Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2948/20.7T8MTS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
SUPRESSÃO DE ACTOS PROCESSUAIS
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP202109232948/20.7T8MTS-B.P1
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A natureza de jurisdição voluntária dos processos tutelares cíveis, não conduz a que os mesmos sejam assumidos como sendo uma jurisdição arbitrária, de despótica gestão processual, suprimindo actos processuais legalmente previstos e estruturantes da tramitação processual, como sucede com a conferência de pais relativamente ao incumprimento da prestação alimentar regulada no âmbito da regulação das responsabilidades parentais.
II - Atento o primado legal conferido à realização da conferência de pais quando está em causa o incumprimento das responsabilidades parentais reguladas, ainda que circunscrito à prestação de alimentos, de modo a obter-se uma resolução autocompositiva e não heterocompositiva desse conflito, aquela conferência apenas pode ser dispensada quando a sua efetivação se afigurar completamente inútil ou não ser possível a sua concretização, designadamente por ausência dos pais em parte incerta.
III - Quando está apenas em causa a prestação de alimentos, que corresponde a uma obrigação de natureza creditícia, e havendo uma presunção legal de incumprimento culposa quando a mesma não é realizada (artigo 799.º do Código Civil), incumbe ao progenitor devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua.
IV - Estando o progenitor obrigado a pagar a prestação alimentar a cada um dos filhos no valor de € 150,00 cada uma e tendo no mês de outubro apenas liquidado um total de € 200, quando nesse mês auferiu um salário de € 771,62 e passou a residir numa fração habitacional, cuja renda mensal importa em € 290,00, não podemos considerar como culposo o incumprimento parcial dessa prestação, quando está em causa o não pagamento de € 100.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2948/20.7T8MTS-B.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: António Paulo Vasconcelos; Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 2948/20.7T8MTS-B do Juízo de Família e Menores de Matosinhos, J2, da Comarca do Porto Este, em que são:

Recorrente/Requerido: B…

Recorrida/Requerente: C…

por despacho proferido em 15/dez./2020 foi decidido o seguinte:
“Face a tudo quanto supra se expendeu, decide-se julgar verificado o incidente de incumprimento por parte do requerido/progenitor do regime das responsabilidades parentais relativas aos menores D… e E…, contra B…, na vertente dos alimentos, condenando-a a pagar à progenitora a quantia de 200,00€ (duzentos euros) a título de prestação de alimentos devidas e não pagas nos meses de setembro e outubro de 2020 e bem assim nas prestações alimentares futuras vincendas.
................
Em consequência, decide-se ordenar o desconto mensal no salário mensal auferido pela requerida da quantia de: - 300,00€ para pagamento das prestações fixadas a título de alimentos vincendas, a qual deverá ser anualmente atualizada, em janeiro de cada ano, com início em janeiro de 2021, com base no índice de inflação publicado anualmente pelo INE. - 25,00€ para pagamento das prestações vencidas e não pagas, até perfazer o montante total de 200,00€, consignando-se que a dedução ordenada tem como limite o valor da pensão social do regime não contributivo – 210,32€ (art. 738º, n.º4 do CPC).
Custas pelo requerido fixando-se a taxa de justiça em 2 U’c nos termos do art. 7º do RCP e tabela II anexa ao RCP.”
1.2. A Requerente em 10/nov./2020 veio suscitar o incumprimento pelo Requerido da prestação de alimentos aos dois filhos de ambos, invocando o seguinte:
“Como é sabido o pai, a título de alimentos está obrigado a pagar, a quantia mensal de 150,00 €, para cada um dos filhos, no total mensal de 300,00 €; Até à data o pai não cumpriu integralmente com o estipulado, quanto ao pagamento da pensão de alimentos aos seus filhos. Tendo procedido apenas ao pagamento parcial dos seguintes montantes: - setembro – 200,00€; - outubro – 200,00 €. Estando em falta um valor total de 200,00 €.
que corresponde a quantia em virtude de sustentando que estando mencionando que em setembro”. Mais pugnou que “nos termos do art. 48 RGPTC, deverá ser a entidade patronal notificada para proceder ao desconto: - de uma quantia nunca inferior a 100,00€ (cem euros) para pagamento das quantias vencidas. - e da quantia estipulada a título de alimentos devida mensalmente, no valor total de 300,00 dado o incumprimento reiterado do progenitor”.
