Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9754/17.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
PRESUNÇÃO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP202102089754/17.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de atividade perigosa previsto no artigo 493, n.º 2 do CC é um conceito indeterminado, a preencher segundo as circunstâncias de cada caso concreto e ponderando, nomeadamente, o evento ou a lesão invocados pelo lesado e o acréscimo de risco que pressupõe o conceito.
II - O artigo 493, n.º 2 do CC estabelece uma presunção de culpa, mas não uma presunção de causalidade. 3- Sempre cabe ao lesado demonstrar a ocorrência de uma ação ou omissão do lesante que afete o seu direito ou um interesse protegido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 9754/17.4T8PRT.P1

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Recorrente – B…, Lda.
Recorrente – Companhia de Seguros C…, SA
Recorrida – D…

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
1 – D… instaurou a presente ação comum contra as rés B…, Lda. e E…, SA, pedindo a condenação destas no pagamento da quantia global de 17.871,11€ correspondente a danos patrimoniais, e não patrimoniais sofridos em consequência de uma queda de foi vítima na Estação de Serviço E1…, explorada pela 1.ª ré e da qual é distribuidora comercial dos produtos a 2.ª ré.

2 - Fundamentou a sua pretensão alegando, em síntese, que, no dia 3.01.2016, deslocou-se à estação de serviço identificada em 1., para abastecer com combustível o seu veículo automóvel, e quando se dirigia à loja para fazer o pré pagamento escorregou num canal de escoamento de líquidos existente no local ao longo do trajeto de acesso, o qual não estava com a cobertura de grelha adequada e habitual neste tipo de construção, acabando por cair desamparada no chão. O local não se encontrava limpo nem sinalizado como uma zona molhada e escorregadia. Em consequência da queda, fraturou o pulso, designadamente o rádio distal, tendo sofrido danos patrimoniais e morais em consequência desta queda.

3 - Regular e pessoalmente citadas as rés contestaram.

4 - A ré E…, SA contestou e, impugnando os factos alegados pela autora relativos à dinâmica do acidente e à falta de limpeza da estação de serviço, concluiu pela improcedência da ação.

5 - A ré B…, Lda. impugnou também os factos alegados pela autora relativos à dinâmica do acidente e à falta de limpeza da estação de serviço e concluiu pela improcedência da ação.

6 - Mais deduziu incidente de intervenção provocada da Companhia de Seguros C…, SA, que foi admitido.

7 – A interveniente, regularmente citada, contestou, aceitando a relação contratual com a 1.ª ré, impugnando os factos alegados pela autora e pedindo a improcedência da ação.
8 - Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho onde se fixou o valor da causa [17.871,11 euros], se identificou o objeto do processo [Responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos] e se elencaram os temas da prova [A elaboração dos temas da prova é feita, propositadamente, com recurso a conceitos de direito, pois trata-se de uma mera ferramenta de orientação da instrução, e não do objeto da pronúncia de facto, não havendo vinculação temática. Todos os factos alegados pelas partes sujeitos a prova livre serão objeto da instrução da causa.1. Dinâmica da queda na Estação de Serviço E1…. 2. Danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora. 3. Estado de limpeza do piso e sistemas de segurança para os seus utilizadores da estação de serviço. 4. Localização e visibilidade do canal de escoamento em “meia cana”].

9 – Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que assim decidiu: “julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: - condeno a ré B…, Lda., a pagar à autora a quantia global de 8.707,26 euros (oito mil setecentos e sete euros e vinte e seis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a sua citação até integral pagamento e contabilizados à taxa legal; - no mais, vai a ré B…, Lda. absolvida do pedido formulado pela autora; - absolver a ré E…, SA da totalidade do pedido formulado contra si pela autora”.

II – Do Recurso
10 – Inconformada, a interveniente Companhia de Seguros C…, SA, veio apelar e apresenta as seguintes Conclusões:
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11 – A autora respondeu ao recurso. Defendendo o a sua improcedência, conclui:
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12 –A ré B…, Lda. igualmente recorreu, pedindo a revogação da sentença e apresentando as seguintes Conclusões:
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13 – A autora, defendendo a sua improcedência, respondeu ao recurso e concluiu:
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14 – Os recursos foram recebidos nos termos legais e, nesta Relação, nada se alterou ao pertinente despacho que os recebeu.

15 – Os autos correram Vistos e nada observamos que obste ao conhecimento do mérito das apelações.

16 – O objeto dos recursos, tendo em conta as conclusões das apelantes, consistem em saber (recurso da ré) se os factos alegados na contestação, e identificados no recurso, devem ser considerados provados e (recurso da ré e da interveniente) se – independentemente da alteração da decisão sobre a matéria de facto -, a sentença deve ser revogada, porque não tem aplicação o disposto no artigo 493, n.º 2 do Código Civil (CC), porque a recorrida não provou a causalidade, pressuposto que a onerava, e, em todo o caso, nunca devia a 1.ª ré ter sido condenada no valor correspondente às diferenças salariais.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
17 – Ainda que uma das recorrentes haja impugnado a decisão relativa à matéria de facto, a circunstância de o ter feito apenas em relação a três artigos da sua contestação (que não foram dados como provados) permite-nos a transcrição imediata – mas sem prejuízo da eventual apreciação dessa impugnação – da factualidade, provada e não provada, que foi considerada na primeira instância.

