Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2718/18.2T8OAZ.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
Nº do Documento: RP202111082718/18.2T8OAZ.P2
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Em sede de admissão liminar da exoneração do passivo restante, a cessão do rendimento disponível deve ser calculada por referência a cada mês e ser actuada em cada mês que o rendimento auferido exceder o montante arbitrado a título de sustento minimamente digno do devedor;
II – Nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor, ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno do mesmo, não há lugar a cessão de rendimento; porém, nestes casos, não nasce a favor do devedor o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido para aquele sustento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº2718/18.2T8OAZ.P2
(Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis – Juiz 1)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Nos presentes autos de processo de insolvência em que foram declarados insolventes B… e esposa, C…, ocorreu o seguinte circunstancialismo:

a) – em 12/10/2018 foi proferido despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante requerida pelos insolventes, tendo-se nele determinado o seguinte:
- que durante os cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado do mesmo “o rendimento disponível que os devedores venham a auferir considera-se cedido ao fiduciário nomeado”;
- que tal rendimento disponível “é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos devedores, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115.º [do CIRE] cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz” e “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, não devendo exceder uma vez o salário mínimo nacional (1 SMN), por cada um dos devedores, o que perfaz o total de 2 SMN pelo seu agregado familiar, considerando os 12 meses do ano” (negrito no próprio texto do despacho);
- que durante aquele período os devedores ficam obrigados a “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão”.

b) – na sequência de requerimento dos insolventes de 18/10/208 – em que por estes foi pedido o esclarecimento sobre se o rendimento a ceder será o que exceder dois salários mínimos pelo agregado familiar, considerado um todo –, foi a 5/11/2018 proferido despacho com o seguinte teor:
O entendimento exposto pelos Requerentes afigura-se correto, devendo o rendimento do agregado familiar ser entendido como um todo e não discriminando o que cada cônjuge aufere, a título individual, por cada mês. Tal entendimento apenas se manterá enquanto os cônjuges viverem em economia comum de casal, o mesmo já não sucedendo se, entretanto, se separarem ou deixarem de residir na mesma habitação.
Notifique.
Dê conhecimento ao Sr. Fiduciário.

c) – a 18/10/2019, pela Sra. Fiduciária foi apresentado nos autos o 1º RELATÓRIO ANUAL DE FIDUCIÁRIO, por si referido como respeitante ao período de 30/10/2018 a 29/10/2019 mas cujo quadro nele constante abarca os meses de Outubro de 2018 a Setembro de 2019, tendo-se nele concluído que, considerando o montante equivalente a 2 vezes o salário mínimo nacional por cada uma daqueles meses (sendo tal valor o de 1160,00 euros para o ano de 2018 e o de 1200,00 euros para o ano de 2019), havia rendimento a ceder relativamente ao mês de Novembro de 2018 no montante de 1063,56 euros (pois foi recebido naquele mês pelos insolventes um total de rendimento de 2223,56 euros, proveniente de salário e subsídio de férias do insolvente marido, já que a insolvente esposa não auferiu qualquer rendimento) e rendimento a ceder relativamente ao mês de Abril de 2019 no montante de 1969,67 euros (pois foi recebido naquele mês pelos insolventes um total de rendimento de 3169,67 euros, sendo 2243,75 euros de salário e subsídio de férias do insolvente marido e 925,92 euros de reembolso de IRS), ascendendo o total de tal rendimento a ceder quanto àquele período a 3033,23 euros.
Naquele mesmo relatório, informou que, notificados os Insolventes para procederem ao depósito do referido montante na conta da massa insolvente, estes vieram requerer o pagamento em prestações, e, nessa sequência, requereu ao tribunal que se dignasse ordenar o que tivesse por conveniente quanto ao pagamento daquele montante de 3033,23 euros em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas de 70,00 euros e uma última de 93,23 euros.

d) – sobre tal relatório e requerimento, foi em 11/11/2019 proferido o seguinte despacho:
Tomei conhecimento da informação anual (artigo 240º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Os autos aguardarão as ulteriores informações a prestar pelo Exmo. Fiduciário para o que deverá ser notificado, se necessário.
Os autos serão conclusos acaso seja denunciado qualquer incumprimento ou efectuado qualquer outro pedido pelo Exmo. Fiduciário.
Caso contrário, serão conclusos para prolação da decisão final de exoneração.
Notifique.
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Autoriza-se o pagamento do rendimento a ceder, em prestações, nos termos requeridos, desde que os montantes a ceder se mostrem devidamente depositados na conta da Fidúcia no final do período da cessão.
Notifique.

