Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0111514
Nº Convencional: JTRP00036208
Relator: MARQUES SALGUEIRO
Descritores: DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE
Nº do Documento: RP200402110111514
Data do Acordão: 02/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: O artigo 28 da Lei n.30/00 deve ser interpretado restritivamente no que diz respeito ao artigo 40 do Decreto-Lei n.15/93, de 22 de Janeiro, devendo entender-se que o artigo 40 está em vigor relativamente à detenção de droga para consumo em quantidade superior à referida no artigo 2 n.2 da Lei n.20/00.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de....., o arguido RUI....., com os sinais dos autos, acusado pelo Mº Pº da prática de factos susceptíveis de o constituírem autor material de um crime de tráfico de estupefacientes e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo artº 21º, nº 1, do Dec.Lei nº 15/93, de 22.1, com relação à tabela I-C anexa, foi submetido a julgamento, em processo comum singular (artº 16º, nº 3, do C. P. Penal), tendo a acusação sido julgada improcedente quanto ao imputado crime de tráfico de estupefacientes e, feita a convolação para o crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artº 40º, nº 2, desse Dec.Lei nº 15/93, foi, face à lei nova (artº 28º da Lei nº 30/2000, de 29/11), declarado extinto o procedimento criminal instaurado.

Dessa decisão interpôs recurso o Mº Pº, dizendo em síntese conclusiva:
1. O Mm° Juiz deu como provado que o arguido destinava o estupefaciente apreendido nos autos ao seu consumo.
2. Para tal socorreu-se do princípio in dubio pro reo.
3. Porém, não transparece da fundamentação da matéria de facto qualquer dúvida que justifique a aplicação de tal princípio.
4. Antes resulta o contrário, uma vez que o Mm° Juiz descredibiliza o único elemento de prova que aponta nesse sentido: as declarações do arguido.
5. Existe, assim, contradição na decisão, bem como erro notório na apreciação da prova, dessa forma incorrendo o Mm° Juiz nos vícios previstos nas al. b) e c) do artº 410°, nº 2, do C. P. Penal.
6. Mesmo que assim não se entenda, há que considerar que não é compreensível qual a dúvida que motivou o Mm° Juiz na aplicação do princípio em questão, pelo que é insuficiente a fundamentação da sentença, sendo, dessa forma, violados os artº 97°, nº 4, e 374°, nº 2, do C. P. Penal.
7. Deve, assim, ser retirado o facto em questão da matéria de facto provada e o arguido ser condenado pelo crime de que vinha acusado.
Ainda que assim não se entenda,
8. A detenção de estupefaciente, ainda que exclusivamente para consumo, fora das situações previstas no artº 2° da Lei nº 30/2000 - e é esse o caso sub iudice -, continua a ser crime, nos termos do artº 21° da Lei da Droga.
9. Não houve, dessa forma, qualquer descriminalização da conduta do arguido, pelo que sempre deve ele ser condenado, nos termos da Lei vigente à data da prática dos factos, pelo crime previsto e punido pelo artº 40°, nº 2, do Dec.Lei nº 15/93, de 22.l.
Assim, apontando tais disposições legais como violadas, conclui pela alteração da decisão recorrida no sentido acima apontado.

Respondeu o arguido, pugnando pela confirmação do julgado.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, em extenso e douto parecer, pronuncia-se pelo provimento do recurso, enquanto ali se sustenta que a conduta do arguido continua a ser enquadrável e punível nos termos do artº 40º do Dec.Lei nº 15/93, parecer a que, notificado, o arguido respondeu, reafirmando a integral descriminalização das condutas tipificadas nesse artº 40º.
Assim, cumpridos os vistos e realizada a audiência, cabe decidir.
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Atentas as supra transcritas conclusões da motivação, pelas quais, como é sabido, se delimita o âmbito do recurso, vejamos, antes de mais, a matéria de facto, provada e não provada, que a sentença registou e a fundamentação em que se ancorou.