1.3. Por despacho proferido em 18/nov./2020 foi determinado o seguinte:
“Considerando que o âmbito do presente incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais se restringe aos alimentos devidos ao menor e não pagos pelo requerido cuja verificação depende essencialmente de prova documental, decide-se, por ora, não convocar a conferência a que alude o n.º 3 do art. 41º do RGPTC, assim fundando a exceção ali prevista.
Nos termos da parte final daquele preceito legal, notifique o requerido para que, em cinco dias, diga o que tiver por conveniente com a expressa advertência de que, nada dizendo, se terão por admitidos por acordo os factos alegados pela requerente, posto que não estão em causa direitos indisponíveis, mas apenas a falta de pagamento da quantia devida a título de alimentos.”
1.4. O Requerido, sendo notificado daquele requerimento e deste despacho, deduziu oposição em 01/dez./2020 admitindo que apenas pagou em cada um daqueles meses de setembro e outubro a quantia mensal de € 200,00, assim como de 50% do material escolar, não tendo meios económicos para suportar a prestação de alimentos mensal de € 150,00 para cada um dos filhos, já que a partir de outubro de 2020 passou a residir num quarto, pagando mensalmente o valor de € 290,00, quando o seu salário mensal vai de € 645,07 a € 771,00. Por estas e outras razões o Requerido suscitou a alteração de alimentos, conforme consta no apenso C destes autos.
1.5. O Ministério Público na sua vista de 09/dez./2020 promoveu o seguinte:
1) Face à confissão dos factos alegados pela requerente, promovo se julgue verificado o incumprimento das responsabilidades parentais relativamente à prestação de alimentos devida pelo requerido aos menores e, em consequência se julgue procedente, por provado, o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais na vertente dos alimentos.
2) Da Consulta às Bases de Dados da Segurança Social, pelo Citius, verifica-se que o requerido é trabalhador por conta de outrem da entidade empregadora HOSPITAL …, E.P.E., auferido um salário base mensal no valor de € 645,07, que pode ascender em meses excecionais ao valor de € 771,00.
Assim, nos termos do disposto no art.º 48.º n.º1 alínea a) e n.º2 do RGPTC, com referência ao n.º4 do art.º 738.º do CPC, promovo se requisite à entidade empregadora do requerido que proceda à dedução mensal, no vencimento daquele, da quantia de: € 300,00, correspondente à prestação de alimentos vincenda devida aos menores, seus filhos (€ 150,00, para cada um), prestação que deverá ser atualizada, anualmente, em janeiro de cada ano, com início de janeiro de 2021, com base no índice de inflação publicado a anualmente pelo INE, acrescida da quantia de: € 25,00 para pagamento das prestações vencidas e não pagas até integral pagamento das mesmas no montante total de € 200,00 (meses de setembro e novembro de 2020), o no total mensal de € 320,00, consignando-se que, tal dedução tem como limite o valor da pensão social do regime não contributivo € 211,79 (art.º 738.º n.º4 do CPC), notificando-se a entidade empregadora para comprovar nos autos o início dos descontos que vierem a ser ordenados.”
2. O Requerido insurgiu-se contra a referida decisão, tendo em 18/jan./2021 interposto recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1 – Na Douta Sentença aqui em crise, o Tribunal a quo deu como provado que o recorrente aufere o salário mensal no valor de € 1.290,14, com fundamento na consulta efectuada em 04/12/2020, na base de dados da Segurança Social que reporta a soma do subsídio de Natal e o salário.
2 – Desvalorizou, assim, o recibo de vencimento junto pelo Recorrente com resposta ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais apresentada pelo Recorrente, onde consta que o seu salário base é de € 645,07.
3 – Por outro lado, o Tribunal a quo fez tábua rasa dos factos alegados pelo Recorrente nas suas alegações enviadas a Juízo como resposta ao incidente de incumprimento, designadamente a alteração do montante das suas despesas mensais devidamente documentadas, bem como da informação que havia dado entrada em Juízo do requerimento de alteração da pensão de alimentos.
4 – Face aos factos alegados pelo Recorrente e aos documentos por si juntos aos autos na sua resposta, impunha-se a realização da conferência de pais a que alude o n.º 3 do artigo 41.º do RGPTC.
5 – Pois, o que está em causa não deixa de ser um incumprimento das responsabilidades parentais, cuja resolução poderia ser alcançada com a realização da dita diligência.
6 – Uma vez que, houve apenas um incumprimento parcial do pagamento da pensão de alimentos aos menores e, tal facto, por si, não poderia justificar a exceção prevista no referido preceito legal.
