Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3681/20.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Nº do Documento: RP202304173681/20.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662º do CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
II - Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (artigo 12º do RGPTC) e enquanto tal regem-se não por critérios de estrita legalidade, mas antes por juízos de equidade e oportunidade com vista à tutela dos interesses que visam salvaguardar (vide artigo 987º do CPC).
III - Pretender que o progenitor numa vivência em comum suporte de um lado as despesas que garantem o sustento da menor e de outro que este entregue à progenitora, também ela convivente e beneficiária do mesmo encargo na economia doméstica, uma quantia para satisfação do sustento da menor e são desenvolvimento já garantido pela primeira via, é contrário aos interesses que o legislador visou proteger.
IV - A condenação da parte como litigante de má-fé pressupõe a demonstração de que a mesma de forma dolosa ou violando as mais elementares regras de prudência e cuidado alegou factualidade que sabia não corresponder à verdade e/ou deduziu pretensão cuja falta de fundamento sabia ou não podia ignorar ser destituída de fundamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 3681/20.5T8AVR.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. de Família e Menores de Aveiro
Apelante/AA
Apelado/ BB

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Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA, progenitora de CC nascida em ../../2005, deduziu em 18/11/2020 o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o progenitor da menor BB, invocando em suma estar este a incumprir o que em acordo de regulação das responsabilidades parentais ficou estipulado a título de prestação de alimentos à filha de ambos.
Nomeadamente alegando não pagar o requerido qualquer prestação mensal de alimentos desde maio de 2011. Prestação que foi fixada em 2011 em €100,00 e que seria atualizada em €5,00 anualmente.
O acordo a que a requerente aludiu foi obtido em sede de conferência realizada nos termos do artigo 1776º do CC em 08/04/2011- conferência esta na qual a requerente foi representada por procurador, DD – e na qual foi proferida sentença que homologou os acordos apresentados de “destino de casa de morada de família e de regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha menor”, mais decretando “a separação de pessoas e bens entre os requerentes”.
No acordo relativo às responsabilidades parentais ficou definido:
- que estas no que respeita “às questões de particular importância para a vida da menor CC” seriam exercidas “em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio” (cláusula 1ª do acordo).
Cabendo à mãe “O exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente da CC (…) com a qual esta ficará a residir habitualmente”;
- mais ficou estipulado em tal acordo que a residência da mãe a partir da decretação da presente separação seria na R. de ... ... (…). Até lá vivendo a menor com a mãe e o pai na Rua ..., ..., residência do pai (cláusula 2ª do acordo);
- ainda e a título de pensão de alimentos devidos à menor CC, ficou estipulado que o pai contribuiria mensalmente com a quantia de €100,00, atualizáveis anualmente em €5,00 (cláusula 3ª do acordo).
Sendo as despesas com infantário – então no valor de €200,00 – médicas e medicamentosas não comparticipadas e que a mãe venha a efetuar com a CC, da responsabilidade do pai (cláusula 5ª do acordo);
- passando a progenitora, quando detiver condições económicas decorrentes da estabilidade profissional que venha a usufruir no seu serviço, a comparticipar com 1/3 das despesas referidas na cláusula 5ª (vide cláusula 6ª do acordo) [conforme certidão junta com o requerimento inicial).

Notificado o requerido para alegar o que tiver por conveniente em 5 dias nos termos do artigo 41º nº 3 do RGPTC, respondeu este em suma alegando:
- o requerido pagou todas as prestações de alimentos devidos à CC nos anos de 2011 a agosto de 2020;
- os pagamentos ocorreram em numerário até junho de 2019, tendo começado a ser transferido para conta bancária após esta data;
- sempre foi a CC quem recebeu os montantes que entregava à mãe;
- a requerente e requerido acordaram entre si em 24/05/2019 que o requerido passaria a pagar àquela a quantia de €200,00. O que o requerido passou a observar desde então;
- desde julho de 2020 a CC vive com o pai por decisão tomada pela mesma.
Motivo por que a última prestação paga pelo pai à mãe é de agosto de 2020 - €200,00 + €20,00 relativos a despesas apresentadas pela mãe.
- a condenação do requerido a pagar à requerente as pensões relativas a setembro a dezembro de 2020 não deteria qualquer senso de justiça ou equilíbrio e consubstanciaria um enriquecimento injustificável da requerente.
Invocou ainda o requerido a litigância de má-fé da requerente por em causa estarem factos pessoais que a mesma não desconhece e que falsamente e de forma deliberada invoca quanto ao não pagamento das pensões devidas à menor.
Termos em que terminou requerendo a improcedência da pretensão da requerente e a sua condenação como litigante de má-fé na quantia de €1.000,00.

Juntou posteriormente o requerido (entre outros documentos) certidão da conversão da separação judicial de pessoas e bens em divórcio ocorrida em 03/10/2017 (por requerimento de 14/12/2020).
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Foi agendada a conferência de pais a que alude o artigo 41º nº 3 do RGPTC. Na qual não foi possível as partes chegarem a acordo.
Notificadas as partes para alegar, ambas observaram tal exercício.
Nestas alegações o requerido veio, entre o mais, afirmar que ele e requerente coabitaram até à data do seu divórcio. Vivendo como marido e mulher entre 8 de abril de 2011 e 3/10/2017. Sendo o requerente quem pagava todas as contas. No mais reiterando em suma a sua posição já antes exposta.
