Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1292/21.7T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
RELAÇÃO SUBJACENTE
LIVRANÇA
PACTO DE PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RP202402081292/21.7T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A lei cambiária não impõe ao portador do título, que, antes de accionar o subscritor da livrança lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou.
II - A certeza, a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art. 10.º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim, se mostra revestido de força executiva.
III - A interpelação do executado-subscritor da livrança, como condição prévia do preenchimento da livrança, não é exigida pela LULL.
IV - Para se afirmar a necessidade de interpelação do executado-subscritor da livrança, como condição prévia do preenchimento da livrança, é necessário que o embargante alegue e prove que a necessidade dessa interpelação emerge do próprio pacto de preenchimento, alegando, para tanto, factos concretos consubstanciadores da relação subjacente, bem como, factos concretos, consubstanciadores do “pacto de preenchimento” que terá sido celebrado, bem como do citado “abuso de preenchimento”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1292/21.7T8OAZ-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis – Juiz 1


Relator: Francisca da Mota Vieira
1º.Adjunto: António Carneiro da Silva
2º Adjunto: Ernesto Nascimento

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

1. A..., S.A. - Sucursal Em Portugal instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa, contra o executado AA, nos termos e pelos fundamentos seguintes:

1º - A exequente é uma sociedade comercial que se dedica a operações financeiras, nomeadamente operações de crédito ao consumo, nos termos legais previstos para este tipo de sociedades.

2º - A exequente é legítima titular e portadora de uma livrança com o valor de EUR 25.828,55 assinada pela executado, emitida em 16/02/2021 e com vencimento em 08/03/2021

3º - A referida livrança titula mútuo concedido pela exequente ao executado, ao abrigo da actividade de concessão de crédito ao consumo a que a exequente se dedica.

4º - Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga então, nem posteriormente, por qualquer forma, pelo executado, nem o seu pagamento é de presumir.

5º - Obrigou-se o executado a devolver à exequente o montante mutuado, acrescido de juros à taxa mensal contratual, sobre o montante em dívida, através do pagamento pela executada de 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de EUR 352,95 vencendo-se as prestações ao dia 08 de cada mês.

6º - Não foram liquidadas as prestações a que se tinham vinculado, razão pela qual se considera incumprido o contrato em 19/01/2021.

7º - Ficou pois em dívida a quantia de EUR 25.828,55 (quantia titulada pela livrança referida no art. 2º), acrescida de juros moratórios, às taxas legais supletivas, desde a data referida nos artigos 2º até integral e efectivo pagamento.

8º - Os documentos que se juntam são títulos executivos.

9º - A dívida é certa, líquida e exigível

2. O executado deduziu a presente oposição à execução que lhes é movida pelo exequente, arguindo:

a.  a ineptidão do requerimento executivo, com os fundamentos seguintes:

b. que o exequente não alega factos concretos que fundamentam a sua pretensão; a exequente  não alega nem invoca os factos que estão na base do título executivo, apenas procede à junção da livrança a que faz referência;  não expõe qual a relação subjacente ao referido título e,  por isso, a razão pela qual consta da mesma o valor apresentado.Conclui que não resulta qual o tipo de vínculo celebrado entre as partes e o objecto do mesmo, que o exequente não fundamenta a razão do preenchimento da livrança e, muito menos, a razão de ser do montante e data de vencimento.

Mais arguiu que a inexistência de título executivo com os seguintes fundamentos: no caso dos autos, os embargantes subscreveram e avalizaram a livrança que constitui o título executivo, apondo nela as suas assinaturas; no momento da emissão da livrança não constavam a data do vencimento, o local de pagamento e o valor, estes elementos ficariam determinados com o completo preenchimento de acordo com o clausulado, a  livrança que constitui o título executivo foi apresentada a pagamento sem a interpelação prévia dos embargantes para pagamento, o que, determina que o executado , desconheça  o montante  exacto em dívida e da data em que se vencia a garantia avalizada; era necessária a interpelação prévia do executado, pois só assim os mesmos teriam efectivo conhecimento do montante exacto e da data de vencimento da garantia prestada; o exequente não faz menção ao local de pagamento/domiciliação, o que constitui uma violação do artigo 75.º, n.º 4 da LULL).

Concluiu, que a livrança que constitui título executivo nos presentes autos foi preenchida abusivamente pelo exequente, por não estarem o preenchidos os requisitos para a existência de um título executivo bastante.

2. A exequente embargada apresentou contestação, sustentando, de modo particularmente sucinto, não padecer a acção executiva de qualquer um dos vícios apontados pelo executado e concluiu pela improcedência dos embargos de executado, juntando documentos.

3. Espontaneamente, o executado veio pronunciar-se sobre a documentação entregue com a contestação da exequente, dando-se igualmente por reproduzido o teor da respectiva pronúncia.

4. Teve lugar a audiência prévia, convocada nos termos legais, no decurso da qual foram analisadas e debatidas as questões colocadas nos autos.

Atendendo às dificuldades técnicas na realização da audiência prévia, em conformidade com o documentado, as partes requereram a possibilidade de apresentarem alegações escritas, faculdade esta que lhes foi concedida nos termos permitidos pelos arts. 6º e 547º do Código de Processo Civil.

5. De seguida, foi proferida sentença, na qual foram fixados os factos julgados provados e pela qual foram julgados improcedentes os embargos de executado.

6. Inconformado, o executado interpôs recurso de apelação, e formulou as seguintes Conclusões:

I. O n.º 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil estabelece com clareza os títulos executivos afirmando que «À execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias; b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».

