Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1862/21.3T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
INSOLVÊNCIA DO RESPONSÁVEL CIVIL
Nº do Documento: RP202402081862/21.3T8VCD.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As acções para reparação de danos de acidente de viação quando o responsável civil seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz têm necessariamente de ser propostas, sob pena de ilegitimidade, contra o responsável civil e o Fundo de Garantia Automóvel.
II - A extinção da instância, no decurso da acção, relativamente ao responsável civil, tendo por fundamento a inutilidade superveniente da lide face à declaração de insolvência do mesmo, em nada altera os pressupostos processuais, designadamente a legitimidade passiva, que se fixaram no momento da propositura da acção.
III - Dadas as específicas razões que ditaram tal absolvição da instância, esta não é extensível ao Réu Fundo de Garantia Automóvel, que dela também não se pode aproveitar, já que, quanto a este, não ocorrem os pressupostos que justificaram aquele desfecho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1862/21.3T8VCD.P1
Tribunal Judicial de Porto
Juízo  Local Cível de Vila do Conde – Juiz 2


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

AA, casado, residente na Rua ..., ... ..., propôs acção declarativa comum contra:

1. A..., Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., ... Porto;

2. B..., S.A., com sede na Rua ..., A, ... Porto; e

3. Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av. ..., ... Lisboa,

pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento do valor de €7.974,32, acrescido dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou o Autor que ocorreu um acidente de viação que causou danos à sua viatura, tendo sido intervenientes em tal acidente, entre outros, o veículo seguro pela primeira Ré, bem como o veículo propriedade da segunda Ré, o qual não dispunha de seguro válido à data do acidente, motivo pelo qual é responsável pela indemnização a terceira Ré.

Ainda segundo o Autor, o acidente foi causado devido à acção dos condutores do veículo seguro pela primeira Ré, bem como pelo veículo propriedade da segunda Ré, acrescentando que, em consequência de tal acidente, o seu veículo sofreu danos e o respectivo condutor perturbações psicológicas, encontrando-se, desde o acidente, privado de utilizar a sua viatura, o que igualmente lhe causou danos.

Referiu ainda o Autor que os Réus rejeitaram qualquer responsabilidade no acidente.

Citados os Réus, os mesmos apresentaram contestação.

A Ré A... pugnou pela culpa exclusiva do acidente por parte do condutor do veículo propriedade da segunda Ré, impugnando a privação do uso e alegando desconhecer a veracidade do demais alegado pelo Autor, referindo, porém, que os montantes peticionados se mostram excessivos, com excepção do valor referente à reparação do veículo.

Por seu turno, o Réu Fundo de Garantia Automóvel pugnou pela culpa exclusiva do acidente por parte do condutor do veículo segurado pela Ré A..., igualmente salientando que os valores peticionados pelo Autor são excessivos, com excepção do valor referente à reparação do veículo.

A Ré B..., por sua vez, pugnou pela extinção da instância relativamente a si, em virtude da sua prévia declaração de insolvência.

Foi proferida decisão, na qual foi julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto à Ré B....

Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador e fixados os termos do litígio e temas de prova.

O Autor requereu, entretanto, a ampliação do pedido formulado, peticionando o pagamento adicional da quantia de €6.750,00 em virtude dos novos danos decorrentes da privação do uso do veículo.

Os Réus Fundo de Garantia Automóvel e A... responderam, não se opondo à sua admissão, mas impugnando os novos factos alegados, bem como os respectivos fundamentos.

Foi proferido despacho no qual foi admitida a ampliação do pedido.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, e, concluída a mesma, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenar o Réu, Fundo de Garantia Automóvel, no pagamento ao Autor, AA., do valor de €7.030,32 (sete mil e trinta euros e trinta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;

b) Absolver o Réu Fundo de Garantia Automóvel do demais peticionado pelo Autor; e

c) Absolver integralmente a Ré A..., Companhia de Seguros, S.A., do pedido formulado pelo Autor.

Custas pelo Autor e pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel, na proporção do respectivo decaimento (nos termos do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil).

Registe e notifique”.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1) Em virtude de a Ré B..., S.A ser a legitima proprietária do veículo responsável pela produção do sinistro em causa na presente lide, é imperativo presumir a direção efetiva e o interesse na sua utilização pela dita proprietária;

2) A Ré B..., S.A omitiu a celebração do contrato de seguro automóvel obrigatório, dando, assim, causa à intervenção do Recorrente Fundo de Garantia Automóvel;

3) Da consagração do litisconsórcio necessário passivo decorre que a condenação dos demandados – FGA e responsável/responsáveis civis – quando deva ter lugar, é uma condenação solidária, dada a existência de uma concorrência de responsabilidades.