Requerendo agora a condenação da requerente como litigante de má-fé em multa e indemnização em quantia não inferior a €2.000,00.
Alegou também a requerente, negando a invocada vivência como marido e mulher dos progenitores desde 2012, ainda que durante uns anos após a separação o requerido tenha continuado a habitar a mesma casa. Para manter aparência e no interesse do próprio.
Mais admitiu que o requerido pagou as contas de água, luz e gás nesse período, pagando, contudo, a requerente as suas compras. Tal como o requerido pagava as suas.
Tendo ainda reconhecido que o requerido enviava dinheiro pela filha, embora nunca sendo o mesmo valor. Nunca tendo sido entregue à requerente pelo requerido dinheiro em mão e nunca tendo do mesmo recebido o valor que foi fixado a título de alimentos.
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Oportunamente foi agendada audiência de discussão e julgamento.
Realizada esta, veio a ser proferida decisão final, julgando:
“improcedente o incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais intentado pela requerente AA, e em consequência absolve-se o requerido BB do pedido.”
Mais e quanto ao pedido de condenação da requerente como litigante de má-fé tendo sido decidido:
“nos termos dos artigos 542º do C.P.C. e 27º, nº3, do Regulamento das Custas Processuais, atendendo a conduta da requerente, à sua gravidade e à sua situação económica, condena-se a requerente na multa de 800,00, por litigância de má fé.”
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Do assim decidido apelou a requerente, oferecendo alegações e a final tendo formulado as seguintes
Conclusões:
“- as respostas positivas aos pontos 5,6 e 12 encontram-se em contradição com a prova produzida, designadamente o depoimento das testemunhas citadas, EE e DD e ainda FF devendo por isso tal matéria ser dada como não provada;
- O Recorrido confessa não ter pago a pensão desde abril de 2011 até outubro de 2018, confissão que acarreta desde logo a obrigação que tem de pagar os valores em dívida nesse período;
- a partir de outubro de 2018 o recorrente alega ter feito pagamentos em numerário, que enviava através da filha, mas não se pode aceitar como bastante o depoimento da filha, nem mesmo os emails trocados, tendo em conta o contexto em que os mesmos foram escritos e a justificação que a Recorrente deu para não ter englobado, em tais textos, a dívida atrasada;
- o pagamento da pensão de alimentos é devido, independentemente de ter existido coabitação desde a data da sentença, porquanto esta só é modificável por outra sentença, que no caso não existiu.
- a recorrente agiu de forma legítima, não podendo ser condenada como litigante de má fé, nem se encontra suficientemente justificada e fundamentada a condenação, sendo que a mesma assenta tão só no facto de terem vivido em situação análoga à dos cônjuges e por isso não assistir o direito à Recorrente a reclamar as pensões, o que não se aceita;
- A douta decisão em crise, viola, entre outras as normas dos artigos 1906º, 1907º, 1909º, 1912º, 2008/1 e 2 todos do Código Civil e ainda 988 e 10º nº 3 do CPC e 12º do RGPTC
Termos em que, dando provimento ao recurso condenado o Recorrido no pagamento das pensões de alimentos reclamadas e ainda que absolva a Recorrida da condenação como litigante de má fé, se fará, como sempre a costumada JUSTIÇA”
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Foram apresentadas contra-alegações pelo requerido e MºPº, em suma pugnando pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo, tanto em sede de decisão de facto como de direito.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II - Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pela apelante serem questões a apreciar:
- erro na decisão de facto (em causa os pontos 5, 6 e 12 dos factos provados que a recorrente pugna sejam julgados não provados – vide 1ª conclusão).
Como questão prévia – observância dos ónus de impugnação e especificação pela recorrente.
- erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.

III – Fundamentação.
O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
“1- A menor CC, nasceu em .../.../2005 e é filha de AA e BB.
2- Foi apresentado na Conservatória do Registo Civil de Aveiro, e homologado em 8 de abril de 2011, o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, onde ficou determinado, além do mais, que a menor ficava a residir com a mãe e que o progenitor passaria a contribuir a título de alimentos devidos a menor com o montante mensal de €100,00 (cem euros), a pagar até ao dia 10 de cada mês, com inicio em março, atualizada em €5,00 ao ano.
3-Ficou ainda estipulado que as despesas com infantário, que atualmente se cifram na quantia de €200,00, as despesas médicas e medicamentosas, na parte não comparticipada e que a mãe venha a efetuar com a CC, são da responsabilidade do pai.
Assim que a mãe detenha condições económicas, decorrentes da estabilidade profissional que venha a usufruir no seu serviço comparticipará com 1/3 das despesas referidas no numero anterior.
4- Foi decretada a separação de pessoas e bens entre a requerente e o requerido pela Conservatória do Registo Civil, em 8 de abril de 2011.
5- Após a separação de facto, a requerente e o requerido com a filha viveram juntos na mesma casa, tomando refeições em conjunto, faziam férias e passeavam, o Natal e a passagem de ano foram passadas em família, até ao dia 3 de outubro de 2017, data da conversão da separação Judicial de pessoas e bens em divórcio
6- O requerido é que pagava as contas de água, luz, férias, supermercado, roupa para a filha, empréstimo do Banco, porque a requerente tinha poucos rendimentos.