18 – A primeira instância deu como provados os seguintes factos:
18.1 - A autora é farmacêutica especialista em análises clínicas exercendo a sua atividade ao serviço da sociedade F…, SA.
18.2 - Para além disso, explora uma propriedade agrícola dedicando-se à venda de cabazes com produtos hortícolas biológicos.
18.3 - A 2.ª ré faz parte de um grupo empresarial que é detentor da marca E2… e, além de outras atividades, fornece fuelóleos, gasóleos e gasolinas diretamente ou através da uma rede de distribuidores comerciais.
18.4 - A 1.ª ré explora o posto de combustível da 2.º ré denominado Estação de Serviço E1…, situado na …, …., no Porto, tendo celebrado com a 2.ª ré um acordo de “cessão de exploração”, procedendo, além do mais, à distribuição de combustível.
18.5 - Este posto de abastecimento dispõe de unidades de abastecimento, de um edifício integrado com a chamada loja de conveniência e equipamento para lavagem automática, manual e aspiração, funcionando em regime de self-service, sendo o condutor do veículo quem leva a efeito a operação de abastecimento do seu veículo, sem funcionário.
18.6 - Neste posto, algumas unidades de abastecimento implicam o prévio pagamento.
18.7 - A Estação de Serviço E1…, situado na …, …., no Porto está licenciada para o exercício da atividade desenvolvida através do alvará n.º …./P, de 7/10/2015 emitido pela Direção Geral de Energia e Geologia e do alvará n.º ALV/…/11/DMU de 8/8/2011 emitido pela CMP.
18.8 - O pavimento na zona de utilização/abastecimento dos produtos petrolíferos é impermeável e antiderrapante.
18.9 - A zona imediatamente antes da entrada da loja de conveniência, no interior da qual se encontra a caixa para pagamento, possui uma rampa de acesso com cobertura texturada e antiderrapante, inexistindo qualquer canal de escoamento a cortá-la.
18.10 - A zona de abastecimento, bem como as outras zonas de prestação de serviços, eram e são iluminadas por equipamento de tecnologia LED, o qual foi instalado no ano de 2014.
18.11 - No âmbito do acordo celebrado entre a 1.ª e a 2.ª ré, referido em 4., a 1.ª ré obrigou-se a “suas expensas, zelar pela conservação e limpeza do estabelecimento e, bem assim, pelas operações de manutenção, conservação e reparação constantes do anexo intitulado “lista de obrigações de manutenção do Posto de abastecimento”, as quais incluem “manter limpa e em bom funcionamento toda a zona acessível aos clientes: rodovia e zonas de abastecimento, limpeza diária do exterior das bombas, terminais exteriores, paredes e janelas, w.c., material promocional, ventilação diária de água nos tanques, limpeza periódica de caleiras e caixas, limpeza periódica das fossas separadoras e tanques de recolha de óleos usados, limpeza periódica de fossa cética.”
18.12 - No dia 3.1.2016, cerca das 18 horas e 15 minutos, a autora deslocou-se à referida estação de serviço, acompanhada por uma das filhas, para abastecer de combustível o seu veículo automóvel.
18.13 - Parou o veículo junto a uma das bombas de abastecimento e verificou que era necessário efetuar o pré-pagamento.
18.14 - Então dirigiu-se a pé à loja para fazer o pagamento do combustível antes de abastecer.
18.15 - Ao realizar o percurso a autora caiu num canal de escoamento de líquidos, “meia-cana”, que existe no local, o qual ladeia a baía de abastecimento desde o seu início até ao passeio que contorna a loja de conveniência e junto à entrada desta, apresentando uma forma côncava e não estando coberto por gradeamento.
18.16 - Esta “meia cana” destina-se à recolha de águas pluviais, derrames e escorrências que possam ocorrer na baía de abastecimento.
18.17 - A autora caiu desamparada no solo.
18.19 - No dia e hora referidos em 12., estava a chover copiosamente e o piso estava molhado.
18.20 - A autora calçava uma botas de sola de borracha.
18.21 - Em consequência da queda a autora sofreu fratura extra-articular do rádio distal do membro esquerdo.
18.22 - Foi transportada, pelo INEM, ao Hospital … onde realizou uma radiografia e foi feita anestesia do hematoma e manipulação, tendo o membro superior esquerdo sido imobilizado com tala gessada e suspensão braquial, tendo tido alta nesse mesmo dia.
18.23 - Foi reavaliada nos serviços do Hospital … no dia 9.1.2016, altura em que foi internada para ser submetida a uma cirurgia de osteossíntese com fios, por o estudo imagiológico ter revelado perda de redução com desvio não aceitável, tendo tido alta no dia 11.1.2016.
18.24 - Por sofrer de dor no pulso a autora no dia 6.2.2016 recorreu aos serviços de urgência do HSJ tendo sido encaminhada para a consulta externa de ortopedia.
18.25 - Em 19.2.2016, no HSJ, foram retirados os fios da osteossíntese e solicitado, pelo HSJ, ao médico assistente que a autora realizasse fisioterapia.
18.26 - A autora fez fisioterapia na G… de 2.3.2016 a 24.3.2016, tendo despendido a quantia de 136,00 euros
18.27 - E na H… de 23.4.2016 a 25.7.2016 e de 12.2016 a 10.10.2016, onde despendeu a quantia global de 1.519,50 euros, tendo aí sido recomendado que para “manutenção dos ganhos funcionais” obtidos com a fisioterapia deveria praticar natação ou hidroginástica.
18.28 - Em consequência da queda e das sequelas com que ficou a autora sente dificuldades em efetuar a manipulação de objetos com a mão esquerda, nomeadamente se tiver de manipular os objetos com movimentos de torção ou de rotação do punho esquerdo.
18.29 - Sente dores ligeiras no punho esquerdo com as mudanças climáticas, nomeadamente com a humidade, sendo uma dor que consegue aguentar bem sem haver necessidade de recurso a medicação analgésica.
18.30 - A autora sente algumas limitação nos atos da vida diária nomeadamente lavar as costas com a mão esquerda, tendo de recorrer à mão direita, apertar o sutiã ou fechos de correr, vestir casacos por dificuldades em que a mão esquerda consiga efetuar a preensão devida no casaco, pegar em objetos mais volumosos por não conseguir efetuar a rotação completa do punho esquerdo, na distribuição dos cabazes de produtos hortícolas biológicos por dificuldades em rodar a mão esquerda e em nivelar o cabaz com essa mão.
18.31 - Em consequência da queda e dos tratamentos médicos a que foi sujeita a autora ficou no membro superior esquerdo com três cicatrizes, orientadas verticalmente, nacaradas, duas mais superiores com 0,5cm de comprimento e outra mais inferior com 1cm de comprimentos, localizadas no bordo radial do punho, as quais não são dolorosas à apalpação e são visíveis à distância de contato social e de proximidade.
18.32 - Ficou, ainda, a padecer de mobilidade ativa do punho limitada nos últimos graus de supinação e pronação.
18.33 - A data da consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 10.4.2017.
18.34 - A autora esteve em situação de défice funcional temporário total por um período de 3 dias.
18.35 - A autora esteve em situação de défice funcional temporário parcial por um período de 461 dias.
18.36 - A autora teve um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 87 dias e um período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 377 dias.
18.37 - O quantum doloris foi fixado no grau 3 de 7.
18.38 - Em consequência da queda e das lesões sofridas a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física de 3 pontos.
18.39 - Logo após a queda a autora sentiu dores.
18.40 - A autora teve um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 87 dias e um período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 377 dias.
18.41 - A autora realizou na I… uma ecografia de partes moles do ombro esquerdo, em 16.4.2016 e duas incidências ao punho e mão esquerdos.
18.42 - No dia 12.5.2016 a autora submeteu-se a um RX aos ombros por sentir dor persistente.
18.43 - Com estes exames – 41. e 42. – a autora despendeu a quantia global de 23,90 euros.
18.44 - À data da queda a autora tinha 62 anos de idade e era saudável e ativa.
18.45 - Pela ida às urgências do HSJ no dia 3.1.2016 a autora liquidou a quantia de 22,60 euros.
18.46 - Entre janeiro e fevereiro de 2016 a autora, em taxas moderadoras no HSJ, suportou a quantia global de 83,10 euros.
18.47 - Entre janeiro e abril de 2016 a autora, em taxas moderadoras no Centro de Saúde, suportou a quantia global de 29,50 euros.
18.48 - Realizou duas consultas de ortopedia na I…, Lda., em 15.3 e 31.5/2016 nas quais despendeu a quantia global de 115,00 euros.
18.49 - A autora decidiu submeter-se a uma avaliação do ano corporal no que despendeu a quantia de 300,00 euros.
18.50 - Em consequência das lesões sofridas a autora teve de contratar uma segunda empregada para confecionar as refeições.
18.51 - Entre janeiro e março de 2016 a autora, em despesas médicas e medicamentosas desembolsou a quantia de 57,13 euros.
18.52 - Em consequência das lesões sofridas a autora foi obrigada adquirir roupa mais larga no que despendeu a quantia global de 171,90 euros.
18.53 - Entre janeiro e abril de 2016 a autora em consequência das lesões sofridas esteve impossibilitada de lavar o cabelo e de arranjar as unhas em casa tendo de o fazer no cabeleireiro onde despendeu a quantia global de 237,50 euros.
18.54 - A autora esteve de baixa médica desde 3.1.2016 até 29.3.2016, tendo recebido da SS, em 2.7.2016, a quantia global de 1.029,00 euros.
18.55 - A autora trabalhava como farmacêutica auferindo a retribuição mensal base de 600 euros, acrescida da quantia de 44,70 euros a título de diuturnidade e do subsídio de alimentação no valor diários de 6,40 euros.
18.56 - A autora dedicava-se, dedicava-se, a à produção e comércio de produtos biológicos, deslocando-se à quinta cerca de 2 vezes por semana, sendo que, por causa das lesões sofridas, deixou de comercializar esses cabazes durante cerca de 3 meses.
18.57 - Por causa da imobilização do braço a autora sentiu-se deprimida e ficou restringida na sua mobilidade, perdendo, nessa altura, a sua independência e autonomia.
18.58 - A 1.ª ré celebrou com a interveniente acessória um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. nos termos do qual passou a garantir a “responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da Lei Civil, seja imputável ao segurado exclusivamente na qualidade ou no exercício da atividade expressamente referida nas condições articulares, enquanto se encontrar devidamente habilitado para o exercício da mesma”, ficando assim garantidos “os danos patrimoniais e/ou não patrimoniais exclusivamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros, de cordo com o revisto nestas condições gerais, respetiva condição especial, cláusulas e condições particulares da apólice” até ao montante máximo de 1.350.000,00 euros, com uma franquia de 10% do valor do sinistro, com um valor mínimo de 375,00 euros.
18.59 - A interveniente acessória apreciou a reclamação apresentada pela autora que lhe foi participada pela 1.ª ré em 11.4.2016, tendo entendido não ser de cobrir o sinistro.