4) A legitimidade do FGA tem de ser considerada pela conjugação dos artigos 54.º e 62.º, ambos do Dec. Lei n.º 291/2007. Sendo que, este último, prevê a condenação conjunta e solidária do FGA e os responsáveis civis.

5) A obrigação do FGA não é própria, mas sim acessória, de garantia, sendo um responsável subsidiário face ao responsável próprio e principal que é sempre o responsável civil pela eclosão do sinistro.

6) Tal como refere o Acórdão do STJ datado de 23.09.2008: “perante a subsidiariedade da obrigação de garantia, a responsabilidade do garante haverá de aferir-se pela existência e pela medida da obrigação garantida, de sorte que, extinta a obrigação do responsável civil, com ela se extingue a posição de seu garante encabeçada pelo FGA”.

7) O FGA, não tendo qualquer responsabilidade pela eclosão do acidente, intervém na relação controvertida tão só como mero garante de uma obrigação de terceiro e, por este motivo o litisconsórcio necessário passivo entre ele e o responsável civil configure um litisconsórcio unitário.

8) Não faz sentido algum que, a mera declaração de insolvência do responsável civil determine, a final, que o FGA passe da qualidade de garante a devedor principal.

9) Conclui-se, assim, inevitavelmente, que não pode o ora recorrente FGA ser condenado isoladamente, mesmo quando se verifique a extinção da instância relativamente ao responsável civil, ainda que essa extinção advenha da declaração de insolvência.

10) O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 503.º do Código Civil e ainda, sem conceder, os artigos 54.º e 62.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto e o artigo 33.º do Código de Processo Civil.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, nos termos supra expostos, absolvendo o Réu FGA da presente instância”.

O recorrido AA apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se, face à absolvição da Ré B..., S.A., por inutilidade superveniente da lide, devia o Réu Fundo de Garantia Automóvel também ter sido absolvido da instância.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

Do acidente:

1. No dia 13 de Junho de 2021, pelas 18h25 horas, na Rua ..., freguesia ... e ..., no Concelho de Vila do Conde, ocorreu um acidente de viação.

2. Em tal acidente foram intervenientes os seguintes veículos:

> Veículo ligeiro de passageiros da marca Alfa Romeo (...), matrícula ..-UG-.., pertencente ao Autor e conduzido pelo próprio;

> Veículo ligeiro de passageiros marca Opel (...), matrícula ..-..-LX, pertença de BB, conduzido por CC, residente na Rua ..., ... ...; e

> Veículo marca Peugeot, matrícula ..-HH-.., pertença de B..., S.A., conduzido por um colaborador da mesma cuja identidade se desconhece, no interesse e sob a direcção daquela.

3. O local onde se deu o acidente é uma estrada com duas vias, de sentidos opostos, tendo cada uma das vias uma faixa de rodagem, correspondendo a uma curva acentuada.

4. Na estrada e local em apreço não é possível a realização de ultrapassagens, em qualquer dos sentidos, porquanto, por um lado, trata-se de uma curva/local de visibilidade reduzida/insuficiente, e, por outro lado, porque existe uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito.

5. O piso encontrava-se em bom estado de conservação.

6. A dita proibição (de ultrapassagem), no sentido em que circulava o veículo HH e em relação ao local do acidente, tem início cerca de 400 (quatrocentos) metros antes.

7. O local onde ocorreu o sinistro fica numa curva acentuada, e que impede a visibilidade para os condutores que circulam em qualquer dos sentidos em relação aos que circulam no outro.

8. No caso dos autos, os veículos UG e LX circulavam na mesma via, no mesmo sentido (... - ...), sendo que Autor circulava a cerca de 60 km/hora, com total atenção ao trajecto.

9. De igual modo, o condutor do veículo LX circulava com atenção e prudência, a uma velocidade moderada, não superior à do Autor.

10. No momento em que já fazia a curva onde se deu o embate, o Autor subitamente apercebeu-se que, em sentido contrário ao seu e ao do veículo LX, circulava o veículo HH.

11. O veículo HH encontrava-se a ultrapassar, em velocidade superior a 70km/hora, vários outros veículos que circulavam na faixa de rodagem onde aquele circulava (sentido ... - ...).

12. Para realizar tal ultrapassagem, o veículo HH ocupou totalmente a via onde circulava o Autor e o veículo LX.

13. Consequentemente, para evitar um embate frontal, o Autor viu-se obrigado a desviar repentinamente o seu veículo para lá da berma da estrada, num local onde existe uma entrada/saída de um edifício.

