Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1552/18.4T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: TRANSACÇÃO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP202002061552/18.4T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A par dos sujeitos processuais, é de admitir a intervenção de terceiros na transação (art.º 1248º do Código Civil), mesmo sem formalização processual incidental, desde que tenham interesse direto na resolução global do litígio; a transação também pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito ou direitos controvertidos, sem recurso às normas que condicionam a alteração do pedido. Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se obtêm através da homologação judicial da transação.
II - A legitimidade passiva para a ação não se confunde com a legitimidade substantiva no negócio que a transação encerra.
III - Se, nos termos da ação, tal como o A. a configura, não há preterição de litisconsórcio necessário passivo, a falta de intervenção de um terceiro indispensável na transação pela qual as partes puseram fim ao litígio e constituíram direitos novos sobre determinadas frações autónomas, não é qualificável como falta daquele pressuposto processual, mas como ilegitimidade substantiva para o negócio da transação.
IV - Não pode esta questão ser apreciada em recurso ordinário de apelação da sentença homologatória da transação, porque é nova relativamente às questões sobre as quais o tribunal a quo se debruçou e não é do conhecimento oficioso.
V - Têm as partes ao seu alcance, se nisso tiverem interesse, mesmo após o trânsito em julgado da sentença homologatória, a ação autónoma e o recurso de revisão, nos termos dos art.ºs 291º, nº 2, e 696º, al. d), do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1552/18.4T8PVZ.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim – J6

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, divorciado, NIF ………, residente na Rua …, nº …, Ap. …, ….-… Santo Tirso, instaurou ação declarativa comum contra:
C…, divorciada, residente na Rua …, nº …, Ap. …, ….-… Santo Tirso, e,
D…, divorciado, NIF ………, residente na …, nº .., 3º Dt Frt, Santo Tirso, alegando essencialmente que, a 1ª R., sua mãe, através de um documento de procuração viciada por nulidade, por não observar a forma legal para a prática do ato em apreço, vendeu ao 2º R. --- seu filho e irmão do A. ---, em representação do demandante, metade indivisa de vários imóveis de que o A. e o R. eram comproprietários, razão pela qual agiu sem poderes representativos.
Como o A. não ratifica o negócio de compra e venda dos seus direitos, tal negócio é ineficaz e inválido, sendo mesmo inexistente tal ato.
Acresce que, apesar da menção ali feita constar de que os referidos direitos do A. foram pagos, por transferência bancária, o A. nada recebeu.
Caso se entenda que a procuração é válida, o preço global declarado da compra e venda é manifestamente inferior ao real valor dos bens, sendo que os RR. agiram com manifesta má fé e ofensa dos bons costumes, a 1ª R. ainda em abuso de representação, o que determina as mesmas consequências da representação sem poderes, prevista no artigo 268º do Código Civil, cujo negócio o autor não ratifica, tornando-se de igual modo o negócio ineficaz e incapaz de produzir os seus efeitos.
Alega ainda o A. um conjunto de prejuízos por ele sofridos, designadamente pela privação do uso de um dos imóvel, em que residia, e da utilização de bens pessoais nele existentes.
Deduziu o seguinte pedido:
«Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverá a presente ação ser julgada provada e procedente e, por via dela:
a) Declarar-se a nulidade do documento intitulado de “procuração”, datado de 19 de Maio de 2010 e objeto do reconhecimento de assinatura pela Sra. Advogada E…, registado na plataforma eletrónica da Ordem dos Advogados sob o número …./…;
b) Declarar-se que a primeira ré agiu sem poderes para representar o autor na escritura pública de compra e venda celebrada em 6 de Setembro de 2018 no Cartório Notarial de Santo Tirso com o segundo réu, tendo por objeto os imóveis melhor descritos no artigo 8º da presente petição inicial e na referida escritura pública e, consequentemente, que o negócio jurídico celebrado é inválido e ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos;
c) Subsidiariamente, declarar-se que a primeira ré agiu com abuso de representação na escritura pública de compra e venda celebrada em 6 de Setembro de 2018 no Cartório Notarial de Santo Tirso com o segundo réu, tendo por objeto os imóveis melhor descritos no artigo 8º da presente petição inicial e na referida escritura pública e, consequentemente, que o negócio jurídico celebrado por via de tal escritura pública é inválido e ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos;
d) Declarar-se, em todo o caso, que a escritura pública em apreço é inválida e não produz quaisquer efeitos jurídicos;
e) Declarar-se que o autor é dono e legítimo comproprietário dos imóveis melhor descritos no artigo 8º da presente petição inicial e na referida escritura pública que instrui o presente articulado;
f) Condenar-se os réus a restituir os mencionados prédios ao autor e absterem de praticar quaisquer atos que impeçam, limitem ou diminuam o direito de propriedade do autor sobre tais prédios;
g) Ordenar-se o cancelamento da Ap. 70 de 2018/09/07 da Conservatória do Registo Predial de Penacova e, bem assim, de todas as inscrições e registos realizados com fundamento na escritura pública em apreço, descrita na al. b) antecedente, e, bem assim, o cancelamento de todas as inscrições e registos posteriores à mesma;
h) Condenar-se os réus a pagar solidariamente ao autor quantia não inferior a 5.000,00€ a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros calculados à taxa legal cível, desde 6 de Setembro de 2018 até completo pagamento;
i) Condenar-se os réus a pagar solidariamente ao autor quantia não inferior a 75,00€ por cada dia de privação do imóvel, até que o mesmo lhe seja restituído, e quantia não inferior a 40,00€ por cada dia de privação dos seus bens e pertences pessoais, até igual momento, a apurar em incidente de liquidação ulterior de sentença;
j) Tudo com as demais consequências;» (sic)
Citados os RR., a R. C… contestou a ação e deduziu reconvenção. Impugnou parcialmente os factos alegados pelo A., apresentando a sua versão dos acontecimentos e defendendo a validade e a eficácia da procuração através da qual o A. a constituiu sua representante para a venda do seu quinhão nas frações autónomas objeto da compra e venda que concluiu com o comprador 2º R.
Não é devida qualquer quantia pela privação do uso de um imóvel de que, afinal, o A. é comproprietário co o 2º R.
O A., ao invocar a invalidade da procuração conferida à 1ª R., assim como a nulidade da compra e venda do seu direito de comproprietário das frações a que alude o negócio jurídico, ao exigir os valores pela privação da habitação e dos seus objetos pessoais, assim como ao invocar o seu direito de propriedade sobre as frações, ainda na perspetiva da contestante, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, e pelos bons costumes, o que o constitui na obrigação de a indemnizar por quantia a apurar em execução de sentença.
Por via reconvencional, alega que as frações não pertenciam ao A. e ao 2º R., mas à R. reconvinte e que, aqueles figuraram como adquirentes das mesmas para que a mãe não ficasse prejudicada no processo de divórcio, não podendo ter bens em seu nome nem contas bancárias. Daí a procuração. Foi a sua mãe, 1ª R., que liquidou o preço e todas as despesas inerentes à aquisição das frações, designadamente IMI e o IS.
A compra e venda foi simulada.
Terminou assim:
«a ação improceder, por não provado e consequentemente:
a) Ser declarada válida a compra e venda feita pela 1ª Ré ao 2º Réu, em virtude da representação do A estar formalmente correta, mantendo-se assim o registo efetuado em nome do 2º Réu.
Caso assim não se entenda,
b) deverá o A ser condenado a pagar á 1ª Ré todos os valores por esta despendidos com a manutenção das frações, designadamente IMI; Seguros; condomínio, cujo montante se relega para execução de sentença.
E,
Deverá ainda o pedido reconvencional ser procedente por provado e, consequentemente serem
c) declaradas nulas, por simuladas, ou/e por ofenderem os bons costumes ou defraudarem a lei, as compras e vendas aparentemente tituladas nas escrituras juntas sob os nºs 3 e 4.
d) quando assim se não entenda, que sejam declaradas nulas essas compras e vendas declaradas naquelas escrituras porque na verdade não foram acordadas, nem para elas foram estipulados e pagos os preços delas constantes, nem alguns outros;
e) que seja ordenado o cancelamento das inscrições dos artigos 70° e 71° da reconvenção e de qualquer outros registos que porventura venham a ser feitos a partir ou com base nas escrituras referidas;
Se os pedidos não procederem quanto às duas compras e vendas deve ser reconhecido:
f) que foi a 1ª Ré, quem pagou os valores em causa, tendo os outorgantes acordado na divergência da vontade declarada.
g) declarar a validade dos negócios dissimulados encobertos pelos negócios simulados, correspondentes à compra e venda do direito de propriedade relativamente aos prédios referidos, sendo o valor do preço da venda pago pela 1ª Ré na qualidade de compradora;
h) ser reconhecido á 1ª Ré a posse e o direito de propriedade sobre as frações identificadas na Reconvenção.
Em qualquer dos casos
i) deverá sempre o A condenado como litigante de má fé pela sua conduta integradora no abuso de direito.
j) Ser o A condenado em custas nos termos do RCP.» (sic)
O A. replicou na matéria da reconvenção, negando a simulação negocial, mais tendo desenvolvido o seu articulado e concluído pela sua improcedência.
Após algumas vicissitudes, foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado o objeto do processo, foram considerados assentes determinados factos e foram alinhados os temas de prova. O tribunal pronunciou-se ainda sobre os meios de prova e designou data para a audiência final.
Naquela audiência, que teve lugar no dia 17.10.2019, O Ex.mo Juiz tentou conciliar as partes, tendo elas acordados sobre o objeto do litígio nos seguintes termos:
«
As partes reconhecem que a 1ª ré agiu com abuso de poderes de representação na outorga da escritura pública de compra e venda celebrada em 06.09.2018 no Cartório Notarial da Drª F…, em Santo Tirso, tendo por objecto os imóveis melhor descritos no artº 8º da petição inicial e na mencionada escritura pública constante do doc. nº 1 que instrui a petição inicial.
2º.
Consequentemente, reconhecem que o mencionado negócio jurídico de compra e venda é ineficaz em relação ao autor, não produzindo quaisquer efeitos e, desse modo, os ditos imóveis manter-se-ão em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa entre o autor e o seu irmão, D…, aqui 2º réu.
Em função do exposto deverá ordenar-se o cancelamento de todos os registos provenientes da dita escritura pública de compra e venda e melhor descritos sob a apresentação nº 70 de 07-09-2018, abrangendo as 6 frações supra identificadas.
O autor e o réu, D…, na qualidade de comproprietários, obrigam-se a constituir a favor da sua mãe C… um direito de uso e habitação vitalício e exclusivo sobre as frações em apreço.
O autor e o réu, D…, obrigam-se a dar de arrendamento as frações, ou autorizam desde já a ré, C…, a fazê-lo, para sustento e satisfação de eventuais necessidades.
Sem prejuízo da posição que assumiu na petição inicial, o autor declara revogar, por este ato, a procuração outorgada em 19.05.2010 a favor da sua mãe, C…, a qual, por sua vez, declara desde já dela tomar conhecimento.
Em função do presente acordo os demais pedidos deduzidos pelas partes ficam prejudicado, declarando que nada mais tem a exigir ou a pretender por conta do objecto do presente litígio.
Obriga-se o autor a, no prazo máximo de 30 dias, remover todos os seus haveres que ocupam as frações já descritas em 1º.
Custas em dívida a juízo em partes iguais, prescindindo ambas de custas de parte, sem prejuízo do apoio judiciário que as partes beneficiam.» (sic)
*
Seguidamente, o Ex.mo Juiz ditou a seguinte sentença para a ata:
«Atento o disposto nos artigos 277º, al. d), 283º, nº 2, 284º, 289º "a contrário", 290º, nºs 1 e 4, todos do C.P.C., e dada a qualidade dos intervenientes e disponibilidade do direito em litígio, julgo válida e eficaz a presente transacção, pelo que a homologo pela presente sentença, nos termos supra consignados, mais decidindo:
1- Declaro ineficaz em relação ao autor o negócio jurídico de compra e venda, onde figura como vendedor, celebrado pela escritura pública de 06.09.2018, onde outorgou como seu representante a aqui ré, C….
2- Consequentemente, determino o cancelamento dos registos de aquisição a favor do réu D… efectuados pela Ap. nº 70 de 07.09.2018, relativos ás frações designadas pelas letras "AR" AX", "AZ", "BA" e "BB", do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, sob o nº 2289/ 20050324, bem como bem como o cancelamento do registo de aquisição efectuado pela ap. N.º 70 de 7.09.2018, relativo á fração "O" do imóvel descrito na mesma Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº 2920/20051116, ambos da freguesia de Santo Tirso;
3 – Reconheço, como validamente constituído, o direito de uso e habitação supra acordado pelas partes;
4- Mais se condena, Autor e réu no cumprimento das demais obrigações por ambos assumidas no âmbito da presente transação.
Vão os autos ao MP para efeitos de custas uma vez que a ré litiga com o benefício de apoio judiciário.
Após trânsito em julgado do presente despacho, remeta certidão á Conservatória para efeitos cancelamento das inscrições de aquisição acima referidas, para o cancelamento dos registos da ação e da reconvenção e ainda para o registo a favor da Ré do direito de uso e habitação acima constituído.
(…).»
Ouvido o Ministério Público sobre a distribuição e custas --- por a 1ª R. litigar com o benefício do apoio judiciário ---, não se opôs ao acordo da sua distribuição em partes iguais, pelo que, em 24.10.2019, foi proferido o seguinte despacho:
«Em complemento à sentença homologatória da transação que consta da antecedente acta da sessão da audiência de julgamento, condeno Autor e Réus em custas, em parte iguais, nos moldes acordados.»
Em 12.11.2019, o R. D… juntou certidão do seu assento de casamento, onde consta averbado o seu divórcio decretado por sentença de 15.5.2017, relativamente ao seu cônjuge G….
Na mesma data, a 1ª R., C…, invocou a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, nos termos dos art.ºs 33º e 34º do Código de Processo Civil, alegando que o 2º R. se encontrava casado com G…, em regime de comunhão de adquiridos, aquando da aquisição das frações, pelo que estas fazem parte do acervo de bens comuns do casal que ainda não partilharam. Para que a transação produza o seu efeito útil normal é necessário que a G… seja chamada ao processo e aceite os termos da transação, vinculando-se à mesma, sem o que esta não é válida.
Entende que, caso haja recusa por parte daquela, deverá a transação ser declarada nula por preterição de um pressuposto processual.
O tribunal indeferiu o requerimento, por falta de fundamento legal, quer para fazer intervir o ex-cônjuge do 2º R., quer para, naquela sede, ser apreciada a invocada nulidade.
*
Inconformada com a sentença homologatória da transação, dela a 1ª R. interpôs recurso, em cujo requerimento produziu alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
……………………………
……………………………
……………………………
Nesta sua perspetiva, entende que a sentença deve ser revogada e substituída por outra que considere inválida e ineficaz a transação celebrada e, em consequência, todos os efeitos da sentença homologatória proferida em 17/10/2019.
*
O A. ofereceu contra-alegações que sintetizou assim:
«Em conclusão, a douta sentença homologatória não padece de nenhum vício que coloque em causa a sua validade, sendo o objeto da transação válido, celebrado por partes com legitimidade, dentro da sua legitimidade e com idoneidade negocial.
As constituíram o direito de uso e habitação a favor da recorrente e entenderam ser desnecessária a intervenção daquela ex-cônjuge do réu D…, cuja obrigação foi constituída de modo válido e produz efeitos “inter partes”.
A eventual “ineficácia” de tal direito – que se desconhece existir - não só não é hábil a colocar em causa a validade do direito de uso e habitação constituído como também não poderá inviabilizar os demais termos da transação celerada entre as partes, que terá necessariamente que ser considerada válida e eficaz, produzindo os seus efeitos.» (sic)
Defendeu deste modo a confirmação do julgado.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da 1ª R., acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 634º e 639º do Código de Processo Civil).

Está para apreciar e decidir se a sentença homologatória da transação operada entre as partes processuais deve ser substituída por outra que considere a transação inválida e ineficaz, por indisponibilidade das partes em relação ao objeto do litígio e ilegitimidade passiva dos RR., por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
*
III.
Os factos relevantes são de índole processual e constam do relatório que antecede.
*
IV.
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Diz-se transação o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (art.º 1248º do Código Civil). É um contrato oneroso e sinalagmático. Também é comutativo, porque as concessões realizadas se apresentam habitualmente como certas em termos de existência e conteúdo.
A transação tem como efeito principal a resolução do litígio entre as partes e como efeitos acessórios a constituição, modificação e extinção dos direitos que são instrumentais a essa resolução.
Um vez realizada a transação, seja judicial, seja extrajudicialmente, esta pode ser declarada nula ou anulada sempre que se verifique alguma situação que acarrete essa consequência, nos termos gerais (art.º 291º, nº 1, do Código de Processo Civil).
De acordo com o nº 2 daquele mesmo art.º 291º, o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à sua anulação, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.
Constituído que fica um contrato por meio da transação exarada no processo, correspondente àquilo que as partes quiseram e conforme o conteúdo da declaração feita, há de ela incluir-se no regime legal acomodado designadamente para o regime geral dos negócios jurídicos (art.º 217° e seg.s do Código Civil).
Mas a declaração de nulidade ou a anulação da transação só podem ser obtidas em ação própria, instaurada para o efeito. Para alguns[1] e, em princípio, só depois do trânsito em julgado da sentença proferida naquela ação é que se pode, com base nela, requerer recurso de revisão (art.ºs 291º, nº 2 e 696º, al. d), do Código de Processo Civil); para outros[1], transitada em julgado a sentença homologatória da transação, é desde logo legítimo aceder ao recurso extraordinário de revisão, invocando o vício gerador da nulidade ou da anulabilidade, sem necessidade de prévia instauração da ação autónoma de anulação ou declaração de nulidade.
Defende o Prof. Lebre de Freitas[3] que, se a ação ainda estiver pendente, a nulidade pode ser invocada no processo, perante o juiz da causa, se este ainda não tiver homologado o ato da parte ou das partes, ou em recurso da sentença homologatória se esta sentença tiver sido proferida; assim, porque o juiz só deve homologar o ato depois de verificar a sua validade (art.º 290º, nº 3, do Código de Processo Civil). Mas, em caso de anulabilidade, o direito potestativo de anulação só pode ser feito valer através de ação judicial (art.º 287º do Código Civil).
Sendo inquestionável a existência de uma transação judicial entre as partes do processo e apenas elas (art.º 290º, nº 3, do Código Civil), pela qual puseram termo a um litígio, estabelecendo concessões recíprocas, conforme ata de audiência final, a questão é saber se, no entanto, a transação padece de invalidade, por indisponibilidade das partes em relação ao objeto do litígio e ilegitimidade passiva dos RR., por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Estamos perante um recurso ordinário, de apelação da sentença homologatória da transação.
Esta sentença está vocacionada para verificar se a transação é valida em função do seu objeto e da qualidade das partes nela intervenientes. É o que emerge expresso no referido nº 3 do art.º 290º.
A propósito, refere ainda Lebre de Freitas[4]:
«Tratando-se de negócio de auto-composição do litígio, o juiz verifica, pela indagação relativa ao objecto, se este estava na disponibilidade das partes (art. 299) e tinha idoneidade negocial (arts. 280 CC e 281 CC) e, pela indagação relativa às pessoas, e sua capacidade e a legitimidade que tinham para se ocuparem do objecto (art. 297[5], nomeadamente), o que constitui aplicação do direito substantivo. Verifica também a pertinência do objecto do negócio para o processo, isto é, a sua coincidência com o pedido deduzido, dado o acto processual pelo qual as partes fazem valer o negócio de auto-composição do litígio (…); mas, no caso da transacção, há que ter em conta que ela pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (art. 1248-2 Código Civil). Trate-se de negócio de auto-composição do litígio ou de desistência da instância, deve ser verificada também a coincidência entre o sujeito do acto e a parte processual; mas isto sem prejuízo da intervenção de terceiro nos casos em que tal seja necessário para assegurar a disponibilidade subjectiva do direito (cf. arts. 297 e 298).»
Também os referidos autores A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa[6] não deixam qualquer dúvida quanto à admissibilidade da intervenção de terceiros na ação, a par dos sujeitos processuais, desde que tenham interesse direto na resolução global do litígio, nada obstando a que haja intervenção de terceiros na transação ou que esta abarque outros objetos.[7] Nem sequer é necessário formalizar essa intervenção de terceiros através do correspondente incidente ou recorrer às normas que admitem ou condicionam a alteração do pedido. Escrevem aqueles mesmos autores que “na verdade, a necessidade de obter uma composição global dos interesses exige, por vezes, que a transação extravase o objeto direto da ação ou envolva outros sujeitos, passos que se podem mostrar necessários para alcançar a pacificação das relações e resolver globalmente o conflitos de interesses. Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se obtêm através da homologação judicial da transação”.
O art.º 1248º, n 2, do Código Civil, admite expressamente que as concessões, na transação, podem envolver a constituição, a modificação ou a extinção de direitos diversos do direito controvertido.
Embora a sentença homologatória da transação não aplique o direito substantivo aos factos provados na causa, não deixa de ser uma sentença de mérito, com condenação de uma das partes ou mais, consoante o negócio jurídico nela abrangido. A sentença passa a constituir caso julgado material (art.ºs 291º, nº 2 e 619º, nº 1, do Código de Processo Civil).
No caso, não há dúvida que, pela transação, os sujeitos processuais constituíram direitos diversos daqueles que, nos termos da ação e da reconvenção estavam controvertidos. Na ação, o objeto do processo refere-se, essencialmente, à invalidade de uma procuração e à consequente invalidade da escritura pública de compra e venda de determinados imóveis em que foi interveniente o procurador (do A.) e, bem assim, ao reconhecimento do direito de compropriedade do A. sobre esses bens. Na contestação/reconvenção, visa-se, em primeiro lugar, o reconhecimento da validade daquele mesmo negócio, com confirmação da sentença homologatória da transação. Nesta sentença, reconheceu-se que o mencionado negócio jurídico de compra e venda é ineficaz em relação ao A., não produzindo quaisquer efeitos, devendo os imóveis (frações autónomas) manter-se em regime de compropriedade na proporção de metade indivisa entre o A. e o seu irmão, José Paulo de Faria Fonseca, aqui 2º R. e fixou-se o seguinte:
“(…)
O autor e o réu, D…, na qualidade de comproprietários, obrigam-se a constituir a favor da sua mãe C… um direito de uso e habitação vitalício e exclusivo sobre as frações em apreço.
O autor e o réu, D…, obrigam-se a dar de arrendamento as frações, ou autorizam desde já a ré, C…, a fazê-lo, para sustento e satisfação de eventuais necessidades.
(…).”.
Foram estes direitos constituídos por aqueles que, à luz da transação efetuada e homologada, são os legítimos comproprietários dos imóveis (o A. e o 2º R.), deles resultando limitações ao exercício dos seus poderes dos proprietários sobre esses bens (art.º 1305º do Código Civil) e a constituição de um direito novo a favor da 1ª R. --- um direito de uso e habitação vitalício e exclusivo sobre as frações em apreço, com o seu futuro arrendamento para sustento e satisfação de eventuais necessidades da mesma R beneficiária.
Vem-nos a recorrente informar, já depois de ter sido proferida a sentença homologatória da transação, em sede de recurso, que tal sentença não atendeu ao facto de o 2º R. D… ser casado em regime de comunhão de adquiridos na data da aquisição das frações e, por isso, estando ainda os bens comuns desse extinto casal pendentes de partilha, não ter legitimidade para sozinho se vincular à oneração com um direito real que integra os bens comuns do casal. Ao homologar uma transação sem a intervenção do ex-cônjuge do 2º R., o Ex.mo Juiz não apreciou, como lhe competia fazer, a validade e a regularidade do negócio celebrado pelas partes, não podendo o 2ª R. dispor daqueles direitos sem a intervenção do seu ex-cônjuge, havendo ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário.
Nos termos do art.º 1682º-A, nº 1, do Código Civil, carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, além do mais, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns. De acordo com o disposto no art.º 1724º, al. b), daquele mesmo código, fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam excetuados por lei. Casos há em que, apesar de adquiridos na pendência do casamento, os bens não integram a comunhão conjugal (art.ºs 1726º e seg.s do Código Civil).
Compulsados os termos dos articulados da ação e da reconvenção, em parte alguma se observa qualquer referência ao casamento do 2º R., nomeadamente com G…, ao estado dos bens e à sua partilha. Nem há qualquer referência ao momento da aquisição da compropriedade de cada um das frações (não obstante o que resulta dos elementos do registo predial juntos com a petição inicial). Todas as alegações foram produzidas como se o interesse do 2º R. não fosse influenciado nem devesse ser partilhado com terceiros não intervenientes na ação, designadamente um cônjuge ou ex-cônjuge. Somente por requerimento de 12.11.2019 – a sentença homologatória da transação fora já proferida a 17.10.2019 --- o 2º R. juntou aos autos uma certidão do seu assento de casamento, celebrado em 28 de junho de 1990, com a G…, informando nessa mesma data (12 de novembro) que fora preterido o litisconsórcio necessário passivo, ocorrendo, por isso, uma nulidade processual insanável.
Sobre o conceito de “recurso”, escreveu Alberto dos Reis[8] que “são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou do erro de julgamento. O mecanismo através do qual opera o recurso define-se nestes termos: pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior”.
Castro Mendes e Armindo Ribeiro Mendes definem o recurso como um “pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer”[9].
A existência de decisão recorrível é fator sine qua non do nascimento do direito ao recurso, conforme o regime normativo aplicável. Na medida em que um recurso se destina a fazer reponderar uma decisão, seguramente tal repudia a consideração de questões novas, salvo aquilo que é de conhecimento oficioso. Vale dizer de poder-dever de conhecimento oficioso, inserível no thema decidendum.[10]
O objeto do recurso não se confunde com o objeto do litígio, tendo o recurso acentuada autonomia. Aquele é constituído por um pedido que tem por objeto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial. A questão ou litígio sobre que recaiu a decisão impugnada não é, ao menos de forma imediata, objeto do recurso, no modelo de revisão ou de reponderação acolhido no nosso Direito.[11] Daí que, proibindo a lei a reformatio in pejus, e sendo possível restringir o objeto inicial do recurso, os efeitos do julgado, na parte não recorrida da decisão, não possam ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo (art.º 635º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Civil).
O tribunal ad quem apenas pode conhecer, em princípio, das questões que, tendo sido apreciadas na decisão recorrida, constituam objeto do recurso, delimitado este pelas conclusões da alegação (art.ºs 627°, nº 1 e 635º, do Código de Processo Civil). O objeto do recurso é a decisão proferida pelo tribunal recorrido, as questões postas à sua apreciação que ele efetivamente decidiu ou omitiu (devendo decidir) nesse mesmo despacho ou sentença. Pelo recurso, a parte vencida nessa decisão visa obter a sua reapreciação ou reexame e a respetiva modificação, tendo em vista a realização do seu interesse.
Estamos no caso, perante uma questão nova, de que a 1ª instância não conheceu nem podia ter conhecido, por falta de alegação. Só em sede de recurso, depois da prolação da sentença, foi suscitada. Dela a Relação só deve conhecer se for conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, o 2º R. só não poderia ter disposto do objeto do litígio, por meio da transação, se, na realidade se concluísse pela sua ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário com o seu ex-cônjuge. Na afirmativa, caso estivesse na ação o 2º R. e a G…, os (seus) direitos, a vontade de ambos era suficiente para que a transação fosse lavrada nos termos em que o foi, não se podendo então falar de qualquer ilegitimidade passiva ou de indisponibilidade dos direitos constituídos pela transação.
Importa saber se foi preterido o litisconsórcio necessário do 2º R. com o seu ex-cônjuge.
A legitimidade é um pressuposto processual, do conhecimento oficioso e a sua preterição conduz à absolvição a instância (art.ºs 30º e seg.s, 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e) e 578º, do Código de Processo Civil).
É pacífico que desde a reforma processual introduzida pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de setembro, que alterou a redação do nº 3 do art.º 26º do Código de Processo Civil então em vigor, o legislador tomou posição na antiga querela jurídico-processual que se desenvolve desde o tempo em que foi debatida entre os Prof.s Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães. Fê-lo no sentido da tese deste último professor que, aliás, vinha sendo amplamente defendida na doutrina e na jurisprudência.
A norma manteve-se sem qualquer alteração no novo Código de Processo Civil[12], desta feita sob o art.º 30º, que reza assim:
1 – O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertia, tal como é configurada pelo autor.”.
Enquanto pressuposto processual, a legitimidade processual representa sempre uma posição da parte em relação a certo processo em concreto --- melhor, em relação a certo objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa; uma posição de autor e réu, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo. A legitimidade é de determinação casuística, portanto.[13]
Na perspetiva da tese acolhida na lei, a legitimidade das partes deve ser aferida pela posição que cada uma delas ocupa no litígio, tal como este é configurado na petição inicial pelo autor na ação (nº 3 do art.º 30º). Mas não pode afastar-se do interesse direto em demandar ou do interesse direto em contradizer a que se refere o nº 1 do mesmo artigo. Temos assim que são considerados titulares dos interesses relevantes para efeitos de legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, atendendo fundamentalmente à substância do pedido formulado e à concretização da causa pedir. Como se referia já no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.2.1997[14], “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou da improcedência) da ação pode advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e à posição que as mesmas, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor”.
O autor e o réu têm que ter um interesse direto a defender no processo. Só excecionalmente a lei permite que venha prosseguir certo interesse em Juízo o titular de outros interesses, indiretos, ou meramente conexos com o primeiro[15].
A questão de saber se a relação material controvertida existe ou não validamente, se o dever jurídico correlativo se extinguiu ou não, interessa ao mérito da questão. Ao problema da legitimidade importa apenas saber quem são os sujeitos dessa relação --- pressupondo que ela exista --- quais as pessoas a quem a relação realmente diz respeito ou a quem ela interessa de modo direto. É este o sentido seguido na jurisprudência, de que é exemplo ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004[16], segundo o qual “a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular”[17].
Com base neste entendimento, pode afirmar-se, em síntese, que a parte é legítima quando a procedência ou a improcedência da ação lhe diz respeito, segundo o critério do seu interesse direto, tal como o autor o configura. Se a procedência ou improcedência da ação não releva no âmbito do seu interesse direto, ainda que o autor indique um prejuízo colateral de um dos réus em caso de procedência da ação, ele não tem interesse direto em contradizer e, por isso, não é parte legítima. Não basta que o autor dê qualquer contorno ao interesse do réu, que invoque qualquer interesse dele; é necessário que a decisão a proferir, em função do pedido da ação, afete o interesse direto do réu em contradizer.
O art.º 33º reza assim:
1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
O litisconsórcio necessário, que tem carácter excecional, verifica-se se a lei ou o contrato o exigirem, ou quando for imposto pela própria natureza da relação jurídica controvertida, ou seja, desde que, de outro modo, a decisão não produzisse qualquer efeito útil ou, pelo menos, o seu efeito útil normal. Este efeito é produzido quando a decisão define uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de modo a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros cointeressados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos[18]. Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio.
No caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos (art.º 35º do Código de Processo Civil).
Face ao que a recorrente alega depois da prolação da sentença homologatória, tendemos a admitir que a constituição dos direitos referidos na transação a favor da 1ª R. só seria consentida se nela tivesse intervindo o ex-cônjuge do 2º R., por incidirem sobre direitos a frações que integram o património comum do extinto casal. Só com a sua intervenção a ação poderia vir a sortir o seu efeito útil.
Acontece que, à luz do pedido e dos seus fundamentos, tal como foram delineados na petição inicial e até na generalidade dos articulados da ação e da reconvenção, não há litisconsórcio necessário passivo entre o 2º R. e a sua ex-mulher H…, sendo as frações apresentadas como não integrando qualquer comunhão conjugal ou património de comunhão aguardando partilha de bens de casamento extinto. A legitimidade passiva estava assegurada pelos dois RR. demandados atendendo à relação controvertida tal como o A. a descreveu, não se justificando o agora invocado litisconsórcio necessário passivo entre o 2º R. e a sua ex-mulher.
A criação de novos direitos na transação configura mesmo uma alteração significativa relativamente aos pedidos da ação e da reconvenção.
Face aos termos da ação dados a conhecer ao Sr. Juiz do tribunal recorrido, impunha-se-lhe a sentença homologatória tal como a proferiu, por não haver preterição de litisconsórcio necessário. E impunha-se-lhe fazer intervir na transação o ex-cônjuge do 2º R. se, em devido tempo, antes da prolação da sentença homologatória, tivesse sido alertado para a situação jurídica do património do 2º R. e se, cumprido que fosse o contraditório, aquela se confirmasse. Não foi o que aconteceu. Proferida a sentença, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613º, nº 1, do Código de Processo Civil) e não é caso de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades ou de reforma da sentença nos termos dos art.ºs 614º e seg.s daquela lei do processo, em que a sua intervenção seria admissível.
A decisão da questão na apelação não permitiria um adequado exercício do contraditório. Como refere o A., nas suas contra-alegações, “(…) os autos ignoram que haja algum dos imóveis em apreço que sejam, de facto, um bem comum do ex-casal pois não basta a mera presunção de que tal bem será comum e é sabido existir – ou ter existido – um processo de partilha, cuja concreta situação é, porém, totalmente desconhecida e ignorada, podendo até já ter sido objeto de partilha a favor do aqui réu”.
A necessidade de intervenção da H… na transação nem sequer emerge dos termos da própria transação, mas da informação posteriormente prestada sobre a situação patrimonial dos bens sobre os quais foram constituídos direitos a favor da 1ª R.
De resto, a intervenção daquela pessoa (terceiro relativamente à ação) na transação também não dependia de qualquer regularização processual subjetiva, como já observámos.
Por conseguinte, não está em causa qualquer litisconsórcio necessário passivo na ação, mas apenas um negócio jurídico consubstanciado na transação que poderá não surtir o seu efeito útil normal, por ilegitimidade substantiva do 2º R.
Desta questão nova não impõe a lei o seu conhecimento oficioso (pela Relação) em sede de recurso ordinário, restando às partes, mesmo que transitada em julgado a sentença, recorrer aos mecanismos de impugnação previstos no art.º 291º, nº 2 e 696º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, se nisso entenderem haver viabilidade e tiverem interesse atendível, com observância do contraditório e do necessário formalismo legal.
A apelação improcede, com confirmação da sentença impugnada.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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As custas da apelação ficam a cargo da R. recorrente, por nela ter decaído.
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Porto, 6 de Fevereiro de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Neste sentido, J. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 1999, Coimbra, pág. 535.
[2] A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019,Vol. I, pág. 337. [3] Ob. cit., pág. 536.
[4] Idem, pág. 533.
[5] Atual art.º 287º do Código de Processo Civil.
[6] Ob. cit., pág. 336.
[7] Como também se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de junho de 2018 (Abrantes Geraldes), proc. 2749/16, in www.dgsi.pt.
[8] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 212.
[9] Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, AAFDL, 1982, pág. 158.
[10] J. Cardona ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, pág.s 42, 43 e 87; A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, pág. 25, Teixeira de sousa, estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2* ed., pág. 395, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anot., vol. III, tomo I, 2ª ed., pág. 8 e, bem assim, a jurisprudência portuguesa em geral, de que são exemplo os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.111998, BMJ 481/430 e de 12.7.2007, in www.dgsi.pt.
[11] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, pág. s 74 e 81.
[12] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, aqui aplivável.
[13] Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1980, pág. 153.
[14] BMJ 464/545.
[15] Como ocorre no caso da ação sub-rogatória, por exemplo, em que o sub-rogado tem um mero interesse indireto (art.º 606º, nº 1 do Código Civil): legitimidade indireta ou substituição processual.
[16] Proc. nº 04B2212, in www.dgsi.pt.
[17] Sobre o desenvolvimento do tema, cf. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra, pág.s 130, 134, 135, 138, 141 e 145 e seg.s.
[18] Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 2º vol., pág. 724 e seg.s.