Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8445/13.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP201411038445/13.0TBVNG.P1
Data do Acordão: 11/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico não é formalidade prévia necessária à apreciação de pretensão no sentido de ser declarado e reconhecido direito de propriedade, para efeito do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 8445/13.0TBVNG.P1
5.ª Secção (3.ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I- O procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico não é formalidade prévia necessária à apreciação de pretensão no sentido de ser declarado e reconhecido direito de propriedade, para efeito do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.


Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…, C… e D…, todos melhor identificados nos autos, intentaram a presente acção declarativa de condenação, contra Estado Português.
1.1 Os autores, através da presente acção, têm em vista obter o reconhecimento a que alude o n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, a incidir sobre um prédio misto denominado E…, de que os autores se afirmam donos e legítimos proprietários e possuidores.
Alegam – sumariamente e naquilo que aqui interessa – que a E…, estando localizada na margem sul do rio … e a cerca de 7 km da sua foz, confina com o mesmo, a norte, compondo a sua margem numa extensão aproximada de 400 metros, numa faixa de terreno sobranceira ou contígua à linha que limita o leito daquele rio e que se estende entre nascente e poente; esta faixa de terreno tem como limite, a nascente, um ribeiro que desemboca no referido rio junto à “F…” e denominado “G…” e, a poente, um prédio rústico de um particular, sendo que naquela estrema a poente que principia à face do rio … e que corre de norte para sul encontram-se plantadas árvores e foi colocado um marco em pedra, que delimita a divisão entre a E… e o prédio rústico com que confina a poente.
O rio … a norte bem como o ribeiro a nascente/norte e ainda as árvores e o marco em pedra a poente/norte, definem, desde tempos imemoriais e pelo menos desde há mais de 200 anos, os limites da E…; actualmente e pelo menos desde há mais de 200 anos que os terrenos que compõem a E… são cultivados e trabalhados permanentemente até ao limite do leito do Rio …, lá sendo plantados, entre o mais, cereais, tubérculos, plantas leguminosas e vegetais, cuidando de tais culturas os autores e os seus antecessores, por si ou por terceiros que para o efeito contratam ou por aqueles a quem arrendam as terras a troco de contrapartida, sem qualquer intervenção por parte de qualquer entidade pública.
O rio, no local, é navegável presentemente e há mais de duzentos anos; o prédio não integra a área sujeita a jurisdição exclusiva de nenhuma autoridade marítima e portuária.
Terminam afirmando que a presente acção deve ser julgada inteiramente provada e procedente e, em consequência:
a. Ser declarado e consequentemente reconhecido que os Autores são proprietários, em compropriedade entre os três e na proporção referida no Artigo 9º desta petição, do prédio misto designado de E… composto por duas casas de dois pavimentos, ambas com as respectivas dependências, dispondo uma das casas de logradouro e enquadrando-se ambas num terreno com cultura, pastagem mato e pinhal, tudo num total de 273.987,55 m2, distribuídos conforme levantamento topográfico realizado no ano de 2013 junto aos autos como doc. 1, prédio misto que se encontra descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia …, sob o número 3343/199902024;
b. Ser declarado e consequentemente reconhecido, para efeito do disposto no Artigo 15.º, número 1, da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, que a margem da E… que confina, a norte, com o rio …, nomeadamente na faixa de trinta metros de terreno contígua à linha que delimita o leito das águas daquele rio, é propriedade dos aqui Autores e dos seus antecessores desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864.
1.2 O réu, representado pelo Ministério Público, veio contestar; por excepção e invocando o disposto nos artigos 1.º, n.º 1, 5.º, alínea a), 11.º e 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro e a Portaria n.º 931/2010, de 20 de Setembro, alega que, relativamente ao …, da freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, o leito e a margem do domínio público hídrico (DPH), não se encontram ainda delimitados; procede à impugnação da generalidade dos factos alegados pelos autores.
Conclui que deve ser declarada a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, absolvendo-se o Réu Estado da instância, devendo o tribunal julgar-se incompetente para proceder à delimitação do Domínio Público Hídrico ou, caso assim não se entenda, a acção deve ser julgada improcedente, absolvendo-se o réu do pedido.
1.3 Os autores vieram responder, defendendo a improcedência da excepção com dois fundamentos distintos.
Afirmam que, em função da causa de pedir apresentada e do pedido formulado, inexiste qualquer necessidade de instaurar processo administrativo preliminar à acção judicial para reconhecimento de propriedade privada; determinado o prédio rústico em causa e a sua confrontação com um curso de água navegável e flutuável, têm-se por verificados os pressupostos exigíveis, os únicos de que o artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, faz depender a instauração de acção judicial para o reconhecimento de propriedade privada. Enquanto o procedimento administrativo de delimitação previsto no artigo 17.º da Lei n.º 54/2005 parte da dominialidade dos terrenos, pretendendo mantê-la tendo em vista a definição dos seus limites com outros terrenos, a acção judicial a que se refere o artigo 15.º do mesmo diploma legal parte do afastamento de qualquer dominialidade pública dos terrenos para que a sua propriedade privada seja declarada, não havendo qualquer necessidade prévia ou subsequente de delimitar as “margens dominiais confinantes com outros terrenos” quando é certo que aquilo que se alegou e se visa demonstrar e reconhecer por sentença judicial é que todas as margens da E… – com a delimitação conferida pelo disposto no artigo 11.º da Lei 54/2005 – são objecto de posse e propriedade privada desde data anterior a 1864.
Mas ainda que proceda a tese sufragada pelo Estado Português e em que funda a excepção, nunca ela conduz à incompetência absoluta do Tribunal; mesmo que se entendesse que haveria de proceder-se a uma delimitação administrativa prévia à prolação da decisão dos presentes autos, sempre ela haveria de ser havida como mero procedimento prejudicial, que obrigaria à latência dos presentes durante a sua pendência, o que também se impõe como consequência da natureza peremptória do prazo legalmente fixado para a propositura da presente acção: não pode, nem deve entender-se que o legislador fixou prazo peremptório para a propositura de acção tendente ao reconhecimento de propriedade privada ao mesmo que impôs ao proprietário visado a prévia conclusão de um procedimento administrativo susceptível de delonga superior à daquele prazo.
Atendendo a que na contestação se alega que a E… fica situada em área sob a jurisdição da Autoridade Marítima/Capitania … e tendo presente o disposto no artigo 11.º da Lei n.º 54/1005, os autores requerem a ampliação do pedido formulado sob a alínea b), nos seguintes termos:
“b. Ser declarado e consequentemente reconhecido, para efeito do disposto no Artigo 15º, número 1, da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, que a margem da E… que confina, a norte, com o rio …, nomeadamente na faixa de cinquenta metros de terreno contígua à linha que delimita o leito das águas daquele rio, é propriedade dos aqui Autores”.
1.4 No prosseguimento do processo foi então proferido o despacho que é objecto do presente recurso, nos seguintes termos (transcrição integral):
«Findos que estão os articulados, pensamos que, tal como referem os Autores, ainda que a título de mera hipótese com que não concordam, haverá que solucionar uma questão prévia.
Tentaremos ser breves na fundamentação já que o que importa neste momento é referir porque se irá suspender a ação e não decidir a exceção dilatória que é suscitada apesar de haver matéria que se cruza entre as várias questões.
O que se nos oferece referir neste momento é que os Autores pedem o reconhecimento do direito de propriedade de um imóvel, descrito nos artigos 1.º, 3.º, da petição inicial (prédio misto, com área de 273.987,55 m2, sito no …, …, Vila Nova de Gaia), com elisão da presunção de integração de parte no domínio público hídrico (artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 335/98, de 03/11 e 11.º, 15.º, da Lei n.º 54/05, de 15/11), ou seja, 50 metros.
Mas, salvo melhor opinião, à partida os Autores não mencionam onde nasce e finda a margem no terreno, só o fazendo em termos abstratos e definidos pela lei.
Quando se pede o reconhecimento de um direito de propriedade de um terreno, tem o mesmo de ser totalmente identificado para, a final, com a decisão, se formar caso julgado de modo a que sobre aquele terreno, com aqueles limites e confrontações, já não existirem dúvidas sobre a quem pertence.
Não sendo mencionado onde em concreto se inicia o terreno dos Autores já que não se refere, também em concreto, onde se inicia a margem, o tribunal, à partida, estaria impossibilitado de proferir uma decisão passível de formar caso julgado sobre a propriedade do imóvel pois sempre se poderia vir posteriormente alegar que afinal os 50 metros em questão se contariam de um outro eventual modo.
O que tem de suceder, na nossa opinião, é em primeiro lugar determinar-se, em concreto, qual a extensão da margem do Rio … na zona em causa e depois, em segundo lugar, os Autores já sabendo qual a parte do seu terreno que, no seu entender, está ocupada pelo Estado face à delimitação da margem, pedir em concreto o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre essa porção delimitada de terreno.
Em rigor, ainda existe incerteza sobre onde começa (acaba) o terreno dos Autores e então, ou se interpõe uma ação onde se pretende cessar tal incerteza (se possível) ou tem de se previamente afastar a mesma para se poder pedir o reconhecimento do direito de propriedade do imóvel em causa.
Ora, na presente ação, a incerteza não pode ser removida pelo presente tribunal por um motivo: compete aos órgãos administrativos (Estado) tal delimitação – artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 54/05 –, oficiosamente ou a requerimento dos interessados tratando-se de um procedimento administrativo onde se fixa a linha que define a estrema de leitos e margens do domínio público hídrico.
Sendo um ato administrativo, mesmo que tal tivesse sido pedido ao tribunal (que não foi), o presente tribunal comum não o podia decidir não só por não ser um órgão administrativo como a decisão a proferir por esse órgão ser um ato administrativo e ser sindicável por um Tribunal Administrativo – artigo 4.º, n.º 1, c), do NETAF -.
E, por último, porque se deve suspender a ação? Pensamos que os autos, já com intervenção das partes necessárias, com o argumentar das suas razões e a junção de documentação pertinente, devem ser aproveitados pois, apesar de faltar a alegação de um facto primordial por parte dos Autores (concreta delimitação do terreno e faixa que pretende que seja declara sua), «bastará» que os mesmos façam nascer o dito processo administrativo e aí seja definida a linha que define a margem do Rio … em tal zona, obtenha a decisão final e então concretize o seu pedido para os autos poderem prosseguir, com apreciação das exceções e decisão sobre o mérito, assim se aproveitando tudo o que aqui consta.
É este para nós o motivo justificado para suspender os autos até que os Autores venham, munida da decisão administrativa final, concretizar o seu pedido nos termos acima referidos.
Desta forma, decide-se suspender a presente ação até que os Autores demonstrem ter obtido decisão final administrativa a delimitar o leito da margem do Rio … na zona do imóvel por si indicado nos artigos 1.º e 3.º, da petição inicial, devendo então, quando o vier demonstrar nos autos, concretizar o pedido com as delimitações concretas e definidas do seu alegado terreno – artigo 272.º, n.º 1, parte final, do C. P. C.»
2.1 Os autores, não se conformando com a decisão proferida, vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. A procedência de uma acção de reconhecimento de propriedade privada não está dependente da delimitação dos terrenos por coordenadas de satélite, podendo fundar-se na alegação e prova dos seus limites físicos e objectivos existentes no terreno.
2. Alegando e peticionando os Autores que são proprietários desde data anterior a 1864 de todos os terrenos integrados no prédio designado por E…, conforme descrito na Conservatória de Registo Predial e conforme levantamento topográfico junto aos autos, inclusive da parcela desses terrenos que ao longo de mais de 50 metros de sul para norte, confrontam com o rio …, ao longo de uma extensão de terreno que se delimita de nascente a poente por pontos físicos aí existentes e alegados nos autos, mostra-se alegada factologia suficiente e necessária para a prolação de decisão final de reconhecimento de propriedade privada, nos termos do disposto no art. 15.º, da Lei 54/2005, de 15.11.
3. Estando alegado que toda a parcela de terreno integrada no prédio identificado é tralhada e cultivada pelos Autores até ao limite do leito do rio …, sendo da sua propriedade desde data anterior a 1864, é certo que na mesma se integra a parcela de terreno que integra o conceito legal de margem tal como definido na Lei 54/2005, de 25.11 – a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.
4. Pelo que não existe necessidade de antecipadamente à decisão da acção intentar qualquer procedimento de delimitação.
5. Enquanto o procedimento administrativo de delimitação previsto no Artigo 17.º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro parte da dominialidade dos terrenos, pretendendo mantê-la tendo em vista a definição dos seus limites com outros terrenos, a acção judicial a que se refere o Artigo 15.º do mesmo diploma legal parte do afastamento de qualquer dominialidade pública dos terrenos para que a sua propriedade privada seja declarada.
6. Sendo certo que a não dominialidade das parcelas de terreno da E… que integram o conceito legal de margem é o fundamento nuclear da acção intentada.
7. A delimitação administrativa realizada nos termos do presente Decreto-Lei não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da demarcação das propriedades ou da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, nos termos da lei processual civil.
8. Fez a douta decisão recorrida errada interpretação do disposto nos arts. 11.º, 15.º e 17.º da Lei 54/2005 de 25 de Novembro e 10.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 353/2007, de 15 de Outubro.
9. Devendo, em consonância, o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.»
2.2 O réu veio responder à motivação de recurso dos autores, concluindo nos seguintes termos:
«1– Pedem os Autores o reconhecimento de direito de propriedade de um imóvel, descrito nos artigos n.ºs 1.º a 3.º da petição inicial, não mencionando onde nasce e finda a margem no terreno, só o fazendo em termos abstractos.
2 – Existe incerteza onde começa (acaba) o terreno dos Autores, já que não se refere, em concreto, onde se inicia a margem.
3 – Tal incerteza não pode ser removida por este tribunal, cabendo aos órgãos administrativos (Estado), tal delimitação.
4 – A Lei aplicável destrinça, o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos e delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza (artigo 17.º da Lei 54/2005 de 15/11).
5 – Sendo o reconhecimento da competência dos tribunais e a delimitação da competência dos órgãos administrativos (n.º 5, do artigo 17.º, da lei 54/2005 e n.º 2, do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26/2010).
6 – O Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, veio, no seu artigo 2.º, n.º 1, estabelecer o regime a que fica sujeito o procedimento de delimitação do DPH, dizendo que “a delimitação do domínio público hídrico é o procedimento administrativo pelo qual é fixada a linha que define a extrema dos leitos e margens do domínio público hídrico confinantes com terrenos de outra natureza”.
7 – Deverá, pois, a questão da delimitação ser decidida previamente, através dos competentes órgãos administrativos.
8 – Não foram violadas as disposições legais indicadas pelos recorrentes.»
Termina afirmando que o recurso não merece provimento, devendo ser conformada a decisão recorrida.
3. Colhidos os vistos e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pelos apelantes definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, em face do que se impõe decidir a seguinte questão:
● Determinar se há fundamento para a suspensão da presente acção, especificamente, se o procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico é formalidade prévia à apreciação da pretensão dos autores, no sentido de ser declarado e consequentemente reconhecido, para efeito do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que a margem da E… que confina, a norte, com o rio …, nomeadamente na faixa de cinquenta metros de terreno contígua à linha que delimita o leito das águas daquele rio, é propriedade dos aqui autores e dos seus antecessores desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864.
II)
Fundamentação
1. A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, estabelece a titularidade dos recursos hídricos, revogando nessa parte o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro. Aquele diploma foi entretanto alterado pela Lei n.º 78/2013, de 21 de Novembro e pela Lei n.º 34/2014, de 19 de Junho, vigorando no entanto, na data em que foi instaurada a presente acção, a sua redacção original.
A motivação destes diplomas, como de outros que os antecederam, assenta em Decreto Real, datado de 1864, que criou a figura do Domínio Público Hídrico.
Os recursos hídricos a que se aplica a referida lei compreendem as águas, abrangendo ainda os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas, sendo que, em função da titularidade, compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, pertencentes a entidades públicas ou particulares (artigo 1.º da aludida lei).
O domínio público fluvial – que, salvo os casos especialmente previstos na lei, pertence ao Estado – compreende cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos, entendendo-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas e que, no caso das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 metros, no caso das restantes águas navegáveis ou flutuáveis, bem como das albufeiras públicas de serviço público, tem a largura de 30 metro e quando se trate de águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 metros, contando-se a largura, em princípio, a partir da linha limite do leito – artigo 11.º da aludida Lei n.º 54/2005.
A lei, atenta à possibilidade do recuo e do avanço das águas e às implicações que daí podem resultar quanto aos bens dominiais, estabeleceu regras a este propósito, enunciadas nos artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
Podem assim suscitar-se questões relativamente aos limites dos leitos e das margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza; além das aludidas regras, prevê a lei procedimento adequado, sendo a delimitação do domínio público hídrico o procedimento administrativo pelo qual são fixados os referidos limites; esta delimitação compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados, sendo as comissões de delimitação constituídas por iniciativa dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do ambiente, da agricultura e do mar, no âmbito das respetivas competências – artigo 17.º da Lei n.º 54/2005.
No entanto, apesar dos leitos e das margens de águas do mar ou de águas fluviais serem, em princípio, bens do domínio público, o legislador não podia deixar de reconhecer os direitos adquiridos sobre esses terrenos por sujeitos privados, antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, tendo presente o Decreto Real acima mencionado e as implicações que do mesmo resultaram.
Assim, prevê o artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, na redacção vigente na data em que foi instaurada a presente acção, que quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento desde que intente a correspondente acção judicial até 1 de Janeiro de 2014, devendo provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868 (n.º 1); sem prejuízo do prazo antes referido, observar-se-ão as seguintes regras nas acções a instaurar naqueles termos: presumem-se particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais, na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos mesmos nos termos do n.º 1, se prove que, antes daquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa [n.º 2, alínea a)]; quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas [n.º 2, alínea b)].
A ponderação do regime legal enunciado na Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, evidencia que aí não se impõe o procedimento administrativo de delimitação como pressuposto preliminar, nomeadamente, de reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos, sendo particularmente expressivo o n.º 2 do artigo 17.º, antes citado, ao estabelecer que a delimitação compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados.
Pode a delimitação justificar-se se estiver em causa, na acção de reconhecimento de direitos adquiridos, apenas uma parte da margem e se discutir a respectiva delimitação.
Mas a não exigência de prévia delimitação sobressai nos casos em que não está em discussão qualquer definição de limites dos leitos e das margens dominiais com terrenos de outra natureza com que confinam e em que se invoca a titularidade de toda a faixa de terreno que constitui a margem.
2. Reportando-nos ao caso dos autos, perante os factos que se deixaram sumariamente enunciados no relatório inicial, evidencia-se a pertinência do entendimento expendido pelos autores/recorrentes.
O artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no capítulo da suspensão da instância, estabelece que o tribunal pode ordenar a suspensão quando ocorrer motivo justificado.
No despacho recorrido decidiu-se suspender a presente ação até que os autores demonstrem ter obtido decisão final administrativa a delimitar o leito da margem do Rio … na zona do imóvel por si indicado nos artigos 1.º e 3.º, da petição inicial, devendo então, quando o vierem demonstrar nos autos, concretizar o pedido com as delimitações concretas e definidas do seu alegado terreno.
Os autores/recorrentes, ao demandar o Estado, afirmam ser donos e legítimos possuidores de um prédio denominado E…, localizado na margem sul do rio … e a cerca de 7 quilómetros da sua foz. Pretendem, no entanto, que o respectivo prédio integra a margem do rio em toda a extensão que com ele confina, afirmando a este propósito que o prédio confina com o rio …, a norte, compondo a sua margem numa extensão aproximada de 400 metros, numa faixa de terreno sobranceira ou contígua à linha que limita o leito daquele rio e que se estende entre nascente e poente; pormenorizam que esta faixa de terreno tem como limite, a nascente, um ribeiro que desemboca no referido rio junto à “F…” e denominado “G…” e, a poente, um prédio rústico de um particular, sendo que naquela estrema a poente que principia à face do rio … e que corre de norte para sul encontram-se plantadas árvores e foi colocado um marco em pedra, que delimita a divisão entre a E… e o prédio rústico com que confina a poente.
Assiste-lhes razão quando afirmam que, determinado o prédio rústico em causa e a sua confrontação com um curso de água navegável e flutuável, têm-se por verificados os pressupostos de que o artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, faz depender a instauração de acção judicial para o reconhecimento de propriedade privada, na medida em que, enquanto o procedimento administrativo de delimitação previsto no artigo 17.º da Lei n.º 54/2005 parte da dominialidade dos terrenos, pretendendo mantê-la tendo em vista a definição dos seus limites com outros terrenos, a acção judicial a que se refere o artigo 15.º do mesmo diploma legal parte do afastamento de qualquer dominialidade pública dos terrenos para que a sua propriedade privada seja declarada, não havendo necessidade prévia ou subsequente de delimitar as “margens dominiais confinantes com outros terrenos” quando é certo que aquilo que se alegou e se visa demonstrar e reconhecer por sentença judicial é que todas as margens da E… – com a delimitação conferida pelo disposto no artigo 11.º da Lei 54/2005 – são objecto de posse e propriedade privada desde data anterior a 1864.
Não está em causa que, quando se pede o reconhecimento de um direito de propriedade de um terreno, tem o mesmo de ser totalmente identificado para, a final, com a decisão, se formar caso julgado de modo a que sobre aquele terreno, com aqueles limites e confrontações, já não existirem dúvidas sobre a quem pertence
Mas no caso, os autores não discutem a definição da delimitação do respectivo prédio no confronto com a margem do rio …, enquanto parcela de terreno que integra o domínio público, pretendendo antes que o prédio integra a totalidade da aludida margem, até à linha que limita o leito das águas, definindo as estremas do prédio com a inclusão da referida parcela, a nascente (um ribeiro que desemboca no referido rio junto à “F…” e denominado “G…”) e a poente (um prédio rústico de um particular, com a estrema que corre de norte para sul assinalada pela plantação de árvores e por um marco), de onde resulta que “a não dominialidade das parcelas de terreno da E… que integram o conceito legal de margem é o fundamento nuclear da acção intentada”.
Em caso de procedência da acção, não deixa de se verificar a delimitação do prédio, sem a necessidade de autonomizar e pormenorizar a parcela que constitui a margem.
E mesmo que se entenda que não há uma correcta identificação do terreno com a inclusão da aludida parcela, quanto aos respectivos limites e confrontações, não estamos perante fundamento de suspensão da acção, mas antes perante eventual convite ao aperfeiçoamento.
A eventual improcedência da acção também não justifica a delimitação, o que mais se acentua perante a inexistência de pedido reconvencional cuja apreciação impusesse a fixação dos limites do prédio dos autores com a margem do rio.
Acresce que, ainda na eventual improcedência da acção e caso se julgue pertinente, não fica prejudicada a ulterior delimitação, se necessário, ou a requerimento dos interessados.
Conclui-se por isso que procede a pretensão dos recorrentes, na medida em que não se verifica motivo justificado para a suspensão da instância.
III)
Decisão:
Pelas razões expostas e dando provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por despacho que, não havendo outras razões que a tal obstem, ordene o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo do réu.
*
Porto, 3 de Novembro de 2014.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Rita Romeira