19 – E considerou como factos não provados:
“Todos os que contrariam ou excedem os acima expostos, bem como aqueles que não foram simplesmente demonstrados, nomeadamente:
19.1 - Os factos alegados nos artigos 12. (quanto ao facto de a meia cana no dia em questão estar revestida com óleo derramado), 13 (com exceção de a autora ter caído desamparado no solo), 14 (quanto ao piso da meia cana estar escorregadio e com óleo), 17 (quanto ao facto de o canal apresentar saliências), 18, 19, 35 (que a filha se tenha apercebido da queda), 65 (que a inscrição no ginásio tenha sido apenas e tão só por causa do acidente, das lesões sofridas e das sequelas com que ficou), 69 (que nos meses de janeiro a abril tenha despendido com a contratação de uma empregada a quantia global de 1.200,00 euros), 70, (que as despesas médicas e medicamentosas tenham sido no montante global de 74,98 euros), 71, 82, 83, 91, 99, 101, 109, 110, 129 e 130 da petição inicial.
19.2 - Os factos alegados nos artigos 9, 18 e 19 da contestação apresentada pela 2.ª ré.
19.3 - Os factos alegados nos artigos 10, 11, 12, 13 [10 - A circulação viária e pedonal no Posto de Abastecimento está devidamente evidenciada e demarcada por pinturas de segurança nas cores amarelo e preto, que orientam e encaminham. 11 - A Ré por intermédio dos seus funcionários realiza a inspeção periódica horária de todo o espaço do estabelecimento seja o interior e exterior verificando que a estrutura e seus componentes não apresentam danos ou alterações que possam colocar em risco bens e pessoas que ali circulem. 12 - Ademais e para além de uma funcionária que à data dos factos exercia funções de limpeza do estabelecimento, seja no exterior seja no interior, a Ré através dos seus funcionários – a quem deu ordens e instruções nesse sentido – procedia, em intervalos não superiores a uma hora, à inspeção do estabelecimento e sempre que necessário à limpeza e remoção de resíduos de combustível e seus derivados na zona de abastecimento e outras do estabelecimento e remoção e/ou sinalização de riscos que pudessem existir para os clientes caso verificassem a existência de qualquer alteração que não lograssem de imediato eliminar. 13 - No dia do alegado sinistro o funcionário da Ré encarregado da caixa assim procedeu assegurando a inexistência de qualquer obstáculo ou produto no piso e no acesso ao estabelecimento em concreto escassos minutos antes das 18.00 horas.][1], 14, 16, 20, segundo artigo 19 da contestação apresentada pela 1.ª ré.
19.4 - Os factos alegados nos artigos 19, 20, 22, 23, 24, 27, 28 e 29 da contestação apresentada pela interveniente acessória”.

Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

20 - Como decorre do disposto no artigo 662, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

21 - O preceito acabado de citar, na redação dada pelo novo CPC (em contraponto, desde logo, com o artigo 712 do CPC anterior) clarifica e reforça os poderes da Relação[2], ou alarga e melhora esses poderes[3], impondo um dever de alteração da decisão sobre a matéria de facto, reunidos que estejam os respetivos pressupostos legais, e de acordo com a sua própria convicção[4], desde que o impugnante tenha cumprido o ónus imposto pelo artigo 640 do CPC[5]. Efetivamente, com a atual redação, fica claro que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” e mantém-se, mas “agora com mais vigor e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão assente em prova que foi oralmente produzida e que tenha ficado gravada, afastando-se definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para os casos de “erro manifesto” ou de que não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1.ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação.[6]

22 - Como se referiu, a modificabilidade da decisão de facto, desde logo se pretendida pelo recorrente, exige a este um determinado ónus. Efetivamente, o artigo 640 do CPC, como decorre das várias alíneas do seu n.º 1, impõe ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto que especifique “Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” e ainda “A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. Acrescenta a alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito que “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

23 – Diga-se, a este propósito, e seguindo de perto António Santos Abrantes Geraldes[7], que temos vindo a citar, as exigências que recaem sobre o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto são “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação da motivação do recurso e síntese nas conclusões. b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam um decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos. (...) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.

24 – Acresce que, como é sabido, é entendimento largamente maioritário que relativamente ao recurso da decisão sobre a matéria de facto não existe um possível despacho de aperfeiçoamento e, como referem António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[8], tal situação, em lugar “de autorizar uma aplicação excessivamente rigorosa da lei, deve fazer pender para uma solução que se revele proporcionada relativamente à gravidade da falha verificada”. Dito de outro modo, as exigências impostas pelo artigo 640 ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto devem ser entendidas sem excessivo rigor, que de imediato e inúmeras vezes conduziria à imediata rejeição do recurso. O que a lei processual deixa transparecer e a jurisprudência do Supremo vinca é a opção por um verdadeiro duplo grau de jurisdição e a consequente prevalência da substância sobre a forma. Sem embargo – e naturalmente, até por respeito aos princípios da igualdade e da legalidade -, as imposições decorrentes do artigo 640 do CPC não podem ser letra morta e ultrapassadas ou ignoradas, como se não existissem. Aqui, como sempre deve suceder, imperará uma interpretação sensata e afastada dos extremos, sejam estes a de rejeição imediata ao primeiro e minúsculo incumprimento, seja, noutro sentido, a aceitação de toda e qualquer impugnação, independentemente do eventual lato incumprimento do ónus que impende sobre o impugnante.

25 - Tendo em conta as considerações anteriores, importa agora saber se o apelante recorre efetivamente da decisão relativa à matéria de facto, de que pontos recorre e, além disso, se a apreciação da sua impugnação se justifica, uma vez que, como se sumaria no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.01.2020[9], “Quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no artigo 640.º, n.º 1 do CPC, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, face ao disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC”.

26 – Entendemos que a apelante cumpre o ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto, mas também entendemos que os factos que a mesma pretendia agora ver como provados são irrelevantes para a solução do pleito, como se verá na fundamentação de Direito.

27 – Por consequência, mantemos integralmente a matéria de facto decidida em primeira instância.

III.II – Fundamentação de Direito
28 – A sentença recorrida julgou (parcialmente) procedente a ação e condenou a 1.ª ré no pagamento de uma quantia indemnizatória e compensatória à autora. Para tanto, deixou escrito o que agora se transcreve resumidamente e se sublinha: “O art. 11, n.º 4 da Portaria n.º 131/2002, de 9/2 que regulamenta a construção e exploração de postos de abastecimento de combustíveis dispõe (...) Por seu turno, o art. 15 estabelece que (...) Da análise da identificada Portaria concluímos que esta regulamenta onde devem os veículos estacionar para abastecer, estabelecendo as regras de segurança, de instalação das zonas de abastecimento de combustível e de drenagem, nada sendo estabelecendo quanto à delimitação de zonas para acesso dos consumidores à loja, nem que os canais de escoamento tenham de estar sinalizados ou tapados com uma grelha ou qualquer outro material que elimine a sua concavidade de forma a impedir que os utilizadores do espaço exterior da estação de serviço circulem na concavidade. (...) Dos vários pressupostos ora enunciados e de cuja verificação se encontra dependente a pretendida responsabilização dos réus, no caso sub judice, nenhum problema levantam, face à evidência da sua constatação, a existência de um facto voluntário do agente. Na verdade, esse facto do agente apresenta-se consubstanciado nos atos já descritos nos factos provados que se traduzem na queda da autora na estação de serviço explorada pela 1.º ré. Na verdade, não há dúvida que a autora caiu num canal de escoamento, na concavidade deste. Por outro lado, dúvidas também não há que tal canal de escoamento, ao contrário do afirmado, pela autora respeitava quer as regras de construção, quer os requisitos necessários para que o posto de abastecimento pudesse funcionar devidamente licenciado pelas autoridades competentes, pelo que o facto voluntário não pode ser imputado à 2.ª ré, na qualidade de proprietária da estação de serviço, porquanto esta cumpria todas as normas legais vigentes. Porém, o facto lesivo é de imputar à 1.ª ré, na medida em que esta não logrou demonstrar o cumprimento das regras de limpeza do piso da estação de serviço, nomeadamente na zona da baía de abastecimento e nos seus canais de escoamento. Na verdade, a 1.ª ré não demonstrou a sua limpeza a cada hora do local, nem que naquele dia tivesse fiscalizado o seu estado de limpeza 30 minutos antes do acidente. Ao contrário do afirmado, apenas se poderia afirmar que o estado de limpeza foi verificado às 16 horas, ou seja, cerca de duas horas antes da queda da autora, o que é manifestamente insuficiente para um dia de chuva intensa e numa zoa de abastecimento de combustível onde ocorrem sempre escorrências e derramamentos de combustível. Acresce que nenhuma das rés logrou provar que a queda da autora se tenha ficado a dever a qualquer fator interno da própria autora, desequilíbrio, tontura, quebra de tensão, distração, entre outros. Assim, o facto voluntário traduz-se na queda da autora provocada pela omissão de limpeza do espaço pela 1.ª ré. Perante os descritos factos, nada mais há a acrescentar quanto à sua voluntariedade. Foram atos queridos e mentalmente prefigurados.
No que concerne à ilicitude, a verificação da mesma não suscita dúvidas, posto que foi efetivamente ferida a integridade física da autora”.