II. Para que se esteja perante um título de crédito (no caso das livranças) terá naturalmente que conter as menções obrigatórias estipuladas no artigo 75º da Lei, sendo que a falta das mesmas terá as consequências estabelecidas no artigo 76º do mesmo diploma.

III. Conjugadas as normas supra citadas, são diversas as consequências consoantes se esteja, ou não, perante um título de crédito.

IV. Veja-se in casu o título apresentado com o requerimento executivo, onde se verifica, desde logo, que o lugar de pagamento não se encontra designado, sendo certo que a Livrança estabelece tanto o domicílio do subscritor (o recorrente) e do banco (recorrida).

V. O que salvo melhor entendimento, implica que a livrança in casu para ter força executiva teria de ser acompanhada dos factos constitutivos da relação subjacente, seja porque constem do documento, seja porque sejam alegados no requerimento executivo.

VI. In casu e com efeito, apenas foi efetuada referência a uma livrança não constando os factos constitutivos da alegada obrigação subjacente nem do documento ou do requerimento executivo.

VII. Não é efetuada qualquer menção ao que está na base da emissão e subscrição da referida livrança,

VIII. Bem como, quais as condições em que a mesma poderia ser levada a pagamento.

IX. Pelo que, não demonstra o recorrido a razão pela qual foi intentada a presente execução, não obstante se encontrar obrigado, nos termos das alienas c) do n.º 1 do artigo 703º e alínea e) do artigo 724.º do Código do Processo Civil

X. Pelo que padece tal requerimento do vício de ineptidão, o que constitui excepção que aqui se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 186.º, n.º 1 e 2 al. a), 576.º,n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 578.º do CPC, a qual conduz à absolvição da instância, ao abrigo do estatuído nos artigos 278.º, n.º 1, al. b) do CPC, violando por isso os normativos citados a douta decisão recorrida.

XI. Subsistem igual as razoes que determinaram a apresentação dos presentes embargos.

XII. Nomeadamente, o título executivo em apreço não reúne todos os requisitos de exequibilidade.

XIII. Com efeito, a livrança que constitui o título foi preenchida de forma abusiva pelo ora recorrido.

XIV. Por um lado, o recorrido não juntou valida e atempadamente o contrato que está na base da emissão da referida livrança, pretendendo justifica-la com o documento que não se encontra subscrito pelo recorrente.

XV. Diga-se que em sede de oposição juntou um contrato sem a assinatura do recorrido e que posteriormente procedeu à junção de um documento com a seguinte afirmando de que se trata de «nova cópia do contrato n.º ...64», porque «por lapso não foi digitalizada a última folha documento 1 da contestação aquando da sua apresentação»

XVI. Sucede que o documento em apreço apenas na aparência parece tratar-se de uma nova copia do referido contrato que não se encontra numerada ou rubricada, nem resulta que se trate efectivamente da representação do mesmo documento.

XVII. Mas não pode com segurança o afirmar-se que aquela assinatura tenha sido aposta no documento agora junto aos autos e quase dois anos após a contestação da embargada, sem que haja uma real justificação para só agora ser junto, caso estivesse mesmo assinado pelo embargante.

XVIII. Mas, ainda que o fizesse, o contrato deveria estabelecer a prestação de uma garantia: uma livrança em branco, dado que foi o recorrido quem preencheu a data de vencimento e o montante em dívida.

XIX. A livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no artigo 75.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.

XX. Isto porque, de acordo com o artigo 10.º, aplicável por força do artigo 77º, da LULL, é imprescindível à validade da livrança a aposição das referidas assinaturas de preenchimento” (V. Ac. do STJ de 28/03/2000 de 20/03/2000 na Revista n.º 78/00 da 1ª secção).

XXI. Ademais, pela análise do título executivo, constatamos que o recorrido não faz menção ao local de pagamento/domiciliação, o que constitui uma violação do artigo 75.º, n.º 4 da LULL).

XXII. Em conclusão, a livrança apresentado título executivo nos presentes autos foi preenchida abusivamente pelo recorrido, pelo que não estão preenchidos os requisitos para a existência de um título executivo bastante.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverão os despachos em crise e aqui recorridos, ser revogados e substituídos por outro que :

a) Reconheça a ineptidão do requerimento executivo, absolvendo o recorrido na instância

b) Reconheça a inexistência de titulo por violação do disposto nos artigos artigo 10.º, aplicável por força do artigo 77º da LULL

Foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.

No recurso interposto as questões colocadas são as seguintes:

- O requerimento executivo é inepto por alegadamente não constarem da livrança nem do requerimento executivo os factos constitutivos da obrigação subjacente, isto é, os factos que determinaram a subscrição da livrança pelo executado, nem os factos reveladores das condições em que a livrança poderia ser levada a pagamento?

- O título executivo em apreço não reúne todos os requisitos de exequibilidade, concretamente , porque não está indicado o local de pagamento, e, porque, alegadamente o título foi preenchido de forma abusiva?

III. FUNDAMENTAÇÃO.

3.1. Porque relevam reproduzem-se aqui os factos julgados provados na decisão recorrida, com fundamento na ponderação e análise crítica dos autos, sendo estes compostos pelos autos principais de execução e pelos presentes autos incidentais de oposição.

1. Nos autos principais de execução, é exequente A..., S.A. - Sucursal Em Portugal, sendo executado AA.

2. No requerimento executivo, o exequente indicou tratar-se de execução para pagamento de quantia certa, sendo o valor peticionado de 25.828,55€ e o título executivo uma livrança.

