Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FILIPE CAROÇO | ||
Descritores: | ACÇÃO DE HONORÁRIOS DEPOIMENTO DE PARTE SEGREDO PROFISSIONAL | ||
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Nº do Documento: | RP201204262573/10.0TJVNF-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/26/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - É ilegítima a recusa de advogado em prestar depoimento de parte, numa acção de honorários por si intentada, quando dela resulta a dispensa de sigilo por parte do cliente demandado. II - A igualdade e transparência na discussão judicial da relação de mandato justificam a quebra do segredo profissional que deve ceder perante o dever de colaboração para a descoberta da verdade e o direito de acesso à justiça, assim contribuindo para a dignificação da advocacia. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2573/10.0TJVNF-A.P1 – 3ª Secção (apelação) Juízos Cíveis de Vila Nova de Famalicão Relator: Filipe Caroço Adjuntos: Desemb. Pinto de Almeida Desemb. Maria Amália Santos Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B…, maior, residente na Rua … n.º .., da freguesia de …, do concelho e comarca de Vila Nova de Famalicão, intentou acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra: C… e mulher, D…; E… e marido, F…; e G…, maior; todos os R.R. com residência na Rua … n.º .., da freguesia de …, do concelho e comarca de Vila Nova de Famalicão. Com base na prestação dos seus serviços de advocacia, o A. pediu a condenação dos R.R. a pagarem-lhe determinadas quantias pecuniárias, a título de honorários, despesas e encargos, IVA, IRS e juros, no total de € 15.601,62, acrescidas de juros de mora desde a citação até integral pagamento, juntando vários documentos. Os R.R. contestaram a acção defendendo a respectiva improcedência, com a sua absolvição do pedido e condenação do A. como litigante de má fé, devendo fixar-se o montante mínimo de € 3.000,00 para cada um dos R.R. e € 3.000,00 para honorários do seu mandatário, nos termos do disposto nos art.ºs 456° e 457° do Código de Processo Civil. Tendo prosseguido para a fase de instrução, por despacho de 16.12.2010, foram admitidas provas requeridas pelas partes, designadamente o depoimento de parte do A. à matéria indicada pelos R.R., nos termos dos art.ºs 552º e 553º do Código de Processo Civil. O A. reagiu por requerimento de 26.10.2011 escusando-se da prestação do depoimento por invocação do nº 3 do art.º 618°, e da al. c) do nº 3 e do nº 4° do art.º 519° todos do Código de Processo Civil, e nos termos do art.º 135° do Código de Processo Penal. Na sua perspectiva, a prestação de depoimento viola o segredo profissional a que está obrigado por ser, simultaneamente, parte e advogado na causa. O fundamento ético jurídico deste dever não se confina à relação contratual estabelecida entre advogado e ex-cliente, mas no princípio da confiança e do manifesto interesse público. O interesse dos presentes autos, atinente unicamente a uma questão patrimonial, não tem a força suficiente nem a urgência adequada a afastar os interesses que subjazem à consagração do dever de sigilo profissional, e desde logo o dever de confiança entre o mandatário (o advogado acima referido como A.) e os ex-clientes (R.R. neste processo), assim como, não se revela ser o único meio para fazer a prova do não pagamento por parte dos R.R. Pede, assim, que seja declarado legítimo o pedido de escusa. A 17.11.2011, no início da audiência de julgamento, o M.mo Juiz proferiu para a acta uma decisão pela qual indeferiu o pedido de escusa do A. em depor como parte, com dois fundamentos essenciais: 1º- O despacho que admitiu e ordenou o depoimento de parte do A. transitou em julgado, pelo que não podia, agora, o A. atacá-lo judicialmente; e 2º- Em qualquer caso, é do interesse dos próprios clientes do A. que o sigilo profissional seja dispensado, e sendo no interesse deles que o sigilo existe, o A. não pode escusar-se ao depoimento. De imediato, em face da considerada ilegitimidade da escusa, o A., advogado em causa própria, requereu que fosse solicitado parecer à Ordem dos Advogados sobre o assunto, ao abrigo do art.º 135º do Código de Processo Penal, por remissão do nº 3 do art.º 618º, e da al. c) do nº 3 e do nº 4 do art.