e) – por requerimento de 27/5/2020, os Insolventes, alegando nomeadamente que os valores recebidos a título de subsídio de férias, subsídio de Natal e reembolsos de IRS são fundamentais para o seu sustento condigno, vieram requerer ao tribunal que esclareça se o cálculo do rendimento disponível que lhes foi fixado é realizado em função do rendimento anual a dividir por 12 e requereram ainda que, caso assim não se entendesse, que fossem dispensados de entregar as quantias referentes aos subsídios de férias e de Natal, nos termos do art. 239º, nº3, al. b), i, do CIRE.

f) – sobre tal requerimento foi a 22/6/2020 proferido o seguinte despacho:

Vieram os devedores requerer que a Exma. Fiduciária efectue os cálculos do rendimento a ceder por referência ao rendimento anual (dividido por 12 meses) e não por referência a cada um dos doze meses do ano pois que se assim for, os subsídios não têm de ser cedidos e são necessários à sobrevivência dos devedores.
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Para a decisão da causa é de considerar que:
1 – Na decisão liminar estabeleceu-se que o rendimento dos devedores que ultrapasse o equivalente a 1 Salário Mínimo Nacional por mês, para cada um, considerando os 12 meses do ano, seja cedido ao Exmº. SR. AI, que se nomeia para exercer as funções de fiduciário.
2 – Na primeira informação anual a Exma. Fiduciária concluiu que os devedores, nos meses de Novembro e Abril, por força de receberem os subsídios, ultrapassaram o rendimento indisponível fixado.
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Os factos dados como provados resultam tão só do histórico do processo.
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Sobre a natureza da cessão prevista no n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas seguimos o entendimento de que se trata de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, páginas 176 e 177].
E assim, todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se necessariamente a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.
E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês.
Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo.
Cabe perguntar, no entanto, o que resulta de tais normas (as normas dos artigos 239.º, n.º 2, e 239.º, n.º 3, alínea b), i, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família?
Em primeiro lugar, em tais hipóteses, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos.
Em segundo lugar, não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o seu sustento e da família.
Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos.
Daí que não tenha amparo no artigo 239.º, n.º 2, e no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a pretensão dos devedores no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão e que tal rendimento seja constituído pela diferença entre os rendimentos totais obtidos em cada ano e o produto da soma, também em cada ano, do montante fixado pelo tribunal como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e da sua família.
De resto, se a interpretação dos devedores fosse válida, então o apuramento do rendimento disponível não deveria ser feito sequer anualmente; deveria ser feito ao fim do período da cessão, o que não tem qualquer amparo na lei.
Contra a interpretação do n.º 2 do artigo 239.º, combinado com o n.º 3 alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que ora se defende não vale a circunstância de o n.º 2 do artigo 240.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas conjugado o n.º 1, do artigo 61.º, impor ao fiduciário o dever de prestar anualmente informação a cada credor e ao juiz sobre a situação da exoneração do passivo restante nem a circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 241.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ser dever do fiduciário afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (alínea a)), ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas (alínea b)); ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas (alínea c)) e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
É que as normas em questão dizem respeito exclusivamente ao estatuto e às funções do fiduciário, não dando resposta à questão suscitada pelo devedor.
Tal como costumámos afirmar para os casos em que os devedores nos questionam directamente sobre a necessidade de cederem os subsídios de férias e de Natal, esses subsídios são um complemento da retribuição com a finalidade de permitir/facilitar/ajudar ao gozo de férias e auxiliar nas despesas, normalmente acrescidas, da quadra natalícia.
Mas não se destinam a assegurar o mínimo indispensável a uma existência condigna, pelo que não podem considerar-se imprescindíveis para satisfação das suas necessidades básicas.
Acresce que o devedor a quem foi concedido liminarmente a exoneração do passivo restante não pode ter a pretensão de continuar a ter o mesmo modo de vida que tinha antes de ser declarado insolvente, antes devendo, na sequência do seu pedido e concessão da exoneração do passivo restante, estar essencialmente vinculado à satisfação dos créditos judicialmente reconhecidos.
E para isso é-lhe exigível a contenção de despesas e de hábitos/condutas mais onerosos e dispensáveis como sendo os de racionalização/moderação das despesas da quadra natalícia e a eventual supressão de gozo de férias que implique despesas acrescidas.
Pelo que, em consonância com o que temos decidido em relação aos subsídios, igual decisão tem de recair sobre o pedido formulado pelos devedores, pois que o montante que, dos subsídios, ou de qualquer outro rendimento que lhe advenha num outro qualquer mês, exceda o que lhe foi fixado para a sua sobrevivência, deve ser classificado de rendimento disponível, e, assim, totalmente adstrito ao pagamento das suas dívidas.
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Decisão: Pelo exposto, indeferindo-se o pedido formulado pelos devedores, determina-se que a Exma. Fiduciária deve continuar a contabilizar o rendimento a ceder por referência a cada um dos doze meses do ano, cabendo aos devedores entregar tudo quanto, em cada um desses doze meses, exceder o que lhe foi estabelecido para a sua sobrevivência condigna.
Notifique.
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Quanto à necessidade de os devedores salvaguardarem os referidos subsídios para o pagamento de despesas atinentes à sobrevivência do agregado familiar, uma de duas: Ou os devedores têm despesas fixas mensais superiores a dois salários mínimos nacionais e então, a ser assim, deve solicitar a revisão do rendimento indisponível fixado; Ou têm de suportar despesas extraordinárias, mas essenciais, nos meses em que recebem os subsídios mas, se assim for, devem justificar e demonstrar essas despesas para que possam, eventualmente, ficar dispensados de entregar os subsídios ou parte deles.
Notifique.