29 – Prossegue a sentença recorrida: “Em matéria de responsabilidade civil extracontratual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (...) Um dos casos excecionais é o do art. 493, n.º 2 do Código Civil. A lei não dá uma definição concreta do que se deve entender por atividade perigosa, pelo que será em face das circunstâncias concretas de cada caso que a sua determinação deverá ser feita. Devendo tratar-se de uma atividade que “...mercê da sua natureza ou da natureza dos meios empregados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral” - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.a edição, Coimbra, 1991, pág. 473. No mesmo sentido Vaz Serra, in BMJ n.º 85, pág. 378, Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1990, pág.480 e acórdãos do STJ, de 04/10/1984 e de 12/02/2004, indgsi, acórdão da Relação do Porto, de 02/05/1991, in dgsi. O exercício da atividade de comércio de carburantes que implica o armazenamento e manipulação de materiais inflamáveis, traduz-se numa atividade que, “para além de poluente, é perigosa em si mesma e condicionadora do tráfego rodoviário, implicando que funcione em locais apropriados e em boas condições de segurança, o que tem de ser assegurado pelos serviços fiscalizadores da Câmara, quer quando concede a licença, quer posteriormente” - acórdão do TC n.º 316/2014, publicado no Diário da República n.º 91/2014, Série II de 13/5/2014. Ou seja, não há dúvidas que a exploração de uma estação de serviço que se dedica, entre outras, à comercialização de combustíveis que permitem a circulação rodoviária é uma atividade perigosa, nos termos e para os fins do art. 493 n.º 2 do Código Civil (...)
Ora, se a 2.ª ré logrou afastar a presunção de culpa que sobre si recaía, enquanto proprietária da estação de serviço (...) O mesmo não se diga em relação à 1.ª ré na medida em que esta não logrou demonstrar o cumprimento das regras de limpeza do piso da estação de serviço, nomeadamente na zona da baía de abastecimento e nos seus canais de escoamento (...)”.

30 – E terminando, relativamente à Interveniente: “Em face do ora decidido e tendo em conta o contrato de seguro celebrado entre a 1.ª ré e a interveniente acessória, aquela, uma vez transitada em julgado a presente sentença, terá direito de regresso sobre esta”.

31 – Como decorre da leitura da sentença, o tribunal recorrido entendeu que a factualidade apurada é reveladora da existência de um facto voluntário e lesivo imputável à 1.ª ré, que se traduziu “na queda da autora na estação de serviço”, que esse facto resultou da omissão de limpeza e que a culpa da 1.ª ré se presume, porque a mesma exerce uma atividade perigosa.

32 – Salvo o devido respeito, e adiantando as nossas conclusões, a interpretação da primeira instância, a aplicação do Direito aos factos provados, não nos parece acertada.

33 – Não nos parece acertada nem quanto à aplicação ao caso do disposto no artigo 493, n.º 2 do CC, nem sequer – ou seja, mesmo que essa aplicação fosse correta – na conclusão de que é imputável à recorrente a queda da autora.

34 – Dispõe o artigo 493, n.º 2 do CC que “Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir” (sublinhado nosso).

35 - Como refere Antunes Varela, “quanto aos danos causados no exercício de atividades perigosas (fabrico de explosivos, tratamento com rádio, transporte de combustíveis, navegação marítima ou aérea, etc.) o lesante só pode exonerar-se de responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar (...). O caráter perigoso da atividade (causadora dos danos) pode resultar (...) ou da própria natureza da atividade (fabrico de explosivos, confeção de peças pirotécnicas, navegação aérea, etc.) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de papel em guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, etc.).[10]

36 - Mário Júlio de Almeida Costa, referindo-se à consagração legal de uma “presunção de culpa em relação à responsabilidade”, esclarece que “A estatuição alarga-se aos danos decorrentes do exercício de uma atividade perigosa, “por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados” (ex.: fabrico de explosivos, navegação aérea, transporte de materiais inflamáveis, aplicação médica de raios X, ondas curtas). Deve tratar-se, pois, de atividade que mercê de qualquer dessas duas razões, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral.”[11]

37 –Como decorre do disposto no preceito que temos vindo a referir, o conceito de atividade perigosa é um conceito indeterminado, impondo que se atenda aos contornos de cada caso concreto.

38 – A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar atividades perigosas, nomeadamente, a prática de patinagem [STJ, 11.09.2012][12]; as corridas de cavalo e as de Karting [STJ, 18.09.2012[13] e 6.06.2002[14]]; a condução de aeronave [STJ, 3.11.2020[15]] e o comércio e armazenamento de inflamáveis [STJ, 28.02.2002[16]].