3. No requerimento executivo, o exequente alegou que «A exequente é uma sociedade comercial que se dedica a operações financeiras, nomeadamente operações de crédito ao consumo, nos termos legais previstos para este tipo de sociedades»; que «A exequente é legítima titular e portadora de uma livrança com o valor de EUR 25.828,55 assinada pela executado, emitida em 16/02/2021 e com vencimento em 08/03/2021»; que «A referida livrança titula mútuo concedido pela exequente ao executado, ao abrigo da actividade de concessão de crédito ao consumo a que a exequente se dedica»; que «Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga então, nem posteriormente, por qualquer forma, pelo executado, nem o seu pagamento é de presumir»; que «Obrigou-se o executado a devolver à exequente o montante mutuado, acrescido de juros à taxa mensal contratual, sobre o montante em dívida, através do pagamento pela executada de 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de EUR 352,95 vencendo-se as prestações ao dia 08 de cada mês»; que «Não foram liquidadas as prestações a que se tinham vinculado, razão pela qual se considera incumprido o contrato em 19/01/2021»; e, que «Ficou pois em dívida a quantia de EUR 25.828,55 (quantia titulada pela livrança referida no art. 2º), acrescida de juros moratórios, às taxas legais supletivas, desde a data referida nos artigos 2º até integral e efectivo pagamento».

4. Com o requerimento executivo, a exequente apresentou cópia da livrança, cujo original foi junto aos autos principais na data de 13.05.2021.

5. Na livrança, consta a data de emissão de 16.02.2021, o valor de 25.828,55€, a data de vencimento de 08.03.2021, encontrando-se assinada pelo executado no local reservado à assinatura do subscritor.

6. A execução deu entrada em Juízo em 21.04.2021.

7. O executado foi citado em 15.06.2021.

8. Teor da correspondência endereçada ao executado com data de 09.02.2021, junta com a contestação da exequente sob o nº 4, aqui dado por integralmente reproduzido.

9. A correspondência referida em 8 foi entregue na data de 10.02.2021.

Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão a tomar.

3.2. Do Mérito da Sentença recorrida.

3.2.1

No caso em apreço apurou-se que a exequente apresentou à execução nos autos de execução de que estes autos constituem um apenso, um documento denominado “livrança”, no qual, consta a data de emissão de 16.02.2021, o valor de 25.828,55€, a data de vencimento de 08.03.2021, encontrando-se assinada pelo executado no local reservado à assinatura do subscritor.

A execução deu entrada em Juízo em 21.04.2021.

O executado foi citado em 15.06.2021.

E resulta também dos factos apurados que estamos perante uma livrança que foi emitida de forma incompleta ou em branco, quanto à data de vencimento e ao montante, para ser ulteriormente preenchida.

3.2.2. Ora, o executado deduziu a presente oposição à execução que lhes é movida pelo exequente, arguindo:

A ineptidão do requerimento executivo, com os fundamentos seguintes:

- que o exequente não alega factos concretos que fundamentam a sua pretensão; a exequente não alega nem invoca os factos que estão na base do título executivo, apenas procede à junção da livrança a que faz referência; não expõe qual a relação subjacente ao referido título e, por isso, a razão pela qual consta da mesma o valor apresentado. Conclui que não resulta qual o tipo de vínculo celebrado entre as partes e o objecto do mesmo, que o exequente não fundamenta a razão do preenchimento da livrança e, muito menos, a razão de ser do montante e data de vencimento.

Mais arguiu que a inexistência de título executivo com os seguintes fundamentos:

- No caso dos autos, os embargantes subscreveram e avalizaram a livrança que constitui o título executivo, apondo nela as suas assinaturas; no momento da emissão da livrança não constavam a data do vencimento, o local de pagamento e o valor; estes elementos ficariam determinados com o completo preenchimento de acordo com o clausulado; a  livrança que constitui o título executivo foi apresentada a pagamento sem a interpelação prévia dos embargantes para pagamento, o que, determina que o executado , desconheça  o montante  exacto em dívida e da data em que se vencia a garantia avalizada; era necessária a interpelação prévia do executado, pois só assim os mesmos teriam efectivo conhecimento do montante exacto e da data de vencimento da garantia prestada.

- Ou seja, neste caso a interpelação “é essencial para a prova de que o respestivo vencimento se deu na data em que a exequente apôs no título, de acordo com o pacto de preenchimento” (V. Ac. do STJ de 28/03/2000 de 20/03/2000 na Revista n.º 78/00 da 1ª secção).

- Ademais, pela análise do título executivo, constatamos que o exequente não faz menção ao local de pagamento/domiciliação, o que constitui uma violação do artigo 75.º, n.º 4 da LULL).

- Em conclusão, a livrança que constitui título executivo nos presentes autos foi preenchida abusivamente pelo exequente, pelo que não estão preenchidos os requisitos para a existência de um título executivo bastante.

3.3.3. Na sentença recorrida escreveu-se:

Quanto à arguida ineptidão do requerimento executivo, no essencial, escreveu-se:

“observada a livrança apresentada à execução, tem de concluir-se que a mesma se encontra devidamente preenchida em todos os seus elementos legalmente previstos, respeitando, assim, o preceituado no art. 75º da LULL.

Deste modo, não se mostrando prescrita a acção cambiária e observando a livrança o estatuído no art. 75º da LULL, a livrança exequenda é válida como título de crédito, constituindo, por conseguinte, título executivo suficiente a fundar a acção executiva nessa mesma qualidade.

Sendo assim, a exequente encontrava-se dispensada de alegar a relação subjacente no requerimento executivo ou de proceder à junção do contrato aí mencionado, uma vez que a livrança dada à execução constitui título executivo enquanto título de crédito, tal como vem definido na primeira parte da al. c) do nº1 do art. 703º do Código de Processo Civil.

“No caso em apreço, o título executivo consiste na livrança, enquanto título de crédito. Por conseguinte, prescinde da alegação, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente, pelo que não se verifica a excepção dilatória da falta de causa de pedir” .

Tão-pouco se verifica esta excepção dilatória da falta de alegação da causa de pedir em virtude do incumprimento do preceituado no art. 724º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil.

Na verdade, conforme decorre da factualidade vertida no ponto 3 dos factos assentes, a exequente descreveu com algum pormenor o contrato no âmbito do qual a livrança foi emitida, alegando que alegou que, constituindo «uma sociedade comercial que se dedica a operações financeiras, nomeadamente operações de crédito ao consumo, nos termos legais previstos para este tipo de sociedades», era «legítima titular e portadora de uma livrança com o valor de EUR 25.828,55 assinada pela executado, emitida em 16/02/2021 e com vencimento em 08/03/2021», uma vez que a «livrança titula mútuo concedido pela exequente ao executado, ao abrigo da actividade de concessão de crédito ao consumo a que a exequente se dedica», nos termos do qual «Obrigou-se o executado a devolver à exequente o montante mutuado, acrescido de juros à taxa mensal contratual, sobre o montante em dívida, através do pagamento pela executada de 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de EUR 352,95 vencendo-se as prestações ao dia 08 de cada mês». A exequente aduziu que «Não foram liquidadas as prestações a que se tinham vinculado, razão pela qual se considera incumprido o contrato em 19/01/2021», e, que «Ficou pois em dívida a quantia de EUR 25.828,55 (quantia titulada pela livrança referida no art. 2º), acrescida de juros moratórios, às taxas legais supletivas, desde a data referida nos artigos 2º até integral e efectivo pagamento».

Afigura-se que a relação subjacente à livrança exequenda está assim suficientemente caracterizada, sendo certo que o executado não afirmou não ter celebrado qualquer contrato com a exequente, nem impugnou a assinatura que lhe foi atribuída, constante da livrança exequenda.

Neste contexto factual, tem de concluir-se que a livrança apresentada à execução consubstancia título executivo, quer se considere como título de crédito, quer enquanto mero quirógrafo da obrigação.”

No tocante ao alegado abuso de preenchimento da livrança, escreveu-se:

7. No que respeita à falta de interpelação, observar-se-á que, desde logo, que “[nos] termos do art. 53º da LULL, depois de expirado o prazo para se fazer o protesto por falta de pagamento, o portador perde os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra outros co-obrigados, à excepção do aceitante. (…) a formalidade do protesto não tem de ser cumprida para que o portador mantenha o direito de acção contra o aceitante (…). O que se diz do aceitante estende-se evidentemente ao subscritor da livrança, por força do disposto no art. 77º da LULL. O entendimento exposto uniformizou-se praticamente na jurisprudência actual, sendo predominante também na doutrina” .

“Não é necessário protesto por falta de pagamento para responsabilizar o avalista, pois não é necessário para responsabilizar o aceitante ou subscritor e, assim, está o portador da livrança dispensado de comunicar que vai apresentar a livrança a pagamento ” .

Por fim, “é indiscutido que o nosso legislador não consagrou, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, um limite temporal [ao] preenchimento [da livrança]. E a jurisprudência nacional, depois de numa primeira fase ter perfilhado o entendimento de que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, tem vindo a entender, de forma unânime, que o prazo prescricional previsto no art.º 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, sendo que o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no art.º 236º do CC. A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70º, 1º parágrafo, ex vi do art.º 77º da LULL, se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores, não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada. (…) Verificado o incumprimento da relação subjacente, o apelante podia mas não estava obrigado a preencher a livrança - o preenchimento podia ocorrer quando se mostrasse necessário ou conveniente ao accionamento do título e tendo em vista a satisfação coactiva do crédito ” .

8. Importando aplicar os ensinamentos jurisprudenciais transcritos nos pontos anteriores da presente decisão à situação sub judice e antecipando a conclusão da reflexão desenvolvida, tem de concluir-se que não poderá acolher-se a argumentação do executado embargante.

Com efeito, resulta evidente do anteriormente explanado que a livrança exequenda não só beneficiava, em aparência, das características de exequibilidade legalmente exigidas pelo art. 703º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil, quer enquanto simples quirógrafo, quer como título de crédito, como estas características não foram consistentemente colocadas em crise pela alegação do executado, manifestamente insuficiente ao efeito pretendido.

Desde logo, salta à vista que a livrança dada à execução se encontra devidamente preenchida com os seus elementos essenciais, previstos nas disposições legais analisadas, dos arts. 75º e 76º da LULL, não se revestindo de tal essencialidade a menção do local do pagamento/domiciliação.

Ademais, o executado embargante não abalou a legitimidade e adequação do preenchimento da livrança exequenda, cujo ónus de alegação e prova sobre ele inequivocamente recaía, nos termos previstos nos arts. 342º, nº 2 do Código Civil e 576º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Assim, o executado não alegou nem demonstrou, minimamente, a ocorrência de abuso no preenchimento da livrança exequenda, não comprovando qualquer infracção do pacto vigente entre as partes, o qual é inerente à subscrição da livrança, podendo ser tácito, resultando mesmo da matéria de facto assente que lhe foi remetida a correspondência referida nos pontos 8 e 9 da fundamentação de facto desta decisão.

Cabe salientar que, assentando o aludido abuso, no essencial, na ausência de interpelação e/ou apresentação a pagamento da livrança exequenda e inerente autorização e/ou conhecimento do preenchimento, como se afigura suficientemente explicitado nos pontos anteriores, tal não era necessário: a exequente não estava obrigada a colher nova autorização do executado para o preenchimento da livrança, nem tinha de lhe dar prévio conhecimento disso, tal como não tinha de o interpelar e de lha apresentar a pagamento.

