Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MANUEL DOMINGOS FERNANDES | ||
| Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL DO JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES UNIÃO DE FACTO | ||
| Nº do Documento: | RP20242138/24.0T8MTS.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/21/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O segmento normativo previsto no art.º 122º, nº 1, al. g), da LOSJ, “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto. II - Os juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma ação declarativa cível em que é pedido o não reconhecimento judicial de união de facto duradoura. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 2138/24.0T8MTS.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores de Matosinhos-J2 Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes * I-RELATÓRIOAcordam no Tribunal da Relação do Porto: Intentou a Caixa Geral de Aposentações, IP no Tribunal Judicial da Comarca do Porto/ Família e Menores de Matosinhos-J2 a presente ação contra AA pedindo que seja declarada a inexistência de uma união de facto entre a Ré e BB. * Conclusos os autos foi proferida decisão que, julgando verificada a exceção de incompetência absoluta do juízo de família e menores para conhecer da ação absolveu a ré da instância. * Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:1ª- O tribunal a quo é o tribunal competente para julgar a presente ação. 2ª- A jurisprudência mais recente tem considerado que a união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas, pelo que, materialmente, a ação de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ, onde se determina que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações relativas ao estado civil das pessoas e família. * Foram dispensados os vistos. * II- FUNDAMENTOSO objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil. * No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:a)- saber se o tribunal recorrido tem, ou não, competência material para conhecer do objeto da ação. * A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTOA materialidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a que decorre no relatório que antecede e que aqui se dá integralmente por reproduzida. * III. O DIREITOComo supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir: a)- saber se o tribunal recorrido tem, ou não, competência material para conhecer do objeto da ação. A competência é um pressuposto processual que se determina em conformidade com a configuração do pedido e respetiva causa de pedir, tal como são apresentadas pelo autor. A sua determinação constitui, destarte, questão prévia ao conhecimento do mérito da causa e condiciona-o, uma vez que o juiz só pode conhecer de mérito se para tal lhe for reconhecida competência material. A competência em razão da matéria afere-se pela relação material controvertida submetida à apreciação do Tribunal, nos precisos termos unilateralmente afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado. Afere-se, por conseguinte, pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, por oposição com aquilo que virá a ser o “quid decisum”. “A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.[1] Por isso mesmo a competência dos tribunais judiciais fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes quer as modificações de facto que ocorram posteriormente, quer as modificações de direito, conforme dispõe o art.º 38.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário-LOSJ). Por outro lado, cabendo a causa aos tribunais comuns ou judiciais, e não aos tribunais pertencentes a outra ordem jurisdicional, a competência em razão da matéria determina-se por um critério residual, atribuindo-se a competência residual aos juízos locais cíveis para as causas que não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art. 130.º, n.º 1, da LOSJ). É inegável que a união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil. Como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] “[c]onjugando, naturalmente, o direito de constituir família com o de contrair casamento (n.º 1), a Constituição não admite todavia a redução de tal conceito à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”: para isso apontam não apenas a clara distinção das duas noções do texto do n.º 1 daquele preceito (“constituir família” e “contrair casamento”), mas também o seu n.º4 sobre a igualdade dos filhos, nascidos dentro ou “fora do casamento” (e não fora da família)”, acrescentando logo a seguir que “[c]onstitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família”. Ou, ainda, como se ponderou no Ac. TRC de 23/06/2020, processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1,[3] “as soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento». Por isso, bem pode dizer-se que, num quadro de normalidade (que, repete-se, é o de a competência em razão da matéria estar regulada na lei de organização judiciária), a ação de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) – “Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (…) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”. Mais ainda, como se assinalou no acórdão de 26/04/2021, desta Relação e desta Secção, processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1[4], era esse o entendimento prevalecente na jurisprudência. Portanto, a leitura atualista da citada norma, ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (art.º 1576.º do Código Civil; Lei 23/2010, de 30/agosto, e as alterações legislativas daí decorrentes com destaque para a Lei 7/2001, de 11/maio). O objeto da ação tem a ver, estruturalmente, com o não reconhecimento de uma alegada relação prolongada de união de facto–que se inclui no conceito moderno de família alargada.[5] Destarte, entendemos, em linha com o já decidido nesta Relação, que resulta ser materialmente competente para a presente ação o Juízo de Família e Menores. Aliás, o STJ vai neste exato sentido, trata-se do aresto de 16 de Novembro passado, onde, designadamente, se pode detetar um outro argumento: “o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.”[6] * Desta forma, concluindo-se pela competência material do Juízo de Família e Menores para a ação em causa, há que revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos em tal tribunal.* Procedem, assim, as conclusões 1ª e 2ª formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.* IV-DECISÃOPelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida ordena-se o prosseguimento da ação no Juízo de Família e Menores em que foi proposta, por ser o materialmente competente. * Sem custas (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil). * Porto, 21/10/2024Manuel Domingos Fernandes Anabela Morais (dispensei o visto) Mendes Coelho (dispensei o visto) _________________ [1] Cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91. [2] In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pág. 561, anotação ao artigo 36.º. [3] In www.dgsi.pt.. [4] In www.dgsi e de que foi relator o Desembargador Dr. A. Mendes Coelho aqui ora adjunto. [5] Neste mesmo sentido, leia-se, por todos, o Ac. da Relação de Coimbra de 15/07/2020, processo nº160/20.4T8FIG.C1, em www.dgsi. [6] Vide Acórdão STJ, processo nº 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em dgsi.pt.. |