39 – Luís Manuel Teles de Menezes[17] Leitão dá conta de vários casos considerados, “na nossa jurisprudência” como correspondendo a uma atividade perigosa por “sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados”. Citamos alguns exemplos: atividades de monda química por meios aéreos, construção de barragens, fabrico de produtos pirotécnicos, abate de árvores, utilização de explosivos, realização de escavações no sopé de encosta com máquinas escavadoras, utilização de gruas na construção civil, demolição de placas com retroescavadora, corridas de todo o terreno, lançamento de fogo de artifício e captação, condução e transporte de água potável.

40 – Relativamente à construção civil, não tem sido entendido que ela mesma e por si só seja uma atividade perigosa, mas pode sê-lo quando, nomeadamente, implique trabalhos de escavação, uso de escavadoras ou martelos pneumáticos ou explosivos.[18]

41 – Respeitando àconstrução de uma conduta, o acórdão do STJ de 17.05.2017[19] refere no seu sumário o que – pelo interesse e concordância – se transcreve: “I – A responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa do agente por dolo ou mera negligência, incidindo sobre o lesado o ónus de provar a culpa (artigos 483 e 487 do CC).II - Ciente de que em muitos casos essa prova pode ser difícil, o legislador estabeleceu situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa presume-se. II - Um desses casos é precisamente o exercício de atividade tida por perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (artigo 493, n.º 2, do CC). IV - A lei não indica, porém, um elenco de atividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos dessa norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da atividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria atividade como a natureza dos meios utilizados. V - A perigosidade é apurada caso a caso, em função das características casuísticas da atividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base a «diretriz genérica» indicada pelo legislador. VI – Deve ser considerada perigosa a atividade que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior suscetibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes. VII - A atividade perigosa, geradora de culpa presumida, é todo o processo construtivo, globalmente levado a efeito com determinado meio dotado de elevada potencialidade para causar danos - escavações, abertura de vala, remoção de inertes, elevação e transporte de cargas (manilhas) – e não apenas cada uma dessas operações, isolada e atomisticamente considerada. VIII – A utilização de uma retroescavadora, adaptada com equipamento de elevação e transporte de cargas (grua), na construção de uma conduta de águas pluviais e de saneamento, através da execução, numa vala, de uma caixa de visita em manilhas de cimento, executada com a participação de uma retroescavadora, adaptada com equipamento de elevação e transporte de cargas (grua) é considerada atividade perigosa, atenta a natureza do meio utilizado e, nessa medida, enquadrável no âmbito do n.º 2 do artigo 493 do CC”.

42 – Em abono da conclusão de estarmos perante uma atividade perigosa no caso em apreço, quer a sentença quer a recorrida citam um acórdão do Tribunal Constitucional que, à primeira leitura, parece qualificar a atividade de comércio de carburantes como atividade perigosa.

43 – Trata-se do acórdão 316/2014, de 13.05.2014 e a leitura/citação do mesmo não é adequada à conclusão que dele foi retirada.

44 – Com efeito, tal acórdão aprecia a aplicação de um tributo municipal, e a sua definição enquanto taxa, no enquadramento da Lei de Bases do Ambiente e na consideração de a proteção do ambiente ser, ou não, um fim “extrafiscal legítimo”. Está em causa, essencialmente, o enquadramento legal do licenciamento dos postos de abastecimento de combustível e saber se o licenciamento anterior, deferido pela Administração central, obsta à cobrança de uma taxa municipal, uma vez que o Município ficou duradouramente obrigado pelo anterior licenciamento, mas compete-lhe agora a fiscalização da atividade. Acresce que a citação onde é feita a referência à atividade perigosa [Uma vez que o exercício da atividade de comércio de carburantes implica o armazenamento e manipulação de materiais inflamáveis, trata-se de uma atividade que, para além de poluente, é perigosa em si mesma e condicionadora do tráfego rodoviário, implicando que funcione em locais apropriados e em boas condições de segurança, o que tem de ser assegurado pelos serviços fiscalizadores da Câmara, quer quando concede a licença, quer posteriormente] é apenas a transposição para o acórdão das alegações do Município de Sintra junto do Tribunal Central administrativo do Sul.

45 – Em suma, e ressalvando melhor saber, parece-nos não ter apoio na doutrina ou na jurisprudência o entendimento de a revenda de combustíveis, a atividade das estações de serviço ser, de per si, uma atividade perigosa.

46 – Mas, para além disso, sempre haverá que olhar aos contornos do caso concreto, envolvendo necessariamente a caraterização do evento alegado pelo lesado. Aqui, admitindo-se que a atividade de uma estação de serviço pode envolver os riscos acrescidos de incêndio, de intoxicação ou de derrame de carburantes, já seria incompreensível dizer-se que a atividade de uma estação de serviço é perigosa em razão de envolver riscos (acrescidos) de queda para os utentes/consumidores.

47 – Por tudo, entendemos que ao caso não é aplicável o disposto no artigo 493, n.º 2 do CC, por falecer o pressuposto de, no caso concreto, estarmos perante uma atividade perigosa , em si mesma ou em razão dos meios envolvidos.

48 – Mas – importa agora acrescentar – mesmo que se definisse a atividade da 1.ª ré como perigosa e ainda que, no caso concreto, se admitisse a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 493 do CC teríamos de concluir, ainda assim, pela improcedência da ação e consequente procedência dos recursos.

49 – Efetivamente – e não obstante algumas divergências doutrinárias, que não têm reflexo, no entanto, na nossa apreciação – o que o n.º 2 do artigo 493 do CC consagra é “uma presunção de culpa do agente, contrariando-se, desta forma, a regra geral de direito delitual, segundo a qual cabe ao lesado a prova da culpa”.[20]

50 – Mas apenas, e ressalvando melhor saber, uma presunção de culpa, pois “a presunção de culpa no art. 493.º, n.º 2, não envolve simultaneamente a dispensa da prova do nexo de causalidade, exigindo-se, por isso, a demonstração de que a atividade perigosa foi juridicamente a causa da ocorrência daqueles danos”.[21]

51 – No caso presente, no entanto, independentemente da presunção de culpa que se aplicaria se a atividade fosse em concreto uma atividade perigosa, o que falece é um pressuposto da obrigação de indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual que não pode deixar de estar presente, de se revelar nos factos apurados, e quer estivéssemos em sede de aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 493, quer simplesmente a fazer uso do disposto no artigo 483 do mesmo diploma.

52 – Com efeito, o pressuposto primeiro – se assim podemos dizer – da responsabilidade civil por facto ilícito é “o facto voluntário do agente”, uma vez que a “situação de responsabilidade civil subjetiva” nunca pode estabelecer-se “sem existir um comportamento dominável pela vontade”[22], revista ele a forma de ação ou de omissão – artigos 483 e 486 do CC.

53 - Como refere Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, para haver responsabilidade “é necessário que haja uma lesão de um bem jurídico ou de um interesse protegido que seja imputável a um sujeito diverso daquele que o titula”, ou seja, é “imperioso saber se a lesão do direito pode ou não ser reconduzida ao comportamento do pretenso lesante”.[23]

54 – Trata-se aqui precisamente da causalidade “fundamentadora da responsabilidade”, aquela que “liga o comportamento do agente à lesão do direito ou interesse protegido”.[24]

55 – Dito isto, regressemos aos factos provados que aqui importam:
- A 1.ª ré explora o posto de combustível da 2.ª ré denominado Estação de Serviço E1… (...) [que] dispõe de unidades de abastecimento, de um edifício integrado com a chamada loja de conveniência e equipamento para lavagem automática, manual e aspiração, funcionando em regime de self-service, sendo o condutor do veículo quem leva a efeito a operação de abastecimento do seu veículo.
- O pavimento na zona de utilização/abastecimento dos produtos petrolíferos é impermeável e antiderrapante [e] a zona imediatamente antes da entrada da loja de conveniência, no interior da qual se encontra a caixa para pagamento, possui uma rampa de acesso com cobertura texturada e antiderrapante, inexistindo qualquer canal de escoamento a cortá-la [e] a zona de abastecimento, bem como as outras zonas de prestação de serviços, eram e são iluminadas por equipamento de tecnologia LED, o qual foi instalado no ano de 2014.
- No dia 3.1.2016, cerca das 18 horas e 15 minutos, a autora deslocou-se à referida estação de serviço, acompanhada por uma das filhas, para abastecer de combustível o seu veículo automóvel. Parou o veículo junto a uma das bombas de abastecimento e verificou que era necessário efetuar o pré-pagamento. Então dirigiu-se a pé à loja para fazer o pagamento do combustível antes de abastecer [e] ao realizar o percurso a autora caiu num canal de escoamento de líquidos, “meia-cana”, que existe no local, o qual ladeia a baía de abastecimento desde o seu início até ao passeio que contorna a loja de conveniência e junto à entrada desta, apresentando uma forma côncava e não estando coberto por gradeamento.
- Esta “meia cana” destina-se à recolha de águas pluviais, derrames e escorrências que possam ocorrer na baía de abastecimento. A autora caiu desamparada no solo.
- No dia e hora referidos, estava a chover copiosamente e o piso estava molhado.
- A autora calçava uma botas de sola de borracha [e] em consequência da queda a autora sofreu fratura extra-articular do rádio distal do membro esquerdo.

54 – Da leitura da sentença parece resultar que se considerou verificado o facto lesivo, embora não se perceba a quem está a ser imputado: “Dos vários pressupostos ora enunciados e de cuja verificação se encontra dependente a pretendida responsabilização dos réus, no caso sub judice, nenhum problema levantam, face à evidência da sua constatação, a existência de um facto voluntário do agente. Na verdade, esse facto do agente apresenta-se consubstanciado nos atos já descritos nos factos provados que se traduzem na queda da autora na estação de serviço” (sublinhado nosso).

55 – Já se referira, na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto que “não se dúvida que a autora caiu no exterior da estação de serviço, quando se dirigia à loja de conveniência para proceder ao pré-pagamento do combustível com que pretendia abastecer o seu veículo automóvel, tendo feito o percurso pela frente dos veículos, ou seja por onde se situava a meia cana, tendo caído nesse canal de escoamento de líquidos, embatendo com o pulso contra o solo (atente-se no nexo causal estabelecido no relatório da perícia médico-legal realizada) após o que foi levada para o interior da loja por outros clientes da estação de serviço.
Por outro lado, atente-se que nenhuma das rés colocou em causa que a autora tenha caído no exterior da estação de serviço. A não prova dos factos relativos à dinâmica da queda, quer os alegados pela autora, quer os alegados pelas rés e pela interveniente acessória resultaram da circunstância de nada mais se ter demonstrado para além do que foi incluído na matéria provada, não tendo sido feita qualquer prova quanto ao facto da autora estar a correr para fugir da chuva ou estar a fazê-lo distraída. No que se refere à existência de óleo derramado e sujidade na meia cana a autora não logrou demonstrar tal facto. Porém, também as rés não lograram demonstrar que estivesse limpa (...)” – sublinhados nossos.

56 – Sem necessidade de grandes acrescentos, cumpre dizer que não acompanhamos a decisão recorrida e discordamos da sua fundamentação. Com efeito, à pergunta, Que ação ou omissão provocou a queda da autora, a resposta é, Não sabemos: os factos não o revelam.

57 – Diz-se na decisão, porém, que as rés não provaram que o pavimento estivesse limpo ou que a queda foi provada por qualquer “fator interno da própria autora, desequilíbrio, tontura, quebra de tensão, distração, entre outros”, mas isso significa que se podia exigir ao lesante, para além de, hipoteticamente e caso a culpa se presumisse, nos termos do n.º 2 do artigo 493 do CC, ter de provar que empregou todas as providências para evitar o dano, e também provar a causa da queda (evento), fosse ela distração, desequilíbrio ou – como se diz – qualquer outro (“entre outros”).

58 – Em conclusão, a atividade levada a cabo pela 1.ª ré não é uma atividade perigosa, no sentido do disposto no n.º 2 do artigo 493 do CC, tanto mais que o evento alegado (queda no trajeto entre o abastecimento e a loja para pré-pagamento do combustível) não se enquadra em qualquer dos perigos potenciais dessa atividade, mas mesmo que houvesse culpa presumida, continuava por demonstrar a imputação ao lesante de uma ação ou omissão causadora do evento.

59 – Em conformidade, ambos os recursos procedem, uma vez que os factos apurados não permitem responsabilizar a ré pela reparação dos danos sofridos pela autora e mostra-se prejudicada a apreciação de outras questões, nomeadamente a relativa às diferenças salariais.

60 – As custas do recurso, tal como as da ação, são devidas pela autora/recorrida, atento o seu decaimento.

IV – Dispositivo:
Pelo que se deixou dito, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedentes ambas as apelações (da 1.ª ré e da Interveniente) e, em conformidade, revoga-se a sentença proferida em 1.ª instância e absolve-se a ré/ recorrente (naturalmente com reflexo no direito de regresso que fundou o chamamento da Interveniente) do pedido formulado pela autora.

Custas da ação e dos recursos a cargo da recorrida.

Porto, 8.02.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
_____________
[1] Aqui transcritos, atento o objeto do recurso da 1.ª ré.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 241.
[3] Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2015, pág. 162.
[4] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 538.
[5] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 796, anotação 4.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, pág. 331.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos..., 6.ª Edição, cit., pág. 196/197.
[8] Ob. cit., pág. 770, anotação 2.
[9] Relator, Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, Processo n.º 4172/16.4TFNC.L1.S1, in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXVII, Tomo I/2020, págs. 13/16.
[10] Das Obrigações em geral , Vol. I, 8.ª edição, Almedina, 1994, págs. 605/606.
[11] Direito das Obrigações, 12.ª Edição Revista e Actualizada, 7.ª Reimpressão, Almedina, 2019, págs. 587/589.
[12] Tratou-se da prática de hóquei em patins. Relator, Conselheiro Fernandes do Vale, dgsi.
[13] Apreciou um caso de corridas de cavalo a galope. Relator, Conselheiro Gregório de Jesus, dgsi.
[14] Karting na via pública. Relator, Conselheiro Abel Freire, dgsi.
[15] Relatora, Conselheira Maria José Vaz Tomé, dgsi.
[16] Tratou-se de um caso em que ocorreu um incêndio em pez louro, quando as embalagens que continham o produto estavam a ser paletizadas com um instrumento que produzia chamas. Relator, Conselheiro Óscar Catrola, dgsi.
[17] Direito das Obrigações, Volume I, 13.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 293, nota 721.
[18] A propósito, citamos o que se escreveu no acórdão desta Relação do Porto, de 23.03.2015 (dgsi), com idênticos, relator e 1.º adjunto, aos ora subscritores: “Tendo sempre presente que “não se pode confundir, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de fevereiro de 1996, “a eventual perigosidade do evento com o que seria próprio da atividade ou dos meios”, entendemos, tal como entendeu a 1.ª instância que a perigosidade da atividade ou dos meios tem que se apurar em cada caso ou, o mesmo é dizer, a atividade aqui em causa (de construção civil ou obras públicas) não é necessariamente uma atividade perigosa, para efeitos do disposto no artigo 493, n.º 2 do CC. Aliás, a jurisprudência citada pela apelante (e ressalvando o último dos acórdãos que aqui vamos referir), não traduz uma posição diferente daquela que foi defendida na sentença recorrida, nem nos parece desconforme ao nosso entendimento sobre a questão agora em apreço. Vejamos: No acórdão do STJ de 2.06.2009 (Relator, Conselheiro Fonseca Ramos, dgsi) a matéria de facto revela que se estava perante uma propriedade particular, mas aberta à circulação pública e onde existia um caminho que estava cortado em toda a sua largura por uma vala de 3 metros de largura e 1,5 metros de profundidade, sem qualquer sinalização prévia, que assim se mantinha há vários anos e onde já haviam ocorrido outros acidentes; No acórdão da Relação de Lisboa de 19.02.2008 (Relator, Desembargador Abrantes Geraldes, dgsi) está sumariado que a construção civil, em si mesma, não constitui uma presunção de culpa para o construtor[53]; No acórdão da relação de Coimbra de 19.06.2013 (Relator, Desembargador Arlindo Oliveira, dgsi) aprecia-se um caso de uma vala, aberta para instalação de condutas de gás, com cerca de 80 cm de profundidade e 30 cm de largura, não sinalizada e sem qualquer proteção e em que os transeuntes tinham obrigatoriamente de passar, atravessando à frente de uma máquina e respetiva pá e passando sobre a vala aberta[54]. Finalmente, em relação aos acórdãos desta Relação (todos em dgsi), que a apelante cita: O de 27.05.2014 (Relator, Desembargador Rodrigues Pires) considera que a atividade de construção civil, na maior parte das situações, não tem caráter perigoso, mas que como tal deve considerar-se o caso em que se utiliza um andaime na reparação de um edifício, andaime colocado no passeio, sem sinalização nem vedação; o de 14.03.2013 (Relator, Desembargador Aristides Rodrigues Almeida) aprecia o caso em que são abertos buracos na rua de uma povoação, para a colocação de sinais de trânsito, e tais buracos são deixados abertos durante a noite, sem sinalização nem vedação do local; o de 9.01.2007 (Relator, Desembargador Marques Castilho) refere, efetivamente, que “a atividade de escavação do solo, porque consubstancia uma acrescida probabilidade de causar danos, traduz-se numa atividade perigosa pela sua própria natureza.”
[19] Relator, Conselheiro António Piçarra, dgsi.
[20] Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade – A Precaução como fundamento da Imputação Delitual?, Almedina, 2006, pág. 373.
[21] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações... cit., págs. 293/294.
[22] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações..., cit., pág.257.
[23] Lições de Responsabilidade Civil, Principia, 2017, pág. 253.
[24] Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, Lições de..., cit., págs. 249/250. Segundo aquela a primeira causalidade, já “a segunda [a causalidade preenchedora da responsabilidade] liga a lesão do direito ou interesse protegido aos danos consequenciais (segundo dano) verificados”.