7 – Assim, no modesto entender do Recorrente, mal andou o Tribunal a quo ao não convocar a referida diligência.
8 – Pois, ignorou por completo o alegado pelo requerido, aqui Recorrente no seu requerimento de 01/12/2020, onde efetivamente informou o Tribunal que, desde a conferência de pais realizada no dia 11/09/2020, as suas condições de vida se alteraram. Alteração que foi documentalmente provada.
9 - Aliás, a própria Recorrida admitiu no seu requerimento que o Recorrente apenas não pagou a quantia global de € 200,00 nos meses de Setembro e de Outubro de 2020, ou seja, o Recorrente não incumpriu a pensão de alimentos na sua totalidade, pois que pagou as despesas escolares e medicamentosas, cujos comprovativos lhe foram apresentados para pagamento e que não foram
colocados em causa pela Requerida.
10 – Nunca foi intenção do Recorrente alienar-se da sua obrigação de prestar alimentos aos seus filhos, o que não pode é fazê-lo no valor que foi fixado pelo Tribunal.
11 - Pelo que, reafirma-se, não se entende a razão do Tribunal a quo não convocar a conferência de pais, de modo a poder obter um consenso relativamente aos valores que não foram pagos e às prestações vincendas, na medida em que, conforme já referido, o Recorrente havia dado entrada em Juízo do incidente de alteração da pensão de alimentos.
12 - Na fixação da pensão de alimentos, há que atender aos rendimentos que o obrigado aufere, para que seja possível identificar o montante razoável a ser prestado ao alimentado.
13 – Assim, realizando a conferência prevista no n.º 3 do art. 41.ºdo RGPTC, o Tribunal a quo alcançaria uma solução que fosse razoável para ambas as partes e que não colocasse em risco, quer a subsistência dos menores, quer do progenitor obrigado a prestar alimentos, aqui Recorrente.
14 – Mas não, sem qualquer outra diligência, ordenou o desconto no salário do Recorrente, quer os valores em dívida, quer as prestações vincendas.
15 – Decisão que deverá ser revogada e substituída por outra que ordene a realização da conferência prevista no n.º 3 do art. 41.º do RGPTC.
16 - Devendo, nessa, medida, o presente recurso proceder in totum, uma vez que se verificam os fundamentos necessários ao seu mérito.
3. O Ministério Público contra-alegou em 06/mar./2021 pugnando pela improcedência do recurso, de onde se extraem as seguintes conclusões:
1) A questão a decidir cinge-se a saber se a douta sentença recorrida, que julgou verificado o incidente de incumprimento, na vertente dos alimentos, e ordenou o desconto mensal no salário do requerido da “quantia de 300,00€ para pagamento das prestações fixadas a título de alimentos vincendas (…)” e “25,00€ para pagamento das prestações vencidas e não pagas, até perfazer o montante total de 200,00€ (…)”, deve ser revogada e substituída por outra que ordene a realização da conferência de pais prevista no n.º 3 do art.º 41.º do RGPTC.
2) Para tanto, sustenta o recorrente que o Tribunal a quo fez tábua rasa dos factos por si alegados nas suas alegações de resposta ao incidente, designadamente: alteração do montante das suas despesas mensais, que havia dado entrada em Juízo do requerimento de alteração da pensão de alimentos, que houve apenas um incumprimento parcial do pagamento da pensão de alimentos, que as suas condições de vida se alteraram, que o requerido havia dado entrada em Juízo do incidente de alteração da pensão de alimentos e que, na fixação da pensão de alimentos, há que atender aos rendimentos que o obrigado aufere, para que seja possível identificar o montante razoável a ser prestado ao alimentado.”
3) Contudo, ao recorrente não assiste razão, porquanto nenhum dos factos alegados na sua resposta ao incidente de incumprimento, tem qualquer relevância para a decisão do incidente de incumprimento, propriamente dito (mas sim para a ação de alteração por aquele intentada).
4) Por outro lado, notificado o requerido no âmbito do incidente para, querendo, se pronunciar, respondeu: “Corresponde à verdade que o Requerido apenas pagou a título de alimentos aos seus filhos, a quantia global de € 200,00 no mês de Setembro e € de € 200,00 no mês de Outubro”.
5) Logo, em face do reconhecimento dos valores em dívida pelo requerido, não havia consenso a obter quanto aos valores que não foram pagos (já por ele assumidos), nem quanto às prestações vincendas, por não existir qualquer dúvida quanto ao valor das mesmas (que se mantêm na quantia
mensal de € 150,00, para cada um dos filhos, no total mensal de € 300,00).
