobrança no local da portagem, usou em todas as referidas ocasiões a via/pórtico destinada/o à “Via Verde” e, por essa forma, obteve, como era o seu intuito, uma vantagem económica, em dinheiro, correspondente ao valor monetário das portagens cobradas ao município ..., 11º Retirando, assim, essas quantias [no montante total de 248,91€] da esfera patrimonial da autarquia de .../Estado, em seu proveito próprio. 12º Para além desse uso da Via Verde, o arguido, no quadro da mesma resolução, utilizou também o cartão Galp Frota [cartão n.º ...05; cliente ... - Câmara Municipal ..., associado à matrícula ..-UM-..], para, em deslocações de lazer e fora do exercício das suas funções de vereador, realizar os seguintes abastecimentos de combustível ao citado veículo: 1. No dia 14 de julho de 2018 [dia da deslocação para o Algarve para gozo de férias pessoais], às 10h19, no posto “Galp” da Área de Serviço do Montijo, sendo o valor do combustível abastecido de 51,56€; 2. No dia 22 de julho de 2018 [no regresso de férias], às 15:29, no posto “Galp” da Área de Serviço de Pombal, sendo o valor do combustível abastecido de 60,00€; 3. No dia 5 de outubro de 2018 [em deslocação de lazer], às 11h49, no posto “Galp” da Área de Serviço...”, em ..., sendo o valor do combustível abastecido de 63,25€; 4. No dia 13 de outubro de 2018 [fim de semana de convívio com amigos, no Gerês], às 09h00, no posto “Galp” da Área de Serviço...”, em ..., sendo o valor do combustível abastecido de 29,81€; 5. No dia 7 de julho de 2019 [em deslocação de lazer], às 20h00, no posto “Galp” “A...”, em Grijó, Vila Nova de Gaia, sendo o valor do combustível abastecido de 52,69€; 6. No dia 27 de julho de 2019 [dia da deslocação para o Algarve para gozo de férias pessoais], às 19h43, no posto “Galp” da Área de Serviço do Montijo (N/S), na localidade de Pegões, sendo o valor do combustível abastecido de 40,24€; 7. No dia 3 de agosto de 2019 [dia do regresso de férias pessoais], às 10h25, no posto “Galp” da “Área de Serviço Lagos”, em Lagos, sendo o valor do combustível abastecido de 47,37€; 8. No mesmo dia, 3 de agosto de 2019, às 16h10, no posto “Galp” da “Área de Serviço Pombal”, em Pombal, sendo o valor do combustível de 37,20€; e, 9. No dia 17 de agosto de 2019[em deslocação de lazer], às 10h26, no posto “Galp” “A...”, em ..., sendo o valor do combustível abastecido de 33,37€, Totalizando todos os referidos abastecimentos o montante de 415,49€. 13º O arguido sabia que com o cartão “Galp Frota” associado ao veículo ..-UM-.. podia abastecer livremente o veículo em postos “Galp” e que todos os abastecimentos feitos com esse cartão eram necessariamente pagos pela Câmara Municipal ..., 14º Tendo perfeito conhecimento de que quando efetuou esses abastecimentos de combustível (os referidos no artigo 12º do presente despacho) nos postos “Galp” o fazia para abastecer o referido veículo nas suas deslocações de lazer e não em deslocações no exercício das suas funções de vereador. 15º Contudo, apesar desse conhecimento, aproveitando-se da circunstância de ter associado ao veículo o cartão Galp Frota n.º ...05, ao invés de, em períodos de lazer, fora do exercício das suas funções de vereador, efetuar o pagamento, do seu bolso, dos abastecimentos necessários à circulação do veículo durante os percursos de mero lazer, usou em todas as referidas ocasiões o dito cartão Galp Frota, obtendo, desse modo, como era o seu intuito, uma vantagem económica, em dinheiro, correspondente ao valor monetário dos abastecimentos de combustível cobrados ao município ..., 16º Retirando, assim, essas quantias [no montante total de 415,49€] da esfera patrimonial da autarquia de .../Estado, em seu proveito próprio. 17º O arguido renovou em cada conduta [condutas referentes à “Via Verde” e ao cartão “Galp Frota”] a sua resolução, atuando em todas as apontadas ocasiões da mesma forma e sempre que se propiciou, e aproveitando a circunstância de, repetidamente, ter ao seu alcance o meio que facilitava a prática dos factos, a existência de dispositivo “Via Verde” no veículo que tinha na sua posse e a posse do cartão Galp Frota associado a esse veículo. 18º O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.” De jure A – Da validade da decisão instrutória Como é consabido, a decisão instrutória deve conter a descrição dos factos indiciados e não indiciados, nos termos do disposto nos artigos 308º, nº 2, com referência ao artigo 283º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal (CPP). Este último preceito legal estatui o seguinte: “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (…)”. Daí se ter consolidado na doutrina e jurisprudência o entendimento de que nos despachos de não pronúncia é obrigatória a narração dos factos não indiciados “porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado. A delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui, pois, a garantia última da segurança jurídica do arguido”[3]. No mesmo sentido, entre muitos outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Novembro de 2022 (processo nº 2901/19.3T9AVR.P1), relatado pela Desembargadora Dra. Maria do Rosário Martins, que também cita diversa doutrina e jurisprudência nessa matéria. Percorrendo a decisão recorrida, constata-se que o tribunal não concretizou expressa e formalmente os factos indiciados e não indiciados. Porém, a leitura da sua fundamentação permite apreender ter resultado indiciado que o arguido, vereador da Câmara Municipal ..., realizou todas as viagens no automóvel da autarquia identificadas na acusação - e fazendo com que a