Assim, acolheram-se ali como provados os factos seguintes:
1. Em 9/5/2000, cerca das 12.30 horas, nas instalações do Centro de Formação Profissional de....., num armário utilizado pelo arguido, num dos bolsos do blusão que este aí havia guardado, foi encontrado um porta moedas de cabedal, dentro do qual se encontravam 26,563 gr. de haxixe – Cannabis Resina.
2. Na mesma data, pelas 18.45 horas, foi encontrada na residência do arguido, sita no Lugar..., ....., ....., sendo sua pertença, a quantidade de 189,965 gr. de haxixe – Cannabis Resina.
3. O arguido destinava essa substância ao seu consumo.
4. O arguido conhecia as características estupefacientes da substância que detinha.
5. Ao agir como agiu, o arguido quis e sabia que, detendo para consumo a referida substância, praticava conduta proibida e punida por lei.
6. Não obstante, não deixou de actuar da forma descrita, agindo livre e conscientemente.
7. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.
8. O arguido é casado, tem 1 filho de 12 anos, vive em casa dos pais, está reformado, recebendo a pensão de 36.000$00 mensais, é utente do G....., auferindo 17.000$00 a 25.000$00 por mês, tem como habilitações literárias o 11º ano, é toxicodependente há 15 anos.
9. Tem antecedentes criminais na área de referência.
10. Está em tratamento.
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Como facto não provado consignou-se apenas:
- Que o arguido detivesse tais quantidades de haxixe – Cannabis Resina – para as vender e assim obter proveitos económicos para integrarem o seu património.
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E, motivando a decisão sobre a matéria de facto escreveu-se ali:
“O Tribunal formou a sua convicção com base, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também por declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
O arguido confessou, integralmente e sem reservas, a posse do produto estupefaciente que lhe foi encontrado no bolso do blusão no armário do Centro de Formação Profissional de....., bem como aquele que foi encontrado na sua residência.
Referiu, porém, que o mesmo se destinava ao seu consumo diário.
Afirma-se como toxicodependente há mais de 15 anos, com hábitos de haxixe, e em situação de tratamento de desintoxicação de heroína.
Segundo as declarações do arguido, o produto estupefaciente foi adquirido em....., pelo preço de 60.000$00. O arguido costumava adquirir “sabonetes de haxixe”, dado que dessa forma lhe saía mais barata a dose. Como consumia 5 a 10 “charros” por dia, esse produto dava-lhe para “uns tempos”, e saía-lhe mais barato do que se andasse a comprar pequenas quantidades ao dia ou à semana.
Face à grande quantidade de haxixe que detinha em seu poder, face ao custo que tal aquisição lhe tinha acarretado, bem como aos proventos que disse retirar da reforma e do trabalho no G....., as suas declarações poderiam não se afigurar credíveis em moldes tais que se pudessem considerar de per si. De facto, a quantidade existente na posse do arguido é algo elevada e os custos da mesma não são muito compatíveis com os seus ganhos.
No entanto, tal não quer dizer que se possa alguma vez presumir que o arguido detinha em seu poder tal quantidade de haxixe - Cannabis Resina - para traficar, tal qual se mostra enquadrado tipicamente pela acusação.
É que, ainda que se possa recorrer às regras da experiência comum, por força do artº 127º do CPP, e dizer que a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido é muito elevada para um simples consumidor, tal não pode significar que, só por si, se possa dizer que o mesmo é um traficante. Algo mais é necessário e isso passa pela conjugação dos depoimentos obtidos em sede de audiência, depoimentos esses válidos ou com possibilidade de o ser em termos processuais penais.
Para isso e para prova da acusação, haveria que recolher das testemunhas a ouvir em sede de julgamento declarações que permitissem enquadrar a actividade do arguido no tráfico de estupefacientes.
Porém, os agentes da GNR ouvidos em sede de audiência apenas referiram que conheciam o arguido como toxicodependente, que o mesmo já foi condenado por tráfico de estupefacientes – heroína – e que o mesmo, junto à Escola, era visto acompanhado de “consumidores”.
Não referiram, porém, que tivessem visto o arguido a transaccionar, por qualquer meio, produto estupefaciente.
Referiram, mais uma vez, a velha máxima declarativa dos agentes dos OPC’s: “era referenciado como traficante”.
Ou seja, quanto à parte dos factos em que o arguido é acusado de tráfico, essas declarações, que as testemunhas prestaram, vieram ao seu conhecimento pelo exercício de funções.
Tanto basta para que as declarações não tenham validade face aos artº 128º, nº 1, e 129º, bem como o art. 356º, nº 7, do CPP.
Como tal e porque não se pode presumir uma conduta que seja prejudicial ao arguido, e porque o princípio in dubio pro reo opera, outra solução não resta que não seja dar como não provados os factos relacionados com o tráfico imputado ao arguido.