7-Em 3 de Outubro de 2017, por decisão da Conservatória do Registo Civil de Aveiro foi determinada a conversão da separação de pessoas e bens entre a requerente e o requerido, em divórcio.
8- A partir da data do divórcio a requerente e o requerido passaram a viver em casas separadas e a fazer vidas independentes, tendo a CC ficado a viver com a mãe.
9- A CC a partir de julho de 2020 foi viver com o pai.
10- No dia 28 de setembro de 2020, as 15.15 a requerente manda ao requerido o seguinte mail “Boa tarde.
Tens até ao dia 8 de outubro para pagares a seguinte divida:
pensão de alimentos referente a setembro;
pensão de alimentos referente a outubro,
acertos de €5.00 a partir de junho que perfaz 25 euros;
metade do material escolar no valor de €32,5;
metade dos livros de filhas no valor de 25,5.”
11-No dia 28 de setembro, de 2020, pelas 16.19 a requerente enviou outro mail ao requerido “Se a guarda foi alterada, não tive conhecimento, nem assinei nada.
Até que esse documento chegue até mim, os valores em falta são os que apresentei.
Pelo que, no dia 9 apresentarei no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, o requerimento por incumprimento dos deveres parentais”.
12-O requerido desde outubro de 2017 até agosto de 2020, pagou a prestação de alimentos da filha CC à mãe, umas vezes em mão e outras por transferência bancária.”
Julgou ainda o tribunal a quo como não provada a seguinte factualidade:
“Nada mais ficou provado com relevância para a causa, nem que:
I- O pai de prestação de alimentos deve a filha CC do ano de 2011 €800,00, do ano de 2012 - €1240,00, do ano de 2013 - €1300,00, do ano de 2014 - €1360,00, do ano de 2015 - €1420,00, do ano de 2016 - €1.480,00, do ano de 2017 - €1.540,00, do ano de 2018 - €1.600,00, do ano de 2019 - €1660,00, do ano de 2020 - €1575,00.”
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Conhecendo.
1) Em função do supra enunciado cumpre em primeiro lugar apreciar se a decisão de facto padece do erro de julgamento alegado pela recorrente.
Como questão prévia cumprindo aferir se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre a recorrente recaíam.

i- Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição devem o(s) recorrente(s) especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda aos recorrentes [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Pelo que das conclusões é, no mínimo, exigível que das mesmas conste de forma clara quais os pontos de facto que o(s) recorrente(s) considera(m) incorretamente julgados, sob pena de rejeição do mesmo.
Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.
Requisitos impugnativos de admissibilidade da impugnação da decisão de facto com base em erro de julgamento que encontram o seu fundamento na garantia da “adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso”.[1]
ii- Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662º do CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
Cabendo ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.
Sem prejuízo de e quanto aos factos não objeto de impugnação, dever o tribunal de recurso sanar mesmo oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no artigo 662º n.º 2 al. c) do CPC.
Assim e sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso que impõem ao tribunal da Relação, perante a violação de normas imperativas, proceder a modificações na matéria de facto, estão estas dependentes da iniciativa da parte interessada tal como resulta deste citado artigo 640º do CPC.
Motivo por que e tal como refere António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, já supra citado, em anotação ao artigo 662º do CPC, p. 238 “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para circunscrever o objeto do recurso. Assim o determina o princípio do dispositivo (…)”.
Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai, portanto, o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair, sob pena de rejeição do recurso.

Tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis. Fazendo ainda [vide António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, anotação ao artigo 662º do CPC, págs. 229 e segs. que aqui seguimos como referência]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide artigo 349º do CC), sem prejuízo do disposto no artigo 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no artigo 607º n.º 4 última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objeto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância);
- levando em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi artigo 663º do CPC (norma que define as regras de elaboração do Acórdão e que para o disposto nos artigos 607º a 612º do CPC remete, na parte aplicável).
Por fim de realçar que embora não exigida na formação da convicção do julgador uma certeza absoluta, por via de regra não alcançável, quanto à ocorrência dos factos que aprecia, é necessário que da análise conjugada da prova produzida e da compatibilização da matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (vide artigo 607º nº 4 do CPC) se forme no espírito do julgador a convicção de que com muito elevado grau de probabilidade os factos em análise ocorreram.
Neste contexto e na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, resolvendo o tribunal a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos artigos 414º do CPC e 346º do C.C..
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Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso concreto, é possível extrair das conclusões de recurso da recorrente quais os pontos de facto sobre os quais faz recair a sua crítica, imputando sobre os mesmos erro de julgamento – pontos 5, 6 e 12 dos factos provados. Em relação aos quais pugna sejam julgados não provados (vide conclusão 1ª).
Os ónus elencados nas als. a) e c) do nº 1 do artigo 640º do CPC mostram-se nesta medida observados.
À recorrente era exigido, igualmente, a indicação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa sobre os pontos impugnados – vide al. b) do nº 1 do artigo 640º.
Bem como e estando em causa meios probatórios gravados – indicação com exatidão das passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos tidos por relevantes – vide nº 2 al. a) do mesmo artigo 640º do CPC.
Determinando o não cumprimento de ambos estes ónus a imediata rejeição do recurso na parte afetada – tal como expressamente consta do nº 1 e do nº 2 al. a) citados.