autarquia também suportasse o pagamento das portagens e dos abastecimentos de combustível através da utilização do cartão GALP Frota -, sempre no exercício das suas funções de vereador, bem como na ida e no regresso do trabalho no final do dia. Por conseguinte, sendo apreensível a matéria indiciada e não indiciada, a decisão não é nula - nem irregular -, podendo ser apreciado o mérito do recurso. B – Do mérito do recurso: § 1 - A fundamentação da decisão recorrida: Analisando-se a fundamentação da decisão instrutória e não pronúncia, a mesma começa por concluir que o arguido efetuou as deslocações que a acusação lhe imputa, mas atribuiu credibilidade às declarações do arguido que contextualizou tais deslocações, que ocorreram em ocasiões em que o seu agregado familiar se encontrava nos locais visitados de férias ou em fins-de-semana com amigos, tendo o arguido aproveitado para aí se dirigir, mas em serviço e em prol da autarquia (nomeadamente para visitar algumas autarquias do Algarve - Lagos, Portimão, Albufeira, Olhão, Vila Real de Santo António ou Tavira – ou da Nazaré a fim de se inteirar de soluções implementadas nesses municípios relativamente a equipamentos sociais ou para assistir a operações de limpeza da faixa combustível vegetal na zona da Caniçada, da Póvoa do Lanhoso e do Gerês e de onde retirou ensinamentos para a intervenção realizada e a realizar em ... e para se deslocar à sua moradia sita na freguesia ..., em ...). Para tanto, o tribunal “a quo” ponderou o teor das declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas arroladas pelo mesmo, inquiridas em sede de instrução (BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH) que “fizeram eco do alegado pela defesa do arguido”, ou seja, que nas deslocações efetuadas com a viatura oficial do município ..., o arguido fê-lo ao serviço da autarquia ou para se deslocar para a sua residência, sendo que nesta última circunstância, estava autorizado pela autarquia a usar essa viatura também nas suas deslocações de casa onde esteja a residir para o trabalho e no regresso a casa no final do dia, sendo que o arguido, tal qual qualquer outro vereador a tempo inteiro, usava a viatura indistintamente em qualquer dia da semana ou feriado ou fim de semana. No que respeita às testemunhas inquiridas em sede de inquérito (II, a fls. 720; JJ, a fls. 595; KK, a fls. 592; e LL, a fls. 603), apenas resultaram demonstrados os termos em que era possível a utilização das viaturas facultadas pelo município ... aos respetivos vereadores, não sabendo em concreto quais as utilizações abusivas que o arguido fez dessa viatura. Finalmente, reproduzindo um argumento da defesa do arguido, não faria sentido a família do arguido se deslocar na respetiva viatura particular para o Algarve e o arguido fazer-se transportar para o mesmo destino na viatura da autarquia, pois não retiraria qualquer benefício disso. § 2 - O Ministério Público impugna a decisão instrutória, por entender ter sido recolhida prova indiciária da prática, pelo arguido, dos crimes que lhe foram imputados em sede de acusação. O recorrente considerou particularmente relevantes as seguintes utilizações da viatura municipal em causa: a. Período de 14 a 22 de Julho de 2018, deslocação de ... até .../Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até Setúbal e desta cidade até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); b. Período de 13 e 14 de Outubro de 2018, deslocação de ... até ao Gerês, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); c. Período de 2 a 5 de Março de 2019, deslocação de ... até Nazaré, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); d. Período de 27 de Julho a 3 de Agosto de 2019, deslocação de ... até Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município). A prova indiciária produzida em inquérito demonstra, no entender do Ministério Público, que o arguido utilizou o automóvel para o seu gozo pessoal – não tendo efetuado as viagens ao serviço da autarquia -, salientando o seguinte: a) na agenda eletrónica do arguido, constava expressamente, para o período de 14 a 21 de Julho de 2018, o evento: “FÉRIAS: ...” – cfr. fls. 804; b) relativamente ao período de 13 e 14 de Outubro de 2018 e à deslocação até ao Gerês, constava expressamente: “fim de semana com amigos: gerês” – cfr. fls. 800 e 805.; c) relativamente ao período de 2 a 5 de Março de 2019 e à deslocação e permanência na Nazaré, constava na agenda eletrónica do arguido, expressamente “Nazaré: fim de semana com amigos” – cfr. fls. 800 e 805; d) relativamente ao período de 27 de Julho a 3 de Agosto de 2019 e deslocação e permanência em Lagos, alegou o arguido, em síntese, que, no ano de 2019, as suas férias pessoais decorreram entre 19 a 30 de Agosto de 2019, motivo pelo qual, nessa altura, não se encontrava em gozo de férias; não negou que aproveitou a estadia da família em férias para visitar e estar com a família alguns dias, mas referiu ter aproveitado a viagem, para, simultaneamente, numa altura em que não se realizam reuniões de trabalho do executivo municipal, viajar pela EN ...25, por ..., ..., e Vila Real de Santo António, para observar a marginal de ... (...), os passadiços da orla costeira de ... e a Zona Pedonal de Vila Real de Santo António. A isso contrapõe o recorrente que, se a sua deslocação ao Algarve estivesse estritamente relacionada com as suas funções e ao serviço da Câmara Municipal ..., porque não foram juntos aos autos, pelo arguido, quaisquer comprovativos de tal pesquisa? § 3 - Em resposta, o arguido alega, em suma, que nunca