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Independentemente do quanto o arguido possa ter dito em sede de inquérito – que não sabemos o quê (para além do que em função de dever profissional e conhecimento indissociável se tenha) e não poderíamos nunca valorar –, o certo é que a prova trazida a julgamento e proveniente, obviamente, do inquérito nos parece muito pouco para se poder dizer que existiam indícios suficientes. E atrevemo-nos a dizer tal, apenas com base numa premissa: não foi levantado por quem de direito uma qualquer omissão ou contradição das declarações das testemunhas obtidas em sede de julgamento com as obtidas em sede de inquérito.
Como tal, restaram as declarações do arguido, que se têm que valorar nos seus precisos termos, desde logo porque, mormente face à LN, ou se trafica ou se consome, não existindo uma qualquer situação em que se detêm produto estupefaciente para um outro qualquer fim.
A situação pessoal do arguido resultou provada face às suas declarações e ao teor do relatório do IRS junto aos autos.
Atendeu-se aos doc.s juntos aos autos, mormente CRC e relatório social fornecido pelo IRS.”.
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Feita esta longa transcrição, importa sublinhar que, conforme a sua motivação, o douto recorrente estrutura o seu recurso em dois planos sucessivos, a saber:
a) Em primeira linha, sustenta que a sentença enferma de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova - al. b) e c) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal - e que também é insuficiente a sua fundamentação - artº 97º, nº 4, e 374º, nº 2, do C. P. Penal -, em função do que não devia ter sido dado como provado que o arguido destinava o haxixe ao seu consumo, devendo esse facto ser eliminado; e, não se tendo apurado positivamente que destinava o estupefaciente ao tráfico, restaria, ainda assim, a detenção, suficiente para a condenação do arguido nos termos do artº 21º do Dec.Lei nº 15/93;
b) Em segunda linha, para o caso de não proceder aquela sua primeira proposição, sustenta que, à luz da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, a detenção de estupefaciente, ainda que exclusivamente para consumo, mas fora das situações previstas no artº 2º dessa Lei (como era o caso, dada a quantidade que o arguido detinha), continuou a ser crime - apenas até ao limite quantitativo previsto nesse artº 2º a detenção para consumo passou a contra-ordenação -, agora enquadrável nos termos do artº 21º, pelo que o arguido devia aqui ser condenado nos termos do nº 2 do artº 40º, vigente na data dos factos.