Analisado o corpo alegatório e respetivas conclusões, extrai-se do mesmo que para a pretendida alteração por erro de julgamento, invocou a recorrente:
- para a alteração do ponto 5 dos factos provados, o seu próprio depoimento e da testemunha FF, com base nestes defendendo ser de afastar a credibilidade dos depoimentos das testemunhas EE e DD.
Tendo identificado os trechos de gravação destas 4 testemunhas que convocou quando e na medida em que o entendeu pertinente.
Já assim não procedeu para o seu próprio depoimento.
Nesta medida entende-se que os meios probatórios validamente convocados para a reapreciação da decisão são os depoimentos testemunhais.
Já não as declarações da requerente que não identificou validamente.
O ponto 5 dos factos provados será assim reapreciado, tendo por referência os meios probatórios validamente convocados;
- para o ponto 6 dos factos provados limitou-se a recorrente a invocar os documentos que ofereceu aos autos – da sua conta bancária demonstrativos do pagamento de água, telecomunicações, talho, roupas, restaurante entre outros.
Destes mesmos documentos (da conta bancária) extraindo a prova negativa de que nada recebeu do recorrido. No mais expressando o entendimento de não poder o tribunal partir do princípio de que não tendo o casal passado a viver em separado, não havia obrigação do recorrido de pagar o valor fixado.
A reapreciação deste ponto factual, nos termos em que a recorrente deduziu a impugnação terá por referência apenas a prova documental pela mesma convocada – a mencionada “conta bancária”, já que nenhuns outros meios probatórios foram convocados. Apesar de na verdade nem sequer ter concretizado a recorrente qual o documento a que se reporta, entende-se que em causa estará o extrato bancário enviado aos autos a 10/02/2022 contendo os movimentos dos anos de 1/01/2012 a 31/08/2020, sobre os quais em concreto a recorrente também nada disse [nos autos fls 171 e segs.].
Desde já se esclarecendo que a observação da recorrente a propósito da obrigação do pagamento da prestação enquanto o casal não viveu separado é em si questão de direito.
Finalmente e quanto ao ponto 12 invoca a recorrente como fundamento para eliminar este ponto dos factos provados, a inexistência de prova documental de transferências das prestações em causa, nem exibição de recibos de quitação. Mais argumentando que a alegação de que entregava o dinheiro pela filha não é suficiente para demonstrar o pagamento.
Menciona o seu depoimento, bem como o do recorrido e ainda as testemunhas FF, DD e EE – sem que observe o exigido pelo artigo 640º nº 2 al. a) do CPC quanto a estes depoimentos.
Alega que o tribunal “assenta também a sua convicção nos mails trocados, apesar da Recorrente explicar em que contexto os escreveu e por que razão não peticionou logo todos os atrasos”, sem que contudo especifique os mails a que se reporta e mais uma vez sem que quanto ao seu depoimento observe o exigido pelo já mencionado artigo 640º nº 2 al. a) do CPC.
Finalmente questiona a valoração do testemunho da menor CC, do qual faz remissão para o registo da sua gravação.
Em função da convocação válida deste depoimento, consideram-se observados os ónus de impugnação e especificação quanto a este ponto factual tendo por referência – no que à prova gravada respeita, apenas o depoimento da testemunha CC. Já não as declarações de parte, sobre as quais a recorrente se limitou a tecer considerandos sem indicar as passagens dos mesmos, sequer mesmo fazer transcrição alguma.
Com as limitações acima mencionadas, será reapreciada a decisão de facto quanto aos pontos impugnados.

Consigna-se ter-se procedido à audição da prova gravada.
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Os dois primeiros pontos impugnados pela recorrente são os pontos 5 e 6 dos factos provados:
5- Após a separação de facto, a requerente e o requerido com a filha viveram juntos na mesma casa, tomando refeições em conjunto, faziam férias e passeavam, o Natal e a passagem de ano foram passadas em família, até ao dia 3 de outubro de 2017, data da conversão da separação Judicial de pessoas e bens em divórcio.
6- O requerido é que pagava as contas de água, luz, férias, supermercado, roupa para a filha, empréstimo do Banco, porque a requerente tinha poucos rendimentos”.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto aos factos provados, atendendo entre o mais:
“(…) as declarações da própria requerente que quando foi ouvida em Tribunal referiu que viveu com o requerido e a filha depois da separação de facto, e que era este que pagava as despesas maiores, como a prestação do empréstimo ao banco e a requerente pagava outras despesas.
Por sua vez o requerido disse que ficou a viver junto com a requerente e a filha após a separação de facto, num apartamento, e continuavam a fazer vida de casal, a passar férias juntos, a ir almoçar juntos ao domingo a casa dos pais desta, a jantar fora, a passar os Natais e o fim de ano em família, só tendo ocorrido a separação de facto do casal quando foi convertido para o divórcio.
O que foi confirmado pela testemunha da requerente a psicóloga FF, e as testemunhas do requerido EE e DD, que situaram a separação efetiva do casal em 2017.”
A testemunha FF, psicóloga, no seu depoimento afirmou ter passado a acompanhar a requerente poucos meses após o seu divórcio – talvez 4 – esclarecendo que o seu papel é promover o equilíbrio emocional da sua cliente no âmbito psicoterapêutico. Não lhe incumbindo apurar factos nem a verdade dos factos que lhe são relatados no contexto do seu acompanhamento. O que frisou repetidamente e é consentâneo com o papel que assume perante a cliente.
Assim, resultou igualmente claro que o seu conhecimento deriva apenas da versão dos factos que lhe é apresentada pela cliente – a aqui requerente. Certo sendo que com estas limitações, expressou também o entendimento de a narrativa que lhe é apresentada ser coerente e ter merecido da sua parte um juízo de credibilidade.
Neste contexto, é certo ter afirmado que a sua cliente terá coabitado com o requerido até próximo da data do divórcio em 2017, sem saber precisar datas. Declarou desconhecer se a requerente era a única a sustentar a família, sequer se existia desequilíbrio financeiro (entende-se nas contribuições económicas de ambos os progenitores enquanto mantiveram coabitação).
Sem prejuízo de ter afirmado que a sua cliente dava nota de se sentir subjugada emocional e financeiramente na relação mantida com o requerido – que teria rendimentos superiores aos da requerente - relatando ter despesas com a menor sem participação igualitária do pai, aqui requerido.
Por sua vez as testemunhas DD e EE, irmãos do requerido relataram em suma que até ao divórcio os progenitores da menor CC viviam juntos na mesma casa, saiam e jantavam fora, faziam férias juntos e conviviam com as famílias de um e de outro, sem prejuízo da requerente sair antes do requerido desses convívios (da própria família) – o que sempre fizera e o que aliás foi confirmado pela própria irmã da requerente GG.
E o requerido juntou aos autos documentos relativos a reservas em hotéis relativas aos anos de 2014 a 2016 para o mês de julho para 2 adultos e uma criança - que corroboram tal versão de passarem férias juntos e assim viverem juntos mesmo após a separação de pessoas e bens (vide doc. 2 junto com o requerimento de maio de 2021).
Ainda com o mesmo requerimento e documentos foram juntos 2 mails enviados pela requerente ao requerido datados um de 20/02/2015 e outro de agosto de 07/08/2016 onde a requerente se dirige ao requerido afetuosamente, terminando com “Kisses, Love you” ou “Amo-te, milhões de beijinhos”.
A análise conjugada desta prova permite-nos concluir que o decidido pelo tribunal a quo quanto ao ponto factual 5 não evidencia qualquer erro de julgamento, não tendo a recorrente convocado prova que imponha decisão diversa.
No ponto 6 dos factos provados está em causa as despesas que o requerido foi pagando enquanto se mantiveram a viver juntos e, portanto, até outubro de 2017.
A recorrente para contrariar o decidido neste ponto factual limitou-se a invocar os documentos que juntou – em concreto os extratos da sua conta bancária.
Para a análise deste ponto factual importa começar por recordar que a própria recorrente nas suas alegações (apresentadas ao abrigo do artigo 39º nº 4 do RGPTC) afirmou aceitar que o requerido “tenha pago as contas da água, luz, gás” até porque os contratos se encontravam em nome do requerido – vide artigo 27º de tal articulado.
As despesas de férias vêm sustentadas nos documentos acima já mencionados relativos a reservas nos anos de 2014 a 2016 feitas pelo requerido. Certo sendo que nos extratos juntos pela requerente a mesma não identificou qualquer pagamento por si efetuado a tal título, nem tal invocou.
Supermercado e roupa para a filha, a própria filha CC - que em maio completará 18 anos de idade e no seu depoimento revelou maturidade e bom senso - o confirmou nas suas declarações, dizendo que ao domingo ia com o pai fazer as compras da semana. Sendo também o pai quem lhe comprava roupa. Só após o divórcio tendo a mãe começado a comprar mais. Mas “quando estavam juntos era sempre o pai” (vide transcrição em ata de 14/07/2022).
Finalmente o empréstimo ao banco, foi também afirmado ser o próprio requerido quem o suportava (assim o disse o próprio), o que se mostra consentâneo com o acordo (contrato-promessa) de partilha que foi celebrado e se mostra junto como doc. 4 com o requerimento de maio de 2021. E precisamente porque os rendimentos da requerida eram poucos, como mencionado de forma transversal pelas testemunhas.
O decidido neste ponto 6 dos factos provados não merece, portanto, censura.
Sendo certo que o extrato bancário junto aos autos (e convocado pela recorrente) não evidencia nada em contrário – as múltiplas despesas / compras que o mesmo retrata, não permitem só por si e sem sustentação em outros meios probatórios não invocados pela recorrente concluir de forma diversa, não identificando em concreto o destino/causa das despesas feitas.
Em suma, a prova invocada pela recorrente não evidencia erro de julgamento que imponha decisão diversa.
Finalmente impugnou a recorrente o decidido sobre o ponto 12 dos factos provados, cujo teor aqui se relembra:
“12-O requerido desde outubro de 2017 até agosto de 2020, pagou a prestação de alimentos da filha CC à mãe, umas vezes em mão e outras por transferência bancária.”
O tribunal a quo quanto a esta matéria, fundamentou a sua convicção nos seguintes moldes:
“O requerido mencionou ainda que a partir do divorcio pagou a prestação de alimentos a requerente em mão ou por transferências bancárias, e nada deve, só tendo deixado de fazer esse pagamento em setembro de 2020, por a filha ter vindo viver consigo em julho de 2020.
Ora estas declarações do requerido foram confirmadas pelo mail que a requerente enviou ao requerido, como consta do facto 5, junto a folhas 30, em que em setembro de 2020 a requerente só considerava que o requerido tinha em divida de prestação de alimentos o mês de setembro e de outubro de 2020.
A própria requerente também em sede de declarações quando foi ouvida em Tribunal, referiu que a filha desde julho de 2020 que foi viver com o pai e não passou férias consigo nesse verão.
A filha do casal a CC ouvida em Tribunal, disse que o pai por vezes lhe entregava a prestação de alimentos em mão.”
Como já tivemos oportunidade de mencionar supra, dos meios probatórios invocados pela recorrente validamente – prova gravada - apenas foi invocado o depoimento da CC, sua filha.
E esta confirmou que recebia (desde o divórcio) do pai dinheiro – em mão ou em envelope para entregar à mãe. Mãe que nunca se queixou de faltar dinheiro da pensão de alimentos.
Acresce, no seguimento do analisado pelo tribunal a quo na decisão recorrida, que o recorrido juntou ainda aos autos comprovativos de transferências bancárias para a conta da requerida em fevereiro, março, abril, agosto e setembro de 2020 no valor de €200,00 cada uma das transferências à exceção da última, de €68,00 segundo se perceciona (requerimento de 20/01/22).
Bem como mails trocados entre a requerente e requerido em 28 de setembro de 2020 onde esta solicita o pagamento de valores em dívida numa primeira missiva e, numa segunda mensagem, expressamente afirma serem tais valores os que estão em falta – vide factos provados 11 e 12 que não vêm impugnados e reproduzem precisamente o teor de tais mensagens – então afirmando a própria serem os valores em dívida os referentes à pensão de alimentos de setembro e outubro, acrescido de um montante de 58 euros de despesas escolares.
E o presente incidente foi instaurado em novembro de 2020.
O argumento da recorrente de que explicou o contexto em que “não peticionou logo todos os atrasos” não procede. Com efeito a versão da recorrente é a de que sempre procurou viver em paz e evitar conflitos, por tanto aceitando as exigências e imposições do requerido, especialmente em prol e para proteção da menor filha de ambos. Mas em setembro de 2020 o divórcio já se havia consumado há vários anos (mais concretamente em 03/10/2017) e faziam vidas separadas; a recorrente já andava em apoio psicológico também há sensivelmente o mesmo tempo e já tinha mandatária a tratar dos assuntos relacionados com a partilha dos bens, igualmente lidando com assuntos relacionados com as responsabilidades parentais – exigindo inclusive atualização dos valores – como o demonstram os mails juntos como docs. 3 e seguintes com o requerimento do requerido de maio de 2021.
Neste contexto, o invocado receio como explicação da não exigência de outros valores, no momento temporal em que é a própria requerente que envia os mails em análise não encontra apoio na demais prova produzida.
Tendo-se por afastada toda a argumentação aduzida pela recorrente e não evidenciado o erro de julgamento que imponha decisão diversa.
Termos em que se mantém igualmente a redação conferida a este ponto 12 dos factos provados.
Concluindo, julga-se totalmente improcedente a impugnação aduzida pela recorrente à decisão de facto que na integra se mantém.
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IV- Do erro na aplicação do direito.
Tendo presente que na subsunção jurídica dos factos ao direito não está o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC], sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º do CPC quanto ao objeto e quantidade do pedido, cumpre apreciar se ocorre erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.
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Para a apreciação do objeto do recurso, importa relembrar em primeiro lugar estarmos perante um processo tutelar cível, o qual por ter a natureza de jurisdição voluntária (artigo 12º do RGPTC) se rege não por critérios de estrita legalidade, mas antes por juízos de equidade e oportunidade, com vista à tutela dos interesses que visam salvaguardar (vide artigo 987º do CPC).
As resoluções tomadas no seu âmbito podem assim ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, desde que circunstâncias supervenientes justifiquem tal alteração (vide artigo 988º do CPC).
E enquanto vigentes – já que até à sua alteração tais decisões se impõem com força de caso julgado às partes e mesmo ao tribunal (caso julgado material e formal)[2] – é concedida proteção ao regime antes fixado por via do regime de incumprimento regulado no artigo 41º do RGPTC com vista a ser obtido o cumprimento coercivo (entre o mais – vide nº 1 deste artigo).

Subjacente ao pedido nos autos formulado está precisamente um alegado incumprimento da prestação de alimentos a que o requerido ficou obrigado por acordo devidamente homologado em abril de 2011 – vide facto provado 2.
Acordo cujo clausulado foi enunciado nos pontos 2 e 3 dos factos provados, deste resultando entre o mais que ficando a menor a residir com a progenitora [por via da separação de pessoas e bens dos progenitores], o progenitor passaria a contribuir a título de alimentos para a menor com a quantia de €100,00 mensais a pagar até ao dia 10 de cada mês, com início em março e atualizado em €5,00 ao ano.
Os progenitores viram decretada a separação de pessoas e bens em 08/04/2011 (vide facto provado 4).
Não obstante, continuaram a viver juntos até 3/10/2017, data em que foi decretado o seu divórcio.
E durante tal período o requerido pagava as contas de água, luz, férias, supermercado, roupa para a filha e empréstimo bancário porque a requerente tinha poucos rendimentos.
Poucos rendimentos que ali já haviam ficado reconhecidos no acordo mencionado em 3 dos factos provados.
Mantiveram, portanto, os progenitores no contexto apurado uma vivência comum – nos termos que os factos provados evidenciam - incluindo em termos de despesas do agregado familiar, não obstante formalmente separados de pessoas e bens.
A questão que a recorrente coloca é a de que o recorrido estava obrigado a proceder ao pagamento da prestação de alimentos, não obstante a vivência em comum, na medida em que não ocorreu uma alteração formal da decisão transitada em julgado.
Numa primeira abordagem há que reconhecer razão à recorrente, na medida em que não tendo sido peticionada a alteração da RRP o recorrido se mantinha efetivamente obrigado a proceder ao pagamento de tal prestação de alimentos, na linha do que acima já expusemos sobre os efeitos do caso julgado da decisão homologada.
No entanto e conforme também já mencionado, este processo não se rege por critérios de estrita legalidade, mas antes por juízos de equidade e oportunidade, com vista à tutela dos interesses que visam salvaguardar (vide artigo 987º do CPC).
Ora a prestação de alimentos estipulada visa salvaguardar os interesses da menor, garantindo o seu sustento e são desenvolvimento.
Por alimentos “entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário” e no caso de o alimentando ser menor, compreendem “também a instrução e educação” do mesmo (vide artigo 2003º do CC).
Portanto tudo o que a criança necessita para ter uma vida “conforme à sua condição social, às suas aptidões, ao seu estado de saúde e idade, tendo em vista a promoção do seu desenvolvimento físico, intelectual e moral”[3]
Sendo a medida dos alimentos dada pelo artigo 2004º do CC: “1. Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.
2. Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.”.
E os interesses da menor foram salvaguardados pelo progenitor convivente com a menor, suportando e garantindo o seu sustento, instrução e desenvolvimento.
As despesas que o mesmo continuou a suportar em prol também da menor, satisfizeram os interesses da menor e nessa medida satisfizeram o fim pretendido pela obrigação de alimentos.
Pretender que o progenitor numa vivência em comum suporte de um lado as despesas que garantem o sustento da menor e de outro que este entregue à progenitora, também ela convivente e beneficiária do mesmo encargo na economia doméstica, uma quantia para satisfação do sustento da menor e são desenvolvimento já garantido pela primeira via, é contrário aos interesses que o legislador visou proteger.
Corresponderia a uma dupla oneração do progenitor convivente, sem apoio legal.
Assim só não ocorreria se a recorrente tivesse logrado provar que mesmo numa convivência conjunta, os interesses da menor não estariam salvaguardados no que respeita ao seu sustento e são desenvolvimento por parte do progenitor requerido.
O que não é o caso.
Improcede como tal a argumentação aduzida pela recorrente no que respeita ao primeiro período em que alegou incumprimento, não obstante a convivência em comum.
Quanto ao segundo período, após o divórcio, está provado que o recorrido procedeu aos pagamentos devido a título de alimentos até agosto de 2020.
A partir de julho de 2020 a menor passou a residir com o progenitor recorrido – vide facto provado 9.
Atendendo à finalidade dos alimentos, se a menor passa a residir com o progenitor que estava obrigado à prestação de alimentos – sem prejuízo do que já se afirmou sobre a necessidade de se promover a alteração da RRP – deixa de existir fundamento jurídico para efetivamente este progenitor continuar a prestar alimentos entregando para o efeito a quantia monetária acordada ao outro progenitor que já não tem a menor a seu cargo e enquanto a mesma se mantém a residir consigo.
E como tal, também para este período temporal improcede a pretensão da recorrente.
A pretensão aduzida pela recorrente em sede de recurso estava dependente da alteração da decisão facto.
Mantida esta, resta concluir pela total improcedência do recurso, no que respeita à pretendida condenação do requerido a pagar as prestações que a recorrente alegou estarem em falta.

Insurgiu-se a recorrente igualmente contra a sua condenação como litigante de má fé.
Nesta sede, justificou o tribunal a quo o decidido nos seguintes termos:
“Ora neste caso, sem dúvida que a requerente sabia que durante estes anos de 2011 a outubro de 2017, viveu com o requerido e a filha na mesma casa, suportando o requerido a maior parte das despesas e por isso efetivamente não se encontrava separada de facto do requerido (vide factos 5.6 e 7 ).
Por isso, a requerente alegou factos que sabia que não correspondiam a verdade, nomeadamente que o pai não lhe pagou a prestação de alimentos da filha desde 2011 a outubro de 2017, data do divórcio, tendo atuado com negligência grave.
Face ao exposto, nos termos dos artigos 542º do C.P.C. e 27º, nº3, do Regulamento das Custas Processuais, atendendo a conduta da requerente, à sua gravidade e à sua situação económica, condena-se a requerente na multa de 800,00, por litigância de má fé.
Notifique.”

A recorrente insurge-se contra o decidido, alegando ter atuado de forma legítima. Não sendo fundamento da sua condenação como litigante de má-fé o facto de ter vivido em situação análoga à dos cônjuges.
Preceitua o artigo 542º, nº 1, do CPC:
“1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou tiver omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Para fundamentar a sua decisão, enquadrou o tribunal a quo a conduta da A. segundo o interpretamos, na al. b) do nº 2 do citado artigo 542º.
Infere-se deste preceito legal que o mesmo visa sancionar aqueles que – e para o que ora releva - de forma censurável, com dolo ou negligência grave, deduzem pretensão cuja falta de fundamento não devem ignorar ou alteram a verdade dos factos. Por relacionada esta atuação com o mérito da causa, sendo considerado que esta alínea [como aliás também a al. a)] se reportam à má-fé substancial.
Pressuposto desta condenação é que os autos evidenciem de forma notória e clara tal atuação censurável, imputável à parte a título de dolo ou negligência grave, in casu tendo o tribunal a quo integrado a conduta da requerente na negligência grave.
Quanto a este elemento subjetivo a lei adjetiva acolhe “a máxima culpa lata dolo aequiparatur, considerando litigância de má-fé não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, consagrando, deste modo, uma noção ética de boa-fé subjetiva[16], considerando de má-fé não apenas aquele que conhece o erro em que incorre, mas também aquele que o desconhece por não ter cumprido com os deveres de cuidado que lhe eram impostos. Todavia, esta eticização da má-fé processual não se afigura total, na medida em que se não compadece com qualquer desrespeito por esses deveres de cuidado, independentemente do grau de culpa. Pelo contrário, apenas estaremos perante má-fé processual quando se tenham desrespeitado os mais elementares deveres de cuidado e de prudência, atuando de forma gravemente negligente, isto é, com culpa grave.”[4]
Ora concluiu o tribunal a quo que a recorrente:
- alegou factos que sabia não corresponderem à verdade, pois sem dúvida sabia que durante os anos de 2011 a outubro de 2017 viveu com o requerido e filha na mesma casa, suportando o requerido a maior parte das despesas e que por isso não se encontrava efetivamente separada de facto do requerido;
- também por isso sabendo a requerente não ser verdade que o requerido não pagou a prestação de alimentos da filha entre 2011 e outubro de 2017.
A conduta processual da A. tem de ser aferida em primeiro lugar por referência à pretensão que deduziu e factualidade que para a justificar alegou.
Em segundo lugar pela prova que venha a ser produzida demonstrativa de que tal realidade não corresponde à verdade e que de tal a parte tinha conhecimento ou que violou os mais elementares deveres de cuidado e prudência na alegação desses mesmos factos, sem previamente se certificar da veracidade dos mesmos.
Ora dos factos provados e relativamente ao período que o tribunal a quo convocou para proferir a decisão de condenação como litigante de má-fé – ou seja de 2011 a outubro de 2017 – o que se apurou foi que os progenitores continuaram a viver juntos e o requerido continuou a suportar despesas nos termos acima já assinalados.
E com fundamento neste circunstancialismo entendeu-se que a requerente não tinha direito a exigir o pagamento das prestações, por o sustento da menor estar garantido no contexto da convivência conjunta. Nos termos e contexto por nós assinalado.
Este entendimento com fundamento na aplicação do direito aos factos fundamentou a improcedência da pretensão da requerente.
Mas do mesmo não deriva diretamente que relativamente ao período temporal em causa a requerente tenha alegado factos que não correspondiam à verdade e assim que o por si alegado o foi com pleno conhecimento da sua falta de razão ou que violou os deveres de cuidado que lhe eram impostos antes de deduzir pretensão contra o aqui requerido.
Na perspetiva da recorrente, teria fundamento para exigir a entrega da prestação acordada a favor da menor. Falece-lhe a razão. Mas daí não se infere a imputada litigância de má-fé.
Nesta medida, não se concorda com o juízo de censura direto feito pelo tribunal a quo baseado em atuação negligente e de forma grave relativamente à pretensão formulada pela requerente e ora recorrente.
Conclui-se assim e do exposto inexistir conduta da A. demonstrada de que de forma ainda que negligente e em violação das mais elementares regras de prudência e cuidado alegou factualidade que sabia não corresponder à verdade e deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar ser destituída de fundamento.
Do exposto decide-se neste ponto assistir razão à recorrente e assim nesta parte revogar o decidido pelo tribunal a quo quanto à condenação da requerente como litigante de má-fé.
Termos em que se tem de concluir pela parcial procedência do recurso interposto.
***

V. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida decide-se revogar a decisão no que concerne à condenação da requerente como litigante de má-fé.
No mais se mantendo a decisão recorrida.

Custas pela recorrente e recorrido, na proporção de ¼ para o recorrido e ¾ para a recorrente.

Porto, 2023-04-17.

Fátima Andrade
Eugénia da Cunha
Fernanda Almeida
___________
[1] Cfr. Ac. STJ de 22/03/2018, Relator Tomé Gomes, in www.dgsi.pt
[2] Vide neste sentido Ac. TRP de 15/02/2016, Relator Caimoto Jácome in www.dgsi.pt
[3] Vide Clara Sottomayor in “Regulação das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”, edição 2016, 6ª edição Almedina, p. 330.
[4] Cfr. Ac. TRP de 27/06/2018, Relator Miguel Morais no qual a aqui Relatora interveio como adjunta e que pela sua clareza aqui se deixa reproduzido.