questionou a utilização da viatura municipal com abastecimento de combustível nas datas e locais referidos na acusação. A circunstância de ocorrerem em fins de semana e em período de férias para a maioria dos cidadãos que não para o arguido, nada permite concluir quanto afirmação do Ministério Público de que o uso se destinou a fins privados do arguido. No entender do arguido, a prova testemunhal produzida na instrução permite demonstrar que o mesmo aproveitou as suas deslocações para trabalhar no interesse da autarquia. Além disso, com exceção das suas férias pessoais, o arguido encontra-se permanentemente ao serviço da autarquia, sem horário de trabalho, tendo o direito a usar a viatura municipal e a transportar-se nela. Isso também sucede nos feriados e fins de semana porque em relação aos pelouros do ambiente, conservação de espaços públicos e habitação que lhe estão atribuídos existe sempre uma forte possibilidade do arguido ter de intervir a qualquer hora do dia ou da noite e, por conseguinte, fora dos horários de funcionamento dos serviços públicos, para resolver problemas urgentes, fazendo-se nessas ocasiões transportar no veículo municipal. A este respeito alega, por exemplo, que na sua deslocação ao Gerês, se tivesse de acorrer de imediato para resolver uma questão urgente no município, não poderia ficar dependente de transportes públicos ou do favor de um amigo, carecendo da disponibilidade da viatura do município. Finalmente, ainda refere que nas deslocações em causa nenhuma vantagem tinha em usar a viatura da autarquia porque poderia ir perfeitamente, sem aumentar custos, ou no carro da família ou no carro dos amigos – em suma, nesses casos em que ia ao encontro da família ou de amigos, a utilização da viatura da autarquia nenhuma poupança lhe traria porque poderia ter seguido numa daquelas viaturas – mas, dispondo da viatura do município, poderia regressar sempre que fosse solicitada a sua presença. § 4 - Cumpre apreciar e decidir. A – Do despacho de pronúncia: Tendo em conta o objeto do recurso, começa-se por recordar os requisitos legais previstos para a prolação de um despacho de pronúncia – o pretendido pelo Ministério Público recorrente -: O artigo 308° do Código de Processo Penal define que há lugar a despacho de pronúncia, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Uma noção legal de indícios suficientes encontra-se na redação do número 2 do art. 283° do mesmo texto legal, considerando suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança. Por outras palavras, uma indiciação suficiente consiste na verificação de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, beneficiando o tribunal, nomeadamente, do princípio da imediação, resultarão provados - em juízo de certeza e não de mera probabilidade -, os elementos constitutivos da infração pela qual os agentes venham a ser julgados. Essa verificação e subsequente formação da convicção não devem ser proferidas de forma apressada ou precipitada. Para ser proferido despacho de pronúncia, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, de modo que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados. Tal exigência de análise é reforçada pela importância de alguém – titular de um cargo público, ou não - ser sujeito a julgamento de natureza penal, gerando sequelas proporcionais ao grau de inocência das pessoas injustamente acusadas/pronunciadas. Também a prova indiciária é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, com a amplitude prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo enquanto pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio. A questão da presunção de inocência não se coloca na fase da indiciação produzida na fase da instrução do mesmo modo como se coloca num julgamento, pois a formulação de um juízo indiciário do cometimento de factos delituosos pelo agente, base da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim não fosse, a fase da instrução não se distinguiria da fase do julgamento. A existência de meros (nem sequer fortes) indícios, subjacentes a um despacho de pronúncia, pela sua própria natureza ontológica, acarreta, necessariamente, uma natural margem de dúvida, exigindo a prolação de um despacho de pronúncia, apenas, que a possibilidade de condenação em julgamento penal seja razoável. Exercendo a sua liberdade de convicção, o juiz de instrução criminal apenas tem de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre a prova indiciária. Em concreto: O arguido AA encontrava-se acusado pela prática, em autoria material e em concurso real, de: a) um crime, continuado, de peculato de uso p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 21º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal; e b) um crime, continuado, de peculato p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1, alínea i), e 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16.07, na redação introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22.04, e do artigo 30º, nº 2, do Código Penal. O primeiro diz respeito à utilização de uma viatura municipal, um automóvel ligeiro da marca ..., com a matrícula ..-UM-.., da Câmara Municipal ..., em proveito próprio, em deslocações de lazer, apesar de apenas poder utilizá-lo em viagens de serviço. O segundo encontra-se temporalmente relacionado com o primeiro, pois diz respeito às passagens que realizou com a mesma viatura em pórticos Via Verde, sujeitas a pagamento de quantias monetárias, no montante total de 248,91€, que foram debitadas à Câmara Municipal ... e efetivamente pagas por esta autarquia, bem como à utilização do cartão Galp Frota [cartão n.