6) Por isso, a conferência prevista no art.º 41.º n.º 3 do RGPTC, nas situações de incumprimento na vertente dos alimentos, só deve ter lugar caso o requerido alegue e não reconheça o incumprimento da prestação de alimentos, pois, caso contrário, a sua realização é manifestamente desnecessária e inútil, como era o caso.
7) Ademais, estando apenas em causa o incumprimento da prestação de alimentos poder-se-ia lançar mão, diretamente, do mecanismo previsto no art.º 48.º do RGPTC, que não depende da prévia dedução de incidente de incumprimento, e no qual não existe prévio exercício do contraditório.
8) Não violou, pois, a douta sentença recorrida qualquer norma jurídica, nomeadamente, os art.º 41.º n.º3 e 48.º do RGPTC.
4. A requerente contra-alegou em 04/fev./2021 pugnando pela improcedência do recurso.
5. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 21/abr./2021, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
6. Não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e obstem ao conhecimento do recurso.
7. O objeto do recurso incide sobre a não convocação da conferência prevista no artigo 41.º, n.º 3 do RGPTC (a), o reexame da matéria de facto (b) e na sua procedência a verificação do incumprimento culposo na prestação de alimentos (c).
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A decisão recorrida: factos e motivação
“1. D… nasceu no dia 12 de janeiro de 2006 e é filho de B… e de C…;
2. E… nasceu no dia 28 de dezembro de 2009 e é filho[a] de B… e de C…;
3. Por sentença de 11 de setembro de 2020 foi regulado o regime do exercício das responsabilidades parentais relativas ao D… e à E… que fixou a sua residência junto da progenitora, ficando o progenitor obrigado a pagar a título de alimentos devidos às crianças a quantia de 150,00€ mensais, a pagar até ao dia vinte e seis de cada mês, através de depósito bancário para conta que a progenitora indicou, montante a atualizar anualmente, com inicio em janeiro de 2021, com base no índice de inflação publicado pelo INE.
3. Nos meses de setembro e outubro de 2020 o requerido pagou à requerente a quantia de 200,00€ a título de alimentos devidos aos seus filhos;
4. O requerido é trabalhador por conta de outrem da entidade empregadora HOSPITAL …, EPE, auferindo a remuneração ilíquida mensal no montante de 1290,14€;
Motivação
A convicção do Tribunal nos termos supra expostos resultou do teor dos assentos de nascimento de fls. 3 e 4 dos autos principais e da sentença de fls. 15 e ss. Finalmente do teor da pesquisa na base de dados da Segurança Social, disponível via citius quanto ao montante da remuneração e bem assim a confissão do requerido, a admitir o pagamento parcial da quantia fixada a título de alimento, nos termos provados em 3).”
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2. Fundamentos do recurso
a) A conferência prevista no artigo 41.º, n.º 3 do RGPTC
O Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08/set., DR I, n.º 175 – RGPTC) estipula no seu artigo 41.º, n.º 1, que “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos” – sendo nosso o negrito, agora e posteriormente. Mais adiante no seu n.º 3 estabelece o comando de que “Autuado o requerimento, ou apenso este ao processo, o juiz convoca os pais para uma conferência ou, excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.”
O tribunal recorrido assumiu na sua interpretação, que estando em causa apenas o incumprimento das prestações alimentares não havia lugar à referida conferência, notificando desde logo o requerido para, querendo, pronunciar-se sobre o invocado no requerimento inicial. O recorrente nas suas alegações diverge deste posicionamento. A questão que se coloca é saber se esta excepção de não convocar a prevista conferência de pais, em virtude de estar apenas em causa o incumprimento parcial da prestação de alimentos, tem sustentabilidade legal. Na interpretação jurídica da lei iremos atender às regras enunciadas no artigo 9.º do Código Civil e à estrutura da norma em causa.