A propósito da autorização, sublinha-se que “é sintomático o seguinte raciocínio e discurso: “(…) Será possível operar-se a emissão voluntária de um título conscientemente não preenchido sem que exista, concomitantemente, uma destinação de preenchimento? O facto de um sujeito assinar uma letra ou livrança, que, sabendo não preenchida, entrega por sua livre e espontânea vontade a outro indivíduo, só se compreende pela intenção de confiar o preenchimento a outrem. Como já foi dito, da subscrição e entrega de um título em branco deduz-se logicamente a vontade do emitente de fazer própria a declaração que um outro sujeito inserirá sucessivamente no título”.

Recorde-se que “está o portador da livrança dispensado de comunicar que vai apresentar a livrança a pagamento”  e que “o preenchimento podia ocorrer quando se mostrasse necessário ou conveniente ao accionamento do título e tendo em vista a satisfação coactiva do crédito” , o que é consentâneo com a ideia de que quem assina uma livrança em branco, entregando-a a alguém, confere a este, necessariamente, o poder de a preencher em conformidade com o acordado entre ambos, sendo certo, ainda, que não se concebe ou admite que os sujeitos de actividades económicas ou de consumo se desvinculem das obrigações assumidas.

Na verdade, é obrigação de qualquer contraente de boa fé acompanhar as relações negociais nas quais se vinculou, na sua celebração, na vigência do contrato, mas também na altura da sua cessação, qualquer que seja a forma desta.

Por tudo quanto se deixou exposto, tem de concluir-se ser improcedente a argumentação do executado embargante, não sendo inepto o requerimento executivo ou insuficiente o título exequendo, o qual se reveste dos necessários requisitos de exequibilidade extrínseca e intrínseca, impondo-se julgar improcedente, por não provados, os presentes embargos de executado, indeferindo-se a arguição e determinando-se o prosseguimento da execução, por não se descortinar obstáculo a tal.”

3.3.4. Posto isto, antes de mais, importa assinalar que na sentença recorrida, o Mmo Juiz a quo apreciou de forma exaustiva e com fundamentação extensa e acertada convocando os arestos pertinentes, as questões colocadas na petição inicial de embargos , as quais, assinale-se,  são agora repetidas em sede de recurso  sem que o recorrente esgrima  qualquer argumento contra aqueles que são invocados na sentença recorrida.

Todavia, sem necessidade de grandes considerações, atenta a qualidade da fundamentação da sentença recorrida, sempre diremos o seguinte:

- Da arguida ineptidão do requerimento executivo.

Como é sabido, o título executivo é a condição para o exercício da acção executiva, determinando-se a legitimidade activa e passiva para a acção de acordo com esse título.

Sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, prevê o art. 703º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil, que à execução apenas podem servir de base “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.

E como é sabido, nesse preceito distinguem-se duas realidades, os títulos de crédito, com as características da literalidade, da abstração e da autonomia, e os quirógrafos dos títulos de crédito, ou seja, os documentos autógrafos de reconhecimento de dívida, como aqueles que, tendo valido com o títulos de crédito, deixaram de ter essa qualificação por via de vicissitudes decorrentes dos regimes constantes da LULL e da LUCH.

E nos termos do art. 724º, nº 1, al. e) do CPC, no requerimento executivo o exequente “Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, podendo ainda alegar os factos que fundamentam a comunicabilidade da dívida constante de título assinado apenas por um dos cônjuges”.

A execução a que os presentes autos se encontram apensos foi instaurada tendo por base uma livrança subscrita pelo executado, ora apelante.

Relativamente à susceptibilidade, prevista no art. 703º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil, de a livrança constituir título executivo, como se afigura resultar claramente desta disposição legal, haverá que considerar duas hipóteses: a de a livrança ser apresentada à execução na sua qualidade de título de crédito ou a de a mesma o ser como mero quirógrafo.

A livrança é um título de crédito à ordem, o qual contem a promessa de pagamento de uma determinada quantia, nos termos do art. 75º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL) e que se assume como título executivo, nos termos e para os efeitos do art. 703º do CPC.

As livranças, enquanto títulos de crédito, têm como traços principais a incorporação da obrigação no título; a literalidade da obrigação; a abstracção da obrigação; a independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título e a autonomia do direito do portador.

Tal como resulta do citado art. 703º, nº 1, al. c) do CPC, a livrança assume-se sempre como título executivo, sendo que, quando se assuma como um mero quirógrafo, se torna necessária a alegação dos factos constitutivos da relação subjacente quando estes não constem do próprio documento.

No caso dos autos, constata-se que a exequente apresenta como título executivo a livrança, invocando essa mesma qualidade de título de crédito e alegando ser portador da mesma, respectivo valor, data de vencimento e o seu não pagamento, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.

De resto, e tal como referido no relatório introdutório, a exequente preencheu o formulário electrónico executivo com a menção de factos que estariam subjacentes à emissão da livrança dos autos, apresentando um montante exequendo que entende estar em dívida.

E porque releva para o caso, impõe-se assinalar, que embora o direito cartular pressuponha uma relação jurídica prévia – a relação subjacente ou fundamental, que justifica a emissão do título -, os títulos de créditos, caracterizam-se por uma disciplina jurídica própria, destinada a promover a respetiva circulação e a tutelar os terceiros, portadores desses títulos, de boa-fé que, em consequência dessa circulação, venham a entrar na posse do título cambiário. [1]

Os títulos de crédito caracterizam-se pelo princípio da incorporação da obrigação no título, o que significa que o título (o documento) tem uma função constitutiva do direito cartular que incorpora, sendo o documento (o título) necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado – o título representa o direito, sendo a titularidade do documento que decide a titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório.