º ...05; cliente ... - Câmara Municipal ..., associado à matrícula ..-UM-..], para, nessas deslocações de lazer e fora do exercício das suas funções de vereador, realizar abastecimentos de combustível, num valor total de 415,49€. O arguido exerce as funções de vereador na Câmara Municipal ..., em regime de permanência, desde 23 de outubro de 2017, sendo responsável pela conservação do espaço público, pelo ambiente, pela promoção de habitação e pela educação e formação na autarquia [pelouros da ...]. Perante tal descrição, torna-se óbvio que a indiciação dos crimes depende, essencialmente, da conjugação de dois fatores: a) determinar em que condições legais o arguido podia utilizar a viatura municipal em causa – e, consequentemente, o identificador ViaVerde e o cartão de abastecimento de combustível associados a esse automóvel -; e b) apurar, em sede indiciária, se as deslocações de automóvel concretizadas na acusação – e admitidas pelo arguido - foram efetuadas fora de tais condições legais, em proveito próprio do arguido, o que o mesmo bem sabia e, apesar disso, as fez, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Para aferir o mérito do recurso importa começar por aferir o primeiro dos fatores acima elencados. B - Das condições legais de utilização do automóvel municipal: Como já se referiu, importa começar por concretizar as condições legais de utilização do automóvel ligeiro da marca ..., com a matrícula ..-UM-.., da Câmara Municipal ... – e do cartão de abastecimento de combustível e do identificador ViaVerde associado à viatura -, por parte do vereador, ora arguido: 1. A viatura é municipal. 2. Inexiste qualquer ato administrativo que tenha concretizado a entrega da viatura ao arguido vereador (conforme resulta do relatório da Polícia Judiciária, a folhas 644); 3. Apenas existe uma folha Excel da autarquia, onde consta que a viatura automóvel em questão foi afeta ao serviço do vereador ora arguido; 4. Encontra-se nos autos o regulamento em vigor à data dos factos que constituem o objeto deste processo de Junho de 2016 (a folhas 121/132), contendo as Normas de Utilização de Viaturas e Máquinas Municipais, aludido no depoimento da testemunha JJ, documentado a folhas 595-598, que define: - no seu artigo 4º que os veículos de uso individual “destinam-se a ser utilizados, em serviço da autarquia, nos termos estabelecidos na Lei n° 29/87 de 30/06, na sua atual redação”; - no artigo 5º que “As viaturas municipais destinam-se a ser utilizadas em atividades próprias do município.”; e - os artigos 6º, nº 6 e 7º, nº 1 prevêem a autorização automática de autocondução de veículos municipais de uso individual, além do mais, pelos vereadores, bastando estes ter apenas conhecimento do teor do regulamento. - o artigo 7º, nº 2 prevê para a autocondução de veículo municipal de uso individual por vereadores, fora da área do município, apenas não se aplicam as regras consagradas no artigo 9.° do regulamento – ou seja, em suma, que a mesma não carece de requisição, nem de autorização -, sendo-lhes, assim, aplicáveis as demais condições. 5. Finalmente, o artigo 5º, nº 1, al. j) da Lei nº 29/87 de 30 de Junho assegura ao eleito local (v.g. aos vereadores) uma viatura municipal, quando em serviço da autarquia. 6. Os reabastecimentos das viaturas municipais é efetuado, em regra, nas oficinas municipais, ou então, por conveniência ou necessidade, mediante a utilização de um cartão de frota (artigo 14º do regulamento). Resulta do quadro legal acima exposto que o vereador, ora arguido, tinha o direito de conduzir e abastecer o veículo em causa na acusação pública, utilizando o cartão de frota, desde que o fizesse “em serviço da autarquia” (artigos 4º do regulamento municipal e 5º, nº, 1, al. j) , da Lei nº 29/87, de 30 de Junho). C – Da existência de indícios dos crimes de peculato e de peculato de uso: Para aferir a existência da indiciação pretendida pelo recorrente, começa-se por caracterizar os tipos legais de crime em causa. O artigo 376.º do Código Penal (crime de peculato de uso) estatui o seguinte: “1- O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2- (…)”. Se houver mero uso indevido do veículo municipal atribuído para uso individual do vereador, ora arguido, por parte deste, o mesmo terá incorrido na prática deste crime. O tipo legal de crime nem exige a verificação de um dano económico decorrente do uso do veículo para o município[4]. Atente-se que a transparência e legalidade da administração é sempre vulnerada com a mera utilização dos bens para fins alheios àqueles a que se destinam ainda que o bem seja reposto antes do momento em que deveria ser aplicado aos fins a que estava adstrito. O tipo legal de crime tutela o dever de probidade e fidelidade do funcionário em relação aos bens públicos que se encontram em seu poder, e de modo mediato, no caso do n.º 1, a integridade da administração pública no uso desses mesmos bens (veículos ou coisas móveis de valor apreciável). Estatui o art. 375.º do Código Penal (crime de peculato): “1 - O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. (…) São, assim, elementos objetivos do tipo: a) Que o agente seja um funcionário para efeitos do art. 386.º do Código Penal; b) Que tenha a posse do bem em razão das suas funções; c) Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”; Ao nível do elemento subjetivo do tipo legal de crime reconhece-se a exigência de que o agente faça seu o dinheiro ou a coisa móvel, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha a consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro. Como identificado por Conceição da Cunha, o legislador procurou através da aludida incriminação tutelar, por um lado, bens jurídicos patrimoniais e, por outro lado, e predominantemente, a probidade e fidelidade dos funcionários, para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração[5]. * Concretizados os tipos legais de crime em causa, cumpre começar por analisar a fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia e o mérito do recurso do Ministério Público.§ 1 - A decisão de não pronúncia encontra-se fundamentada na prova recolhida em inquérito e instrução que, segundo referido, revela que o arguido utilizou e abasteceu a viatura municipal, enquanto vereador da Câmara Municipal ..., nos percursos identificados na acusação pública, fazendo o município pagar as portagens cobradas através do respetivo identificados Via Verde e o combustível abastecido com o cartão de frota associado à viatura, fazendo-o exclusivamente no exercício das suas funções de vereador. Para tanto, a decisão atribuiu credibilidade à tese do requerimento de abertura da instrução, de acordo com a qual as deslocações ocorreram em ocasiões em que o agregado familiar do arguido se encontrava de férias no Algarve, tendo o arguido aproveitado para aí se dirigir, mas em serviço e em prol da autarquia de que faz parte (nomeadamente para visitar algumas autarquias do Algarve - Lagos, Portimão, Albufeira, Olhão, Vila Real de Santo António, Tavira – ou da Nazaré a fim de se inteirar de soluções implementadas nesses municípios relativamente a equipamentos sociais e para assistir a operações de limpeza da faixa combustível vegetal na zona da Caniçada da Póvoa do Lanhoso e do Gerês e de onde retirou ensinamentos para a intervenção realizada e a realizar em ... e, ainda, para se deslocar à sua moradia sita na freguesia ..., em .... Essa credibilidade foi conferida pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelo requerente da instrução e inquiridas nesta fase - BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH -. Ainda de acordo com a decisão recorrida, as testemunhas inquiridas em sede de inquérito (II, a fls. 720; JJ, a fls. 595; KK, a fls. 592 e LL, a fls. 603), apenas explicaram os termos em que era possível a utilização das viaturas facultadas aos vereadores pelo município .... § 2 - O recorrente considerou particularmente relevantes as seguintes utilizações da viatura municipal em causa: a. Período de 14 a 22 de Julho de 2018, deslocação de ... até .../Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até Setúbal e desta cidade até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); b. Período de 13 e 14 de Outubro de 2018, deslocação de ... até ao Gerês, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); c. Período de 2 a 5 de Março de 2019, deslocação de ... até Nazaré, para gozo pessoal de fim-de-semana com esposa e amigos, abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município); d. Período de 27 de Julho a 3 de Agosto de 2019, deslocação de ... até Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, deslocações locais durante tal período, deslocação de Lagos até ..., abastecimentos de combustível e passagem por pórticos durante tal período (a cargo do Município). A prova indiciária produzida em inquérito demonstra, no entender do Ministério Público, que o arguido utilizou o automóvel para o seu gozo pessoal – não tendo efetuado as viagens ao serviço da autarquia -, pelas razões já anteriormente sintetizadas. § 3 – Para decidir o mérito do recurso importa começar por proceder a uma análise crítica da prova indiciária produzida em sede de instrução – aquela que permitiu ao tribunal “a quo” conferir credibilidade à tese de defesa do arguido e produzir o despacho de não pronúncia -, resultando a descrição seguinte da audição integral das respetivas gravações: O arguido prestou declarações perante o juiz de instrução criminal, afirmando que é vereador da Câmara Municipal ... desde 2005 e que nessa altura era hábito o motorista esperar o vereador à porta de casa para se deslocar em serviço. Depois, por razões económicas, os vereadores passaram, em regra, a conduzir as viaturas afetas ao seu serviço, diminuindo os gastos com os motoristas, recorrendo apenas episodicamente aos serviço de motorista. Utiliza o automóvel de serviço em trabalho. Trabalhando também no pelouro do ambiente e a causa animal, além do pelouro das obras municipais (chegou a ter 132 obras em diferentes fases), existe um elevado número de ocorrências, tendo de se deslocar ao local dos eventos, estivesse onde estivesse, para definir as orientações para os serviços resolverem as situações. Por esse motivo tinha de estar sempre disponível para acorrer às ocorrências. Por isso desloca-se sempre no veículo municipal para todo o lado, mesmo para fora da área do município para poder regressar a qualquer momento. Explicou as suas deslocações identificadas pelo Ministério Público, no essencial, nos seguintes termos: Aproveitou as férias da sua família em Julho de 2018, que já se encontrava no Algarve há uma semana, para ir ter com ela e aproveitar para se atualizar sobre os melhores materiais e tecnologias tendo em vista a reabilitação/manutenção dos passadiços de ... e a evolução dos equipamentos para recolha de resíduos sólidos e novas soluções para o parqueamento automóvel urbano. Porém, aos 23 minutos do seu depoimento, acaba por admitir que os passadiços em ... foram construídos em madeira e não em compósito, de acordo com a posição dos arquitetos e contrariando a sua opinião, porque a adjudicação já tinha sido feita com base nessa opção. Os seus familiares passaram sempre duas semanas de férias no Algarve. Foi a Setúbal, por existir um conjunto de equipamentos urbanos num jardim, que poderia ter interesse para .... Como existe no município ... uma massa florestal na zona do Monte de São Brás, tinha em vista realizar uma empreitada para assegurar essa limpeza. Como gosta de ir ao terreno para conhecer as melhores práticas, foi à zona da Caniçada ao Gerês onde estavam a fazer limpezas, eliminando a massa combustível em faixas de cinquenta metros, tendo percebido que tal atividade implicava muito trabalho braçal, exigindo muita mão de obra, justificando o elevado preço pedido pelos empreiteiros ao município ... para fazer trabalho similar. A viagem à Nazaré deveu-se ao interesse em perceber como foram implementadas determinadas soluções nas obras na avenida situada no litoral (sobre-elevação do pavimento na zona das passadeiras e formas de publicidade) uma vez que tinha prevista a realização de obras numa via do litoral no município .... Em Julho de 2019, voltou ao Algarve, aproveitando novamente as férias da sua família que se encontrava em Lagos, para se deslocar a essa região, para se inteirar da forma como foram feitos os passadiços na zona de ..., em Tavira. Nunca se encontrava em gozo de férias; não negou que aproveitou a estadia da família em férias para visitar e estar com a família alguns dias, mas referiu ter aproveitado a viagem, para, simultaneamente, numa altura em que não se realizam reuniões de trabalho do executivo municipal, viajar pela EN ...25, por ..., ..., e Vila Real de Santo António, para observar a marginal de ... (...), os passadiços da orla costeira de ... e a zona pedonal de Vila Real de Santo António. A testemunha BB, que se identificou como amigo “quase-irmão” do arguido, com quem o arguido passa quase todos os fins-de-semana, confirmou, no essencial, tais declarações. A testemunha CC, igualmente amigo do arguido, referiu que o arguido lhe tinha mencionado ter-se deslocado ao Gerês, para se inteirar como estavam a limpar as áreas florestais. Referiu, ainda, que ele foi ter com a testemunha à Nazaré e ele disse-lhe que ia lá ver qualquer coisa. A testemunha DD, filha do arguido, prestou declarações a respeito de uma das viagens a Lagos, que não conseguiu precisar no tempo com rigor, mas acredita ter sido em 2019. Referiu que se deslocou a essa cidade, em férias, com o seu marido, filho e mãe, tendo permanecido lá durante oito dias (de sábado a sábado). O seu pai, o ora arguido, deslocou-se lá passados uns dias, por ter a vida muito ocupada com trabalho. Não revelou conhecimento pessoal de outros factos relacionados com o objeto do processo. A testemunha FF referiu que o arguido é um vereador trabalhador, incansável e que está permanentemente ao serviço, sem fins-de-semana, nem férias. Ele era conhecido por chegar por vezes a certas ocorrências antes dos bombeiros chegarem. Explicou a razão pela qual a Câmara optou por admitir a autocondução dos veículos pelos vereadores, dispensando os motoristas. Não revelou qualquer conhecimento pessoal das viagens em causa nos presentes autos. A testemunha GG foi diretor municipal de Ambiente, Obras e Conservação, que trabalhou com o vereador ora arguido. Apenas esclareceu que em 2018 se discutiam os materiais dos passadiços a instalar no município. O vereador sugeriu que se utilizassem materiais compósitos e os arquitetos preferiram a madeira, pois os materiais compósitos eram mais escorregadios. No fim vingou a opinião dos técnicos. A testemunha HH é engenheiro ambiental e funcionário municipal, tendo referido que é uma pessoa que se envolve em matérias que não são da sua formação e gosta de participar nos trabalhos. Seguiu-se uma descrição do sistema de recolha dos resíduos sólidos implementado no município, que foi sugerido pelo vereador ora arguido. A testemunha também sabia que essa solução já era usada noutros municípios. Mais referiu que o município tem 230 hectares de zonas verdes. Mas quando foi questionado pelo defensor do arguido a respeito de uma empreitada que estaria a ser negociada na altura, a testemunha aludiu apenas a trabalhos de poda – e não de criação de faixas de segurança corta-fogos, nem de limpeza com eliminação de massa combustível, contrariamente ao declarado pelo arguido. Também aludiu à instalação de equipamentos urbanos nos jardins, atividade em que o vereador ora arguido também se envolveufoi envolvido. A testemunha EE, filha do arguido, referiu ter passado férias em Lagos, com a sua mãe e com os seus filhos, durante oito dias. O seu pai veio um dia mais tarde (domingo), com a viatura de serviço. Enquanto a testemunha, a sua mãe e os filhos saiam e iam à praia de manhã e à tarde iam à praia, o seu pai ficava em casa ao trabalho, ao computador. A testemunha ainda referiu que nesse ano estavam a construir uns passadiços em Lagos e o seu pai interessou-se nessa obra. No ano seguinte, fizeram a mesma coisa, durante oito dias, desta vez também na companhia da irmã mais velha da depoente. O seu pai também trabalhava durante o dia em casa, com o computador e desfrutava da companhia dos netos e dos demais familiares à noite. Regressaram ao mesmo tempo, deslocando-se o seu pai na viatura de serviço. Do teor de tais depoimentos prestados em sede de instrução resulta um conjunto de incongruências que fragilizam, de forma incontornável, a conclusão a que chegou o tribunal “a quo”, uma vez que resulta manifesto que o arguido, vereador da Câmara Municipal ..., não se deslocou em serviço e no interesse da autarquia, principalmente, nos percursos assinalados pelo recorrente. Na verdade, o arguido procurou justificar a utilização da viatura municipal – e consequentes passagens em portagens e abastecimentos de combustível, pagos pelo município - nessas deslocações com base nos seguintes argumentos: a) O arguido efetuou as viagens no interesse e ao serviço da autarquia, uma vez que o fez no intuito de contactar pessoalmente com equipamentos instalados noutras autarquias - nomeadamente passadiços e outras zonas pedonais no litoral do sotavento algarvio, sistemas de recolha de resíduos sólidos urbanos (Lagos), equipamentos de mobiliário urbano para jardins (Setúbal), passadeiras sobre-elevadas e soluções de publicidade (Nazaré) – e ver como no Gerês efetuavam a limpeza das matas, eliminando a massa combustível no solo; b) Mesmo nas deslocações para fora da área do município, o arguido tinha a necessidade de ter consigo a viatura municipal, para poder regressar a todo o tempo para poder acorrer a algum evento para o qual fosse chamado; c) O arguido estava permanentemente ao serviço da autarquia, dias úteis, fins-de-semana e “férias”; Porém, a prova indiciária recolhida não permitiu confirmar a tese do arguido. Concretizando. Relativamente aos períodos de 14 a 22 de Julho de 2018 e de 27 de Julho a 3 de Agosto, em que o arguido se deslocou de ... até .../Lagos, para gozo pessoal de férias com a sua família, o arguido declarou perante o juiz de instrução criminal que os seus familiares passavam sempre duas semanas de férias nessa zona e que, nessas duas ocasiões, apenas fez companhia aos seus familiares nesses períodos, à noite, pois trabalhava durante o dia, visitando passadiços no sotavento algarvio (..., no concelho ..., ..., no concelho ...) e zonas pedonais na cidade ..., para se inteirar dos novos materiais utilizados na sua construção, de modo a poder decidir melhor a empreitada que pretendia celebrar para instalação de tal equipamento no município ..., bem como sistemas de recolha de resíduos sólidos urbanos inovadores em Lagos. Porém, tais declarações revelaram-se, no mínimo, temerárias, uma vez que: a) as duas filhas do arguido que prestaram depoimento na fase de instrução negaram terem passado duas semanas de férias na ... / Lagos, tendo declarado apenas terem passado oito dias (de sábado a sábado) de férias nessa zona, tendo o seu pai chegado no dia seguinte (domingo) na viatura de serviço e ficado até ao fim das férias; b) apesar do arguido declarar ter preferido os materiais compósitos para a construção dos passadiços, a opção pela madeira – a escolha dos arquitetos, conforme referido pela testemunha GG - já tinha sido concretizada na adjudicação da empreitada, conforme admitido pelo próprio arguido nas declarações que prestou ao juiz de instrução criminal, o que afasta o interesse e utilidade na deslocação, facto que o arguido tinha de ter conhecimento antes de ter decidido ir ao Algarve; c) para o arguido se deslocar de automóvel de Lagos até Vila Real de Santo António, ... e ..., em pleno verão, resulta da experiência comum que o mesmo percorreria normalmente a autoestrada A22 (Via ...), que tem pórticos com portagem eletrónica, pois a deslocação pela estrada nacional nº ...25, ou por outras estradas implicaria um acréscimo de várias horas para efetuar o mesmo percurso; ora, compulsada a prova documental junta aos autos, não se constata qualquer passagem do veículo municipal pelos inúmeros pórticos na autoestrada A22 que comprove a ida do veículo municipal ao sotavento algarvio, nem o seu regresso. Bem pelo contrário. Os registos constantes a folhas 613 verso e 624 verso demonstram que sempre que o arguido se deslocava em férias até ao Algarve em 2018 e 2019, o mesmo chegava ao seu destino no barlavento algarvio (zona de Lagos), passando necessariamente pelos pórticos da concessionária das autoestradas e não voltou a percorrer qualquer autoestrada até ao dia de regresso ao Norte, tornando assim altissimamente improvável que se tenha dirigido ao sotavento algarvio para examinar passadiços ou zonas pedonais; d) não faz sentido a estadia de uma semana completa (sete dias, dos oito que os seus restantes familiares estiveram de férias no Algarve) para visitar uma zona pedonal (Vila Real de Santo António), dois passadiços (... e ...) e um sistema de recolha de resíduos sólidos urbanos (Lagos) – visitas que não foram confirmadas pela prova indiciária recolhida, tendo aliás sido produzida prova que retira credibilidade a tal alegação (folhas 613 verso e 624 verso, como acima assinalado -, apenas se compreendendo tal deslocação para o arguido estar junto dos seus familiares – o que é, aliás, perfeitamente compreensível, apenas não sendo lícita a utilização do veículo municipal para essa deslocação por parte do arguido vereador -; e) dificilmente um vereador com a experiência do arguido (vereador desde 2005) e, dir-se-ia mesmo, qualquer cidadão minimamente informado - não necessitando ser um sapador florestal - necessitaria ver uma ação de limpeza de área florestal fora da área do seu município, para tomar conhecimento da onerosidade de tais operações pelo volume de recursos humanos empregues em tais atividades de gestão florestal que implicam, forçosamente, uma grande exigência de mão-de-obra, tratando-se de uma evidência do senso comum; f) não se justifica, ainda, uma deslocação de um vereador a Setúbal, para ver equipamentos e mobiliários urbanos instalados num jardim, uma