A norma jurídica não se confunde com o seu enunciado linguístico, porquanto aquela pode advir de um bloco legal ou ser a confluência de distintos preceitos legais. Mas qualquer norma legal deve ter uma construção racional e comunicacional, estruturando-se através do seu “texto-norma”, “âmbito-norma” e “programa-norma”, possibilitando a “concretização da norma”. A previsão legal assenta num padrão de vida jurídico, cujos contornos definem a sua antevisão factual e normativa, permitindo a sua aplicação. A regra enquanto mandato definitivo pressupõe uma homogeneidade, tanto de previsão, como de aplicabilidade, assumindo intrinsecamente a sua generalização. Por sua vez, a excepção presume uma heterogeneidade, que não se enquadra no núcleo factual e jurídico usual da norma padrão, tratando-se de um desvio admissível por razões ponderosas, que tanto podem ser de realização de justiça (plano substantivo), como de preservação de um processo justo e leal (plano processual). Na interpretação jurídica de uma norma, a regra não deve ser convertida em desvio e a excepção não pode ser assumida como padrão, sob pena de criarmos uma implosão normativa e contendermos com a reserva legal, que cabe sempre ao legislador e não aos tribunais.
Por isso, o legislador tem que ser diligente na elaboração das leis e o judiciário deve observar a devida prudência na sua interpretação e aplicação. Muito embora seja comum existirem normas-regra ou normas-excepção previstas em distintos enunciados legais, nada impede que as mesmas estejam anunciadas no mesmo normativo legal, assemelhando-se a sua previsão a um conglomerado legal. Mas o que se exige é que as disposições excepcionais, enquanto desvio previamente elaborado, estejam devidamente concretizadas, de modo a expressar o seu conteúdo normativo, porquanto a norma-excepção vem sempre estipular uma “ordem negativa de validade” da norma-regra. Mais será de referir, que a compreensão da lei não tem apenas por base o horizonte do texto legislativo, mas essencialmente o horizonte do contexto jurídico, mediante uma conexão entre norma e realidade, numa específica compreensão ontológica de ambas, ou seja, da existência da norma e da realidade que aquela pretende regular.
Relendo os “textos-norma” dos referenciados segmentos legais do citado artigo 41.º do RGPTC, podemos constatar que não existe uma coerência, seja normativa ou narrativa, entre ambos, porquanto o n.º 1 refere-se aos “pais ou a terceira pessoa” e o n.º 3 faz apenas alusão à convocação dos “pais para uma conferência”, não mencionando a “terceira pessoa”. Por outro lado, existe uma total ausência descritiva das excepções conducentes a prescindir da conferência e a optar, desde logo, pela notificação do requerido. Trata-se, por isso, de uma “norma-excepção em branco”, o que em termos de política legislativa não é de todo recomendável, porquanto pode propiciar o arbítrio e uma conflitualidade judiciária desnecessária.
No que concerne ao “âmbito norma” e atenta a sua inserção sistemática, podemos assentar, de um modo preliminar, que o citado artigo 41.º do RGPTC, tal como decorre do seu n.º 1, é dirigido à globalidade do incumprimento das responsabilidades parentais reguladas e quando o mesmo pretende disciplinar especificamente uma das suas vertentes, como sucede com o regime de visitas, fá-lo de um modo expresso (artigo 41.º, n.º 5 do RGPTC). Mais acresce que a exclusão absoluta do incumprimento da prestação de alimentos enquanto pressuposto da não convocação da conferência prevista no artigo 41.º, n.º 3 do RGPTC, acaba por restringir o âmbito deste segmento normativo, criando uma excepção como regra, o que é de todo inusitado.
Relativamente ao “programa-norma” do artigo 41.º, n.º 3 do RGPTC e atendendo ao desenho legal estabelecido para os processos tutelares cíveis, a conferência ocupa sempre um lugar de destaque e de prioridade. A título de exemplo encontramos a mesma no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais (artigo 35.º, n.º 1 e 4 RGPTC), sendo obrigatória a presença dos pais, salvo as situações aí expressamente previstas. O mesmo acontece no processo de prestação de alimentos devidos a criança (artigo 46.º RGPTC), onde se aplicam as mesmas regras de comparência imperiosa dos pais. Mais acresce, que dos três princípios orientadores dos processos tutelares cíveis enunciados no artigo 4.º, n.º 1 do RGPTC, salientamos dois com pertinência para fixar o “programa-norma” deste artigo 41.º, n.º 3: a) a simplificação instrutória e a oralidade, dando preferência a formas e actos simplificados, prevalecendo no que concerne aos depoimentos a sua oralidade e a sua documentação em auto: b) a consensualização na resolução dos conflitos familiares. E essa opção pela autocomposição dos litígios está expressamente enunciada na tramitação do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais reguladas (41.º, n.º 4 RGPTC).
Poder-se-ia sustentar que atenta a margem de atuação concedida ao juiz, decorrente da natureza de jurisdição voluntária atribuída aos processos tutelares cíveis (artigo 12.º RGPTC), sempre seria de admitir uma ampla conformação processual na convocação da conferência de pais, mediante uma assumida “liberdade de condução do processo”. Este posicionamento foi seguido pelo Ac. TRL de 22/fev./2018 (Des. Cristina Neves) segundo o qual “II.– Sendo este um incidente [incumprimento do exercício de responsabilidades parentais] em processo de jurisdição voluntária, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adoptando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, nomeadamente dispensando a conferência de pais. III.– A não convocação de conferência de pais, não constitui formalidade essencial, cuja dispensa inquine de nulidade a decisão proferida nos autos.”
A propósito consideramos que a natureza de jurisdição voluntária dos processos tutelares cíveis, não conduz a que os mesmos sejam assumidos como sendo uma jurisdição arbitrária, de despótica gestão processual. Tal sucede quando se suprime actos processuais legalmente previstos e estruturantes da tramitação processual tutelar cível, como a conferência de pais, por invocadas e muitas vezes inexplicadas razões de conveniência ou oportunidade. Desde logo, porque os processos tutelares cíveis estão sujeitos ao direito humano a um processo justo e leal (artigo 6.º CEDH) e aos vínculos constitucionais de um processo equitativo e de obtenção da decisão em prazo razoável (artigo 20.º, n.º 4 da Constituição). Por outro lado, essa natureza de jurisdição voluntária está densificada pelo quadro legal estabelecido no Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun. – DR I, n.º 121 – NCPC): i) o princípio da livre investigação dos factos e da prova (artigo 986.º, n.º 1 NCPC), o qual está sempre sujeito a um teste de proporcionalidade, mediante um juízo de necessidade, adequação, na justa medida e para assegurar um interesse legítimo (18.º, n.º 2 da Constituição); ii) a existência de um critério de julgamento assente na conveniência e oportunidade, afastando-se de critérios de estrita legalidade (987º, NCPC); iii) possibilidade de alteração das resoluções judiciais, com fundamento em circunstâncias supervenientes (988.º, n.º 1 NCPC). Por sua vez, os poderes conferidos ao juiz pelo dever de gestão processual, concedido pelo artigo 6.º, n.º 1 do NCPC, quando está em causa a simplificação e agilização processual está sempre dependente da audição das partes (i) e visa garantir a justa composição do litígio (ii) – neste artigo 6.º n.º 1 estipula-se que “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”. Por último, na prática de actos processuais existe sempre o princípio da sua limitação, previsto no artigo 130.º do NCPC, o qual estabelece o comando de que “Não é lícito realizar no processo a[c]tos inúteis”.
Na “concretização da norma”, atento o primado legal conferido à realização da conferência de pais quando está em causa o incumprimento das responsabilidades parentais reguladas, ainda que circunscrito à prestação de alimentos, encontramos uma nítida primazia por uma resolução autocompositiva e não heterocompositiva desses conflitos. Deste modo, essa conferência de pais apenas pode ser dispensada quando a sua realização se afigurar completamente inútil ou não seja possível a sua concretização, designadamente por ausência dos pais em parte incerta.
No que concerne às regras gerais sobre a nulidade dos actos, estipula-se no artigo 195.º, n.º 1 do NCPC que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”. Mais se acrescenta no n.º 2 que “Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes” e no n.º 3 que “Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo”.
Deste modo, a não convocação da conferência de pais no decurso de um incidente de incumprimento da prestação de alimentos regulada no âmbito das responsabilidades parentais, podendo a mesma influenciar no exame da causa, porquanto poderia ser obtido um consenso entre as partes, corresponde a uma nulidade, conducente à anulação dos actos posteriores que foram praticados. No entanto, podemos constatar do andamento posterior do processo que o objeto dessa conferência nunca seria atingido (41.º, n.º 4 RGPTC), porquanto as partes afastaram-se de qualquer autocomposição do litígio. Destarte, seria completamente inútil a convocação da referenciada conferência de pais, a que esta Relação não pode ficar alheia, tanto mais que a mesma, como qualquer tribunal, está vinculada à proibição da prática de actos inúteis. Mais acresce que os seus juízos de apreciação e resolução em sede de recurso, continuam a estar veiculados aos critérios de julgamento assente na conveniência e oportunidade, para além da vinculação constitucional à obtenção de uma decisão em prazo razoável, pelo que não iremos determinar a realização dessa conferência de pais.