E o direito incorporado no título é um direito literal, uma vez que o conteúdo e a extensão do direito cambiário é definido pelo texto do título.

Pelo princípio da literalidade, põe-se, assim, em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título e que o conteúdo, extensão e modalidade da obrigação cartular são os que a declaração objetivamente define a revela  [2]

E o direito cambiário é um direito autónomo e abstrato, o que significa que o possuidor do título adquire o direito que o título incorpora, independentemente da relação jurídica fundamental ou subjacente, em relação à qual é autónomo e independentemente, não lhe sendo, por isso, oponíveis os vícios que porventura existam e que emirjam da relação subjacente ou fundamental.[3]

A causa ou relação fundamental ou subjacente é separada do negócio cambiário (abstração) e este é vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e, por isso, se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa-fé as exceções cambiais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimplenti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extra-cartular, exterior ao negócio cambiário[4] .

No entanto, como é sabido, os princípios da incorporação, da literalidade, da autonomia e da abstração que vimos enunciando apenas são válidos nas denominadas relações mediatas, mas já não nas relações imediatas.

E as  relações imediatas, são aquelas  em que o credor e o devedor do título são igualmente os sujeitos da relação subjacente[5], o título cambiário não chegou a entrar em circulação, no âmbito das quais, não existem razões para se proteger a circulação do título, a revelar que no domínio das relações imediatas, o título cambiário perde as suas características de literalidade, autonomia e abstração, podendo  qualquer das partes apelar às relações extra-cartulares que estiverem na origem do título cambiário e invocar contra o portador do título que contra ele pretenda exercer o direito cambiário, eventuais exceções resultantes da relação causal que tenha por sujeito aqueles sujeitos cartulares que concomitantemente o são da relação subjacente ou fundamental .[6]

Nessa medida, em sede de execução cartular, incumbe ao executado cambiário alegar e provar, como fundamentos de oposição por embargos, tais meios de defesa, nos termos do artigo 731º, com referência ainda ao artigo 571º do C.P.C.

Assim, considerando as características de literalidade dos títulos de crédito, que equivale a que apenas o que consta na livrança delimita o conteúdo do direito nele incorporado, e de abstracção, nos termos do qual a obrigação cambiária não depende da validade ou regularidade da obrigação subjacente, tem de se entender que não é necessária a invocação pelo exequente da relação jurídica subjacente, nem a junção por parte do exequente do contrato que está na base da emissão da referida livrança, ficando assim apreciada e decidida nesta última parte a argumentação recursória relativa à falta de junção do contrato que está na base da emissão da referida livrança.

Neste sentido, no Ac. TRE, de 28-06-2017, proc. 172/15.0T8CBA-A.E1, escreveu-se “Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstracção), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai” e ainda  o Ac. TRE de 25-01-2018, proc. 1993/14.6TBPTM-A.E.1, que segue igual orientação e onde se pode ler “Na livrança, o que é relevante para a obrigação consta do título, que basta para fundamentar a execução”.

Posto isto, quanto à arguida ineptidão do requerimento executivo, porque a livrança exequenda vale como título de crédito e foi apresentado como tal, concluo que não assiste razão ao apelante quando continua a alegar, agora em sede de recurso, que o requerimento executivo é inepto com fundamento na alegada ausência de alegação dos factos que fundamentam a relação subjacente.

De resto,  conforme decorre da factualidade vertida no ponto 3 dos factos assentes, a exequente descreveu com algum pormenor o contrato no âmbito do qual a livrança foi emitida, alegando : «constituindo «uma sociedade comercial que se dedica a operações financeiras, nomeadamente operações de crédito ao consumo, nos termos legais previstos para este tipo de sociedades», era «legítima titular e portadora de uma livrança com o valor de EUR 25.828,55 assinada pela executado, emitida em 16/02/2021 e com vencimento em 08/03/2021», uma vez que a «livrança titula mútuo concedido pela exequente ao executado, ao abrigo da actividade de concessão de crédito ao consumo a que a exequente se dedica», nos termos do qual «Obrigou-se o executado a devolver à exequente o montante mutuado, acrescido de juros à taxa mensal contratual, sobre o montante em dívida, através do pagamento pela executada de 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de EUR 352,95 vencendo-se as prestações ao dia 08 de cada mês». A exequente aduziu que «Não foram liquidadas as prestações a que se tinham vinculado, razão pela qual se considera incumprido o contrato em 19/01/2021», e, que «Ficou pois em dívida a quantia de EUR 25.828,55 (quantia titulada pela livrança referida no art. 2º), acrescida de juros moratórios, às taxas legais supletivas, desde a data referida nos artigos 2º até integral e efectivo pagamento».

Improcede, assim nesta parte o recurso.

Da alegada inexistência de título executivo com os seguintes fundamentos:

- omissão do local de pagamento;

- apresentação a pagamento sem a interpelação prévia do embargante para pagamento;

- falta de junção por parte do exequente do contrato que está na base da emissão da referida livrança.

Quid Iuris?

Completando as considerações acima feitas no tocante às características dos títulos de crédito, impõe-se assinalar o regime da LULL quanto às livranças, sendo que as livranças regem-se pelas normas que lhes são próprias, e, na parte em que não sejam contrárias à natureza desse escrito, são-lhe aplicáveis as disposições relativas às letras indicadas no artigo 77º da LULL.

Enquanto título de crédito, a livrança envolve uma promessa pura e simples de pagamento – é a promessa de uma pessoa pagar a outra pessoa determinada quantia (arts. 10º, 28º 30º a 32º, 43º, 75º, 77º e 78º da LULL), podendo tal pagamento ser, total ou parcialmente, garantido por aval nos termos previstos nos arts. 30º e 77º da LULL.

Assim, a  livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa, sendo que ao  subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respectiva obrigação (art. 75º, nº 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art. 78º da LULL).

Por conseguinte, assinando a livrança, torna-se um obrigado cambiário que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título.

Conforme estabelece o art. 75º da Lei Uniforme relativas às Letras e Livranças (LULL), sob a epígrafe “Requisitos da livrança”:

“A livrança contém:

1. A palavra «livrança» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção desse título;

2. A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;

3. A época do pagamento;

4. A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;

5. O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;

6. A indicação da data em que e do lugar onde a livrança é passada;

7. A assinatura de quem passa a livrança (subscritor)”.

Esta disposição legal tem de ser articulada com o que se encontra prescrito no art. 76º da LULL.

Com efeito, sob a epígrafe “Efeitos da falta de algum requisito”, aí se estabelece o seguinte:

“O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes:

A livrança em que se não indique a época de pagamento será considerada pagável à vista.

Na falta de indicação especial, o lugar onde o escrito foi passado considera-se como sendo o lugar do pagamento e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do subscritor da livrança.

A livrança que não contenha indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do subscritor”.

Do cotejo destas disposições legais imediatamente decorre a conclusão que há elementos que devem, impreterivelmente, constar mencionados na livrança, sob pena de esta não poder considerar-se como título cambiário, e, outros que, não estando mencionados, a sua ausência deverá ser suprida nos termos previstos no art. 76º da LULL.

De outro modo, “se a ausência, no impresso de livrança, das menções referentes à época de pagamento, ao lugar onde o escrito foi passado e ao lugar de pagamento, são supríveis por via das regras supletivas constantes do artº 76º da LULL, em relação aos demais requisitos, não constando estes do impresso de livrança, esta não pode valer enquanto título de crédito e, assim, como título executivo integrado no elenco dos títulos previstos no artº 703º, nº 1, c) do C.P.C.” .

.Da alegada ausência na livrança exequenda do local de pagamento.

Posto isto, relativamente à alegação repetida  da ausência na livrança exequenda da menção do  local de pagamento, resulta manifesto em face das considerações ora feitas e daquelas vertidas na sentença recorrida que a  mesma não se mostra susceptível de colocar em crise a validade da livrança enquanto título de crédito, sendo suprível em conformidade com o estabelecido no § 3 do art. 76º da LULL.

Da alegada inexistência de título executivo, com fundamento na alegação genérica de “violação do pacto de preenchimento” e da alegada ausência de prévia interpelação.

A livrança em branco é expressamente admitida pela LULL, como ressalta do art. 77.

 À livrança em branco, de acordo com o disposto no art. 10º, aplicável por força do estatuído nesse art. 77º, é imprescindível que dela conste a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.

Dispõe o artigo 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) que se o título que está incompleto no momento da sua emissão tiver sido completado “contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.

Resulta desse preceito legal que a obrigação cambiária se constitui mesmo antes do total preenchimento da letra ou, no limite, aquando do preenchimento.

A letra em branco é admissível.

O contrato - ou pacto - de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc. Acordo, que pode ser expresso ou tácito, que se reporta à obrigação cartular em si mesma, e que pode ou não coincidir com a obrigação que garante e que daquela é causal ou subjacente.[7]

E  conforme vem sendo defendido[8] , nenhum obstáculo existe à perfeição da obrigação cambiária quando a livrança, incompleta, contém uma ou mais assinaturas destinadas a fazer surgir tal obrigação, ou seja, quando as assinaturas nela apostas exprimam a intenção dos respetivos signatários de se obrigarem cambiariamente, quer se entenda que a obrigação surge apenas com o preenchimento, quer antes, no momento da emissão, a ele retroagindo a efetivação constante do título por ocasião do preenchimento. Necessário é que se mostre preenchida até ao momento do ato de pagamento voluntário.

E, como deriva do art. 378º do Cód. Civil, a assinatura em branco faz presumir no signatário a vontade de fazer seu o texto que na livrança vier a ser escrito – vontade confessória – beneficiando tal presunção o apresentante do título.

Também FERRER CORREIA[9] salienta que quem emite uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos, isto é, o subscritor atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em conformidade com o pacto ou contrato de preenchimento.

Nunca sendo supérfluo assinalar que a este propósito a doutrina vem advogando que a autorização para a letra em branco ser completada pode ser expressa ou mesmo ser conferida tacitamente, sendo de presumir que exista.

 E o próprio acordo de preenchimento pode ser ou não expresso[10] . Será expresso, quando as partes estipulam certos termos concretos; tácito, no caso de estar implícito nas cláusulas do negócio determinante da emissão do título.

A significar que a letra ou livrança incompleta ou em branco pode ser validamente completada em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua criação, mediante acordo expresso ou tácito, designado por pacto de preenchimento, mormente no quadro da relação fundamental que determinou tal criação.

E, no domínio das relações imediatas – como sucede no caso em apreço – é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, nomeadamente a violação do pacto de preenchimento, mas recaindo sobre ele, como acima já referimos, o respetivo ónus de prova, nos termos conjugados dos arts. 342º, nº 2 e 378º do Cód. Civil e arts. 10º e 17º da LULL, a contrario sensu.

. Reportando as considerações feitas ao caso em apreço, resulta o seguinte:

Estando o embargado e a embargada no âmbito das relações imediatas, resulta que o oponente/recorrido que subscreveu a livrança, ao invocar de modo genérico a exceptio, competia-lhe alegar e provar que a livrança foi subscrita em branco e que o seu preenchimento foi abusivo, atenta a circunstância de estarmos perante facto impeditivo/extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos prescritos nos arts 342º nº2 e 378º, do Código Civil e 57º, nº1, e 731º, do CPC.

Isto é, porque o executado -embargante entregou uma livrança em branco ficou com o encargo de alegar e provar os factos reais e concretos suscetíveis de colocar em crise a validade, existência, manutenção, subsistência ou eficácia da relação fundamental que subjaz à livrança.

E assim, no caso em apreço o embargante-executado, deveria consubstanciar o alegado preenchimento abusivo, com a alegação de concretos factos reveladores dos termos concretos do acordo de preenchimento acordado, tácito ou expresso, bem como dos termos da concreta relação jurídica fundamental subjacente à subscrição da livrança dada à execução, se e na medida em que o acordo de preenchimento possa resultar dessa relação subjacente.

Ora, no caso dos autos, o embargante nem sequer consubstanciou com a alegação de factos pertinentes o que queria significar com a exceção de preenchimento abusivo, limitando-se a alegar para o efeito que não foi ocorreu interpelação prévia.

E a mera alegação genérica da existência de abuso de preenchimento ligada à falta de interpelação prévia, é inócua para satisfazer o ónus de alegação e prova do alegado abuso de preenchimento.

É que,  quanto à invocada necessidade de interpelação do executado-subscritor da livrança,  como condição prévia do preenchimento da livrança, não se subscreve o entendimento perfilhado pelo embargante, já que não se traduz em exigência que resulte da lei, mormente da LULL, nem se mostra que decorra sequer do respectivo pacto de preenchimento.

Para que assim fosse, necessário seria que o embargante tivesse alegado e provado que a necessidade dessa interpelação emergia do próprio pacto de preenchimento, o que, de todo, não fez, porquanto, o apelante-embargante foi omisso quanto à alegação de factos concretos consubstanciadores da relação subjacente, bem como, de factos concretos, consubstanciadores do “ pacto de preenchimento” que terá sido celebrado, bem como do  citado “ abuso de preenchimento”.

Em consequência do exposto, na medida em que desconhecemos, por falta de alegação e prova pelo executado, os termos concretos do eventual acordo de preenchimento acordado, tácito ou expresso, concluímos que é inconsequente a alegação do embargante -executado no sentido de exigir por parte do exequente uma interpelação prévia.

Acresce que, “A lei cambiária não impõe ao portador do título, que, antes de accionar o subscritor da livrança lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou.

A certeza, a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art. 10.º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim, se mostra revestido de força executiva”.[11]

De resto, a jurisprudência é maioritária[12] no sentido de que havendo pacto de preenchimento de uma livrança em branco é inexigível a interpelação prévia do subscritor da livrança ou avalista anterior a tal preenchimento.

Em consideração das considerações acima expostas, importa impõe-se concluir que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente, improcedendo na totalidade as conclusões de recurso formuladas pelo embargante, aqui apelante.

Por último, no tocante à alegada falta, por parte da exequente-embargada, da junção do contrato que está na base da emissão da referida livrança, essa questão, foi já apreciada e decidida por nós, anteriormente, como demos nota.

Concluindo: improcedendo na totalidade as conclusões de recurso formuladas pelo embargante, aqui apelante.


Sumário.
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IV. DELIBERAÇÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo embargante/executado e, em consequência, confirmam integralmente a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.

Custas pelo embargante, aqui apelante.




Porto, 08. 02.2024
Francisca da Mota Vieira
António Carneiro da Silva
Ernesto Nascimento
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[1] Neste sentido, Ac. TRGuimarães, proferido A 18.12.2017 , processo nº 67/14.4TBVVD-B.G1
[2] Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito”, Almedina, págs. 162
[3] Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio”, vol. III, págs. 40, 47, 48 e 65.
[4] Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio”, vol. III, págs. 40, 47, 48 e 65.
[5] Ac. STJ. de 13/04/2011, Proc. 2093/04.2TBSTB-A.L1.S1; RL de 12/01/2012, Proc. 8318/05.0TBCSC-A.L1.6, sendo que já no Assento do STJ. de 27/11/1964, DR, Iª Série, de 19/12/1964, já se fixara jurisprudência no sentido de que “no domínio das relações imediatas, pode-se discutir se as obrigações cambiárias, como a resultante do aval, teria ou não natureza comercial”.
[7]Conforme se considerou no Ac. do STJ de 13/4/2011, disponível in www.dgsi.pt, o pacto de preenchimento é um contrato formado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que habilitam a formar o título executivo, estabelecendo os requisitos que tornam exigível a obrigação cambiária. O preenchimento deve respeitar aquele pacto… já que a sua observância é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.
[8] Cfr., por todos, PINTO COELHO, As letras, vol. II, pág. 30 e seguintes, FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, vol. III, pág. 83, VAZ SERRA, BMJ nº 61º, pág. 264 e OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Comercial, vol. III, pág. 116 citados no Ac Rel Porto de 11.04.2018, in proc nº 10888/14.2T8PRT-A.P1 .
[9] Ob. citada, pág. 128
[10] Cfr., inter alia, PAULO SENDIM, Letra de Câmbio, vol. I, pág. 190 e seguintes
[11] Ac do STJ de 25.05.2017, disponível in www.dgsi.pt:
[12] Ac. STJ de 28/9/2017, bem como os Acs. Relação de Évora de 23/3/2017, 8/3/2018, 12/4/2018, 26/4/2018 e 7/6/2018, todos disponíveis in www.dgsi.pt.