º 519º do Código de Processo Civil; o que foi deferido, com a reserva de que não se está perante um caso de violação de segredo profissional. Por parecer fundamentado emitido a 5.1.2012, a Ordem dos Advogados concluiu nos seguintes termos, ipsis verbis: «Assim sendo, a Ordem dos Advogados é de Parecer que: - Deverá ser julgada ilegítima a posição manifestada pelo Senhor Dr. B… de recusa em prestar depoimento de parte.». Entretanto, por requerimento de 2.12.2011, o A. apelara fundamentadamente da referida decisão de 17.11.2011, com as seguintes CONCLUSÕES: «I. O Autor, aqui Apelante, apresentou Acção Declarativa de Condenação sob a Forma Sumaria, em 23/07/2010, tendo como fundamento, o pagamento de honorários e despesas por conta do cliente, no âmbito da sua actividade profissional de Advocacia, descriminando todos os serviços prestados para os Réus, e que não foram pagos; II. O Autor, apresentou todos os documentos respeitando a todo o serviço prestado no âmbito da sua actividade como advogado, e de carácter publico, foram apresentados com a petição inicial por parte do Autor, constando inclusivamente de todos os documentos apresentado, a rubrica e assinatura do Autor no exercício da sua actividade, tendo sido os Réus devidamente citados para contestar; III. Os Réus, aqui Apelada, deduziram contestação aos autos da Acção Processo Declarativo Comum Sumária, com a Ref: 5334751 com a data de 21/09/2010, com fundamento na prescrição, e por impugnação factual e impugnação documental, requerendo a produção que entendeu por conveniente, nomeadamente documental e testemunhal; IV. Apresentou o Autor resposta às excepções peremptórias deduzidas pelos Réus com a ref: 5460485, concluindo-se como na petição inicial, bem com, devendo declarar-se tacitamente a divida por parte dos Réus, e consequentemente, ilisão da presunção de cumprimento, pela impugnação dos factos do direito do Autor, quer pela, falta de afirmação da realização do pagamento pelos Réus; V. Foi o Autor e Ré notificada com a ref: 3099937 de 29/10/2010, nos termos do art. 512º do C.P.C do conteúdo do despacho saneador e para em 15 dias apresentar o rol de testemunhas, requerer outras provas, alteração dos requerimentos probatórios e gravação da Audiência Final; VI. Vieram os Réus requererem nos termos do art 512.º do C.P.C, com a Ref: 5999376 de 13/12/2010 apresentar requerimento provatório requerendo o depoimento de parte por parte do Autor, a toda a matéria que lhe seja desfavorável, constando da contestação; VII. Assim como requereu o Autor, nos termos do art. 512º do C.P.C, com a Ref. 6001509 de 13/12/2010, a notificação nos termos do art. 535º, o departamento de Urbanismo e Habitação, da Câmara Municipal … e a 2.ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Famalicão, para juntar certidão dos documentos que instruem o processo de licenciamento/autorização de construção n.º 6812/2006, bem como, certidão do I.M.I apresentado em 17/04/2007, documentos estes que instruíram toda a petição, apresentada pelo Autor; VIII. Por requerimento despacho proferido com a Ref. 3165473, de 12/01/2011 foi junto certidão emitida pelo o departamento de Urbanismo e Habitação, da Câmara Municipal …, da junção de certidão dos documentos solicitados, constituindo esta prova dos serviços de advocacia realizados pelo Autor, justificativa dos seus honorários e despesas, conforme consta da sua petição inicial; IX. Após a apresentação destes requerimentos supra mencionados, a M.ª Juíz “a quo” proferiu o despacho conforme proferidos sob a ref: 3128957 á margem referenciados, de 16/12/2010, “admitindo o depoimento de parte do Autor, á matéria indicada pelos Réus; X. O Autor foi notificado, nessa qualidade, com a ref: 3573407 de 11/10/2011, ara comparecer em tribunal no dia 17/11/2011 ás 14h, a fim de prestar depoimento de parte na audiência de discussão e julgamento; XI. Perante a supra citada notificação, e devido á qualidade profissional do Autor nos presentes autos, de Advogado, requereu com a Ref. 8415168 de 26/11/2011, a escusa de prestação de depoimento de parte, nos termos do n.º 3º do art. 618º, da al. c) do nº 3º e do n.º 4º do art. 519 todos do C.P.C e nos termos do art. 135º do C.P.P. XII. Em Audiência de discussão e julgamento dia 17/11/2011, foi em acta com a Ref. 3641237, proferido despacho quanto á escusa apresentada conforme requerimento supra referido, considerou indeferir-se o pedido de escusa do Autor, em depor como parte. XIII. Ora, o objecto deste recurso de Apelação é precisamente este despacho, que indeferiu o pedido de escusado Autor, em depor como parte; XIV. Salvo o devido e merecido respeito, que é muito, o Autor, entende que a M.º juíz “a quo” nesta parte decidiu mal, isto porque, e salvo melhor opinião, nos termos em que o Autor, foi notificado para a audiência e julgamento, e precisamente para prestar depoimento de parte em 11/10/2011, apresentou em 26/10/2011, requerimento fundamentado, para a sua legitima escusa em depor como parte, podendo, ter feito, até ao final da audiência de discussão e julgamento, sido suscitado a sua legitima escusa, requerendo mesmo no final do seu depoimento, a sua nulidade nos termos do n.º 1 do art. 201º do C.P.C., XV. Não sendo vedado ao Advogado litigar em causa própria, mesmo contra um seu cliente, actual ou passado, como é frequente nas acções de honorários, como é o caso dos presentes autos, sendo que a alegação e prova da matéria de facto que serve de fundamento ao pedido; XVI. Efectivamente entende o Autor que, no caso de acção de honorários, se trata de alegar um conjunto de factos que sustentam o pedido e de juntar determinados documentos ao processo, numa actuação norteada por critérios de ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, de forma a que a revelação de factos e documentos se restrinja ao absolutamente necessário á defesa dos direitos e interesses legítimos, in causa do próprio advogado, aqui Autor, n.º 2 do art. 18º CRP; XVII. Tendo o Autor, assegurado esses direitos ou interesses legítimos de forma, que não a supressão do segredo profissional, deve o advogado esgotar todas essas alternativas, nos presentes autos, o Autor alegou e apresentou todos os documentos absolutamente necessários á defesa dos seus direitos e que fundamenta a sua pretensão, e, XVIII. Tendo o interesse atinente nos presentes Autos, unicamente a uma questão patrimonial, não tendo salvo melhor entendimento, força suficiente, nem a urgência adequada a afastar os interesses que subjazem á consagração do dever do sigilo profissional, e desde logo o dever de confiança entre o mandatário e o cliente, e do interesse publico desse dever. XIX. O respectivo dever de segredo profissional não interessa apenas ao confidente e ao ex-cliente, mas á sociedade inteira, revestindo assim um dever de ordem publica, tutelando interesses de ordem geral e social, inscritos no secretismo e confidencialidade no exercício da profissão; XX. O fundamento ético jurídico deste dever não se confina á relação entre a relação contratual estabelecida entre Advogado e ex-cliente, mas no princípio da confiança e do manifesto interesse publico; XXI. Assim, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, o Autor, entende que o M.º juíz “a quo” decidiu mal na parte em que fundamentou o indeferimento do pedido de escusa por parte do Autor, de “o próprio cliente, ou melhor, os seus herdeiros que pretendem que o Ilustre Advogado, o aqui Autor, preste declarações sobre os eventuais serviços prestados pelo Autor ao Réu C…. Ou seja, são os próprios Réus interessados no alegado segredo profissional, que o estão a dispensar o Autor do segredo profissional.”; XXII. Isto porque, por um lado, a autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, como sendo de interesse publico, cabe única e exclusivamente ao Presidente do Conselho Distrital, com recurso para o bastonário, nos termos do art. 2º do Regulamento n.º 94/2006 OA (2ª Série), de 25 de Maio de 2006.; XXIII. Por outro lado, tendo uma das partes, ex-cliente falecido, mais ninguém poderia pretender, que revela-se factos confidenciais, que revelou com o seu advogado; XXIV. Assim, mais ninguém pode dispensar deontologicamente o advogado do segredo profissional, nem o ex-cliente, outro advogado ou interveniente; XXV. Assim nos presentes autos, o advogado, Autor, é obrigado a guardar o segredo profissional, no que respeita a factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços; XXVI. O tribunal “a quo” que decida pela ilegitimidade de escusa de depor, quer quando o tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado ordenar o depoimento com quebra do sigilo profissional, deve ouvir o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional, in causa, a Ordem dos Advogados, nos termo do n.º 5 in fine do art. 135 do C.P.P.; XXVII. Ora, tal não veio a acontecer nos presentes autos, não tendo o M.º juíz “a quo” solicitado ao organismo representativo da profissão o respectivo parecer, mediante a avaliação prévia da Ordem dos Advogados, para se prenunciar quanto á legitimidade ou não da escusa solicitada pelo Autor; XXVIII. Note-se contudo, que apesar de dispensado do sigilo, o advogado não pode ser obrigado á revelação de factos abrangidos pelo sigilo, nos termos da conjugação do n.º 4º e 7º do art. 87º do E.O.A., no “sentido de que o advogado, ainda que podendo revelar factos abrangidos pelo sigilo, em face da norma excepcional do n.º 4º e após a autorização da Ordem dos Advogados, pode ainda por sua livre vontade, manter o segredo profissional” neste sentido Ac. Tribunal da Relação do Porto, Apelação n.º 1390/08, 2.ª sec., de 03/03/2009; XXIX. Assim, não se entendendo, no douto despacho recorrido não se verificou o prescrito nos art. 87º do E.O.A, o art. 2º Regulamento n.º 94/2006 O.A. (2ª Série), de 25 de Maio de 2006, e violou o disposto nos art.135º C.P.P , por remissão do n.º 4 do art. 519º do Cód. Proc. Civil;» (sic) Terminou no sentido de que, procedendo a apelação, se revogue a decisão recorrida e se considere legítima a escusa de depoimento de parte do A. Os R.R. não ofereceram contra-alegações. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.II. O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil[1], na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável). Com efeito, está para apreciar e decidir se é legítima a escusa do A. de depor como parte em acção de honorários quanto à matéria da contestação que lhe é desfavorável, com base em sigilo profissional, sendo ele, simultaneamente, advogado (em causa própria) no processo. * III.A matéria de facto a considerar, de índole processual, é a que consta do relatório. * IV.Como critério geral, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados (art.º 519º, nº 1). Este preceito é corolário do que dispõe o art.º 266º, no seu nº1, segundo o qual “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. E, de acordo com o respectivo nº 2, “o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes, e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência” (princípio da cooperação). Excepcionalmente, poderá haver recusa legítima (obrigação de facto negativo), se a obediência à ordem de colaboração tiver por fundamento alguma das situações previstas nas al.s a), b) ou c) do nº 3 do citado art.º 519º, designadamente a violação do sigilo profissional, caso em que, deduzida esta, por força do nº 4, será aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”. O direito à prova é uma componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais. Daí decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, e, por outro, a possibilidade de utilização, pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhe convierem. A recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário. Porém, o direito à prova não é absoluto, antes contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca, razão por que se admite a recusa de colaboração para a descoberta da verdade, designadamente, se a obediência importar violação da intimidade privada e da vida familiar, da dignidade da pessoa humana, da integridade pessoal ou do sigilo profissional[2]. Em matéria de prova testemunhal, resulta do nº 3 do art.º 618º que devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no nº 4 do artigo 519º. No caso sub judice não está em causa a prestação de depoimento testemunhal, mas de depoimento de parte, o meio processual de provocar a confissão --- exigível de pessoas que tenham capacidade judiciária e poder de disposição do direito a que o facto confessado se refira --- ou seja, o reconhecimento eficaz que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.ºs 352º e 353º, nº 1, do Código Civil e 552º e seg.s do Código de Processo Civil). Não prevê a lei do processo para o depoimento de parte norma semelhante à que a mesma lei estabelece sobre recusa legítima a depor para o depoimento testemunhal (art.º 618º), mas subsiste o disposto no art.º 519º. O art.º 87º, nº 1, al. a), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, que aqui releva, estabelece que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste. Daqui decorre que este regime jurídico assenta, necessariamente, na protecção da confiança, entre advogado e cidadão, imprescindível ao exercício da profissão de advogado e à defesa dos direitos individuais e aos valores sociais que lhe são cometidos, sendo assim certo que o dever de sigilo do advogado é estabelecido como tutela de um interesse social, sendo as normas que o afirmam de interesse e ordem pública. Ainda assim, dispõe o nº 4 do mesmo art.º 87º que o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento. Antes de ser advogado, o causídico é um cidadão de pleno direito. A limitação ao seu depoimento é excepcional só devendo ocorrer na medida do estritamente necessário à salvaguarda do escopo que preside ao estabelecimento de um segredo profissional próprio. Através de procedimento recursório relativo a decisão que julgou a escusa ilegítima, mas não tomou o depoimento[3], pretende-se que seja averiguado e decidido se a escusa invocada pelo A. é legítima, devendo ponderar-se o princípio da prevalência do interesse preponderante a que se refere o art.º 135º, nº 3, do Código de Processo Penal. Foi ouvida a Ordem dos Advogados, que emitiu parecer no sentido de que a recusa manifestada pelo A. é ilegítima. Somos necessariamente remetidos para os princípios fundamentais estruturantes do sistema jurídico previstos na Constituição da República que assentam no Estado de Direito, e prevalecentes sobre as normas do E.O.A.[4] de que se destaca o princípio da igualdade no acesso à justiça, aqui relevante na vertente da efectiva igualdade de armas das partes no desenvolvimento da lide (art.º 20º, nºs 1 e 4, da Constituição e art.º 3º-A do Código de Processo Civil). O princípio da igualdade afirma-se, assim, no domínio da legislação processual, através do princípio da igualdade de armas e do princípio do contraditório, sendo consubstanciados na faculdade de qualquer das partes, em condições de rigorosa igualdade, “poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras”.[5] Se uma das partes pode, sem reservas, exigir que a outra parte preste depoimento, só uma razão ponderosa e devidamente enquadrada nos princípios do Estado de Direito poderá justificar que à outra parte não seja reconhecida uma posição processual de semelhante amplitude. O segredo profissional visa proteger a integridade e liberdade das pessoas a quem aproveita (art.º 26º da Constituição). E o sigilo profissional do advogado interessa ao confidente e ao cliente que lhe confia os factos secretos, bem como ao interesse social e geral na confidencialidade e secretismo que deve existir nas relações do advogado no exercício da sua profissão, cuja actividade se desenvolve na área de privacidades das pessoas”.[6] A violação resultará da divulgação dos factos conhecidos por via e no exercício da advocacia, seja por declarações orais seja por qualquer outro meio, nomeadamente por junção de documentos, que os revelem, ao processo com que tais factos se relacionam. Tendo em conta os interesses em jogo, importa saber se os princípios da igualdade de armas e da descoberta da verdade material se superiorizam relativamente à protecção própria do segredo de advogado; se no caso concreto o dever de prestar depoimento tem dignidade superior e prevalece sobre o dever de sigilo invocado pelo A. A resposta não pode deixar de ser afirmativa pelas razões que se passam a expor. Está em causa uma acção de honorários, pela qual o A., advogado, visa obter do seu cliente (falecido aquele, dos seus herdeiros) o pagamento por serviços prestados no exercício da advocacia. Um novo interesse se prefigura: o interesse pessoal e directo do advogado, enquanto parte na causa, na procedência da acção; interesse esse que é antagónico relativamente ao interesse dos R.R., herdeiros do cliente falecido. Este condicionalismo afasta a tutela que o sigilo do advogado concede ao seu cliente, já que é, primordialmente, do interesse deste a dispensa de sigilo, manifestado nos autos pelos R.R. Debatendo-se a relação advogado-cliente a tutela da confiança que entre eles deve existir passa pela revelação dos factos com ela relacionados, não pela sua ocultação. É a defesa do interesse do cliente, enquanto tal, numa lide com terceiros, que justifica o sigilo, não o litígio que o opõe ao seu advogado. Neste caso, sobreleva a transparência da relação, a descoberta da verdade material, como em qualquer litígio. No caso, não existe sequer interesse público na protecção do segredo profissional. A ninguém interessa, não interessa à sociedade em geral, que a um advogado assista, como dever profissional, a ocultação de factos que apenas relevam na sua relação contratual com o cliente, permitindo assim que, sob a capa de protecção de interesses que apenas dizem respeito ao cliente e à confiança geral nos advogados no exercício da sua profissão, acabe por se resguardar, afinal, um interesse pessoal e patrimonial do advogado, enquanto parte no processo, na cobrança de honorários. Manifestamente, sobrepõem-se aqui os princípios da igualdade das partes no processo[7] e o dever da sua colaboração na descoberta da verdade material e da realização da justiça sobre o dever de sigilo profissional do advogado, que bem justificam que o A. preste depoimento de parte, assim se protegendo também a confiança da sociedade em geral no normal funcionamento dos tribunais e no exercício da advocacia (interesse preponderante). Mal se compreenderia que, nestas circunstâncias, podendo o A. requerer a prestação de depoimento de parte dos R.R. --- como, aliás, requereu e foi admitido relativamente à R. D… --- não pudessem os demandados ouvir o A. também em depoimento de parte tendo nisso interesse atendível. E, se atentarmos nos termos da impugnação vertida na contestação dos R.R., logo se descortina a importância que o depoimento de parte do A. poderá ter para a descoberta da verdade, dadas as dificuldades de prova de alguma dessa matéria por outros meios em direito permitidos e o dever de confissão dos factos pessoais desfavoráveis inerente ao depoimento de parte (art.ºs 352º, 356º, nº 2 e 358º, nº 1, do Código Civil e art.ºs 552º, nº 1, 554º, nº 1 e 559º). Os R.R. alegam e pretendem demonstrar que o A., ao contrário do que refere, se limitou a realizar algumas diligências meramente burocráticas, de pequena importância e que tiveram que ser reformuladas por uma sua colega, “devendo esclarecer-se os contornos subjacentes aos contactos havidos com o Exm.° advogado A.”. Sob os artigos 10º e seg.s da contestação, os R.R. expuseram concretos pormenores do relacionamento havido entre o A. e os clientes cuja demonstração, pela pessoalidade dos factos ocorridos apenas entre partes, poderá depender, em elevado grau, da pretendida prova por confissão. Está em causa a defesa do interesse legítimo dos R.R. enquanto sucessores do cliente do A. Se anteriormente era acautelado pelo sigilo do mandatário, agora é-o pelo seu afastamento. Sobre o dever de sigilo prevalece, no caso, o dever de colaboração com o tribunal para a descoberta da verdade, a tutela dos interesses particulares atendíveis dos cidadãos e o direito de acesso à justiça. Salienta o parecer da Ordem dos Advogados junto aos autos: “foi o próprio Advogado, ao instaurar a acção judicial, que trouxe à lide o mandato e a obrigação de pagamento dos respectivos honorários, tendo o nicho do segredo sido aberto ou revelado pelo próprio Advogado A. Ora, não se nos afigura que possa agora invocar o segredo profissional para se recusar a depor sobre a existência ou não do mandato e sobre a exigibilidade dos honorários que peticiona”. Bem se justifica, à luz do Direito, a quebra do sigilo profissional do A. * SUMÁRIO (art.º 713º, nº 1, do Código de Processo Civil):1- É ilegítima a recusa do advogado em prestar depoimento de parte como autor em acção de honorários quando dos seus termos resulta a dispensa de sigilo por parte do cliente demandado, cujo interesse o segredo profissional tutelava, justificando-se agora igualdade e transparência na discussão judicial da relação de mandato. 2- Também o interesse geral da sociedade na tutela da confiança do sigilo profissional do advogado é, na acção de honorários, substituído pelo interesse geral da sociedade em que, enquanto partes opostas num processo, advogado e cliente debatam os seus interesses contratuais e direitos pessoais em condições de equidade. 3- A igualdade de armas na acção de honorários, designadamente no acesso das partes aos meios de prova, não é apenas uma condição de efectiva realização da justiça, mas até uma condição de dignificação da advocacia. * V.* Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão que julgou ilegítima a recusa do A. em prestar depoimento de parte no processo. Custas da apelação pelo A. recorrente. * Porto, 26 de Abril de 2012Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos Maria Amália Pereira dos Santos Rocha _____________ [1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem. [2] Acórdão da Relação do Porto de e 25 de Maio de 2009, Colectânea de Jurisprudência, T. III, pág. 188. [3] Tanto quanto nos parece, com base nos elementos processuais que instruíram a apelação. [4] Estatuto da Ordem dos Advogados. [5] Acórdão do Tribunal Constitucional de 6.12.2005, DR, II, de 6.2.2006, pág. 1660. [6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/04/2004, proc. 04B795, citado no acórdão da Relação do Porto de 28.4.2009, proc. 0825681, ambos in www.dgsi.pt. [7] Neste sentido, consulte-se, por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.5.2008 (tirado, embora, no âmbito de aplicação do anterior E.O.A., aprovado pelo Decreto-lei nº 84/84), proc. 07B4673, in www.dgsi.pt. |