vez que poderia ter recolhido as informações necessárias através de contacto telefónico com o seu homólogo desse município, ver fotografias e saber o custo desse equipamento – tanto mais que tinha um contacto privilegiado com a empresa que os forneceu, conforme admitiu -; g) as deslocações do arguido ao Algarve, ao Gerês e à Nazaré foram inseridas na sua agenda oficial municipal como saídas privadas – e não em serviço -: a. na agenda eletrónica do arguido constava expressamente, para o período de 14 a 21 de Julho de 2018, o evento: “FÉRIAS: ...” – cfr. fls. 804; b. relativamente ao período de 13 e 14 de Outubro de 2018 - deslocação até ao Gerês -, constava expressamente: “fim de semana com amigos: gerês” – cfr. fls. 800 e 805.; c. relativamente ao período de 2 a 5 de Março de 2019 - deslocação e permanência na Nazaré -, constava na agenda eletrónica do arguido, expressamente “Nazaré: fim de semana com amigos” – cfr. fls. 800 e 805; h) de acordo com o artigo 5º do regulamento em vigor à data dos factos (junto a folhas 121/132), que contêm as Normas de Utilização de Viaturas e Máquinas Municipais e o artigo 5º, nº 1, al. j) da Lei nº 29/87 de 30 de Junho, o arguido só podia utilizar o veículo municipal em serviço da autarquia; i) ora, de acordo com o supra exposto, as deslocações acima referidas, bem como as restantes identificadas na acusação pública (para as quais não foram dadas quaisquer explicações, nem foi produzida prova indiciária que suporte o interesse municipal de tais deslocações), foram realizadas no interesse pessoal do arguido, sendo indiciariamente desprovidas de real fundamento as explicações que o arguido mencionou no seu requerimento de abertura de instrução e nas suas declarações perante o juiz de instrução criminal; j) carece de fundamento o arguido alegar que faz deslocações pessoais para fora da área do município para ter a viatura municipal disponível para poder regressar para dar orientações aos serviços, sempre que há uma rutura nos canos de abastecimento de água, se abre um buraco na estrada, ou exista outro incidente, pois resulta da experiência comum que todos os serviços municipais se encontram organizados e preparados para fazer face a tais ocorrências normais, não carecendo da presença física do vereador do pelouro para resolver os casos mais urgentes. Aliás, como demonstram os registos das passagens do veículo municipal pelos pórticos da concessionária das autoestradas (a folhas 613 verso e 624 verso), em dois anos consecutivos, o arguido passou sete dias de férias no Algarve em cada verão, com a família, sem ter tido necessidade de regressar ao município, o que só confirma o modo de funcionamento dos serviços municipalizados, que não depende da presença física do senhor vereador. Em duas semanas, nem uma só vez o senhor vereador teve necessidade de interromper as suas férias para se deslocar ao município; assim, não faz sentido – e carece manifestamente de base legal que o legitime – que o arguido leve consigo a viatura de serviço, sempre que se desloque por razões pessoais. Finalmente, importa ter presente que a presunção de inocência não se coloca na fase da indiciação nos mesmos termos em que opera na fase de julgamento, pois a formulação de um mero juízo indiciário do cometimento de factos delituosos pelo agente, base da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim não fosse, a fase da instrução não se distinguiria da fase do julgamento. A existência de meros (nem sequer fortes) indícios, subjacentes a um despacho de pronúncia, pela sua própria natureza ontológica, acarreta, necessariamente, uma natural margem de dúvida. A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória da pronúncia exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação. A avaliação da prova indiciária é efetuada pelo juiz de instrução sem beneficiar, em toda a sua extensão, dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração (pois não presenciou os depoimentos produzidos em inquérito). Por conseguinte, não permite, também por esse motivo, atingir o grau de certeza que é exigido e atingido em sede de julgamento.[6] Do exposto resulta que o recurso do Ministério Público deverá ser julgado procedente, por se terem verificado os indícios da prática dos crimes, relativamente a toda a matéria da acusação pública. * Das custas:Sendo o recurso do Ministério Público julgado provido, com a oposição do arguido, este último deve ser condenado no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais. A taxa de justiça individual é fixada em 5 (cinco) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto e extensão do recurso. * Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em conferência e por unanimidade, julgar provido o recurso do Ministério Público e, em consequência:IV – DECISÃO - revogar o despacho de não pronúncia do arguido AA e determinar a sua substituição por outro que pronuncie o arguido nos exatos termos da acusação. Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta. Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator. Porto, em 28 de Junho de 2023. Jorge Langweg Maria Dolores Silva e Sousa Manuel Soares _____________ [1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1. [3] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, pág. 804. [4] Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 707 e 710. [5] Ibidem, a págs. 688 e 689. [6] Conforme salientado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Dezembro de 2016 (processo nº 866/14.7PDVNG.P1), relatado pelo desembargador Dr. Manuel Soares. |