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b) Reexame da matéria de facto
O Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08/set., DR I, n.º 175 – RGPTC) estabelece no seu artigo 32.º, n.º 1 que “Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis”, acrescentando no seu n.º 3 que “Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias”. Por sua vez, o Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun. – DR I, n.º 121 – NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Assim, tal reexame passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada). Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
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O recorrente insurge-se quanto ao provado no item 4, sustentando que essa remuneração ilíquida diz respeito ao salário mensal e ao subsídio de Natal, pugnando que o seu salário mensal base é de € 645,07, tendo mais despesas, designadamente com o arrendamento de um quarto, pagando mensalmente o valor de € 290,00.
Para o efeito, o Requerido juntou o “Talão de vencimento” do Hospital …, onde exerce funções como assistente operacional, que comprovam o seguinte vencimento mensal líquido no decurso do ano 2020: setembro € 675,35; outubro € 771,62 – documentos n.º 1 e 2, apresentados em 01/dez./2020. Também juntou aos autos o recibo de renda dos meses de outubro e novembro de 2020, ambos liquidados em 05/nov./2020, tendo cada um o valor de € 290,00 – documentos n.º 6 e 7, apresentados em 01/dez./2020. É certo que na pesquisa efetuada pelo Ministério Público em 04/dez./2020 e junta aos autos em 09/dez./2020 menciona-se que a sua última remuneração novembro de 2020 foi de € 1.290,14. Mas no confronto entre este último documento e aqueles outros “Talões de vencimento” esta Relação considera que aquele valor de € 1.290,14 corresponde ao salário e ao subsídio de Natal, tendo o mesmo natureza ilíquida. Aliás, a esta conclusão já tinha tido chegado o Ministério Público na sua promoção de 09/dez./2020, mas que abandonou ou pelo menos não fez qualquer menção nas suas contra-alegações de recurso. Nesta conformidade, existe um manifesto erro de julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal recorrido, em virtude de não ter em atenção a referenciada prova documental e quando estavam em causa a demonstração de apenas alguns factos, os quais são de enorme relevância.
Nesta conformidade, tem procedência o suscitado exame da matéria de facto, passando a constar como provados, para além do já assente em 1, 2 e 3, os seguintes:
4. O requerido é trabalhador por conta de outrem da entidade empregadora Hospital …, EPE, tendo auferido em novembro de 2020 a remuneração ilíquida mensal no montante de € 1.290,14, respeitante ao salário mensal e ao subsídio de Natal.
5. O requerido no decurso do ano 2020 e relativamente aos meses a seguir indicados, auferiu o salário mensal líquido de: setembro € 675,35; outubro € 771,62.
6. O requerido a partir de outubro de 2020 arrendou uma fração imóvel, mediante uma renda mensal no valor de € 290,00.
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c) O incumprimento culposo da prestação de alimentos
O Código Civil, através do seu artigo 1878.º, n.º 1 e quanto ao conteúdo das responsabilidades parentais, estabelece que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”. Por sua vez, no caso de divórcio ou de outra extinção do casamento, assim como de separação judicial de pessoas e bens, e para efeito da regulação de questões relacionadas com as responsabilidades parentais, enuncia-se mais adiante no artigo 1906.º, n.º 7 que “O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles”. Daqui decorre que o interesse do menor é um critério operativo essencial na regulação das responsabilidades parentais, seja na fixação do seu cumprimento, seja no incumprimento. Por sua vez, face aos direitos constitucionais da filiação, decorrente do artigo 36.º da Constituição, as responsabilidades parentais surgem como um conjunto de direitos e deveres funcionais de assistência e prestação de cuidados, que vão mais além do então poder-dever paternal, afastando-se irremediavelmente do romanista patria potestas, enquanto poder absoluto e ilimitado.
No que concerne ao incumprimento das responsabilidades parentais, podemos constatar que o ordenamento jurídico, estabeleceu distintas tutelas, como seja a criminal ou a cível, sendo esta que aqui releva – quanto àquela temos como exemplo os crimes de maus-tratos (artigo 152.º -A Código Penal) ou de subtração de menor, designadamente através da recusa em entregá-lo ao progenitor a quem o mesmo está confiado (artigo 249.º, n.º 1, alínea c) Código Penal). No que diz respeito à tutela cível propriamente dita e regulada pelo RGPTC temos um feixe de expedientes, que passam pelo cumprimento coercivo e condenação em multa (artigo 41.º), pela execução da prestação de alimentos (artigo 48.º), a entrega judicial de criança (artigo 49.º), assim como a inibição (artigo 52.º), a suspensão (artigo 57.º) ou outras medidas limitativas das responsabilidades parentais (artigo 58.º).
No caso em apreço está em causa essencialmente o incumprimento regulado pelo citado artigo 41.º, n.º 1 do RGPTC, no qual se preceitua que “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos”.
Como tem sido posição dominante na jurisprudência e mais precisamente no Tribunal da Relação do Porto, o artigo 41.º da RGPTC corresponde a uma instância incidental no âmbito dos processos tutelares cíveis respeitantes às responsabilidades parentais ou de confiança de menor, o qual é dirigido ao incumprimento das obrigações que estejam judicialmente reguladas – neste sentido o Ac. TRP de 10/fev./2016 (Des. Vítor Amaral). E esta mesma jurisprudência tem afirmado, seja com o antecedente artigo 181.º, n.º 1 da OTM, seja no vigente artigo 41.º, n.º 1 do RGPTC, que o incumprimento das responsabilidades parentais, conducente às medidas coercivas e ao seu sancionamento através de multa, exige um comportamento essencialmente gravoso e reiterado por parte do progenitor remisso, não bastando uma ou outra falta sem antecedentes nem consequências – a título de exemplo os Ac. TRP de 03/out./2006 (Des. Henrique Araújo) 10/jan./2012 (Des. Cecília Agante) e de 26/mar./2019 (Des. Anabela Tenreiro), ambos em www.dgsi.pt. Para o efeito é necessário que o progenitor remisso tenha agido de um modo intencional ou negligentemente grave na produção da situação geradora de incumprimento, na medida em que coloca em causa o interesse da criança. Deste modo, apenas o incumprimento culposo merece um juízo de censura.
Estando apenas em causa a prestação de alimentos, que corresponde a uma obrigação de natureza creditícia, e havendo uma presunção legal de incumprimento culposa quando a mesma não é realizada, incumbe ao progenitor devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua – de acordo com o artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”. A jurisprudência tem sustentado este posicionamento, de que é exemplo o Ac. do TRC de 13/mai./2008 (Des. Jorge Arcanjo) cujo sumário é o seguinte: “Dado que a obrigação de alimentos assume natureza creditícia, uma vez provado o incumprimento presume-se a culpa do devedor de alimentos, nos termos do art. 799º, nº 1, do C. Civ., pelo que é o devedor quem terá de demonstrar que o não pagamento não procedeu de culpa sua.”
Retomando os factos provados, tais como ficaram assentes por esta Relação, não encontramos qualquer justificação para que o Requerido/Recorrente não tenha liquidado na integração a prestação mensal de setembro/2020 no valor de € 150,00 para cada um dos seus filhos, num total de € 300,00, liquidando apenas € 200,00. Mas o mesmo já não se pode dizer relativamente ao mês de outubro, porquanto nessa ocasião passou a residir numa fração habitacional cuja renda mensal importa em € 290,00. Assim, atendendo que o seu salário desse mês foi de € 771,62, caso o mesmo pagasse € 300 de prestação alimentar para os seus dois filhos, acrescido da referida renda de casa no valor de € 290,00, o que dá um total de € 590, o mesmo só passaria a dispor de € 181,62 para pagar água e luz, assim como para alimenta-se e pagar os transportes. Daí que não se possa considerar culposo o incumprimento parcial da prestação alimentícia respeitante ao mês de outubro de 2020, procedendo nesta parte o recurso em apreço.
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Na procedência parcial do recurso e tendo havido oposição da requerente, as suas custas ficam a cargo do recorrente, na proporção de 1/3, e da recorrida, na proporção de 2/3 – artigos 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresentamos o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto por B…, e, em consequência, altera-se a decisão recorrida considerando-se culposo o incumprimento parcial da prestação alimentar a cargo do mesmo recorrente/requerido no valor de cem euros (€ 100,00), que deverá ser realizada em cinco (5) prestações mensais de vinte euros (€ 20,00), a acrescer de imediato à prestação de alimentos mensal que vier a ser devida, notificando-se, através do tribunal recorrido, a referida entidade patronal para proceder a esse desconto no correspondente vencimento mensal, seguindo-se a transferência para a conta bancária indicada pela recorrida.

Custas do recurso a cargo do recorrente e da recorrida, na proporção de 1/3 para o primeiro e 2/3 para a segunda.

Notifique.

Porto, 23 de setembro de 2021
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço