Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
401/21.0T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
PERICULUM IN MORA
DIREITO DE SEQUELA
COMPRA E VENDA DE BEM FUTURO
Nº do Documento: RP20210923401/21.0T8PVZ.P1
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
II - A sequela é uma faculdade inerente aos direitos reais pelo que é impossível a existência de um direito de sequela na esfera do Recorrente quando nem direito real tem a seu favor.
III - O Recorrente convoca a aquisição dos bens futuros em “emptio rei speratae” e “emptio spei”.
No primeiro caso, estamos perante bem a produzir, sendo que só depois da produção ocorrerá naturalmente o efeito translativo e aquisição do direito real.
No segundo caso, o contrato extingue-se por impossibilidade de cumprimento, dando tão-só ao adquirente a faculdade de reaver o preço pago.
No caso vertente, o Recorrente reconduz a situação em apreço à “emptio rei speratae” quando a deveria ter reconduzido à “emptio spei”.
IV - No caso vertente, a Recorrida nunca praticou qualquer acto que não permitisse a venda acordada. Com efeito, a viatura em causa nos autos não é a encomendada por si, nem tem as especificações que este indicou a Agosto de 2020, sendo certo que é a especificação que confere identidade ao veículo automóvel, e só com aquela ocorre a sua determinação. Só então o Recorrente poderia eventualmente arrogar-se no direito a um certo e determinado veículo automóvel e não a um dentro do seu género.”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
Processo n.º 401/21.0T8PVZ.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, residente na rua …, nº …, …, Vila Nova de Famalicão, instaurou o presente procedimento cautelar comum contra “C…, S.A.”, com sede na Avª. …, nº …/…, …, Porto, e contra “D…, S.A.”, com sede na rua …, nº .., Sintra onde concluiu pedindo que seja determinado à requerida “C…, S.A.”, enquanto concessionária da marca “Mercedes” em Portugal, e à requerida “D…, S.A.”, enquanto importadora exclusiva dos veículos automóveis da mesma marca para Portugal, que se abstenham de, por qualquer meio, entregar a quem quer que seja o veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, que a requerida “C…, S.A.”, se obrigou a transmitir ao requerente da providência, bem como se abstenham de celebrar com terceiros qualquer contrato de compra ou praticar actos de transmissão, incluindo subscrição de declarações de compra e venda e consequentemente actos de registo automóvel nas conservatórias competentes.
Alegou, em síntese, que a requerida “C…, S.A.”, em Março de 2019 contactou o requerente, propondo a este a aquisição de um veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, ainda não produzido, que seria importado para Portugal em número reduzido, na medida em que a nível mundial seriam fabricadas apenas 200 unidades de tal modelo.
Afirma que a 19 de Março de 2019 entre o requerente e a requerida “C…, SA”, foram acertadas todas as condições do negócio, assinando o requerente a proposta de compra que lhe foi apresentada, nessa data entregando à requerida “C…, S.A.”, a quantia de € 20.000,00, e sendo o preço pela compra sido provisoriamente fixado em € 300.000,00.
Mais alega que, em finais de 2020, o requerente tomou conhecimento da intenção da requerida “C…, S.A.”, em não cumprir o contrato que celebrou com o requerente, aparentemente pretendendo transmitir a terceiro o veículo automóvel destinado ao requerente.
Alega, ainda, que, por cartas de Novembro de 2020, Fevereiro e Março de 2021, comunicou à requerida “C…, S.A.”, que não prescindia da sua posição contratual, opondo-se a que o veículo que lhe estava destinado fosse entregue a terceiro.
Invoca, igualmente, que a requerida “C…, S.A.”, em resposta, declarou ao requerente que não lhe iria ser possível honrar o compromisso que assumira perante o requerente por ir receber apenas um veículo do modelo em causa, que já se encontrava destinado a outro cliente.
Alega, ainda, que o veículo cuja aquisição contratou com a requerida “C…, SA”, provém de uma série limitada, sendo um veículo automóvel de colecção, não podendo ser substituído por qualquer outro.
Mais alega, ter celebrado com a requerida “C…, S.A.”, contrato de compra e venda válido, perfeito e eficaz, estando aquela vinculada a entregar ao requerente o veículo automóvel objecto do negócio, traduzindo a conduta que a requerida “C…, S.A.” ameaça praticar violação dos termos contratuais.
Defende que a inexistência de outro veículo cuja entrega ao requerente seja susceptível de configurar cumprimento do contrato razoavelmente não permite aguardar pelo desfecho da acção principal.
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Foi indeferida a dispensa da audiência das requeridas.
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Citadas, as requeridas apresentaram oposição.
A requerida “C…, S.A.”, em síntese, na sua oposição, reconhece ter o aqui requerente da providência manifestado o interesse na aquisição de um veículo da marca e modelo identificados no requerimento inicial, confirmando ter o requerente entregue, a 19 de Março de 2020, a quantia de € 20.000,00 para garantir a reserva da futura aquisição do veículo que ainda ia ser produzido, data em que foi assinado o documento cuja cópia consta de fls 16.
Alega não ter sido o requerente o único a mostrar interesse na aquisição, tendo outra pessoa procedido à entrega do valor da reserva antes do requerente.
Afirma que já nesse momento o requerente tinha conhecimento de o negócio ter por objecto veículo ainda não fabricado, e cuja disponibilização pela requerida dependeria da manutenção da decisão do fabricante em entregar ao concessionário as unidades que haviam sido projectadas.
Invoca, ainda, que, em Agosto de 2020, o requerente da providência é convidado a configurar o modelo por si pretendido.
Alega que, no final de Agosto de 2020, a requerida é informada da decisão do fabricante em reduzir o número de unidades atribuídas a Portugal do veículo em cuja aquisição o requerente havia mostrado interesse, o que teve como consequência a impossibilidade de a requerida satisfazer a intenção dos 2 clientes que haviam entregue o valor exigido para a reserva, entendendo a requerida dever conferir preferência ao outro cliente que não o requerente, por ter procedido ao pagamento em data anterior.
Afirma ter disso dado conhecimento ao requerente em Novembro de 2020, por várias vezes solicitando-lhe a indicação do IBAN do requerente para devolução da quantia entregue, indicação a que o requerente da providência ainda não procedeu.
Defende não se verificar a aparência do direito invocado pelo requerente, na medida em que o veículo automóvel em causa não se encontrava ainda fabricado, nem era garantido que a requerida recebesse tal veículo em unidades suficientes para que uma delas viesse a ser adquirida pelo requerente, por isso não tendo sido celebrado qualquer contrato de compra e venda.
Se assim se não entender, alega, estaremos perante contrato de compra e venda de bem futuro, sobre a requerida recaindo apenas a obrigação de exercer as diligências necessárias à aquisição do veículo pelo requerente.
A entender-se estarmos perante contrato promessa de compra e venda, continua, a entrega da quantia de € 20.000,00 deve presumir-se ter sido efectuada a título de sinal, o que, nos termos legais, exclui a possibilidade de execução específica.
A entender-se estarmos perante contrato de compra e venda, ocorreu impossibilidade objectiva de cumprimento, ao requerente assistindo somente o direito à restituição da quantia entregue.
Defende não ocorrer perigo de lesão grave ou dificilmente reparável ao direito de que o requerente se invoca titular, e, a ser como o requerente pretende, sempre haveria lugar à aplicação de procedimento especificado.
Conclui pedindo a improcedência da providência.
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A requerida “D…, S.A.”, em síntese, na sua oposição, afirma dedicar-se à importação para Portugal de veículos automóveis das marcas “Mercedes-Benz” e “Smart”, embora declare não o fazer com exclusividade.
Alega que, após a importação, os veículos automóveis são distribuídos pela rede de concessionários autorizados daquelas marcas, sendo um deles a requerida “C…, S.A.”.
Nega ter tido qualquer contacto com o autor, ou com este celebrado qualquer negócio relativo a um veículo automóvel.
Reconhece, ainda, que a requerida “C…, S.A.”, em Outubro de 2019 indicou o requerente da providência como interessado na aquisição do veículo automóvel em causa.
Invoca que em Agosto de 2020 foi informada pelo fabricante da redução do número de veículos de tal modelo que iriam ser produzidos, do que deu conta à requerida “C…, S.A.”.
Alega, ainda, que o veículo que o requerente da providência alega ter encomendado não existe.
Invoca inexistir qualquer emergência ou perigo que justifiquem o decretamento da providência.
Conclui pedindo o indeferimento da providência.
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Foram produzidas as provas requeridas pelas partes.
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Foi proferida sentença que julgou o procedimento cautelar improcedente.
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Não se conformando com a sentença proferida, o recorrente B… veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A requerida “C…, SA”, dedica-se, com escopo lucrativo, ao comércio de veículos automóveis, suas peças e acessórios, sendo uma das concessionárias em Portugal da marca “Mercedes”, designadamente dos veículos automóveis “Mercedes …”.
2. A requerida “D…, SA”, dedica-se à importação de veículos da marca “Mercedes-Benz” para o território português, cabendo-lhe a sua distribuição para os diversos concessionários.
3. No âmbito da sua actividade, sabendo a requerida “C…, SA”, ser o requerente coleccionador de veículos da marca “Mercedes”, contactou-o propondo-lhe a aquisição de um veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, modelo que seria importado para Portugal em número reduzido por se prever a sua produção e comercialização, a nível mundial, também em número reduzido…
4. … O que o requerente aceitou, sendo em Março de 2020 acertadas as condições do negócio, designadamente a assinatura do documento cuja cópia consta de fls 16 e a entrega da quantia de € 20 000,00 à requerida “C…, SA”.
5. Em finais de 2020 o requerente tomou conhecimento que a requerida “C…, SA”, não perspectiva entregar ao requerente o veículo automóvel a que se referem os documentos cujas cópias constam de fls 16 a 19.
6. A requerida “C…, SA”, ainda não restituiu ao autor a quantia de € 20 000,00 referida em 4.
7. O requerente remeteu à requerida “C…, SA”, as cartas cujas cópias constam de fls 20 a 22, declarando não prescindir da posição contratual que entendia ser sua ao ser assinado o documento cuja cópia consta de fls 16, opondo-se a que o veículo que lhe estava destinado fosse entregue a terceiro.
8. O veículo automóvel referido em 3 [da marca “Mercedes”, modelo “…”] integra série de produção limitada ao período temporal 2020/2021.
9. Em Setembro de 2019 a requerida “C…, SA”, recebeu comunicação electrónica da requerida “D…, SA”, solicitando informação quanto ao número de unidades do veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, em que estaria interessada, devendo associar o nome de um cliente a cada pedido.
10. Na sequência, a requerida “C…, SA”, entrou em contacto com diversos clientes que considerou poderem estar interessados na aquisição, acabando por contactar o aqui requerente.
11. Em Março de 2020 a requerida “C…, S.A.”, foi informada pela requerida “D…, SA”, do número de unidades do veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, que era intenção do fabricante produzir, sendo atribuída à requerida “C…, SA”, uma quota de produção de 2 unidades.
12. Então, a requerida “C…, S.A.”, contactou os seus clientes que haviam manifestado interesse na aquisição, sendo que apenas 2 (o requerente e um terceiro) o mantiveram, na sequência do que a 19 de Março de 2020 foi assinado o documento cuja cópia consta de fls 16 e entregue a quantia referida em 4.
13. No momento referido em 4 e 12 o requerente tinha conhecimento que nenhum exemplar do veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, se encontrava produzido ou sequer em produção.
14. No momento referido em 4 e 12 não era conhecido o preço final de venda do veículo, ou as suas especificações técnicas.
15. A 08 de Agosto de 2020 a requerida “C…, S.A.”, convida o requerente a escolher as configurações do veículo que pretendia adquirir, o que é feito pelo requerente.
16. A 25 de Agosto de 2020, a requerida “D…, S.A.”, informa a requerida “C…, SA”, que ao comércio desta apenas seria destinado um veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”.
17. Na sequência, a requerida “C…, S.A.”, decidiu atribuir a terceiro a única unidade do referido modelo de veículo que tem a expectativa de receber.
18. Em Novembro de 2020, em reunião presencial, a requerida “C…, SA”, informou o requerente que, devido à política do fabricante, não iria receber o número inicialmente previsto de unidades do veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, e por isso não iria entregar ao requerente da providência um veículo de tal marca e modelo, propondo ao requerente a imediata restituição, por transferência bancária, do valor da quantia pelo mesmo entregue em Março de 2020.
19. Não tendo o requerente da providência disponibilizado o seu IBAN à requerida “C…, S.A.”, em Março de 2021 esta remeteu ao requerente a carta cuja cópia consta de fls 97.
20. A requerida “D…, S.A.”, não celebrou qualquer contrato ou negócio com o requerente da providência.
21. Não foi fabricado, e provavelmente não o será, um veículo com as configurações escolhidas pelo requerente da providência.”
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão por resolver no âmbito do presente recurso consiste em aferir se se encontram reunidos os pressupostos legais para deferimento das providências cautelares requeridas.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
Na decisão recorrida entendeu-se não estarem verificados os requisitos para deferimento da providência cautelar.
Deste entendimento dissente o recorrente.
Vejamos, então.
Ora, preceitua o n.º 1, do artigo 362.º do Código de Processo Civil que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.
Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2 do mesmo normativo)
Como diz Abílio Neto, in Código Processo Civil, 13ª edição, pág. 187 “o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos: (a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393.º a 427.º do CPC; (d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar”.
Como se sabe a providência cautelar não especificada visa a tutela provisória de um direito ameaçado, sendo instrumental de um processo principal instaurado ou a instaurar - cf. artigo 364.º do Código de Processo Civil.
Afirma Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, I Vol, pág. 623 que “A providência cautelar surge como antecipação e preparação duma providência ulterior: prepara o terreno e abre caminho para uma providência final. A providência cautelar, nota Calamendrei, não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substancial, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material. Portanto, a providência cautelar é posta ao serviço duma outra providência, que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Este nexo entre a providência cautelar e a providência final pode exprimir-se assim: aquela tem carácter provisório, esta tem carácter definitivo”.
No que diz respeito à apreciação do requisito da titularidade do direito, a lei contenta-se com a emissão de um juízo de probabilidade ou verosimilhança, exigindo, todavia, que tal probabilidade seja justa e séria - cf. L.P. Moitinho de Almeida, in Providências Cautelares Não Especificadas, pg. 19 e segs.
Já no que concerne ao segundo requisito supra referido, o do fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, pressupõe a providência que aquele que a solicita se encontre perante meras ameaças. Se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, por falta de função útil, porque não há que evitar ou acautelar um prejuízo se este já se produziu, a não ser que a violação cometida seja o prelúdio de outras violações, que se mantenham actuais - cf. Moitinho de Almeida, in ob. cit.
Por outro lado, a violação receada não será qualquer uma, mas aquela que "modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito" - cf. Manuel Rodrigues in Processo Preventivo e Conservatório, pg. 67.
Ou seja, não basta, para o deferimento da providência, que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano. Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil.
Este último requisito há-de aferir-se já não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza.
Em suma, o que está em causa, em última análise, é obviar-se ao "periculum in mora".
Ou seja, a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.
Sabido é, que estamos no âmbito de procedimento cautelar, em termos de composição provisória do litígio, indiciada como necessária para assegurar a utilidade da decisão, para que se obtenha a efectiva tutela jurisdicional, garantindo o efeito útil da acção.
Assim sendo, e não visando resolver questões de fundo, mas antes acautelar os efeitos práticos da acção proposta ou a propor, basta um juízo de verosimilhança, afirmando-se a suficiência de uma prova sumária, assente num grau de probabilidade razoável, e não uma convicção que se poderá designar de plena, a concretizar em sede de acção, aquando do conhecimento do próprio litígio.
Ou seja, para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, nos termos do artigo 381.º, do Código de Processo Civil, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
Também não é despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado, assegurando consequentemente a efectividade do direito que está a ser posto em causa ou ameaçado, para além do prejuízo decorrente do decretamento da providência não dever exceder o dano que com a mesma se pretende evitar.
Precisando um pouco mais, diga-se que a imposição de uma medida ou providência cautelar pressupõe a existência, embora analisada em termos sumários, de um direito na esfera jurídica do requerente, no momento exacto em que formula a sua pretensão em juízo, pese embora a medida cautelar não perca a sua natureza instrumental relativamente à acção, reafirmando-se também quanto ao receio de lesão grave e dificilmente reparável, a inexigibilidade de um juízo de certeza, bastando um de verosimilhança, ou probabilidade séria.
Em ambos os casos, importa que o juízo a fazer assente numa realidade, ainda que sumariamente evidenciada, e não em considerações sem uma base factual que as suporte, devendo verificar-se, no que concerne ao justo receio, a ocorrência de prejuízos reais e certos, em termos de uma prudente avaliação de tal realidade, e não uma apreciação ou juízos de cariz meramente subjectivo, emocionalmente determinados.
Ora, nas situações, como a dos autos, em que a decisão tem como fundamento a inexistência dos requisitos para o decretamento da providência deduzida, traduzindo-se assim num julgamento antecipado sobre o mérito da mesma, tal decisão, por isso, só deverá ocorrer quando se mostre, por forma evidente e inquestionável, ser desnecessária qualquer instrução ou discussão posterior.
Como invoca a Recorrente, são quatro os requisitos para decretamento de providência cautelar não especificada:
(i) existência aparente do direito (subjetivo) na esfera do Requerente;
(ii) perigo de lesão eminente de tal direito;
(iii) proporcionalidade da medida face ao direito que pretende salvaguardar,
e
(iv) inexistência de providência cautelar especificada adequada ao caso.
Ora, sem a existência do direito na esfera do Recorrente revela-se desnecessário a análise da existência dos demais requisitos.
Recordando a providência apresentada, é requerido que a Recorrida “se abstenha de, por qualquer meio, entregar a qualquer que seja o veículo automóvel da marca Mercedes, modelo … que a primeira requerida se obrigou a transmitir para o requerente, e que, de igual modo, e em relação ao mesmo veículo automóvel, se abstenham de celebrar com terceiros qualquer contrato de compra ou praticar atos de transmissão, incluindo subscrição de declarações de compra e venda e consequentemente atos de registo automóvel nas conservatórias competentes (…)”
Ora, o Recorrente entende que lhe assiste um direito obrigacional na sequência do contrato que alega que foi celebrado.
Como ponto prévio, importa assinalar que não consta do elenco de factos dados como provados a celebração de um contrato de compra e venda entre as partes, mas tão-só que a Recorrida propôs ao Recorrente a aquisição de um veículo automóvel, tendo este aceite (factos provados 3 e 4).
Portanto, a natureza do acordo entre as partes é dúbia, como sublinha o Tribunal a quo na sua apreciação de direito.
Tal dúvida quanto à qualificação jurídica não impediu, contudo, o Tribunal a quo de declarar como inteiramente improcedente a providência requerida, pois o objeto do suposto negócio nem sequer existe.
Com efeito, atentando no facto provado n.º 21 resulta claro que “Não foi fabricado, e provavelmente não o será, um veículo com as configurações escolhidas pelo requerente da providência.”
Ora, analisando o teor da providência cautelar requerida, afigura-se-nos que o Recorrente pretende exercer um direito de sequela.
Com efeito, pretende que o automóvel de marca e modelo não seja entregue a terceiro, nem seja subscrita qualquer declaração ou feito qualquer registo susceptível de transmitir o dito veículo a terceiros.
Como ensinam Álvaro Moreira e Carlos Fraga, seguindo as preleções do Professor Doutor Carlos Mota Pinto, doutrina que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de novembro de 2005, proferido no processo n.º 7145/2005-8, disponível em www.dgsi.pt.:
“o direito segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação em que a coisa se encontre. Daí que o titular do direito real possa sempre exercer os poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objeto entre no domínio material ou na esfera jurídica de outrem”
E, como é sobejamente reconhecido, a sequela é uma faculdade inerente aos direitos reais.
Donde, como refere o Tribunal a quo, é impossível a existência de um direito de sequela na esfera do Recorrente quando nem direito real tem a seu favor.
Com efeito, a transmissão do direito real verifica-se, como resulta do disposto no artigo 408.º, n.º 2 do Código Civil, “quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes”.
Quanto à aquisição pela Recorrida, enquanto alienante, face aos factos dados como provados (mormente o 21), nenhum veículo modelo … foi entregue à Recorrida pelo fabricante, nem o mesmo sequer foi produzido.
Logo, também a determinação não ocorreu, o que impossibilita, de todo em todo, a transmissão do direito real ao Recorrente.
Ou seja, o Recorrente pretende exercer um direito que não existe na sua esfera jurídica: o direito de sequela.
Tal constatação, por si só, é suficiente para que a pretensão do Recorrente não proceda, independemente do nomen iuris que se atribua à relação estabelecida entre Recorrente e Recorrida.
Afastando a existência de um direito real na esfera do Recorrente restará considerar se o mero vínculo obrigacional – a existir – será suficiente para justificar a adoção da providência requerida.
Consideremos então, por mera hipótese de raciocínio, a existência de um contrato promessa de compra e venda ou de um contrato de compra e venda de bem futuro.
Relativamente ao contrato promessa, o seu incumprimento não confere à parte não faltosa a faculdade que vem aqui requerida. Pelo contrário, nos termos do artigo 442.º, n.º 2 do CC, a Recorrente teria tão-só direito ao dobro do sinal prestado e não mais, pois a constituição de sinal afasta a execução específica, como resulta do disposto no artigo 830.º, n.º 2 do CC.
Ou seja, não teria direito à coisa “prometida” pois não tem direito real a seu favor, tão-só um direito obrigacional.
Não assim no contrato promessa com eficácia real que, ao demandar o registo do ato, confere ao promitente-comprador a titularidade de um direito real de aquisição erga omnes, o qual consiste em que o seu titular possa “perseguir” o bem a que se reporta a promessa de compra e venda, conforme nos ensina o Acórdão do STJ, Processo n.º 319/08.9TBMTS-B.P1, 1ª Secção, de 9 de Janeiro de 2018, (http://www.dgsi.pt/jstj).
Por aqui se observa a summa distinctio entre os direitos reais e obrigacionais: é que os direitos obrigacionais não são oponíveis aos terceiros.
No presente caso, a considerar a existência de contrato promessa, a este nunca poderia ser dada eficácia real, sendo impossível inscrever no registo automóvel qualquer direito face a bem que nem existe.
Consideremos então a segunda hipótese: a existência de contrato de compra e venda de bem futuro.
Como o Recorrente reconhece, da celebração deste contrato resulta para o vendedor tão-só uma obrigação de “exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato”.
Depois, o Recorrente convoca a divisão dos bens futuros em “emptio rei speratae” e “emptio spei”.
No primeiro caso, estamos perante bem a produzir, sendo que só depois da produção ocorrerá naturalmente o efeito translativo e aquisição do direito real.
No segundo caso, o contrato extingue-se por impossibilidade de cumprimento, dando tão-só ao adquirente a faculdade de reaver o preço pago.
No caso vertente, o Recorrente reconduz a situação em apreço à “emptio rei speratae”, parecendo-nos que a deveria ter reconduzido à “emptio spei”.
Ora, do ponto 21 da matéria de facto dada como provada resulta que “Não foi fabricado, e provavelmente não o será, um veículo com as configurações escolhidas pelo requerente da providência.”.
Sendo assim, não tendo sido impugnado tal facto, teremos que reconduzir o presente caso à “emptio spei” - o bem não será produzido, pelo que será impossível o efeito translativo ocorrer.
Donde, apenas seria exigível à Recorrida envidar as diligências necessárias para a aquisição, pelo comprador, do bem.
Neste ponto, da matéria de facto dada como provada (pontos 16 e 18) consta que “A 25 de Agosto de 2020, a requerida “D…, S.A.”, informa a requerida “C…, S.A.”, que ao comércio desta apenas seria destinado um veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”.
E que “Em Novembro de 2020, em reunião presencial, a requerida “C…, SA”, informou o requerente que, devido à política do fabricante, não iria receber o número inicialmente previsto de unidades do veículo automóvel da marca “Mercedes”, modelo “…”, e por isso não iria entregar ao requerente da providência um veículo de tal marca e modelo, propondo ao requerente a imediata restituição, por transferência bancária, do valor da quantia pelo mesmo entregue em Março de 2020.”
Como os responsáveis da Recorrida, bem como as testemunhas da Requerida D…, S.A., afirmaram na audiência de julgamento, a decisão de não produção do automóvel desejado pelo Recorrente foi da exclusiva responsabilidade da fabricante “E…”.
Ademais, a referida decisão, aliás, não só afetou o Recorrente como muitos outros que viram as suas expectativas goradas pois a “E…”, por força da crise pandémica, necessitou de reconfigurar o número de unidades a produzir.
Efectivamente, as imposições da União Europeia em matéria de emissões de dióxido de carbono implicam que quando a procura por modelos menos poluidores e com maior alcance de mercado reduz, motivando decréscimo de produção, o que sucedeu in casu, a produção de modelos mais poluidores, mais potentes e exclusivos necessariamente terá que baixar para compensar.
A Recorrida nada pode fazer para inverter este mecanismo, sendo que nenhuma diligência que possibilite a produção do veículo desejado está ao seu alcance.
Ademais, a Recorrida nunca praticou qualquer acto que não permitisse a venda acordada.
Com efeito, e ao contrário do que afirma o Recorrente, a viatura que se vem de referir não é a encomendada por si, nem tem as especificações que este indicou a Agosto de 2020 (cfr. Ponto 15).
É a especificação que confere identidade ao automóvel, e só com aquela ocorre a sua determinação. Só então o Recorrente poderia eventualmente arrogar-se no direito a um certo e determinado automóvel e não a um dentro do seu género.
O Recorrente, aliás, nas suas alegações de Recurso aceita tal facto, ao não impugnar o ponto 21 da matéria de facto dada como provada.
Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Notifique.

Porto, 09 de Setembro de 2021
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)