Quanto à primeira questão:
Se bem se entendeu a argumentação do recorrente, a sentença enfermaria de contradição insanável na fundamentação, na medida em que, por um lado, considerou que as declarações do arguido não eram credíveis (os reduzidos ganhos do arguido eram pouco compatíveis com a aquisição por junto, para consumo, da quantidade, algo elevada, de droga que foi encontrada na sua posse) e, a despeito de tal, valoriza-as para concluir pelo consumo do estupefaciente que o arguido detinha; com o que também teria incorrido em erro notório na apreciação da prova, pois que, dada essa condição económica do arguido, não havia que concluir, como se concluiu, pelo destino da droga para consumo do arguido.
E, enfim, porque a mera detenção integrava já o crime do artº 21º, necessário seria, para que se pudesse concluir que essa detenção tinha por destino o consumo próprio, que de tal se tivesse feito prova positiva, não se podendo aí chegar por simples aplicação do princípio in dubio pro reo.
Mas pensa-se que tais objecções improcedem.
Antes de mais, cabe dizer que não temos como exacto que o Mmº Juiz afirme que as declarações do arguido não eram credíveis e que, depois, sem reservas, as aceite como boas. O que consta da fundamentação da sentença é diferente, aí se dizendo que “... as suas declarações poderiam não se afigurar credíveis em moldes tais que se pudessem considerar de per si. De facto, a quantidade existente na posse do arguido é algo elevada e os custos da mesma não são muito compatíveis com os seus ganhos”. Isto é, o que, afinal, o Mmº Juiz diz é simplesmente que dessas declarações se não pode extrair como líquido e seguro que o destino do haxixe era o seu consumo pelo arguido; mas, como decorre do que avança depois, também se não pode dizer que assim não fosse e que, ao invés, face a essas dúvidas, se pudesse “... presumir que o arguido detinha em seu poder tal quantidade de haxixe para traficar ...”, ou seja, como depois concretiza, o facto de ser muito elevada a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido “... não pode significar que, só por si, se possa dizer que o mesmo é um traficante.”.
Deste modo, torna-se claro que não entrou o Mmº Juiz em contradição alguma, apenas expressando a dúvida em que permaneceu: não podendo concluir decididamente pelo consumo, também não tinha elementos nem podia presumir que o destino da droga fosse o tráfico.

E não se vê também que, entendendo assim, o Mmº Juiz tivesse incorrido em erro na apreciação da prova.
Como é sabido, este vício, referido na al. c) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal, apenas releva se, como ali se estabelece, resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem apelo, pois, a elementos exteriores a essa decisão.
E, para além dessa exigência, comum a todos os vícios referidos nesse nº 2, tem ainda o erro na apreciação da prova de ser “notório”, isto é, de tal modo patente que não escape a um observador normalmente perspicaz e atento.
Assim sendo, só haverá erro relevante na apreciação da prova se, confrontado com o texto da decisão e fazendo apelo aos ensinamentos da experiência comum, o homem de capacidade e formação médias logo alcança que não são possíveis as (ou algumas das) conclusões a que, em sede de matéria de facto, o Tribunal chegou.
Tendo isto presente:
Admitindo como aceitáveis as dúvidas que a fundamentação da sentença avança quanto à prova de que a droga detida pelo arguido se destinava ao tráfico, a objecção do recorrente tem por alvo a decisão de que esse destino seria o do consumo pelo próprio arguido, tendo o Tribunal errado ao concluir assim.
Porém e antes de mais, relembra-se que, como acima se disse já, a inclusão desse facto nos factos provados resultou apenas da dúvida razoável que, face à prova produzida, designadamente as declarações prestadas pelo arguido, o Mmº Juiz considerou permanecer e não por haver como positivamente demonstrado que esse era efectivamente o destino da droga; o que aqui não é irrelevante, dado o diferente grau de exigência de prova requerido por cada uma dessas situações.
Ora, sendo nesse exacto plano da dúvida razoável quanto ao destino da droga que, no caso, se tem de perspectivar a reclamada verificação do erro na apreciação da prova, forçoso será concluir que o vício se não verifica, por isso que, a despeito da reconhecida modéstia dos proventos do arguido, não é, de todo, inverosímil e de rejeitar a explicação por ele avançada - de que, comprando quantidades maiores, a dose lhe saía mais barata - e que, assim, o produto que detinha era para seu consumo.