g) – em 25/8/2020, os Insolventes formularam novo requerimento, com o seguinte teor:
“(…) tendo sido notificados do douto despacho de fls. …, vêm muito respeitosamente, expor e requerer a final:
Refere o douto despacho de fls. … que “(…) Quanto à necessidade de os devedores salvaguardarem os referidos subsídios para o pagamento de despesas atinentes à sobrevivência do agregado familiar, uma de duas: Ou os devedores têm despesas fixas mensais superiores a dois salários mínimos nacionais e então, a ser assim, deve solicitar a revisão do rendimento indisponível fixado; Ou têm de suportar despesas extraordinárias, mas essenciais, nos meses em que recebem os subsídios mas, se assim for, devem justificar e demonstrar essas despesas para que possam, eventualmente, ficar dispensados de entregar os subsídios ou parte deles. (…)”.
Os Insolventes não têm despesas superiores a dois salários mínimos nacionais, pelo que, pretendem demonstrar ao Tribunal que quando recebem os subsídios suportam despesas extraordinárias, mas que na sua maioria foram suportadas ao longo dos meses antecedentes, por forma a ficarem dispensados de entregar os subsídios.
Tal acontece atendendo ao facto da sua filha, nos meses em que os Insolventes não têm rendimento suficiente para as despesas mensais (quase todos os meses, exceto quando o Insolvente recebe os subsídios), lhes empresta dinheiro, que estes devolvem na altura em que recebem os subsídios.

Senão vejamos,
A Insolvente continua desempregada e, o Insolvente aufere em média o salário de € 930,00 (novecentos e trinta euros).
As despesas mensais dos Insolventes ascendem a € 1.095,97 (mil e noventa e cinco euros e noventa e sete cêntimos, referentes a:
a) renda da habitação dos Insolventes, a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros). – cfr. doc. 1, em anexo.
b) água (média mensal, dado que, a faturação é efetuada de 2 em 2 meses), a quantia de € 50,00 (cinquenta euros); – cfr. doc. 2, em anexo.
c) serviço de telefone, internet, televisão, telemóvel, a quantia de € 71,73 (setenta e um euros e setenta e três cêntimos); – cfr. doc. 3, em anexo.
d) gás, a quantia de € 24,28 (vinte e quatro euros e vinte e oito cêntimos); – cfr. doc. 4, em anexo.
e) eletricidade, a quantia de € 94,96 (noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos); – cfr. doc. 5, em anexo.
f) alimentação, a quantia de € 300,00 (trezentos euros);
g) vestuário e calçado, a quantia de € 50,00 (cinquenta euros);
h) combustível do veículo automóvel, a quantia de € 80,00 (oitenta euros);
i) farmácia, a quantia de € 25,00 (vinte e cinco euros).
Nesse seguimento, existe um défice mensal de cerca de € 165,97 (cento e sessenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos) face ao rendimento, sendo a filha dos Insolventes cobrir a diferença todos os meses.
A filha além de os ajudar financeiramente emprestou-lhes um veículo automóvel, que é essencial para o seu quotidiano, ficando estes responsáveis pela manutenção do mesmo, que origina as seguintes despesas:
a) seguro do veículo automóvel pago semestralmente, na quantia de € 187,22 (cento e oitenta e sete euros e vinte e dois cêntimos);
b) imposto de selo do veículo automóvel, na quantia de € 147,21 (cento e quarenta e sete euros e vinte e um cêntimos);
c) manutenção, revisão, inspeções, na quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), anual.
Ora, de modo fixo, em Junho os Insolventes têm uma despesa extraordinária com o veículo no montante de € 334,43 (trezentos e trinta e quatro euros e quarenta e três cêntimos) e, em Dezembro têm uma despesa de € 187,22 (cento e oitenta e sete euros e vinte e dois cêntimos).
As despesas com a manutenção do veículo são efetuadas na altura em que são estritamente necessárias, sendo que, na sua maioria são suportadas em Dezembro, dado que, em Janeiro o veículo vai à inspeção (e também é na altura que recebe o subsídio e tem capacidade financeira para tal desiderato).
10º
Multiplicando a média do défice orçamental por 6 (seis) meses, obtemos a quantia de € 1.123,32 (mil cento e vinte e três euros e trinta e dois cêntimos).
11º
Se acrescentarmos as despesas extraordinárias referentes ao veículo, verificamos que nos meses que recebem os subsídios têm suportam despesa extraordinária.
12º
Nomeadamente, na altura do subsídio de férias em cerca de € 1.457,75 (mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e setenta e cinco euros) e, na altura do subsídio de natal em cerca de € 1.473,32 (mil quatrocentos e setenta e três euros e trinta e dois cêntimos).
13º
Note-se que o défice orçamental em alguns meses poderá ser superior, bastando para tanto que o Insolvente receba menos, como foi o caso de Dezembro de 2019 (€ 817,99) e, Janeiro de 2020 (€ 503,02).
14º
Ora, em Maio de 2020, quando recebeu o reembolso do IRS, conseguiu amortizar mais algum montante à filha, pois em Janeiro esta teve de emprestar mais aos Insolventes.
15º
Do supra referido constata-se que os Insolventes não têm uma vida com excessos ou luxos e, que só a solidariedade da filha para com os Insolventes, lhes permite ter uma vida condigna, estando sempre em débito financeiro para com ela.
16º
O dinheiro que a filha lhes empresta todos os meses, permite-lhes que não entrem em incumprimento com os serviços essenciais e renda, sendo manifesto que esse procedimento incumprimento lhes traria mais despesas a curto prazo e, em alguns meses não teriam dinheiro para a alimentação.
17º
Pelo exposto, requer-se que sejam os Insolventes dispensados de entregar os subsídios, com efeitos retroativos (isto é, dos montantes excedentes desde o primeiro ano ou em última análise, os referentes ao último ano), dado que, é com os mesmos que liquidam parte do dinheiro que a filha lhes empresta, sendo certo que ficam para com esta sempre em débito financeiro (basta atentar aos rendimentos declarados e expostos nos doutos relatórios anuais).
17º
Na eventualidade de assim não entender o Tribunal, por forma a facilitar a demonstração das despesas extraordinárias, os Insolventes requerem que seja fixado o valor médio de despesas mensais referido em 4º, por forma a permitir e facilitar o cálculo dessas despesas e manter o mínimo de privacidade quanto às mesmas, pois juntar ao processo as faturas das compras das mercearias, farmácia, vestuário e calçado seria uma exposição pública da vida privada dos Insolventes, que salvo o devido respeito por opinião divergente, é desnecessária.
18º
Apurando-se o valor referido no artigo precedente, os Insolventes propõem-se demonstrar ao Tribunal que suportam despesas adicionais quando recebem o subsídio (sendo certo que em bom rigor já as suportaram com o empréstimo de dinheiro da sua filha) com a seguinte fórmula:
2 SMN + Receita Extraordinária (subsídio de férias, reembolsos IRS ou outros) -Despesas Mensais - Défice Mensal dos anteriores meses - Despesas Extraordinárias suportadas quando recebe os subsídios (por exemplo, despesas com o veículo) = Valor a entregar à massa insolvente.”

h) – sobre o requerimento referido na alínea anterior, foi proferido em 23/9/2020 o seguinte despacho:
Conforme alegam os devedores, as suas despesas fixas mensais ascendem a € 1.095,97 sendo certo que, para o que é realmente essencial, o vencimento mensal do devedor é suficiente já que não pode reputar-se de essencial à sobrevivência dos devedores a circulação num veículo automóvel e o pagamento de tudo quanto o seu uso implica.
Como é óbvio, nada há a obstar à normal solidariedade dos filhos para com os seus pais, designadamente, como aqui acontece, à disponibilização de um veículo automóvel com o qual, como não podia deixar de ser, suportam despesas extraordinárias para as quais já não têm rendimento disponível. Daí que a filha dos devedores tenha de, mensalmente, emprestar aos pais o montante que corresponde quase na sua totalidade, a despesas que não são essenciais.
Os devedores têm a possibilidade de pagar tudo quanto a filha de ambos lhes empreste assim que terminar o período da cessão, mas não podem, como pretendem, deixar de ceder rendimento a favor dos seus credores, não se esforçando para restringir as despesas fixas mensais.
Pelo que, sem necessidade de quaisquer outros considerandos, se indefere o pedido formulado pelos devedores.
Notifique.

i) – De tal despacho vierem os Insolventes interpor recurso, tendo na sua sequência sido proferido acórdão por este Tribunal da Relação em 14/1/2021 cujo dispositivo final é o seguinte:
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelos insolventes B… e C…, confirmando-se a decisão recorrida.

j) – Na sequência de tal acórdão, foi proferido em 15/2/2021 o seguinte despacho:
Li o acórdão proferido pelo TRP.
Devem agora os devedores esclarecer o que tiver por conveniente quanto ao rendimento disponível apurado.

k) – Na sequência de tal despacho, os Insolventes, em 26/2/2021, apresentaram nos autos o seguinte requerimento:
“(…) tendo sido notificados do douto despacho de fls. …, vêm muito respeitosamente, expor e requerer a final:
Refere o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. … que “(…) 4. Tal não invalida que exista uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para o insolvente não atinja a retribuição mínima mensal (RMMG), podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como seja os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra, de modo a encontrar-se um constante e consistente "sustento minimamente digno". (…)”.
Aos devedores, para sustento minimamente digno, foi fixado no âmbito dos presentes autos um salário mínimo nacional por cada um dos devedores, o que perfaz o total de dois salários mínimos para o agregado familiar, considerando os doze meses do ano.
No primeiro ano de cessão, os devedores tiveram o rendimento total de € 15.492,16 (quinze mil quatrocentos e noventa e dois euros e dezasseis cêntimos), o que totaliza o rendimento médio mensal de € 645,50 (seiscentos e quarenta e cinco euros e cinquenta cêntimos), por devedor, por referência aos doze meses no ano.
A Ilustre Fiduciária, considera que nesse período existe a ceder a quantia de € 3.033,23 (três mil e trinta e três euros e vinte e três cêntimos).
O que resultaria num rendimento médio mensal por devedor de € 519,12 (quinhentos e dezanove euros e doze cêntimos), por referência aos doze meses no ano.
Já no segundo ano de cessão, os devedores tiveram o rendimento total de € 13.978,48 (treze mil novecentos e setenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos), o que totaliza o rendimento médio mensal de € 582,44 (quinhentos e oitenta e dois euros e quarenta e quatro cêntimos) por cada um dos devedores, por referência aos doze meses no ano.
Considera a Ilustre Fiduciária que nesse período existe a ceder a quantia de € 2.162,29 (dois mil cento e sessenta e dois euros e vinte e nove cêntimos).
Tal colocaria o rendimento médio mensal dos devedores na média de € 492,34 (quatrocentos e noventa e dois euros e trinta e quatro cêntimos), por devedor, por referência aos doze meses no ano.
Conforme resulta dos anteriores requerimentos apresentados (que por uma questão de economia processual aqui se dão por reproduzidos), os devedores não têm despesas nem rendimentos superiores a dois salários mínimos nacionais (exceptuando quando o devedor marido recebe o subsídio de férias e Natal).
10º
O montante apurado a ceder à Ilustre Fiduciária (resultante desses subsídios), foi gasto no sustento minimamente digno para o agregado familiar dos devedores.
11º
Nomeadamente, os devedores têm défice mensal no que concerne ao apuro das despesas (cerca de € 1.150,00) e ao rendimento (cerca de € 930,00) e, tal situação é agravada nos meses que devedor marido recebe menos, como foi o caso de Dezembro de 2019 (€ 817,99) e, Janeiro de 2020 (€ 503,02).
12º
É patente que os devedores usaram o montante apurado para liquidar as despesas correntes e normais, sempre em montante inferior ao valor atribuído como rendimento disponível para os devedores.
13º
Pelo exposto, na esteira do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, utilizando uma ponderação corretiva, dado que, o rendimento mensal retido pelos devedores não atinge o RMMG, por forma a permitir um constante e consistente sustento minimamente digno, requer-se que sejam os devedores dispensados de depositar o montante já apurado, dado que, tal montante foi utilizado para suprir os meses que em que os devedores não atingiram como rendimento os dois salários mínimos nacionais, mais requerendo que o montante a ceder seja apurado segundo o rendimento total anual subtraindo dois rendimentos mensais por devedor por referência aos doze meses do ano, por forma a permitir um constante e consistente sustento minimamente digno dos devedores, utilizando a supra citada ponderação corretiva.”

l) – sobre o requerimento referido na alínea anterior, foi proferido em 19/3/2021 o seguinte despacho:
Indefere-se o requerido pelos devedores por se ter já esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal quanto à questão agora (de novo) colocada e já decidida.
Sem prejuízo, se os devedores demonstrarem que tiveram de suportar uma qualquer despesa extraordinária (não expectável) e que fizeram com o rendimento disponível apurado, sempre tal despesa poderá ser passível de ser imputada no rendimento a ceder.
Mas até ao momento, tal não aconteceu pelo que devem os devedores esclarecer como pretendem entregar o rendimento disponível apurado.

De tal despacho vieram os Insolventes interpor recurso, tendo na sequência da sua motivação apresentado as seguintes conclusões:

“a) O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. … decretou que “(…) 4. Tal não invalida que exista uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para o insolvente não atinja a retribuição mínima mensal (RMMG), podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como seja os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra, de modo a encontrar-se um constante e consistente "sustento minimamente digno".
b) Os Insolventes requereram que fosse aplicada a ponderação corretiva, de modo a encontrar-se um constante e consistente "sustento minimamente digno".
c) O Tribunal ad quo indeferiu o requerido pelos devedores por se ter já esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal quanto à questão colocada.
d) Está esgotado o poder jurisdicional quanto à questão colocada, mas o Tribunal recorrido não aplica o decretado pelo Tribunal Superior.
e) O Tribunal recorrido, interpreta que apenas poderá ser imputada no rendimento a ceder as despesas extraordinárias (não expectáveis) e não, as despesas ordinárias (correntes e expectáveis).
f) Para aferir da ponderação corretiva, é indiferente se as despesas são ordinárias, extraordinárias, expectáveis ou não.
g) A ponderação corretiva é aplicável no caso existirem meses em que os Insolventes tenham rendimentos inferiores a dois salários mínimos nacionais.
h) Nessas situações, o défice deve ser corrigido com rendimentos que os Insolventes recebem em excesso noutros meses, fazendo-se a compensação.
i) Dessa forma é garantido o sustento minimamente digno dos Insolventes.
k) Em função da necessária ponderação corretiva, o montante a ceder deve ser apurado no final do período de exoneração.
l) O acórdão que recai sobre o mérito da causa, produz caso julgado material impondo-se dentro e fora do processo (artigo 619.º do CPC).
m) Ao violar a ponderação corretiva decretada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, decidindo em sentido contrário ao decretado, a decisão é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
n) Pelo exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que respeite a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação proferida no âmbito dos presentes autos, nomeadamente, que aplique a ponderação corretiva que permita encontrar um constante e consistente sustento minimamente digno aos insolventes.”

Não houve contra-alegações.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), tendo em conta a lógica e necessária precedência das nulidades relativamente às questões de direito, são as seguintes as questões a tratar:
a) – apurar da nulidade invocada pelos Recorrentes;
b) – apurar se o cálculo do rendimento disponível deve ser feito por referência ao final do período de cessão e se há lugar à compensação de montantes.
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II – Fundamentação

Os dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório.
Vamos ao tratamento da questão enunciada sob a alínea a).
Defendem os Recorrentes que a decisão recorrida, ao violar a ponderação correctiva decretada pelo Acórdão do Tribunal da Relação já anteriormente proferido nos autos, enferma da nulidade prevista no aert. 615º nº1 d) do CPC.
Mas não lhes pode ser reconhecida razão.
Existe aquela nulidade, como se prevê naquele art. 615 nº1 d) CPC, “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Aquele acórdão da Relação, referido sob a alínea i) do circunstancialismo elencado no relatório desta peça, foi proferido na sequência de recurso interposto do despacho referido na alínea h), proferido em 23/9/2020, e, como se vê do seu dispositivo final [referido naquela alínea i)], limitou-se a negar provimento ao recurso interposto pelos insolventes, confirmando a decisão recorrida, e nada ali ordenou ou determinou que fosse feito pelo tribunal recorrido.
É certo que consta do nº4 do sumário de tal acórdão – depois de sob o nº2 se fazer constar a asserção de que “O “sustento minimamente digno” da devedora/insolvente deve ser aferido em função da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), sendo, por isso, contabilizado mensalmente e não anualmente” e de sob o nº3 se fazer constar asserção de que “Sempre que em tal período seja ultrapassado o limite máximo do valor disponível fixado para a insolvente, tal excesso será entregue à fiduciária” – a asserção de que “Tal não invalida que exista uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para a insolvente não atinja a retribuição mínima mensal garantida (RMMG), podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como sejam os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra, de modo a encontrar-se um constante e consistente “sustento minimamente digno””.
Porém, tal asserção integra uma consideração restrita àquele recurso e até lateral à questão que foi objecto daquele, a qual, não tendo tido qualquer eco no dispositivo daquele acórdão, não se tinha que impor ao tribunal recorrido como decisão ou determinação do tribunal superior a que aquele devesse obediência (como previsto na segunda parte do nº1 do art. 152º do CPC).
Deste modo, nada tendo sido determinado pelo tribunal superior ao tribunal de primeira instância, aquela não era uma questão que este último tribunal tivesse que tratar.
Assim, o tribunal de primeira instância nem deixou de se pronunciar sobre questão que tivesse de apreciar nem conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.
Como tal, há que considerar improcedente a arguição da nulidade em causa.
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Passemos para as questões enunciadas sob a alínea b).
Sobre qualquer de tais questões – qual o período temporal a ter em conta para cálculo do rendimento disponível e se há lugar à compensação de montantes –, e como se refere no primeiro parágrafo do despacho ora sob recurso, há já decisão proferida nos autos e transitada em julgado, logo vinculativa no processo.
Efectivamente, o despacho referido sob a alínea f) do circunstancialismo elencado no relatório desta peça, proferido a 22/6/2020 e transitado em julgado – em cuja fundamentação de direito se transcreve praticamente na íntegra, e sem tal ali se referir, o que se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/3/2017, proferido no proc. nº178/10.5TBNZR.C1, em que é relator o Sr. Desembargador Emídio Santos (disponível em www.dgsi.pt) – decide explicitamente qualquer de tais questões e em termos que também acompanhamos.
De qualquer modo, insistamos no seu tratamento, sendo certo que, porém, não iremos dizer substancialmente nada de novo em relação a qualquer delas.
Ao dispor-se no art. 239º nº2 do CIRE, na sequência da admissão liminar da exoneração do passivo restante, que “[o] despacho inicial determina que no quinquénio subsequente ao encerramento do processo de insolvência, (…) designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido” ao fiduciário, consagra-se ali uma cessão de bens futuros ao fiduciário que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [neste sentido, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Iuris, 2ª edição, pág. 789, Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Themis, edição especial, 2005, págs. 176 e 177, e Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da insolvência”, 6ª edição, pág. 327].
Aquela disposição legal tem sido interpretada no sentido de dali resultar que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário do passivo restante deve ser feita directamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor [como se refere no Acórdão desta mesma Relação de 30/4/2020, proferido no proc. nº2441/16.2T8AVR, em que foi relator o Desembargador Carlos Gil e em que o ora relator foi adjunto, disponível em www.dgsi.pt, referindo-se ali naquele mesmo sentido José Gonçalves Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, 2013, pág. 88, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra supra citada, 3ª edição, págs. 860 e 861, anotação 7, e Alexandre Soveral Martins, “Um Curso de Insolvência”, Almedina, 2015, pág. 544].
Esta leitura (como também se refere naquele Acórdão desta Relação de 30/4/2020) resulta reforçada pela alínea c) do nº4 do art. 239º do CIRE, da qual decorre de forma incisiva que o recebimento de rendimentos pelo devedor é uma situação excepcional [como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra supra citada, 2ª edição, pág. 790, “se tal não correspondesse a uma situação excepcional, não faria sentido incluir-se nela a locução “quando por si recebida”, porquanto isso sempre se verificaria”, relevando também para tal interpretação o facto de naquele caso a lei impor ao devedor a obrigação de entregar “imediatamente” os rendimentos recebidos ao fiduciário] e aponta no mesmo sentido a previsão do art. 241º nº1 do CIRE quando ali se prevê a necessidade do fiduciário notificar a cessão de rendimentos às entidades de quem o devedor tenha direito a recebê-los, notificação essa que visa possibilitar a entrega directa dos rendimentos do devedor por parte de tais entidades ao fiduciário.
Assim, todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso vertente – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do nº3 do art. 239º, isto é, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
No caso vertente, tendo os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar sido fixados no montante de 2 vezes o salário mínimo nacional [alíneas a) e b) do circunstancialismo elencado no relatório desta peça], o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível não pode deixar de ter por referência o período de um mês, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (veja-se o art. 273º do Código do Trabalho).
Como tal, o objecto da cessão à fiduciária é aquilo que em cada mês exceder o que lhes foi arbitrado a título daquele sustento minimamente digno, o que – como se refere no Acórdão do STJ de 9/3/2021 para caso idêntico ao dos presentes autos (proferido no proc. nº11855/16.7T8SNT.L1.S1 e em que foi relator o Sr. Conselheiro José Rainho, disponível em www.dgsi.pt) – “afasta por completo a possibilidade” de os Recorrentes procederem “de outro modo que não seja afectar ao fiduciário em cada mês o rendimento desse mês que exceder o montante arbitrado a título de sustento” (os sublinhados são nossos; no texto daquele acórdão as mesmas expressões constam em itálico).
Assim, no seguimento de toda a disciplina legal que se veio de referir e interpretar, devendo a cessão do rendimento disponível ser calculada por referência a cada mês e ser actuada em cada mês que o rendimento auferido exceder o montante arbitrado a título de sustento minimamente digno dos devedores, é manifesta a improcedência da pretensão dos Recorrentes no sentido de o cálculo do rendimento disponível dever ser feito por referência ao final do período de cessão [alínea k) das conclusões do recurso].
Na sequência do que se veio de referir, sempre que há entradas de rendimentos no património dos devedores – sejam elas periódicas, esporádicas ou ocasionais –, o rendimento disponível a ceder ao fiduciário deve ser calculado em relação a cada mês de recebimento dos mesmos, sendo que nos meses em que não advierem rendimentos aos devedores ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dos mesmos não há lugar a cessão de rendimentos.
Porém, nestes casos, como se diz naquele Acórdão da Relação de Coimbra de 28/3/2017 que atrás se referiu (e no despacho proferido nos autos a 22/6/2020, ali se transcrevendo o seu conteúdo sem menção de autoria), “não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família. Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos.” (sublinhados nossos).
Nesta mesma linha, diz-se no Acórdão do STJ de 9/3/2021 que supra se referiu:
Se o devedor gerou em certo mês um rendimento que é inferior ao montante atribuído para seu sustento, é sobre ele (e não sobre o fiduciário ou os credores) que recai essa desvantagem circunstancial. Tal desvantagem não é adequadamente causada pelo funcionamento próprio da exoneração do passivo, mas sim por um fator externo: a insuficiência ocasional do rendimento auferido pelo devedor.
(…)
O que o devedor não goza é do direito a que no procedimento de exoneração do passivo restante lhe seja obrigatoriamente assegurado todos os meses, ainda que a operacionalizar de modo indireto (no caso, com recurso a operações contabilísticas de “compensação” ou “ajuste de contas”), o montante estipulado a título de sustento.
Vistas as coisas assim, como nos parece que devem ser vistas, logo se alcança que não se pode argumentar validamente com a circunstância de haver meses em que se aufere menos do que aquilo que foi arbitrado a título de sustento, para a partir daí construir a tese de que terá de haver uma “compensação” pela diferença, sendo esta a fazer através dos meses (…) em que se aufere mais.
As coisas devem ser vistas precisamente ao contrário: se o devedor gerou rendimentos que excedem o que lhe foi arbitrado para seu sustento, tem de entregar a diferença ao fiduciário; não goza da faculdade de reter ou usar essa diferença para “compensação” com a sua insuficiência de rendimentos de pretérito ou de futuro. Se não gerou rendimentos excedentes, nada tem de entregar ao fiduciário, mas não lhe assiste o direito a que lhe seja assegurado o recebimento do que lhe foi arbitrado a título de sustento. Repete-se que o fim precípuo do instituto da exoneração do passivo não é garantir ao devedor um certo rendimento, pelo que não faz sentido falar-se aqui numa espécie de direito ao reequilíbrio económico de um equilíbrio que foi (ou poderá vir a ser) rompido.
Daqui que os invocados “mecanismo de compensação”, “ajuste de contas” e recurso ao “rendimento médio mensal” não têm, quanto a nós, a menor lógica ou cabimento jurídico dentro daquilo que constitui a finalidade e o funcionamento próprios da exoneração do passivo restante.
Diz-se ainda mais à frente em tal aresto – e que vem no seguimento do já por nós referido anteriormente quanto à cessão de bens futuros ao fiduciário e de tal cessão resultar que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário do passivo restante deve ser feita directamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor, e também ainda no seguimento de se prever no art. 239º nº4 c) que o devedor deve entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida (excepcionalmente, como já se deu conta acima), a parte dos seus rendimentos objecto de cessão – que “[o]s rendimentos que o devedor adquire transferem-se no momento da sua aquisição para o fiduciário, de sorte que o devedor não tem legitimidade para deles dispor, nomeadamente para proceder às visadas “compensações” ou “ajuste de contas”” e que tais operações contabilísticas de compensação “produzem, pura e simplesmente, a neutralização do direito que assiste ao fiduciário de receber em cada mês o rendimento que vai para além do montante excluído a título de sustento nesse mês” (sublinhados nossos).
Concluindo: não há fundamento para os procedimentos de compensação pretendidos pelos Recorrentes.
Além disso, não podemos deixar de fazer notar o seguinte: face ao praticado nos autos, nomeadamente ao que resulta do 1º relatório anual do fiduciário referido sob a alínea c) do circunstancialismo elencado no relatório desta peça, conclui-se que, ao contrário do que a lei prevê e supra se referiu, os Insolventes só têm sido chamados a prestar contas da cessão anualmente (e não mensalmente, como deveria) e têm sido eles quem tem recebido, por si, em cada um dos meses, todos os seus rendimentos e têm com eles feito as contas que entendem; por outro lado, também em contrário do regime legal supra analisado do apuramento do rendimento disponível por referência ao mês e da actuação da cessão de tal rendimento disponível por referência a cada mês, até já se decidiu autorizar o pagamento do rendimento a ceder relativo ao primeiro ano de cessão em prestações mensais e até ao final do período da cessão (alínea d) do circunstancialismo elencado no relatório), o que claramente frustra aquele regime, pois assim possibilita-se aos Insolventes que fiquem mensalmente com quantias que já deviam ter sido objecto de efectiva cessão ao fiduciário.
Portanto, aos Insolventes tem sido dada ou possibilitada uma margem de manobra quanto à administração dos rendimentos que recebem que a lei manifestamente não permite.
Porém, quanto a tal – e porque extravasa do recurso em análise – só ao fiduciário e ao tribunal de primeira instância competirá algo fazer para a tal atalhar.

Em conformidade com tudo quanto se veio de referir, é de julgar improcedente o recurso.

As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes, porque nele decaíram (art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar por força do art. 248º do CIRE.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar por força do art. 248º do CIRE.
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Porto, 8/11/2021
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim