Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
79/12.2TASJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: FURTO FORMIGUEIRO
ELEMENTOS DO TIPO
ÁGUA PARA ABASTECIMENTO PÚBLICO
Nº do Documento: RP2013051779/12.2TASJM.P1
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC.PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – O crime de furto da previsão do art° 207° al. b) do Cód. Penal depende da verificação simultânea dos seguintes pressupostos:
    • Incidência da subtração e apropriação sobre objetos, de pequeno valor e pequena quantidade (por isso, é vulgarmente denominado como “furto formigueiro”);
    • Imediatismo da utilização; e
    • Destinação à utilização pelo agente, cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao 2° grau.
II - Ao incluir a incriminação deste “crime formigueiro” na categoria dos crimes depen­dentes de acusação particular, o legislador teve em vista a premência da satisfação de necessidades básicas do agente, pelo que o tipo se refere, essencialmente, a coi­sas comestíveis, bebidas, em pequena quantidade e de pequeno valor, para utilização imediata pelo agente.
III - No que respeita ao imediatismo da utilização, tem-se entendido que a mesma não pode deixar de se relacionar com a premência e atualidade da necessidade a satisfazer.
IV - Os arguidos que efetuaram uma ligação direta à rede de abastecimento públi­co de água, ligando uma bucha flexível metálica entre o tubo da rede de abastecimen­to de água e a canalização do apartamento em que habitavam e passaram a consumir água proveniente de tal rede, para seu uso doméstico, em quantidade não apurada, cometeram um crime de furto e não um crime de furto formigueiro pois que visaram a subtracção ao pagamento do preço do abastecimento contínuo e regular de água de consumo público.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 79/12.2TASJM.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunto: Des. Alves Duarte

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de S. João da Madeira com o nº 79/12.2TASJM foram submetidos a julgamento os arguidos B..... e C....., tendo a final sido proferida sentença, depositada em 18.12.2012, que julgou extinto o procedimento criminal por entender que os factos provados integram a prática de um crime de furto p. e p. no artº 207º al. b) do Cód. Penal, sem que tivesse sido deduzida acusação particular, pelo que o Mº Pº carece de legitimidade para deduzir acusação pública.
Inconformado com a sentença absolutória, dela veio o Mº Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1.Não se encontram verificados nos autos, cumulativamente, os pressupostos previstos para a aplicação do disposto na alínea b) do artº 207º do Código Penal, nomeadamente o imediatismo da utilização, e que a coisa subtraída se trata de objeto comestível ou bebida, em pequena quantidade, para indispensável satisfação da necessidade do agente, uma vez que não resultam, da matéria de facto dada como provada, elementos suficientes que permitam concluir que os arguidos utilizaram, durante cerca de 3 meses, a água captada, do modo como resultou provado, apenas para beber;
2.Atenta a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, conjugada com as regras da experiência, dúvidas não subsistem que o uso doméstico dado à água que corre nas torneiras de uma casa destina-se a muitos fins para além de matar a sede, e que ao ser dado como provado, como foi, que “desde esse momento, os arguidos B..... e C..... passaram a consumir água proveniente da rede de abastecimento público para uso doméstico, em quantidade não apurada, sem nada pagar”, os arguidos praticaram factos que integram o crime de furto p. e p. pelo artº 203º nº 1 do Cód. Penal, pelo que deverão ser condenados.
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Os arguidos responderam às motivações de recurso, concluindo nos seguintes termos:
•A questão a decidir neste recurso é tão só e simplesmente se estamos perante um crime de furto simples p. e p. pelo artº 203º nº 1 do CP (tal como defende o recorrente) ou se, um crime de furto simples p. e p. pela conjugação do disposto nos artºs. 203º nº 1 e 207º al. b) do CP, vulgo “furto formigueiro” que reveste natureza particular, caso em que, não tendo a ofendida após se constituir assistente deduzido acusação particular, o MP carecia de legitimidade para deduzir acusação pública, pelo que o procedimento criminal terá de ser julgado extinto (tal como bem decidiu a Mª Juiz do Tribunal a quo e entende o recorrido);
•A natureza particular do crime de furto depende, assim, da verificação de um tríplice condicionalismo:
- o valor diminuto da coisa furtada, facto que não foi posto em causa no recurso;
- a imediatidade: ser a coisa destinada a utilização imediata. Quando se abre uma torneira, a água é imediatamente utilizada para satisfazer necessidades de dessedentação ou de higiene;
- a indispensabilidade: mostra-se indispensável à satisfação de necessidades básicas e vitais dos arguidos e de seus 5 filhos menores o consumo de água subtraída à rede pública para manter o abastecimento de água à habitação onde vivem, numa situação económica muito precária, até ser obtido o montante necessário para proceder ao pagamento da caução exigida para ser efetuada a ligação de água que já havia sido, inclusivamente, requisitada;
•Pese embora não tenha ficado provado a existência de um consumo de água prolongado no tempo, o imediatismo da utilização não se confunde com a inexistência de consumos prolongados no tempo;
•Assim, não assiste razão à recorrente quando reclama a condenação dos arguidos, devendo ser mantida in totum a douta sentença proferida nos presentes autos;
•Caso se entenda que estamos perante um crime de furto simples p. e p. no artº 203º 1 CP, como defende o Recorrente, ainda assim os factos dados como provados, permitem concluir que a inexistência de água na habitação redundaria indubitavelmente num perigo iminente e atual para a vida e para a saúde dos filhos, pelo que tendo os arguidos agido em estado de necessidade desculpante de modo a remover um perigo atual e não removível de outro modo, não sendo razoável exigir um comportamento diferente, está verificada uma causa de exclusão da culpa prevista no artº 35º do CP;
•Ao cumprirem com o dever de zelar pela saúde e bem-estar dos filhos menores agem também no cumprimento de um dever, que é indubitavelmente reconhecidamente superior, por toda a comunidade, ao dever sacrificado, o que exclui a ilicitude nos termos do artº 36º do C.P.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1º A empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, constituída sob a forma de sociedade anónima, com a denominação “D….., SA” é entidade gestora do Serviço de Distribuição de Água do concelho de São João da Madeira, por delegação do Município de São João da Madeira, competindo-lhe a gestão e exploração dos sistemas públicos de captação e distribuição de água do concelho de São João da Madeira.
2º Em 25 de Outubro de 2011, os arguidos B..... e C..... tomaram ambos de arrendamento a fração autónoma destinada a habitação, designada pela letra “C”, correspondente ao 3º andar direito do edifício sito na …., n.º …, nesta cidade e comarca de São João da Madeira.
3º A partir do dia 1 de Novembro de 2011, passaram ambos a residir no referido apartamento, ali dormindo e tomando as refeições juntos.
4º Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o referido dia 1 de Novembro de 2011 e o dia 25 de Janeiro de 2012, sem que tivessem celebrado qualquer contrato de fornecimento de água com a mencionada “D…., SA” e sem que tivessem solicitado a instalação de um contador, os arguidos B..... e C..... decidiram efetuar uma ligação direta à rede de abastecimento público de água, com o propósito de se apoderarem de água da rede pública, consumindo-a sem pagar o correspondente preço.
5º Na execução do mencionado desígnio, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o referido dia 1 de Novembro de 2011 e o dia 25 de Janeiro de 2012, o arguido C..... fez uma ligação direta à rede de abastecimento de público, ou seja, ligou uma bicha flexível metálica entre o tubo da rede de abastecimento de água e a canalização do referido apartamento.
6º Desde esse momento, os arguidos B..... e C..... passaram a consumir água proveniente da rede de abastecimento público para seu uso doméstico, em quantidade não apurada, sem nada pagar.
7º Os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, água proveniente da rede de abastecimento público, que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam sem autorização e contra a vontade do respetivo dono.
8º Agiram ambos os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços a fim de melhor alcançarem os seus intentos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A arguida foi já condenada pelos crimes de emissão de cheque sem previsão (factos de 1998 e sentença de 2003) e condução sem habilitação legal (factos e decisão de 2007) em penas de multa.
O arguido foi condenado pelo crime de furto simples (factos de 2005, sentença de 2006) em pena de multa.
A arguida é doméstica e está sem rendimentos, além do abono dos filhos, no montante total de 175,00 €. Vive com quatro dos cinco filhos, com 17, 13, 12 e 10 anos. Tem uma outra filha menor que está a morar em casa de uma amiga e a quem entrega cada mês o valor do seu abono de família de 35,00 €.
O arguido começou a trabalhar recentemente e conta ir receber a 8 de Janeiro o valor de 485,00 €. Paga 180,00 € na Pensão onde reside.
A empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, constituída sob a forma de sociedade anónima, com a denominação D…. S.A. é entidade gestora do serviço de distribuição de água do concelho de S. João da Madeira, por delegação do Município de S. João da Madeira, competindo-lhe a gestão e exploração dos sistemas públicos de captação e distribuição de água do concelho de S. João da Madeira.
Em 25 de Outubro de 2011, os arguidos tomaram ambos de arrendamento a fração autónoma destinada a habitação, designada pela letra “C” correspondente ao 3º andar direito do edifício sito na …., nº …., nesta cidade e comarca de S. João da Madeira.
A partir do dia 1 de Novembro de 2011, passaram ambos a residir no referido partamento ali dormindo e tomando as refeições juntos.
Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o referido dia 1 de Novembro e o dia 25 de Janeiro de 2012, sem que tivessem celebrado qualquer contrato de fornecimento de água com a mencionada empresa D…. S.A, e sem que tivessem solicitado a instalação de um contador, os arguidos decidiram efetuar uma ligação direta à rede pública de abastecimento público de água, com o propósito de se apoderarem de água da rede pública, consumindo-a sem pagar o preço correspondente.
Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o referido dia 1 de Novembro e o dia 25 de Janeiro de 2012, o arguido C….., fez uma ligação direta à rede de abastecimento público de água, ou seja, ligou uma bicha flexível metálica entre o tubo da rede de abastecimento de água e a canalização do referido apartamento.
Desde esse momento, os arguidos passaram a consumir água proveniente da rede de abastecimento público para seu uso doméstico, em quantidade não apurada, sem nada pagar.
Os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, a água proveniente da rede de abastecimento público que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam sem autorização e contra a vontade do respetivo dono.
Agiram ambos os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços a fim de melhor alcançarem os seus intentos, com o firme propósito de obterem um benefício ilegítimo, o que conseguiram.
Bem sabiam os arguidos que a sua conduta consubstanciava a prática de atos ilícitos.
A conduta dos arguidos apenas cessou em 25 de Janeiro de 2012, após a ofendida ter tomado conhecimento da ligação direta efetuada.
Com a conduta descrita os arguidos causaram à ofendida um prejuízo não determinado, mas que face ao número de dias em causa, será em princípio menor que o estimado pela ofendida de 112,94€.
Os arguidos sabiam que a água não lhes pertencia e que não podiam consumir água proveniente da rede de abastecimento público sem pagar o respetivo preço ao fornecedor e legítimo detentor.
Agiram contra a vontade e sem o conhecimento da ofendida, querendo fazer sua a água enquanto tal lhe fosse possível.
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Não se provaram os seguintes factos: (transcrição)
Não se provou que com a conduta descrita os arguidos causaram à ofendida um prejuízo estimado em 112,94 €, correspondente à estimativa de consumo durante o lapso de tempo em que vigorou a ligação ilícita, tendo por base uma ligação de cariz doméstico.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
Para dar como provados os factos supra enunciados tive por base os documentos juntos aos autos, os depoimentos das testemunhas de acusação e do pedido de indemnização civil que foram inquiridas e as declarações dos arguidos.
A arguida começou por referir que tinha sido o arguido a fazer a ligação, afirmando que por isso nada teria a ver com o assunto, mas acabou depois por reconhecer que sabia o que o arguido tinha feito e que utilizou a água nessas circunstâncias.
O arguido reconheceu de forma espontânea o que lhe é imputado, quanto a ter feito a ligação e quanto a terem utilizado a água.
Referiram que procederam desta forma, por não terem na altura dinheiro para pagar a caução para a instalação e terem cinco crianças em casa.
No entanto, afirmaram também que o período em que utilizaram a água desta forma, foi muito reduzido. Assim primeiro e quando celebraram o contrato de arrendamento e se mudaram para aquela casa, estiveram a usar a água do contador em nome do anterior proprietário ou locatário. Depois desta ter sido cortada, resolveram então celebrar o contrato em seu nome, mas precisavam do valor da caução para que o contador fosse instalado, o que só conseguiram pouco depois de ter sido detetada a situação descrita nos autos.
Pela testemunha E….., Leitora de Contagens, foi referido que quando foi fazer a contagem constatou que havia uma ligação ilícita, no apartamento dos arguidos. Contatou então a Engenheira F….. da parte técnica para que viesse confirmar o que descobrira. Chamaram a Polícia de Segurança Pública. Quando veio o Agente, este bateu à porta e foi atendido por uma senhora que lhes disse que tinha sido o marido ou o companheiro a fazer a ligação porque tinham uma família grande e não podiam ficar sem água. Faz a contagem, mês sim, mês não, pelo que a ligação podia lá estar há dois meses ou ter sido feita naquele próprio dia, como não há contador, não há forma de determinar há quanto tempo a ligação tinha sido efetuada.
Pela testemunha G….., canalizador que também trabalha para a ofendida, foi referido que tendo sido chamado pela anterior testemunha, chegou ao local e desligou a ficha para ligação à agua e viu um casal a falar com a polícia, mas não ouviu o que diziam.
Pela testemunha H…., Agente da Polícia de Segurança Pública foi dito que conheceu os arguidos na altura por causa de ter sido feita uma ligação direta da água, sem passar pelo contador. A senhora que veio à porta, a arguida, disse que o marido tinha feito a ligação uma semana antes porque tinham cinco crianças. Disse também que tinham pedido a ligação, mas não tinham ido ainda fazer o contrato.
Pela testemunha I….., Diretora Financeira e Administrativa da ofendida foi exposto o cálculo para o valor peticionado no pedido de indemnização. Tiveram em conta a data da celebração do contrato de arrendamento em 1.11.11 e a data em que foi detetada e cortada a ligação direta, em 25.1.12 (três meses ou mais exactamente 85 dias) e o consumo do escalão médio. Referiu também ter havido um pedido para instalação em 17.1.12, terem informado o cliente via telefone que havia condições de ligação e podia passar por lá, mas só ter vindo a ser celebrado um contrato em 26.1.12.
Tive também em conta as declarações dos arguidos sobre a sua condição económica e familiar e os certificados de registo criminal, quanto aos antecedentes.
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Enquadramento jurídico-penal: (transcrição)
Questão prévia
Em Alegações a Ilustre Defensora do arguido suscitou a questão da conduta dos arguidos integrar o crime de furto previsto no artigo 207º, pelo que não tendo sido deduzida acusação particular, carecia o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação.
Cumpre apreciar e decidir.
Aos arguidos é imputada a prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal.
De acordo com o disposto neste artigo “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” (dispondo o nº 2 ser a tentativa punível e o nº 3 depender o procedimento criminal de queixa).
Constituem assim elementos constitutivos do crime de furto:
a) A subtracção;
b) De coisa móvel alheia com valor patrimonial;
c) Com ilegítima intenção de apropriação.
O primeiro elemento reconduz-se à ação que poderá ser efetuada pelo agente diretamente - mediante a apreensão manual da coisa - ou indiretamente, através do recurso a instrumentos ou a por exemplo a animais especialmente treinados para tal.
Para Beleza dos Santos a subtração consiste na “violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objeto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente” (RLJ, 58-252).
Para Eduardo Correia, “não basta privar o dono do gozo da coisa de que é desapossado; é preciso ... que ela saia da esfera patrimonial do ofendido e entre no património de outrem, em regra, no do próprio agente (BMJ 182º-314).
Maia Gonçalves considerava que “a subtração não se esgota ... com a mera apreensão da coisa, e pode mesmo não haver apreensão; essencial é que o agente a subtraia da posse alheia e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro. Não é necessário que a coisa seja mudada de um lugar para outro, nem tão pouco que chegue a ser usada pelo agente ou terceiro. Tão pouco é necessário o “lucri faciendi”, exigido pelos romanos”(anotação ao artigo 296º do texto de 1982, in Código Penal Português, 7ª ed. 636).
Coisa para efeitos penais e de crime de furto, é toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um valor qualquer, mas juridicamente relevante. Não constituem assim objeto material do crime de furto a res nullius (a que jamais teve dono), a res derelita (a que veio a ser abandonada, renunciando o dono à sua propriedade) que podem ser adquiridas licitamente pela ocupação, nos ermos dos artigos 1318º e segts. do Código Civil e a res commune omnium (a que não é susceptível de ocupação na sua totalidade ou conjunto natural da sua massa, embora de uso geral, como o ar, a luz ou o calor do sol, a água dos mares e rios, etc.).
O elemento “intenção de apropriação” deve ser visto e valorado como a vontade intencional do agente de se comportar, relativamente a coisa móvel, que sabe não ser sua, como seu proprietário, querendo, assim integrá-la no seu património ou de terceiro. Para que haja apropriação é necessário que se verifique ainda além do animus, um corpus - relação material entre o agente e a coisa, que não tem de ser de necessária continuidade física corpore et tactu. A apropriação traduzir-se-á assim no autónomo poder material sobre a coisa, na possibilidade atual e imediata de dispor fisicamente da coisa (v. José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, págs. 33 e 34).
Como supra referido, foi então suscitada em Alegações pela Exmª Defensora do arguido a questão da natureza do crime, que considerou ser particular por estarmos perante um crime de furto por formigueiro.
Dispõe a respeito o artigo 207º do Código Penal, prescrevendo na sua alínea b) que no caso do artigo 203º o procedimento criminal depende de acusação particular se “a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for de valor diminuto e destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a) (cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges). Citou a propósito o Acórdão da Relação de Lisboa de 29.11.2010.
Este Acórdão (que se encontra in www.dgsi.pt ) teve por base uma situação semelhante à dos autos.
Consignou-se no mesmo o seguinte:
A natureza particular do crime de furto depende:
(i)Do valor diminuto da coisa furtada;
(ii) Da imediatidade: ser a coisa destinada a utilização imediata; e
(iii) Da indispensabilidade: mostrar-se a coisa indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou do seu cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau ou de pessoa que com ele conviva em condições análogas às dos cônjuges (artigo 207º, alínea b) do Código Penal).
II Mostra-se indispensável à satisfação de necessidades básicas e vitais da arguida e de seus 3 filhos menores o consumo de água que a arguida subtraiu à rede pública para manter o abastecimento de água à habitação onde com eles vive, numa situação económica muito precária.
III – A imediatidade da utilização da água resulta da própria natureza das coisas: quando se abre a torneira, a água então subtraída é imediatamente utilizada para satisfazer necessidades de dessedentação ou de higiene, assim devendo considerar-se mesmo que, por um período temporal limitado, a água seja armazenada em garrafas ou noutros recipientes.
IV- Não resultando da matéria de facto apurada qual o valor da água furtada e não podendo a dívida quanto a tal valor ser valorada em desfavor da arguida, deve ter-se como verificado o requisito do valor diminuto (inferior a 1 UC) da coisa furtada.
V – A legitimidade do Ministério Público constitui um pressuposto processual que se mantém em aberto ao longo de toda a tramitação do processo penal.
VI – Se a ofendida não assumiu a posição de assistente nem deduziu acusação particular previamente à acusação do Ministério Público, deve o tribunal de recurso declarar a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal e abster-se de conhecer do mérito.
Compulsada a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, considerou-se a propósito no Acórdão de 26.4.2006, no qual se refere o despacho da 1ª Instância, que concluiu nos seguintes termos: “Tratando-se, este, de um caso que preenche os requisitos do disposto na alínea b) do artigo 207º do Código Penal, carece o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal, nomeadamente para deduzir a acusação nos termos em que o fez (art. 48, 50º, 285º do Código de Processo Penal) pelo que se encontra o procedimento enfermo de uma nulidade insanável (art. 119º al. b) do Código de Processo Penal). Pelo exposto, não recebeu a acusação por carecer de pressuposto processual de legitimidade. Refere-se também que valor diminuto, nos termos do artigo 202º, al. c) é aquele que não excede uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, e que “tem sido entendimento doutrinal e jurisprudencial que, o legislador ao incluir a incriminação deste “crime formigueiro” na categoria dos crimes dependentes de acusação particular, fá-lo atendendo à premência da satisfação de necessidades básicas do agente, pelo que este tipo de furto se refere, essencialmente, a coisas comestíveis, bebidas, em pequena quantidade e de pequeno valor, para utilização imediata pelo agente (Ac. STJ de 22 de Maio de 1997, CJSTJ, ano V, t 2, p. 224).
Para o enquadramento de um crime de furto na previsão do artigo 207º b) do Código Penal é necessária a verificação simultânea dos seguintes pressupostos:
- Incidência da subtração e apropriação sobre objetos comestíveis, bebidas ou produtos agrícolas;
- Que se trate de coisas de pequeno valor e pequena quantidade;
- Imediatismo da utilização; e
- Destinação da utilização pelo agente, cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau (v. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.3.1995).
“In casu” apuraram-se os factos constantes da acusação, mas apurou-se também que estava em causa um bem de primeira necessidade, como a água, através da qual designadamente se mata a sede, destinando-se a mesma às necessidades próprias e dos cinco filhos menores, existir um imediatismo na utilização, e estar em causa um valor inferior a uma UC à data da prática dos factos – sendo que tal sucede quer porque o valor estimado pela ofendida é inferior, quer porque se apurou que o valor real, não apurado, será ainda inferior a este valor indicado pela ofendida. Ou seja, a ofendida terá elegido como elementos de cálculo a data da celebração do contrato de arrendamento e a data em que cessou a ligação ilícita, mas o que resultou da audiência, é que primeiro os arguidos estavam a beneficiar da água que provinha da ligação com o contador do anterior proprietário ou locatário e que quando o arguido fez a ligação, tal ocorreu depois de ter sido cortado o primeiro contador e entre o período de fiscalização da primeira testemunha, e eventualmente, também entre o período em que após solicitarem a ligação da água, o avaliador foi ao local para aferir se o mesmo preenchia os requisitos necessários. Nestes termos e conforme pretendido pelos arguidos, poderemos estar perante um período de poucos dias. Assim, se para 85 dias a ofendida calculou um valor de 112,94 €, estando em causa menos de 8 dias, o valor em causa será em princípio muito inferior.
Face ao exposto, conclui-se que estaremos efetivamente perante a situação de furto prevista no artigo 207º, pelo que o crime reveste natureza particular. Não tendo a ofendida após se constituir assistente, deduzido acusação particular, constata-se a falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação pública.
Em consequência, o procedimento criminal irá ser julgado extinto.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber se os factos imputados aos arguidos integram a prática do crime de furto simples o qual, atento o disposto no nº 3 do artº 203º do Cód. Penal reveste natureza semi-pública ou se, no caso em apreço, assume natureza de crime particular por se verificarem os pressupostos enunciados na alínea b) do artº 207º do Cód. Penal.
Antes de mais importa realçar que, quer num caso quer no outro, a ilicitude dos factos e a respetiva moldura penal permanece a mesma. Só o regime de procedibilidade dos crimes se modifica: se se verificarem os pressupostos previstos nas alíneas do artº 207º o crime passa a ser particular.
No caso em apreço, na sequência da queixa apresentada pela empresa municipal D….., SA., o Mº Público deduziu acusação contra os arguidos imputando-lhes a prática em co-autoria material de um crime de furto simples p. e p. no artº 203º do Cód. Penal.
Na sequência da audiência de julgamento, a Srª. Juíza entendeu que a materialidade fáctica apurada se enquadrava jurídico-penalmente no artº 207º al. b) do Cód. Penal pelo que, não tendo a ofendida requerido a sua intervenção como assistente e deduzido acusação particular, o Mº Pº carecia de legitimidade para deduzir acusação pública, razão por que considerou extinto o procedimento criminal.
Vejamos:
Dispõe o artº 207º al. b) do Cód. Penal que: «No caso do artigo 203º e do nº 1 do artigo 205º, o procedimento criminal depende de acusação particular se: a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for de valor diminuto e destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a)».
O enquadramento de um crime de furto na previsão do artº 207º al. b) do Cód. Penal, depende assim da verificação simultânea dos seguintes pressupostos:
- incidência da subtração e apropriação sobre objetos;
- que se trate de coisas de pequeno valor e pequena quantidade (por isso, vulgarmente denominado “furto formigueiro”;
- imediatismo da utilização; e
- destinação da utilização pelo agente, cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao 2º grau.
Nos termos do art. 202.º, al. c), valor diminuto é “aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto.” Considerando que os factos ocorreram entre 1 de Novembro de 2011 e 25 de Janeiro de 2012, a unidade de conta a considerar corresponde a € 102,00[3].
Por outro lado, tem sido entendimento doutrinal e jurisprudencial que o legislador ao incluir a incriminação deste “crime formigueiro” na categoria dos crimes dependentes de acusação particular, fá-lo atendendo à premência da satisfação de necessidades básicas do agente, pelo que este tipo de furto se refere, essencialmente, a coisas comestíveis, bebidas, em pequena quantidade e de pequeno valor, para utilização imediata pelo agente[4].
No que respeita ao imediatismo da utilização, tem-se entendido que a mesma não pode deixar de se relacionar com a premência e atualidade da necessidade a satisfazer; essa satisfação ocorrerá, as mais das vezes, segundos ou minutos depois da subtração, sem que porém se possa estabelecer à partida, em abstrato, um tempo limite, passado o qual já não se possa falar de utilização imediata; tudo depende do condicionalismo do caso[5].
Por outro lado, exige-se que os bens subtraídos se destinem «a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente» ou de qualquer outra das pessoas já mencionadas.
Como se referiu no Ac. do STJ de 22.05.1997 “a previsão do artº 207º al. b) do Cód. Penal propõe-se uma finalidade que como que complementa a justificação do facto assente no direito de necessidade ou a exclusão da culpa com base no estado de necessidade e destina-se a dar um tratamento benévolo aos casos em que, embora sem os pressupostos de facto e de direito para neles se enquadrarem, estão próximos destas figuras jurídicas”. Ou como escreve Faria Costa[6] “primeira e mais saliente das coisas que urge trazer ao debate conexiona-se com a radical diferenciação que a presente satisfação de uma necessidade tem quando cotejada com as verdadeiras situações pertencentes a um estado de necessidade justificante”.
Volvendo ao caso em apreço, resultou provado que entre o dia 1 de Novembro de 2011 e o dia 25 de Janeiro de 2012, atuando de comum acordo e em conjugação de esforços, os arguidos efetuaram uma ligação direta à rede de abastecimento público de água, ligando uma bucha flexível metálica entre o tubo da rede de abastecimento de água e a canalização do apartamento em que habitavam e passaram a consumir água proveniente de tal rede, para seu uso doméstico, em quantidade não apurada, mas inferior a € 112,94, sem pagarem o respetivo preço ao fornecedor e legítimo detentor.
No que respeita ao preço da água subtraída pelos arguidos, através do meio supra descrito, não temos dúvidas em considerá-lo como de valor diminuto.
Com efeito, não se apurou a quantidade da água subtraída, embora se tenha considerado que a mesma seria inferior a € 112,94 (correspondente à estimativa de consumo efetuada pela ofendida). Por isso, a projeção material do princípio in dubio, enquanto princípio relevante da prova sobre elementos de facto relevantes em processo penal, impõe que a indeterminação do valor da coisa ou objeto subtraído tenha de ser valorada a favor dos arguidos.
Sobre a matéria vale a lição de Figueiredo Dias: “ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (…), de exclusão da culpa (…) e de exclusão da pena (…), bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado prova completa da circunstância favorável ao arguido”[7].
Neste sentido, perante os factos provados, na qualificação jurídico-penal não poderá ser considerado um valor que não seja aquele que seja o mais favorável, e que é o contido na definição legal de valor diminuto[8].
Não podemos, porém, concordar com a decisão recorrida quanto à integração que faz dos restantes elementos do tipo, ou seja, quanto à imediatez da utilização e à satisfação de necessidades básicas dos arguidos e dos cinco filhos menores.
Como sustenta Paulo Pinto de Albuquerque[9] “dada a exigência de utilização imediata, não se inclui no artº 207º al. b) o furto praticado para satisfação de necessidades de consumo prolongadas no tempo”. No caso concreto, ao efetuarem a ligação direta através da utilização de bucha flexível metálica entre a rede de abastecimento e o apartamento em que residiam, os arguidos não pretenderam utilizar uma única vez a água que pudessem subtrair. Fizeram-no ao longo de vários dias, no período compreendido entre 01.11.2011 e 25.01.2012. O que está em causa é, portanto, a subtração ao pagamento do preço do abastecimento contínuo e regular de água de consumo público. Já seria suscetível de enquadrar o referido conceito – utilização imediata – a subtração de um bidão de água pública para consumo imediato.
Por outro lado, a matéria de facto provada não permite afirmar que os arguidos consumiram apenas a água indispensável à satisfação das necessidades básicas do agregado familiar. É sabido que, para além de matar a sede, a água é utilizada para os mais diversos fins, tais como na higiene pessoal, na lavagem da roupa e louça, na limpeza da casa e até na lavagem do automóvel.
Não resulta da matéria de facto que os arguidos se limitassem a utilizar a água para beber, assim satisfazendo uma necessidade básica e vital, pelo que não se mostra preenchido o referido pressuposto do tipo legal.
Por isso não concordarmos com a remissão feita para o Ac. Rel. Lx de 29.11.2010[10], na medida em que neste aresto, proferido sobre base factual com contornos semelhantes, se refere que a água era imediatamente utilizada para satisfazer necessidades de dessedentação e de higiene.
Finalmente, do elenco dos factos provados não resulta que, à data dos factos, os arguidos não fossem dotados de meios financeiros suficientes para satisfação de tais necessidades, ou sequer, que as mesmas fossem prementes. Estando implícita na figura do “furto formigueiro” a ideia de inexigibilidade [daí entender-se que a previsão típica se refere à ocorrência de um estado de necessidade justificante], necessário seria que se tivesse demonstrado que a situação económica e financeira dos arguidos não lhes permitia a aquisição da água por meios lícitos, designadamente mediante a celebração do respetivo contrato de fornecimento com a empresa ofendida.
Conclui-se assim que os factos provados – e só nestes se podia basear o enquadramento jurídico feito na decisão recorrida – integram os elementos objetivos e subjetivos do crime de furto simples p. e p. no artº 203º do Cód. Penal, pelo que a dedução de acusação pelo Mº Público não merece censura, já que para tal tinha plena legitimidade (artº 203º nº 3 do Cód. Penal e arts. 48º e 49º do C.P.P.).
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Face à diversa qualificação jurídica dos factos provados, impõe-se a aplicação da respetiva sanção aos arguidos, não obstante virem surgindo vozes a defender que o Tribunal de recurso, não pode aplicar a pena no caso de provimento de recurso interposto de decisão absolutória, pois que ficaria preterido o direito, do assim condenado, ao recurso.
Contudo, sufragando a posição seguida, entre outros, no Ac. desta Relação de 13.10.2010[11] entendemos que a aplicação da pena por este Tribunal em nada contende com o direito de defesa e de recurso do arguido.
No sistema jurídico-penal português, em obediência ao artº 40º nº 1 do Cód. Penal, qualquer pena tem como finalidade primária o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime[12]. A pena constitui, portanto, uma reação à infração de uma norma. Daqui resulta que a finalidade da prevenção geral positiva coincide, em grande parte, com a necessidade de reafirmação nas normas previstas no ordenamento jurídico. Deste modo, a prevenção geral positiva não pode colocar em causa o mínimo de pena imprescindível à garantia, reclamada pela comunidade, da proteção dos bens jurídicos previstos pelo tipo legal violado pelo agente.
No entanto, impõe o nº 2 do artº 40º do Cód. Penal que a culpa do agente constitua o limite inultrapassável da pena, afigurando-se, igualmente em obediência aos ditames constitucionais, como “conditio sine qua non” da sua aplicação.
Assim, dentro do limite máximo permitido pela culpa, deve o aplicador do direito criar uma moldura definida, no seu limite superior, pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e, no ponto inferior, pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
Dentro desta moldura, a escolha e a medida da pena serão fixadas em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação.
Cumpre assim proceder à determinação do tipo de pena a aplicar a cada um dos arguidos, posto que o crime de furto simples é punido com pena de prisão de um mês a três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias.
Neste ponto, postula o artº 70º do Cód. Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Do ponto de vista da prevenção geral, importa acentuar que a prática de tais actos não é indiferente à proteção da comunidade. Devem, pois, sofrer um forte estímulo repressivo para que não se repitam, tudo em ordem à proteção do bem jurídico em causa.
Por outro lado, e tendo em conta as circunstâncias previstas no artº 71º do Cód. Penal, há que considerar: o grau de ilicitude do facto e as respetivas consequências, ou seja o prejuízo causado à Empresa Municipal de Águas, que tem de considerar-se diminuto, embora não se mostre documentado nos autos que os arguidos tenham já procedido ao pagamento do valor correspondente à água subtraída; o dolo direto com que os arguidos agiram; e, finalmente, os antecedentes criminais sem especial relevo.
Assim, entende-se que as exigências de prevenção geral e especial positivas serão conseguidas mediante a imposição de uma pena não privativa da liberdade.
Cabe, porém, assinalar que a pena de multa é uma autêntica pena criminal, com um carácter expiatório e ressocializador, pelo que não pode converter-se numa forma disfarçada de absolvição ou de atenuação, nem uma punição meramente bagatelar. O condenado em pena de multa deve ter consciência do sacrifício que esta representa. Por isso, na sua aplicação devem evitar-se os efeitos secundários criminógenos, nomeadamente a falta de consciência do efeito punitivo da multa, gerando a crença de que o pagamento redime sem deixar marcas regenerativas.
Tudo ponderado, atenta a moldura abstrata da pena não detentiva prevista na lei, o valor diminuto do prejuízo causado e as demais circunstâncias supra referidas, entende-se como adequada a pena de 80 (oitenta) dias de multa para cada um dos arguidos.
No que respeita à taxa diária da multa, tendo em consideração o disposto no artº 47º do Cód. Penal e que a arguida é doméstica, não aufere quaisquer rendimentos, vive com quatro filhos com idades compreendidas entre os 10 e os 17 anos de idade, e apenas aufere o abono de família no valor global de € 175,00, tendo o arguido começar a trabalhar recentemente, contando auferir o vencimento de € 485,00, fixa-se o montante diário da multa em € 5,00 para a arguida e em € 6,00 para o arguido.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, como co-autores materiais de um crime de furto simples p. e p. no artº 203º do Cód. Penal, condenam:
- o arguido C..... na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros);
- a arguida B..... na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros).
Considerando que os arguidos foram agora condenados pelo crime que lhes era imputado na acusação, impõe-se proceder à sua condenação em custas, o que se determina, fixando-se a taxa de justiça individual em 2 UC’s – artºs. 513º do C.P.P. e 8º nº 5 do C.P.P., com referência à tabela III abexa.
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Porto, 17 de Abril de 2013
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr. artº 5º do RCP (Dec-Lei nº 34/2008 de 26.02) e artº 79º da Lei nº 64-A/2011 de 30.12.
[4] Cfr., por todos, Ac. do STJ de 22 de Maio de 1997, CJSTJ, ano V, t. 2, p. 226.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 27.10.2008, Proc. nº SJ200710250019465, Cons. Souto de Moura, disponível em www.dgsi.pt.
[6] In Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Tomo II, pág. 130.
[7] In Direito Processual Penal, Volume I, 1974, pág. 215.
[8] Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 23.06.2010, Cons. Henriques Gaspar, Proc. nº 246/09.6GBLLE.S1, 3ª secção.
[9] In Comentário do Código Penal, edª. 2008, pág. 572.
[10] Proferido no Proc. nº 479/07.0TABRR.L1, Des. Maria José Costa Pinto e disponível em www.dgsi.pt
[11] Relatado pelo Des. Ernesto Nascimento, disponível em www.dgsi.pt
[12] Neste sentido, Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 106.