Isto posto e já numa perspectiva diferente, dir-se-á que, assim instalada no espírito do Mmº Juiz a dúvida razoável quanto à finalidade a que o arguido destinava a droga, nenhum reparo merece também a matéria de facto na parte em que o Exmº Juiz, fazendo uso do princípio in dubio pro reo, levou aos factos provados que se destinava ao consumo do próprio arguido o haxixe que este detinha.
Sendo a detenção (da droga) elemento comum ao crime do artº 21º (tráfico e outras actividades ilícitas) e ao do artº 40º (consumo) do Dec.Lei nº 15/93, afigura-se que, provados os actos de detenção, a distinção entre os dois delitos, com a inclusão da conduta no artº 21º, passará pelo afastamento do elemento “consumo” como destino de estupefacientes detido. É o que claramente parece decorrer do texto do nº 1 do artº 21º, na relação que estabelece com o artº 40º, recortando a respectiva conduta típica também por referência ao dito artº 40º, abarcando no preceito os actos que aí descreve, mas que estejam “fora dos casos previstos no artigo 40º”, isto é, que não sejam actos de ou para consumo do próprio agente.
Assim, apurado positivamente que a droga se destinava ao consumo do próprio, ficava excluída a possibilidade de enquadramento da conduta no artº 21º, desenhando-se, pois, claramente uma relação de alternatividade entre ambos os preceitos, relação ora mantida pela Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, que veio re-definir o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes.
Porém, afigura-se também claro que o non liquet, assente numa dúvida razoável, que venha a subsistir quanto a essa finalidade de “consumo” pelo próprio não pode ser resolvido pela forma pretendida pelo douto recorrente, isto é, presumindo que a droga se destinava ao tráfico, também ele não provado,
Perante a dúvida razoável que subsista quanto à finalidade - consumo ou tráfico - a que o agente destinava a droga por si detida, o princípio do acolhimento da solução mais favorável ao arguido - in dubio pro reo - não pode deixar de ser respeitado, ditando, em tal situação, a opção seguida na sentença recorrida, dando como provado que a droga se destinava ao consumo pelo próprio arguido.

Enfim e quanto ao vício de insuficiência de fundamentação de que, segundo o recorrente, a sentença padece por não ser compreensível qual a dúvida que motivou o Mmº Juiz na aplicação do princípio in dubio pro reo, também nessa parte e com o devido respeito nos não parece que ele se verifique, importando reparar que o Mmº Juiz não teve em conta apenas as declarações do arguido, mas considerou ainda, nomeadamente, a ausência de prova - e especificadamente aponta as razões pelas quais a não atendeu - no sentido de que se estivesse perante um traficante; o que, naturalmente, o levou a conferir alguma credibilidade às declarações do arguido.
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Quanto à segunda questão:
Improcedendo, assim, a linha de objecções dirigidas contra a matéria de facto acolhida na sentença, matéria que se não mostra inquinada por qualquer outro vício e que, por isso, se deve considerar fixada, passa-se à questão do tratamento jurídico-penal que a conduta do arguido deve merecer.
Sustenta-se na sentença que, com a Lei nº 30/2000, a conduta do arguido que, à luz do Dec.Lei nº 15/93, integrava o crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo nº 2 do seu artº 40º, ter-se-ia descriminalizado.
Por seu turno, defende o recorrente que, face àquela Lei nº 30/2000, a detenção de estupefaciente em quantidade superior à referida no seu artº 2º e ainda que exclusivamente para consumo próprio passou a ser enquadrável no artº 21º do Dec.Lei nº 15/93, pelo que não ocorreu qualquer descriminalização da conduta do arguido que, assim, deve ser punido pelo crime p. e p. pelo artº 40º, nº 2, do Dec.Lei 15/93, preceito em vigor na data dos factos e que lhe é mais favorável.
Vejamos, então.

Subordinado à epígrafe “Consumo”, o artº 40º do Dec.Lei nº 15/93, de 22/1, diz o seguinte:
“1 - Quem consumir ou, para seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do nº 1, se o agente for consumidor ocasional, pode se dispensado de pena.”.
Com interesse ainda para a nossa questão, o artº 21º do mesmo diploma - sob a epígrafe “Tráfico e outras actividades ilícitas” -, preceito-referência para os subsequentes que ao tráfico também se reportam, dispõe no seu nº 1 o seguinte:
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, ..., fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” (sublinhado nosso).
O confronto dos dois preceitos deixa clara a relação de alternatividade entre ambos, sendo evidente que, a despeito da maior ou menor quantidade de produto que o agente detenha, mas apurado que ele se destina apenas ao consumo pelo próprio, cairá a conduta necessariamente no âmbito do artº 40º, ficando afastada a possibilidade da sua subsunção no artº 21º.
É o que decorre naturalmente do nº 2 deste artº 40º que contempla a detenção de quantidade excedente à “necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias”, sem, porém, fixar qualquer quantidade máxima a partir da qual se excluísse a sua aplicação. O que necessariamente importa que, à partida, não será pela quantidade mais ou menos elevada que o agente detiver que a aplicação do nº 2 deva ser arredada (o que não significa - mas trata-se de questão diferente - que a quantidade do produto detido, se elevada, não seja factor, porventura decisivo, para o Tribunal afastar como seu destino o do consumo pelo próprio agente).
Por outro lado e ainda nessa linha, também não será a quantidade, mais ou menos diminuta, detida pelo agente que fará recusar a aplicação do artº 21º e seguintes que ao tráfico se reportam, uma vez afastado que o destino fosse o consumo pelo próprio.
Assim, à luz destas disposições do Dec.Lei nº 15/93, apurado que ficou que a droga que o arguido detinha se destinava ao seu próprio consumo, é irrecusável que a conduta em apreço se enquadra no nº 2 do dito artº 40º.

Vejamos agora se e em que medida o tratamento da questão se alterou com a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, diploma que, consoante o nº 1 do seu artº 1º teve como objecto “a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica”, esclarecendo-se no nº 2 que as plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime deste diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao Dec.Lei nº 15/93.
Assim e no que aqui mais importa, o artº 2º, depois de, no seu nº 1, dizer que constituem contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações supra referidas, estabelece, no nº 2, que “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Ainda com interesse para a nossa questão, atentar-se-á no artº 28º, respeitante às normas revogadas, aí se dispondo que “são revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.

Numa primeira aproximação, logo se alcança que, sendo de cerca de 216 gramas a quantidade de haxixe que o arguido detinha, claramente excedente à quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias (cfr. Port. nº 94/96, de 26/3), se deve ter por excluída a subsunção da sua conduta ao nº 2 do artº 2º desta Lei nº 30/2000.
Se assim não fosse e se, como se entendeu na sentença, a conduta do arguido ali se enquadrasse, então toda a questão se resumiria a saber qual o tratamento que uma tal descriminalização - por transmutação de crime em contra-ordenação - devia merecer (na linha apontada por Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, 88 e segs, temos vindo a entender e a decidir em situações similares que a solução só poderia ser a de não condenação do arguido por qualquer dessas leis, a primeira, por a respectiva conduta típica ter deixado de ser crime, e a segunda, na medida em que, não integrando essa conduta do arguido, na data dos factos, qualquer ilícito contra-ordenacional, a sua punição a esse título traduziria clara aplicação retroactiva dessa lei que criara tal ilícito de natureza diferente).
Porém, não se pondo a questão nesses termos singelos e escapando a hipótese à previsão da nova lei, a solução avançada na sentença não pode deixar de ser recusada, impondo-se, por isso, definir qual o reflexo que a Lei nº 30/2000, maxime a norma revogatória do seu artº 28º, teve no âmbito de aplicação do Dec.Lei nº 15/93 e, assim, como enquadrar agora as condutas - de detenção para consumo próprio - anteriormente abarcadas no nº 2 do artº 40º, mas que, pela quantidade em causa, se verificou escaparem à directa previsão da nova lei.
Deparam-se no recurso duas vias de solução possíveis, ainda que conducentes aos mesmos resultados.
Com efeito:
No entendimento da expressa e integral revogação do artº 40º (com a ressalva quanto ao cultivo, que ora não importa), sustenta o recorrente que essas condutas passaram a preencher o tipo legal de crime fundamental do artº 21º do Dec.Lei nº 15/93, pelo que, no caso presente, na opção pelo regime jurídico mais favorável, devia o arguido ser punido nos termos do revogado nº 2 do artº 40º.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto considera que a solução passa por uma interpretação restritiva da norma revogatória do artº 28º da Lei nº 30/2000, norma que deve ser entendida no sentido de que apenas revogou esse artº 40º quanto às condutas abarcadas pelo nº 2 do artº 2º, convertidas em contra-ordenações, continuando em vigor quanto ao mais, com esse alcance útil se mantendo a ressalva do artº 21º (“fora dos casos previstos no artigo 40º”), pelo que, por directa aplicação do, assim subsistente, artº 40º, deve o arguido ser condenado nos termos do seu nº 2.

Ponderando as duas vias apontadas, decididamente nos inclinamos para a segunda.
Como acima já se avançou, o Dec.Lei nº 15/93 estabelecia claramente a dicotomia “tráfico e outras actividades ilícitas/consumo”, traduzida na interligação que o artº 21º fazia com o artº 40º, enquadrando como crime ambos esses tipos de conduta, sendo que, apurado que o cultivo, a aquisição ou a detenção de droga era para consumo próprio, ficaria arredada a possibilidade de se enquadrar a conduta no primeiro desses termos.
Ora, a nova Lei não veio alterar substancialmente esses termos da questão, mas apenas pretendeu estabelecer que o consumo ou a aquisição ou detenção para consumo próprio até determinada quantidade (não excedente ao necessário para o consumo médio mensal durante 10 dias) deixaria de ser crime e passaria a mera contra-ordenação.
Assim, a nova lei deixou intocada uma larga fatia de condutas até então abarcadas pelo artº 40º, concretamente o cultivo para consumo (independentemente da quantidade em causa) e a aquisição ou detenção de quantidades superiores às referidas no nº 2 daquele artº 2º, condutas estas que, não fossem os termos da norma revogatória do artº 28º da Lei nº 30/2000, todos aceitariam continuar abarcadas na previsão daquele artº 40º.
Claro que a solução de decorreria da aplicação literal daquele artº 28º - que, sem reserva alguma quanto à quantidade de estupefaciente, revogou este artº 40º - seria a de remeter para a norma fundamental do artº 21º do Dec.Lei nº 15/93 todas as condutas de aquisição e detenção para consumo próprio antes abarcadas pelo artº 40º e que, pela quantidade de estupefaciente, se não enquadravam na previsão do novo diploma.
O que, no entanto, tendo presentes as finalidades visadas pela Lei nº 30/2000, não deixaria de ser incongruente, pois que, como impressivamente escreve Cristina Líbano Monteiro, Consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas: Comentário à Lei nº 30/2000, in Revista de Ciência Criminal, Ano 11, 1º, 89, que, no seu douto parecer, o Exmº Procurador-Geral Adjunto cita e transcreve, “não é razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um «doente» a proteger num autêntico traficante, esquecendo-se de acautelar situações que a velha lei acautelava”.
E, na solução da dificuldade, logo acrescenta que “mais consequente com o espírito do diploma de 2000 será interpretar restritivamente o texto da norma revogadora, o art. 28º. Onde as palavras parecem apontar para um completo desaparecimento do artº 40º da lei de 93 (excepto no que diz respeito ao cultivo), deve entender-se que este continua a reger os casos de consumo não convertidos em contra-ordenações. Por outra palavras: mantém-se incólume - o novo legislador não podia ter querido outra coisa - a ideia segundo a qual a quantidade de droga nunca transforma o consumidor em traficante. De outro modo ainda: o tráfico e o consumo são, agora também, tipos alternativos; ou que o artº 40º, parcialmente revogado, conserva intacta a sua função de delimitar negativamente - através do elemento subjectivo que o caracteriza - o crime de tráfico.”.
Sem hesitar, pensa-se ser o caminho a seguir, ou seja, interpretando restritivamente aquela norma revogatória do artº 28º da Lei nº 30/2000, concluir que ela não pretendeu revogar e deixou intocado o artº 40º do Dec.Lei nº 15/93 em tudo quanto não foi abarcado pelo artº 2º daquela Lei.
Daí que, no nosso caso, apurado que a substância estupefaciente que o arguido detinha se destinava ao seu próprio consumo, mas excedia a quantidade fixada no nº 2 do artº 2º da Lei nº 30/2000, deva a conduta ajuizada ser enquadrada na previsão do nº 2 do artº 40º do Dec.Lei nº 15/93 e o arguido condenado, em conformidade.