14. O Autor, depois de sair da faixa de rodagem, conseguiu ainda imobilizar-se, evitando a colisão contra o muro da referida propriedade e um poste, ali existentes.

15. No momento em que o veículo do Autor foi obrigado a desviar-se, o veículo LX, que circulava imediatamente atrás do Autor, foi também obrigado a desviar-se para a berma, de forma a evitar o choque frontal com o veículo HH, que se adivinhava igualmente violento.

16. Dada a repentinidade da manobra do veículo LX, o mesmo não conseguiu evitar o embate com a sua parte dianteira na traseira do veículo do Autor, tendo-o “atirado/projectado” contra o muro e o poste que ali se encontram.

17. O embate entre os veículos UG e LX deu-se já fora da respectiva faixa de rodagem por onde anteriormente circulavam, no lado direito atento o respectivo sentido de marcha, e num espaço destinado à entrada/saída de um edifício.

18. O condutor do veículo LX seguia a distância suficiente do veículo UG para, nas condições de piso da estrada onde seguiam antes do desvio de ambos para a berma, parar no espaço livre e visível à sua frente.

19. O piso no local onde os veículos UG e LX se imobilizaram era composto por gravilha, dificultando a travagem das viaturas.

20. Foi devido às aludidas características do piso da berma que o veículo LX não conseguiu travar e, por isso, evitar o embate com o veículo UG.

21. O veículo HH não deteve a sua marcha aquando do acidente e prosseguiu a sua circulação, só tendo sido parado a cerca de quinhentos metros, mas não tendo regressado ao local do acidente.


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Dos danos no veículo:

22. Em consequência do embate, resultaram para a viatura do Autor danos na parte frontal e traseira.

23. Os danos em causa foram objecto de peritagem pelas Rés A... e Fundo de Garantia Automóvel, tendo a respectiva reparação sido avaliada em € 3.030,32.


*

Da paralisação do veículo:

24. Após o embate, a viatura do Autor manteve capacidade mecânica para circular.

25. Não obstante, em virtude dos danos sofridos na viatura, o Autor passou, até 22/09/2022, a evitar utilizar a mesma.

26. O veículo apresenta como data de matrícula o dia 25/06/2014.

27. À data do acidente, o veículo tinha 197.091 quilómetros.

28. Entre 17/06/2021 e 23/08/2022, o veículo do Autor percorreu 10.471 quilómetros.

29. O Autor deixou de utilizar a viatura integralmente desde 22/09/2022, data em que a mesma ficou impedida de circular em virtude de não ter obtido aprovação na inspecção periódica obrigatória, em virtude dos danos causados pelo acidente em apreço.

30. Entre 23/08/2022 e 31/01/2023, o veículo do Autor percorreu quatro quilómetros.

31. Após deixar de usar a viatura sinistrada, o Autor passou a utilizar o automóvel da avó da sua esposa para as suas deslocações.

32. O Autor utilizava o veículo em causa na sua vida pessoal e profissional, não só para se deslocar para o emprego, como em passeios aos fins de semana, visitas aos amigos e familiares, deslocações várias aos hipermercados, festas, entre outros.

33. O valor médio diário de aluguer de uma viatura de gama idêntica à do Autor ascende a €75,00.


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Dos danos não patrimoniais:

34. O Autor sentiu pânico nos momentos que antecederam o acidente.

35. No dia e momento do acidente, o Autor fazia-se acompanhar no veículo pela mulher, DD, e pelo filho do casal, EE, de cinco anos de idade, viajando estes dois últimos no banco de trás.

36. O facto de o seu filho poder ter ficado seriamente ferido em virtude do acidente causou particular pavor ao Autor.

37. Tal sentimento de medo, angústia e sofrimento afectou o Autor durante algum tempo, tendo-lhe perturbado o sono e lhe retirado a paz de espírito, sossego, serenidade e bem-estar.


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Da responsabilidade:

38. Por contrato de seguro titulado pela Apólice ...71, a proprietária do veículo LX havia transferido para a Ré A... a sua responsabilidade civil pela circulação do referido veículo, pela qual esta se obrigou a indemnizar os terceiros lesados.

39. Por sua vez, o veículo HH não tinha a sua responsabilidade emergente do acidente de viação transferida para qualquer seguradora.

40. Por cartas datadas de 15/07/2021 e de 13/08/2021, as Rés A... e Fundo de Garantia Automóvel declinaram a responsabilidade pela reparação dos danos causados em consequência do acidente.

III.2. E julgou não provados os seguintes factos:

1. Que o veículo de matrícula LX se encontrasse a ser conduzido por CC no interesse e sob a direcção de BB.

2. Que o veículo de matrícula HH se encontrasse a ser conduzido no interesse e sob a direcção de B..., S.A..

3. Que o veículo LX circulasse demasiado próximo do veículo UG no momento do acidente.

4. Que a velocidade máxima no local seja de 50km/h.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação - oficiosa - da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere Abrantes Geraldes[1], “[Outras] decisões podem revelar-se tptal ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias [...] resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares [...], da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa [...]ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.
Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal a quo se fundou, situação que se revelará agora mais frequente , atenta a obrigatoriedade de gravação das audiências [...]”.
Da análise da matéria fixada pelo tribunal de primeira instância sobressai contradição flagrante entre a matéria constante do ponto 2.º dos factos provados, quando refere que “Em tal acidente foram intervenientes os seguintes veículos:
[...] Veículo marca Peugeot, matrícula ..-HH-.., pertença de B..., S.A., conduzido por um colaborador da mesma cuja identidade se desconhece, no interesse e sob a direcção daquelae o ponto 2.º dos factos não provados (Que o veículo de matrícula HH se encontrasse a ser conduzido no interesse e sob a direcção de B..., S.A.).
 Existe, com efeito, contradição na afirmação de que o veículo de matrícula HH estivesse a ser conduzido no interesse e sob a direcção de B..., S.A. , considerando-se simultaneamente não provado que o mesmo veículo se encontrasse a ser conduzido no interesse e sob a direcção de B..., S.A..
Os elementos dos autos e a gravação da prova produzida em audiência permitem a esta instância suprir a detectada contradição.
A matéria elencada no ponto 2.º dos factos provados, no segmento em se verifica o vício constatado, corresponde integralmente ao alegado pelo Autor no artigo 4.º da petição inicial, a qual, não tendo sido impugnada por nenhuma das partes, se deve considerar aceite pelas mesmas, pelo que deve ser incluída nos factos assentes.
Assim, é de manter o ponto 2.º dos factos provados, tal como se acha redigido, eliminando-se o ponto 2.º dos factos não provados, cuja matéria se acha em contradição com a vertida no mencionado segmento do ponto 2.º dos factos provados.

2. Do mérito do julgado.

Para ser ressarcido dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, que sofreu em consequência de acidente de viação em que intervieram, além do seu próprio veículo, que na altura conduzia, o veículo ligeiro de passageiros marca Opel (...), matrícula ..-..-LX, pertencente  a BB (que, por contrato de seguro titulado pela Apólice ...71 havia transferido para a Ré “A... COMPANHIA DE SEGUROS S.A.”, a sua responsabilidade civil pela circulação do referido veículo), então conduzido por CC, e o veículo marca Peugeot, matrícula ..-HH-.., pertencente a “B..., S.A”, que não tinha transferido a responsabilidade por acidente de viação causado pelo veículo de que é proprietária, o Autor demandou aquela seguradora, a proprietária do veículo HH e o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação solidária dos mesmos.

Citados os Réus, o administrador da insolvência da “B..., S.A”, dando conta de ter esta sido declarada insolvente por sentença proferida no processo n.º 1504/21.7T8VNG, que corre termos pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 5, requereu que, quanto a esta Ré insolvente, fosse julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil, convocando ainda o artigo 85.º, n.º 1 do CIRE e o AUJ  do STJ, n.º 1/2014, de 8 de Maio de 2013.

Após ter sido assegurado o contraditório, foi, a 10.10.2022, proferido o seguinte despacho:

“Veio o Administrador de Insolvência da Ré B..., S. A. pugnar, quanto a si, pela inutilidade superveniente da lide, em virtude da declaração de insolvência da aludida sociedade.

Em resposta, pugnou o Autor pela não verificação de tal inutilidade.

Vejamos.

Nos termos do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013, Proc. n.º 170/08.0TTALM.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto Fernandes da Silva: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do art. 287.º do C.P.C.”.

Ora, no caso, o Autor pretende, efectivamente, o reconhecimento de um crédito sobre a aludida Ré, advindo da sua responsabilidade civil extra-contratual.

Tal crédito deverá, contudo, ser exigido em sede de reclamação no âmbito do processo de insolvência. Conforme se refere no aludido acórdão, a decisão a proferir nestes autos é totalmente inócua, porquanto não impede a necessidade de recurso, pelo Autor, ao incidente de reclamação de créditos.

No mais, não se coloca em questão a legitimidade dos demais intervenientes. O Autor intentou a acção contra quem deveria, sendo a mesma extinta quanto a um dos intervenientes.

Deste modo, não se mostra necessário o prosseguimento dos autos relativamente à Ré B....

Face ao exposto, determina-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, relativamente à aludida Ré, nos termos do art.º 277.º, alínea e), do Cód. Proc. Civil.

Custas a determinar a final.

Registe e notifique”.

Com tal decisão se conformaram todas as partes, incluindo o próprio Réu Fundo de Garantia Automóvel, que, com o recurso que interpôs da sentença, não impugnou aquela decisão interlocutória.

Não obstante a sua conformação com a dita decisão e o silêncio com que reagiu à sua permanência na lide na posição de parte passiva, chegando mesmo a pronunciar-se quanto ao requerimento de ampliação do pedido apresentado pelo Autor, pugnando para que ele viesse a ser “julgado em conformidade com a prova que vier a produzir-se”,  só após a notificação da sentença que o condenou, veio o Fundo de Garantia Automóvel, por meio do presente recurso, sustentar que “Da consagração do litisconsórcio necessário passivo decorre que a condenação dos demandados – FGA e responsável/responsáveis civis – quando deva ter lugar, é uma condenação solidária, dada a existência de uma concorrência de responsabilidades”, e que “A legitimidade do FGA tem de ser considerada pela conjugação dos artigos 54.º e 62.º, ambos do Dec. Lei n.º 291/2007. Sendo que, este último, prevê a condenação conjunta e solidária do FGA e os responsáveis civis”.

É facto incontroverso que as acções para reparação de danos de acidente de viação quando o responsável civil seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz tenham necessariamente de ser propostas, sob pena de ilegitimidade, contra o responsável civil e o Fundo de Garantia Automóvel, verificando-se, assim, uma situação de litisconsórcio necessário passivo.

É o que directamente resulta do artigo 62.º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quando prescreve: “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade”.

Essa legitimidade foi assegurada ao ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel conjuntamente com o responsável civil, isto é, a proprietária do veículo que não beneficiava de seguro válido e eficaz.

E tal pressuposto processual não se desfez pela circunstância de, posteriormente à propositura da acção, ter sido julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, em virtude da declaração de insolvência do responsável civil.

Como determina o n.º 1 do artigo 85.º do CIRE, “Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”.

O que se justifica face à natureza e fins prosseguidos pelo processo de insolvência, especificando o artigo 1.º do CIRE que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.

De resto, já do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar que “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.

Daí que seja na órbitra do processo de insolvência que devam ser discutidos e apreciados os direitos dos credores com vista à satisfação, tão plena quanto possível, dos seus créditos.

Assim, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, destinando-se a massa insolvente - que abrange, por regra, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que adquira na pendência do processo - à satisfação dos seus créditos,

Neste contexto, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 8.05.2013[2] veio firmar a seguinte doutrina: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”.

A extinção da instância relativamente à Ré B..., S.A., tendo por fundamento, nos aludidos termos, a inutilidade superveniente da lide face à declaração de insolvência da referida demandada, em nada altera os pressupostos processuais, designadamente a legitimidade passiva, que se fixaram no momento da propositura da acção.

Por outro lado, dadas as específicas razões que ditaram tal absolvição da instância, esta não é extensível ao Réu Fundo de Garantia Automóvel, que dela também não se pode aproveitar,  já que, quanto a este, não ocorrem os pressupostos que justificaram aquele desfecho, não podendo o Autor, quanto àquele Réu, exercer o seu direito de crédito no processo de insolvência, mas não estando inibido de fazê-lo em relação à Ré insolvente.

Não faz, assim, sentido o apelo feito pelo recorrente ao decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2008, pois neste está em causa saber se a extinção do direito do Autor, por prescrição, relativamente aos responsáveis civis aproveita, nos mesmos termos, ao Fundo de Garantia Automóvel, concluindo, em sentido afirmativo o mencionado aresto, sendo realidade distinta da tratada nos presentes autos, nos quais não ocorreu qualquer extinção do direito do Autor em relação à Ré B..., S.A. por virtude da declarada extinção da instância, podendo aquele ainda exercer o alegado direito no âmbito do processo de insolvência.

Os argumentos recursivos do apelante são, deste modo, totalmente desprovidos de razão, inexistindo qualquer fundamento que justifique a, por ele pretendida, absolvição da instância.

Improcede, como tal, o recurso, com a consequente confirmação do decidido.


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Síntese conclusiva:
……………………..
……………………..
…………………….

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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação,  em confirmar a sentença recorrida.

Custas: a cargo do apelante – artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


Notifique.

Porto, 8.02.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Ana Vieira
Ernesto Nascimento

_____________________
[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 239/240.
[2] Processo n.º 170/08.0TTALM.L1.S1, www.dgsi.pt.