Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
87/23.8GTSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: ARGUIDO
TIR
AUDIÊNCIA
NOTIFICAÇÃO
PRESENÇA DO ARGUIDO
AUSÊNCIA
CONSEQUÊNCIAS
DEFENSOR
REINCIDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Nº do Documento: RP2024022887/23.8GTSJM.P1
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Incumprido as obrigações processuais do TIR, encontrando-se regularmente notificado na morada que indicou mediante via postal simples para o início da audiência de julgamento, a que faltou injustificadamente, o arguido não tem que ser notificado para a sua continuação.
II - Embora o n.º 1 do art.º 332.º do CPP estabeleça como regra a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência, logo exceciona as situações em que pode ser realizada na sua ausência. Uma delas é a realização da audiência na ausência do arguido por iniciativa do tribunal prevista no art.º 333.º do CPP.
III - Tendo o Tribunal quo considerado dispensável a presença do arguido e que a audiência podia começar sem estar presente, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 333.º do CPP, não sendo obrigatória a sua presença na primeira sessão da audiência de julgamento, não o era também nem na continuação, nem na leitura da sentença, onde se encontrava devidamente representado pelo seu defensor, nos termos do disposto no art.º 196º, nº 3, al. d), do CPP.
IV - Não operando a circunstância qualificativa da reincidência como mero efeito automático das anteriores condenações, além dos pressupostos formais, a sua verificação exige também o seguinte pressuposto material: que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
V - Limitando-se a sentença a enunciar nos factos provados as anteriores condenações sofridas pelo arguido, sendo omissa quanto à referência factual relativa ao pressuposto material que constava da acusação, seja no segmento dos factos provados, seja no dos factos não provados, a fundamentação não cumpre o disposto no n.º 2 do art.º 374.º do CPP, o que configura a nulidade da sentença prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP, que é de conhecimento oficioso.
VI - Não se tendo pronunciado sobre a verificação do elemento material da reincidência, quando o deveria ter feito, o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questão com relevância para a decisão de mérito, o que também configura a nulidade da sentença prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP, igualmente de conhecimento oficioso.
VII - Considerando os pressupostos formais de reincidência previstos na primeira parte do n.º 1 do art.º 75.º do Código Penal, a omissão de fixar a pena concreta precedente à determinação da pena resultante da reincidência, que deverá ser de prisão efectiva de duração superior a 6 meses, configura igualmente a nulidade da sentença prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP.

(da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 87/23.8GTSJM.P1



Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

Realizado julgamento em processo sumário, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3/01, agravado pela reincidência, praticado em 28/08/2023, na pena de dezoito (18) meses de prisão efetiva.


*

Inconformado, o arguido interpôs recurso.

Termina a motivação com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O arguido foi notificado para a sessão de julgamento de 12 de Setembro, mas não compareceu, tendo o tribunal a quo decidido “não ser absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência”, pelo que iniciou-a nesse mesmo dia e marcou no final continuação para dois dias depois.
2. No dia 14 de Setembro foi realizada então nova sessão de julgamento, à qual o arguido voltou a não comparecer, muito embora para esta data nunca tenha sido notificado.
3. Ora, nos casos em que a audiência iniciada sem a presença do arguido continue noutras datas, não anteriormente marcadas, o tribunal tem que convocá-lo para essas novas datas, pois:
a) O arguido tem o direito de estar presente em qualquer sessão da audiência e de prestar declarações até ao encerramento desta (artigos 61.º, n.º 1, alínea a), e 333.º, n.º 3, do Código de Processo Penal);
b) É obrigatória a presença do arguido na audiência, sendo os julgamentos na ausência uma excepção (artigo 332.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
c) O artigo 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal, impõe a notificação cumulativa do arguido e do seu defensor da “designação de dia para julgamento”;
d) A realização de uma qualquer sessão de julgamento na ausência do arguido, para ser legal, pressupõe sempre a regular notificação deste para a mesma (alíneas a) e d) do n.º 3 do artigo 196.º do Código de Processo Penal).
4. Assim, ao realizar a sessão de 14 de Setembro à revelia do arguido e sem que para a mesma o tivesse notificado, o tribunal a quo violou os artigos 61.º, n.º 1, alínea a), 113.º, n.º 10, 332.º, n.º 1, 333.º, n.º 3, e 386.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, bem como os artigos 2.º e 32.º, n.os 1, 5 e 6 da Constituição.
5. Tal violação configura uma nulidade insanável, nos termos da alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, tornando inválida a sessão de 14 de Setembro e a subsequente de 21 de Setembro, devendo por isso ordenar-se a remessa do processo ao tribunal a quo para reparação dessa nulidade (artigos 122.º, n.º 1, e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
6. Por mera cautela, invoca-se que é inconstitucional, por violação dos artigos 2.º e 32.º, n.os 1, 5 e 6 da Constituição, o complexo normativo constituído pelos artigos 61.º, n.º 1, alínea a), 113.º, n.º 10, 332.º, n.º 1, 333.º, n.º 3, e 386.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que se o tribunal dá validamente início a uma audiência de julgamento na ausência do arguido, acabando depois por a interromper e por designar nesse momento outra data para a sua continuação, não anteriormente marcada, o arguido ausente não tem que ser notificado dessa nova data, bastando a notificação ao seu defensor.
7. A título subsidiário do pedido da conclusão E, invoca-se que o tribunal a quo incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois omitiu pronúncia sobre factos alegados na acusação e relevantes para a integração do pressuposto material da reincidência, acima transcritos nas alíneas c) e d) do ponto 22.
8. É provável que o tribunal a quo tenha considerado tais factos implicitamente, designadamente porque julgou verificada a reincidência, mas a verdade é que não os deu nem como provados nem como não provados.
9. A matéria de facto provada é, portanto, insuficiente para a decisão de direito de punição do arguido como reincidente, por falta do pressuposto material da reincidência, razão pela qual o tribunal a quo violou os artigos 75.º, n.º 1, do Código Penal, e 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, incorrendo ainda no vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), deste diploma.
10. Por isso, deve ser declarada a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e determinados os seus efeitos legais (artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo que, sem prescindir, admitindo entendimento diverso quanto à qualificação do vício originado pela omissão de pronúncia em causa argúi-se, nos termos do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo.
11. A título subsidiário do pedido da conclusão anterior, suscita-se a questão da nulidade da sentença por falta de especificação e fundamentação da medida da pena concreta independentemente da reincidência, primeira das operações que obrigatoriamente deve ser levada a cabo na determinação da pena de um reincidente.
12. Ora, como o tribunal a quo não fixou a pena concreta precedente à determinação da pena resultante da reincidência, inviabilizada ficou, por um lado, a possibilidade de verificação do preenchimento de um dos pressupostos formais deste instituto, a saber: tratar-se de um “crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses”. (artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal).
13. Por outro lado, sem se conhecer qual a medida da pena concreta sem o efeito agravante da reincidência torna-se impossível compará-la com a pena concreta agravada e, por conseguinte, sindicar a obediência ao comando ínsito na segunda parte n.º 1 do artigo 76.º do Código Penal, segundo o qual a agravação da reincidência “não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores”.
14. Por tais motivos, saem prejudicadas as garantias de defesa, maxime o direito ao recurso, pois o arguido não pode aferir e impugnar, de forma consciente e eficaz, aquilo que desconhece.
15. Pelo exposto, o tribunal a quo violou o artigo 389.º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, os artigos 75.º, n.º 1, e 76.º, n.º 1, do Código Penal, e ainda os artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição, sendo por isso a douta sentença recorrida nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal – o que aqui se vem arguir, ao abrigo do n.º 2 deste artigo, requerendo-se a declaração de tal nulidade e a consequente remessa do processo ao tribunal a quo para que proceda à elaboração de nova sentença que contenha a apontada menção em falta.
16. Acautelando outro entendimento, invoca-se que são inconstitucionais, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição, as normas dos artigos 389.º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, 75.º, n.º 1, e 76.º, n.º 1, do Código Penal, interpretadas no sentido de que o tribunal, ao punir um arguido como reincidente, não tem que especificar e fundamentar na sentença a medida da pena concreta independentemente da reincidência.
17. A título subsidiário do pedido da conclusão O, requer-se a revogação da sentença recorrida na parte em que afastou a aplicação do regime de permanência na habitação, isso porque, contrariamente ao que o tribunal a quo decidiu, estão reunidos os pressupostos para o efeito.
18. Desde logo, a pena aplicada ao recorrente não é superior a dois anos, pelo que se mostra verificado o pressuposto formal constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 43.º do Código Penal.
19. Depois, apesar do passado criminal do arguido, é igualmente possível afirmar o pressuposto material, sobretudo se se tiver em conta aquilo que a DGRSP escreveu no relatório anexo à certidão do processo n.º 132/20.9 GBOVR, bem como o teor do facto provado n.º 4, do qual se infere uma plena inserção do arguido nas vertentes familiares e profissionais.
20. Destarte, ao afastar a aplicação do regime de permanência na habitação, o tribunal a quo violou os artigos 40.º, n.º 1, e 43.º, n.º 1, do Código Penal, bem como os princípios político-criminais:
a) da necessidade e proporcionalidade das penas; b) da preferência pelo regime de permanência na habitação em detrimento da prisão em estabelecimento prisional; c) de luta contra as penas curtas e médias de prisão efectiva; d) da socialidade.
21. Como tal, deve ser revogada nessa parte a douta sentença recorrida, ordenando-se em consequência, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que a pena de 18 meses de prisão aplicada ao arguido seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, caso na 1.ª instância se confirme a sua exequibilidade ao nível das infra-estruturas electrónicas e consentimentos necessários.

Pelo exposto:
Deve este recurso ser julgado procedente nos termos melhor peticionados nas conclusões que antecedem.
(…)

*

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida.

Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. A ausência do arguido na nova data designada para a continuação do julgamento, sem que dela seja este notificado, constitui, em princípio, a nulidade insanável, prevista na al. c) do art. 119.º do CPP, porquanto a regra é a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, como se alcança dos termos do art.º 332.º, n.º 1, do CPP, e, excepção a realização da audiência na ausência do mesmo.
2. Mas não se verifica já tal vício que supõe, necessariamente, que não tenha sido o próprio arguido a inutilizar o seu direito a estar presente na audiência de julgamento, desde logo por incumprimento das obrigações decorrentes do TIR, que ao mesmo atribui o ónus de comunicar a mudança de residência, de molde a permitir a efectivação da notificação.
3. A notificação (envio de aviso postal simples para a morada indicada) é indispensável para que se dê início à audiência, mas não o é para a sua continuação, sempre que ocorra incumprimento das obrigações decorrentes do TIR, podendo o arguido ser representado por defensor, porquanto, a lei alude a todos os autos processuais nos quais o arguido tenha o direito a estar presente, apenas se podendo excepcionar os que a lei igualmente prevê, sendo que, apenas em relação ao início da audiência se exige prévia notificação, sendo esse o sentido da remissão da alínea d) do artigo 196º, nº 3 para o artigo 333º do Código de Processo Penal.
4. A reincidência é uma circunstância modificativa comum que altera a medida abstrata da pena, agravando-a, sendo que a agravação dela resultante justifica-se pelo mais elevado grau de censura despoletado pelo delinquente, pois o novo facto revela que a anterior ou anteriores condenações não lhe serviram de prevenção contra a prática de ilícitos de natureza criminal.
5. A verificação da reincidência implica que o julgador tenha de investigar a motivação do arguido, como se exige, ainda, uma conexão entre os crimes reiterados que devam considerar-se relevantes do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa, sendo que, a reincidência não opera como mero efeito automático das anteriores condenações, não sendo suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação, tal como resulta da sentença quanto à fundamentação da agravação associada à falta de eficácia da pena aplicada pelo primeiro crime, sendo a nova condenação o indício relevante da falta de efectiva adesão do delinquente às injunções da lei, o que determinou a condenação do arguido em pena agravada como reincidente.
6. O arguido agiu com dolo no seu grau mais intenso, pois representou os factos e agiu em conformidade com a sua vontade, ciente das anteriores condenações, a sua maioria por factos idênticos, e, evidencia um modo de vida e personalidade criminógena, avessa à interiorização do desvalor da sua conduta, sendo que, a influência que as considerações de prevenção especial têm sobre a medida concreta da pena, deve ter em consideração que a ressocialização do agente não pode determinar a opção por uma pena fixada aquém do ponto comunitariamente suportável para efeitos de tutela do bem jurídico protegido.
7. Face à moldura penal do crime cometido, os factos provados e não provados, a personalidade do arguido, a intensidade do dolo e da ilicitude, os antecedentes criminais e as exigências de prevenção geral e de repressão no caso concreto, a pena aplicada é adequada e proporcional e cumpridora do estatuído no artigo 71.º do CP, sendo que, o tribunal valorou devidamente as condições pessoais e a situação económica do arguido, assim como os fins e motivos que determinaram o cometimento do ilícito, não violando quaisquer disposições legais, e, considerando as oportunidades anteriores dadas ao arguido para se afastar do crime, por si não aproveitadas, é de manter a pena de 18 meses de prisão efectiva.
8. Da factualidade constante da matéria de facto provada tal como enunciada na sentença que condenou o recorrente por autoria do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido, previsto e punido, pelo artigo 3.°, n.° 1 e 2, do Decreto Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro na pena de um ano de prisão efectiva agravada pela reincidência quando este pugna pela sua execução em regime de permanência na habitação.
9. O recorrente invoca como desproporcional a determinação da prisão efectiva aplicada na decisão “sub judicie”, desconsiderando totalmente as suas anteriores condenações por crimes da mesma natureza e que só a persistência da sua prática conduziu à pena de prisão efectiva a que ora foi condenado, que se revela justa e equilibrada quer na sua espécie, duração e moldes, enquanto adequada às circunstâncias de vida apuradas no caso concreto, tendo em conta que a finalidade das sanções penais são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade não podendo a pena ultrapassar, nunca, a medida da culpa - art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal e ponderadas que foram as exigências de prevenção geral, que se apresentam elevadas, dada a sua grande proliferação de ilícitos desta natureza, bem como, das nefastas repercussões que tem na comunidade, dado o alarme social que provoca, pela desagregação pessoal e social como das consequências negativas que projecta na circulação rodoviária, cumprindo os termos do artigo 71.º do Cód. Penal.
10. Por seu lado, não se impõe no caso em apreço, ainda que reclamada pelo recorrente, a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação dado que deve ser esta o meio de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades visadas com a execução da pena, não se vislumbrando fundada a invocação pelo recorrente da violação na sentença ao fixar a pena aplicada ao arguido do disposto nos artigos 40º, nº 1, 43º, nº 1 e 71º do Código Penal.
11. Assim, tendo em conta as exigências de prevenção geral positiva e negativa, decorrentes da nocividade social da condução sem habilitação legal, e, a dimensão da ameaça que representa e da censura comunitária que suscita, reclama, na especifica situação do recorrente como de um modo geral, uma punição severa, como desaconselha mesmo, a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação considerando o “historial” de condenações do arguido que se não revelaram bastantes para se abster de dar continuidade a tal prática que determinou mais uma condenação, desta feita em prisão efectiva que é de manter nos seus exactos termos da decisão decorrente da sentença por cuja alteração o recorrente ora pugna.

In casu, da análise do específico contexto em que se desenvolveu o comportamento do arguido, não se vislumbra ser atendível qualquer das razões apresentadas pelo recorrente para alterar a decisão proferida nos autos que é de manter nos seus exactos termos.


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O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve merecer provimento, devendo ser mantida a sentença recorrida.

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.

Cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO:


A) Objeto do recurso

Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas e a decidir são as seguintes:
a) Se o Tribunal a quo, ao realizar a sessão de julgamento de 14 de Setembro à revelia do arguido e sem que para a mesma o tivesse notificado, cometeu a nulidade insanável da alínea c) do art.º 119.º do Código de Processo Penal;
b) Se o Tribunal a quo, ao omitir pronúncia sobre factos alegados na acusação e relevantes para a integração do pressuposto material da reincidência, incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
c) Se a sentença é nula por falta de especificação e fundamentação da medida da pena concreta independentemente da reincidência;
d) Se a pena de 18 meses de prisão efetiva aplicada ao arguido deve ser executada em regime de permanência na habitação.

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Factos provados na sentença recorrida [transcrição]:

1. No dia 28.08.2023, cerca das 09:30 horas, na EN ..., na Praça ... - Nó de Santa Maria da Feira, em Santa Maria da Feira, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-LR, sem que fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro título que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.

2. Conhecia as características do mencionado veículo, sabendo igualmente que circulava com ele numa via pública e não ignorava que, pelo facto de não ser titular de carta de condução ou de documento equivalente, não o podia conduzir na via pública;

3. Agiu deliberada, livre e conscientemente, muito embora conhecesse o carácter proibido e criminalmente punível da sua conduta.

Elementos pessoais do arguido:

4. Aufere €900 mensais no desempenho da sua actividade profissional; vive com a esposa e 3 enteados, em casa arrendada por €400 mensais; despende ainda € 100 mensais em pensão de alimentos;

5. Foi condenado, a 24.01.2003, pela prática, a 21.01.2003, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, em 80 dias de multa (pena única) – extinta por prescrição, a 20.09.2007;

27.01.2003, pela prática, a 25.10.2001, de um crime de falsificação de documento, em 80 dias de multa – extinta pelo cumprimento; 

a 31.03.2003, pela prática, a 28.08.2002, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, em 90 dias de multa (pena única) – extinta pelo cumprimento, a 28.01.2003; 

a 09.03.2005, pela prática, a 20.10.2003, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla simples, em 240 dias de multa – extinta pela prescrição, a 30.04.2014;

a 11.04.2005, pela prática, a 16.03.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, em 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos – extinta nos termos do art.º 57.º do CP, a 27.06.2007; 

a 11.07.2005, pela prática, entre 25.09 e meados de Outubro de 2002, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla simples, em 380 dias de multa – convertida em prisão subsidiária e extinta a 29.09.2006; 

a 02.11.2005, pela prática, a 19.01.2003, de um crime de condução sem habilitação legal e, a 28.02.2003, de um crime de desobediência, em 230 dias de multa (pena única) – extinta pela prescrição, a 25.01.2010; 

a 10.09.2007, pela prática, a 28.08.2007, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, em 15 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos (pena única) – extinta nos termos do art.º 57.º do CP, a 25.09.2010; 

a 07.10.2009, pela prática, a 23.05.2007, de um crime de condução sem habilitação legal, em 9 meses de prisão efectiva – extinta pelo cumprimento, a 14.09.2010; 

a 22.07.2010, pela prática, em Setembro de 2007, de um crime de falsificação de documento, em 6 meses de prisão efectiva – extinta pelo cumprimento, a 10.02.2012;

a 30.05.2014, pela prática, a 17.03.2013, de um crime de furto simples, em 40 dias de multa – convertida em prisão subsidiária e extinta pelo cumprimento, a 22.08.2017;

a 07.07.2015, pela prática, a 20.10.2014, de um crime de abuso de confiança, em 120 dias de multa – convertida em prisão subsidiária e extinta pelo cumprimento, a 10.11.2017;

a 24.10.2016, pela prática, a 20.08.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, em 72 períodos de prisão por dias livres;

a 30.11.2016, pela prática, a 26.11.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, em 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova – englobada em cúmulo jurídico com a anterior condenação e fixada a pena única de 15 meses de prisão efectiva; extinta pelo cumprimento, a 07.02.2020 (Proc.º n.º 434/16.9PAVFR);

a 16.01.2017, pela prática, a 13.12.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, em 12 meses de prisão efectiva – extinta pelo cumprimento, a 09.11.2018;

a 08.07.2020, pela prática dolosa, a 20.06.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, em 12 meses de prisão efectiva, em RPHVE (Proc. n.º 132/20.9GBOVR, que correu termos no JL Criminal de Ovar) [esteve privado da liberdade, ininterruptamente e em cumprimento dessa pena, desde 04.10.2020 até aos 03.10.2021, data em que foi colocado em liberdade];

a 09.04.2021, pela prática, a 17.06.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, em 2 anos e 1 mês de prisão efectiva, em RPHVE, com autorização de desempenhar a sua actividade profissional, das 08:00 horas às 18:00 horas, com 10 minutos para as respectivas deslocações (pena única que englobou as penas do cúmulo jurídico efectuado no Proc.º n.º 434/16.9PAVFR) – extinta a 03.08.2022.

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No que concerne à determinação e escolha da pena, na sentença recorrida consta o seguinte [transcrição]:

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art.º 40.º, 1 e 2, do Cód. Penal).

Como ensina JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,2 “A exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção. 2

Prevenção significa, por um lado, prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição.

A prevenção geral, no seu entendimento mais actual, como prevenção geral positiva ou de integração, é um momento irrenunciável - e na verdade o mais essencial - de aplicação da pena e não pode, por isso, deixar de relevar decisivamente para a medida daquela.

As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Tal entendimento tem consagração legal, também, no art.º 71.º do Cód. Penal. O seu n.º 1 estipula que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

O seu n.º 2 determina que “o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, fazendo uma especificação não taxativa.

Importa, assim, considerar o mediano grau de ilicitude do facto, tendo em consideração o bem jurídico protegido violado e ameaçado – a vasta experiência do arguido na condução esbate o perigo concreto;

A gravidade das suas consequências é pequena, tendo em consideração a natureza do bem protegido e o desconhecimento de resultados nefastos provocados pelo arguido;

A intensidade do dolo é elevada, porque de dolo directo se trata: o arguido representou o facto e agiu com intenção de o realizar;

Os motivos determinantes fundam-se na indiferença pelos bens jurídicos pessoais e patrimoniais de terceiros, transeuntes e demais automobilistas, sem esquecer o gosto pela condução e na eventual necessidade de se fazer transportar;

As suas condições pessoais e situação económica são medianas, face à sua idade, situação vivencial e profissional, rendimentos auferidos e despesas necessárias;

Os antecedentes criminais conhecidos são valorados como agravante considerável, porque prova cabal da necessidade de prevenção especial – reforçada neste tipo legal de crime que cometeu pela 12.ª vez, entre vários outros;

Finalmente, a necessidade de prevenção geral é elevadíssima, atento o elevadíssimo número de crimes do tipo quer a nível local quer nacional.

A figura da reincidência acha-se comprovada – vd. antecedentes criminais, maxime relativo ao Proc. n.º 132/20.9GBOVR –, resultando evidente, por manifesto, que a conduta do arguido deve ser objecto de censura elevada, atento o circunstancialismo dos autos, de onde ressalta que a condenação anterior, com pena de prisão efectiva, não lhe serviu de suficiente advertência contra o crime (cfr. art.º 75.º, 1 e 2, do Cód. Penal), o que conduz à elevação ou agravação do limite mínimo da pena aplicável em um terço (art.º 76.º, 1, do Cód. Penal), passando a moldura geral e abstracta agravada para prisão de 40 dias a 2 anos ou multa de 13 a 240 dias.

Por tudo o exposto, julga-se concretamente adequada a pena de prisão - considerando a idade do arguido e o seu já vasto passado criminal, as penas concretas que anteriormente lhe foram fixadas (desde a multa, passando pela prisão suspensa simples e com regime de prova, prisão por dias livres e até à prisão efectiva e também em RPHVE), todas elas não suficientemente ressocializadoras (conduzindo à repetição sucessiva da prática criminal), afigura-se-nos a pena não privativa da liberdade manifestamente insusceptível de facilitar (e alcançar) a sua socialização, mostrando-se até incompatível com as exigências mínimas de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico –, que se fixa em 18 meses (art.º 70.º “a contrario sensu” do Cód. Penal).

Atendendo à personalidade do arguido – com manifesta indisponibilidade para se conter na conduta criminosa e sem capacidade de autocrítica –, às suas condições de vida – inserido social, familiar e profissionalmente –, à sua conduta anterior ao crime – já referenciada – e às razões subjacentes – indiferença manifesta pelas condenações aplicadas e propensão para práticas criminosas do tipo –, afigura-se-nos já impossível um juízo de prognose favorável, por resultar manifesta a incapacidade de interiorizar valores fundamentais que suportem uma mudança de rumo, pelo que se considera que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não garantem já a necessária protecção do bem jurídico lesado e a recondução do arguido aos sãos valores sociais dominantes, razões pelas quais se entende de não suspender a execução da pena, nem a substituir por PTFC (cfr. art.os 50.º e 58.º, ambos “a contrario sensu”, do Cód. Penal).

Por sua vez, o regime de permanência na habitação com VE resulta também manifestamente desadequado e insuficiente à realização das finalidades da execução da pena de prisão, porquanto, não obstante lhe ter sido aplicado nas duas últimas condenações, não teve o mérito ou condão de o convencer à regência da sua vida em conformidade com os ditames legais criminais estradais, antes se revelando inoperante ao estancamento dessas práticas costumeiras do arguido, que voltou a colocar em perigo os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora (art.º 43.º, 1 a) e 2, “ a contrario sensu”, do Cód. Penal).


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V. DECISÃO:

Julga-se procedente a acusação e condena-se AA,  pela autoria material de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, 2, do Dec. Lei n.º 2/98, de 03.01, agravado pela reincidência (art.os 75.º, 1 e 2, e 76.º, 1, ambos do Cód. Penal),  na pena de dezoito (18) meses de prisão efectiva.

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Decidindo as questões objeto do recurso

Da alegada nulidade insanável decorrente da falta de notificação do arguido da data designada para continuação da audiência de discussão e julgamento que ocorreu em 14 de Setembro de 2023.

Como vimos, em primeira linha, o arguido questiona a realização da continuação da audiência à revelia, sem que tivesse sido notificado da mesma, entendendo estar verificada a nulidade insanável da al. c) do art.º 119.º do CPP.

Vejamos.

O arguido prestou TIR e foi-lhe dado conhecimento dos seus direitos e obrigações processuais, designadamente que o incumprimento do disposto nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art.º 196.º do CPP legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência nos termos do artigo 333º. Embora o n.º 1 do art.º 332.º do CPP estabeleça como regra a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência, logo exceciona as situações em que pode ser realizada na sua ausência. Uma delas é  precisamente a realização da audiência na ausência do arguido por iniciativa do tribunal prevista no art.º 333.º do CPP[1].

Revertendo para o caso concreto, tendo prestado TIR, o arguido foi regularmente notificado na morada que indicou mediante via postal simples para o início da audiência designada para o dia 12.09.2023, o que não questiona. Tendo faltado injustificadamente, o julgamento iniciou-se após o Senhor Juiz considerar não ser absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência ( art.º 333.º, 1 e 2, do CPP ). O julgamento não terminou nesse dia porque o Tribunal entendeu ser imprescindível a junção da documentação promovida pelo Ministério Público, designando o dia 14 de setembro de 2023 para continuação da audiência, com vista à referida junção. A audiência continuou na data designada e finda a produção da prova e concedida a palavra ao Ministério Público e ao Defensor do arguido para em alegações orais exporem as conclusões de facto e de direito, foi designado o dia 21 de setembro de 2023 para a leitura da sentença. O recorrente não foi notificado da continuação da audiência. E não tinha que ser. Com efeito, acompanhando o Acórdão da Relação de Coimbra de 5.08.2018[2], a notificação (envio de aviso postal simples para a morada indicada) é indispensável para que se dê início à audiência, mas não o é para a sua continuação, sempre que ocorra incumprimento das obrigações decorrentes do TIR, como aconteceu no caso concreto. Em suma, apenas em relação ao início da audiência se exige prévia notificação, sendo esse o sentido da remissão da alínea d) do artigo 196º, nº 3 para o artigo 333º do Código de Processo Penal. Como refere o Acórdão da Relação de Évora de 21.11.2023[3], estando o arguido regularmente notificado para a morada que indicou no TIR, não tendo comparecido nem justificado a sua falta, não pode ser desresponsabilizado em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento. Nestes casos, regularmente notificado para a data do início da audiência de julgamento, tem de aceitar que a mesma se realize na sua ausência, com as sessões entendidas como necessárias, sendo representado, para todos os efeitos legais, pelo seu defensor, sendo de aplicar o disposto no artigo 196º, nº 3, alínea d), sendo a sua representação assegurada pelo seu defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência nos termos do artigo 333º.

Por outro lado, tendo o Tribunal quo considerado dispensável a presença do arguido e que a audiência podia começar sem estar presente, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do referido art.º 333.º do CPP, não sendo obrigatória a sua presença na primeira sessão da audiência de julgamento, como é pacifico, não o era também nem na continuação, nem na leitura da sentença, onde se encontrava devidamente representado pelo seu defensor. Não se verifica, pois, a nulidade insanável prevista na al. c) do art.º 119.º do CPP, dado que a ausência do arguido não ocorreu num caso em que a lei exige a sua comparência.

Muito embora o Tribunal quo tenha decidido que a audiência podia começar sem o arguido estar presente, é certo que mantinha o direito de comparecer por sua iniciativa para prestar declarações até ao encerramento da audiência. Contudo, incumprindo as obrigações decorrentes do TIR, inviabilizou esse direito. De todo o modo, não tendo sido possível terminar a audiência na primeira data, aquela para a qual o arguido estava regularmente notificado e à qual faltou injustificadamente, encontrando-se o mesmo devidamente representado pelo seu defensor em todos os atos processuais nos quais tinha o direito ou o dever de estar presente, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque[4], não tinha o Tribunal a quo de o notificar da data designada para continuação da audiência. Termos em que também não se verifica a violação dos art.ºs 61.º, n.º 1, al. a), 113.º, n.º 10, 332.º, n.º 1, 333.º, n.º 3, e 386.º, n.º 1, do CPP, nem dos artigos 2.º e 32.º, n.ºs 1, 5 e 6 da Constituição, inexistindo qualquer inconstitucionalidade.

Do alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Em segunda linha, e subsidiariamente, o arguido alega que foi omitida pronúncia sobre factos alegados na acusação e relevantes para a integração do pressuposto material da reincidência, pelo que, segundo ele, se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Refere-se ao seguinte:

Não obstante ter sofrido várias condenações pela prática de crimes rodoviários, concretamente pela prática do crime que ora lhe é imputado, tal não bastou para o demover da prática dos factos aqui em referência.

O arguido revelou um total desrespeito pelas condenações anteriores, para além da supra referida, as quais não foram suficientes para o levar a interiorizar o desvalor dos factos de que vem acusado, revelando, assim, acentuada propensão para a prática de actos ilícitos, designadamente de crimes estradais.

Vejamos.

Resulta do n.º 4 do art.º 339.º do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2007[5], cuja jurisprudência seguimos, na discussão da causa as questões a decidir são as constantes da acusação para além de outras que resultem da prova produzida em audiência. É sobre a matéria factual com esta dupla origem - ou múltipla se eventualmente acrescerem contestação à acusação, dedução de pedido cível e respectiva contestação - que o tribunal terá de decidir, deixando bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados com interesse para a decisão, que todos eles foram examinados, investigados, apreciados, enfim, objecto de discussão e decisão. (…)

Só a enumeração concreta e especificada dos factos - alegados pela acusação, defesa e resultantes da discussão da causa - permite ao tribunal superior, em recurso, determinar se certo facto foi efectivamente apreciado e considerado provado ou não provado, ou se, pelo contrário, nem sequer foi considerado.

De há muito se firmou jurisprudência no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão (…).

Revertendo para o caso concreto, aqueles parágrafos constam da acusação deduzida contra o arguido, imediatamente a seguir à enumeração das anteriores condenações por ele sofridas. Todavia, não constam do texto da decisão recorrida, nem no segmento dos factos provados, nem no dos factos não provados.

Não operando a circunstância qualificativa da reincidência como mero efeito automático das anteriores condenações, não é suficiente, como assinala o citado aresto,  erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação, mostrando-se necessária uma específica comprovação factual, de enunciar os factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor.

Tal como no caso apreciado e decidido pelo Supremo, também nos presentes autos a sentença se limita enunciar nos factos provados as anteriores condenações sofridas pelo arguido, sendo omissa quanto à referência factual em causa que constava da acusação. A fundamentação não é, pois, completa, como o exige o nº 2 do art.º 374º do CPP, o que configura nulidade prevista na al. a) do nº 1 do art. 379º CPP, a qual é cognoscível oficiosamente. Acresce que a questão pode ainda ser vista à luz da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, pois o tribunal não se pronunciou sobre a verificação do elemento material da reincidência, como resulta dos termos expostos, devendo tê-lo feito, o que constitui omissão de pronúncia.

A sentença recorrida é, pois, nula nos termos do art.º 379.º, n.º 1, als. a) e c), e n.º 2, do CPP, devendo ser substituída por outra que supra as apontadas omissões.

Da alegada nulidade por falta de especificação e fundamentação da medida da pena concreta independentemente da reincidência

Em terceira linha, também subsidiariamente, o arguido alega que na determinação da pena resultante de reincidência o Tribunal a quo omitiu por completo a primeira operação, não fixando a pena concreta precedente à determinação da pena resultante da reincidência.

Também aqui lhe assiste razão.

Nos termos do disposto no art.º 75.º, n.º 1, do Código Penal, é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

São, pois, pressupostos formais da reincidência a presença de crimes dolosos; a punição de qualquer deles com prisão efectiva de duração superior a 6 meses; o trânsito em julgado da condenação ou condenações anteriores; o cumprimento total ou parcial da punição pela condenação anterior; e a conexão entre os crimes, materializada na exigência de que entre a prática do crime anterior e aquele em que se perspectiva a verificação da reincidência, não tenham decorrido mais de cinco anos, descontado o período de privação da liberdade[6].

Tendo o arguido sido condenado como reincidente, cabia determinar a pena nos termos do disposto no art.ºs 75.º e 76.º, do Código Penal, o que o Tribunal a quo não fez. Com efeito, não determinou a medida da pena pela prática do crime de condução sem habilitação legal objeto dos presentes autos, como é imposto pelo n.º 1 do referido art.º 75.º. Não sabemos, pois, se foi condenado em pena de prisão efectiva de duração superior a 6 meses.

Pelo que entendemos que também nessa parte a decisão recorrida está ferida de nulidade, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, que é de conhecimento oficioso e que o tribunal recorrido igualmente deve suprir, a par das referidas supra.

Face à declaração de nulidade da sentença recorrida, fica prejudicado o conhecimento da última questão (se a pena de 18 meses de prisão efetiva aplicada ao arguido deve ser executada em regime de permanência na habitação).

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Sumário:
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente provido o recurso, e, em consequência, declaram a nulidade da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que supra as apontadas omissões.

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Sem custas.
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Porto, 28 de fevereiro de 2024
José António Rodrigues da Cunha
Elsa Paixão
Manuel Ramos Soares (com voto de vencido): [Declaração de voto de vencido: «Votei vencido porque não concordo com a interpretação segundo a qual, tendo a audiência de julgamento começado na ausência do arguido, com este notificado na morada do TIR, já não tem de ser notificado para a data da continuação da audiência. Penso que as regras do artigo 333º nºs 2 e 3 do CPP não dispensam a notificação do arguido para uma segunda data, para, querendo, estar presente e poder exercer os correspondentes direitos. O regime do TIR faz presumir que a notificação chega ao conhecimento do arguido e isso é que explica que depois a sua ausência não seja impeditiva da realização do julgamento. Mas, para isso, é necessário que a notificação seja feita, pois de outro modo aquela presunção não se opera.]
Por esta razão, considero que, em consequência da nulidade insanável, o julgamento devia ser anulado a partir do momento em que esta foi cometida, sendo a mesma sanada com a notificação do arguido e a subsequente continuação do julgamento.»
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[1] É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 334.º.
[2] Relatado pela Desembargadora Maria Pilar de Oliveira, in www.dgsi.pt.
[3] Relatado pelo Desembargador Edgar Valente, in www.dgsi.pt.
[4] Comentário do Código de Processo Penal…, 4.ª edição actualizada, págs. 861 e 862.
[5] Relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt.
[6] Ac TRC, de 16.07.2008, relatado pelo então Desembargador, Conselheiro Fernando Ventura, in www.dgsi.pt.