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Isto posto e passando à espécie e medida da pena a impor ao arguido:
Ao crime tipificado no aludido nº 2 do artº 40º corresponde a moldura penal de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

Sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o artº 70º do C. Penal impõe que se dê preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No caso e a despeito dos antecedentes criminais do arguido, designadamente na área do tráfico e do consumo de estupefacientes, pensa-se que, atentos os reconhecidos inconvenientes das penas curtas de prisão, ademais tratando-se de conduta que visou apenas o consumo pelo próprio, se justificará ainda a opção pela mera pena de multa.

Isto posto:
Consoante o artº 71º, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo ainda as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, relevem a favor ou contra o arguido, nomeadamente as aludidas no nº 2 desse preceito.
Nestes moldes, a pena concreta há-de ter na culpa do arguido o seu último limite que não poderá ultrapassar e, por outro lado, não deverá ficar aquém do necessário para satisfação dessas exigências de prevenção, sendo dentro dessas fronteiras que, tendo em conta ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido, se terá de encontrar a pena tida como adequada e justa.
No caso concreto:
O arguido agiu com dolo directo, assim, com o grau mais elevado de culpa.
Neste tipo de criminalidade, largamente proliferante, as necessidades de prevenção geral são consabidamente acentuadas; e, atentos os antecedentes criminais do arguido - com três condenações na área aqui em apreço, mas já em 1996/97, duas por consumo e uma por tráfico de estupefacientes, por factos praticados em 1995/96 -, mas tendo ainda em atenção que, como se apurou em julgamento, o arguido estava então em tratamento, as exigências de prevenção especial são também de relevo.
Apreciável é ainda a ilicitude da conduta, traduzida na detenção de estupefaciente - ainda que haxixe - em quantidade já elevada, reportada que é ao consumo próprio e tendo em consideração os valores que a própria lei, como vimos, acolheu como razoáveis para esse fim e, assim, descriminalizou.
Enfim, há ainda a considerar a condição sócio-económica do arguido (39 anos de idade, casado, um filho adolescente, a viver em casa dos pais, reformado, 11º ano de habilitações literárias e toxicodependente há já 15 anos).
Tudo isto ponderado, pensa-se que, numa moldura penal de multa de 10 a 120 dias, será equilibrado e justo fixar em 75 (setenta e cinco) dias a medida da pena de multa a impor ao arguido.
E, podendo a taxa da multa oscilar entre 1 e 498,80 Euros e não esquecendo que também a pena de multa - cujo pagamento suavizado está, aliás, previsto na lei para as situações que o justifiquem - há-de representar um justo sacrifício para o condenado, para que se não traduza, afinal, numa quase-absolvição, com a consequente frustração das finalidades da punição (artº 70º), pensa-se que, atentas as fracas condições económicas do arguido, será adequado fixar a taxa diária de € 2 (dois Euros) que, assim, sem necessidade de outras considerações, agora se estabelece, sendo assim de 150 (cento e cinquenta) Euros o montante de multa que o arguido terá de pagar e a que, nos termos do artº 49º, nº 1, do mesmo diploma, desde já se faz corresponder prisão subsidiária por 50 (cinquenta) dias.
Nesta medida, o recurso procede parcialmente.
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Em conformidade, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso do Mº Pº, pelo que se revoga a douta sentença absolutória e se condena agora o arguido Rui....., pela autoria material de um crime de detenção de estupefaciente para consumo próprio, p. e p. pelo artº 40º, nº 2, do Dec.Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 2 (dois Euros), perfazendo a multa total de € 150 (cento e cinquenta) Euros, multa a que corresponde prisão subsidiária por 50 (cinquenta) dias.
Sem custas - artº 75º, al. b), do C. C. Judiciais.

Porto, 11 de Fevereiro de 2004
José Henriques Marques Salgueiro
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz