Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3790/16.5T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: MÚTUO BANCÁRIO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP201904113790/16.5T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º887, FLS.104-107)
Área Temática: .
Sumário: I - A ordem jurídica fixa prazos que considera adequados, dentro dos quais o titular do direito deve exercê-lo, sob pena de ficar impedido de fazê-lo ou até mesmo de perdê-lo definitivamente, por exigência da segurança do tráfico jurídico, da certeza nas relações jurídicas e da paz social.
II - Nesta base surge a prescrição extintiva que, do ponto de vista processual, é uma excepção peremptória de tipo extintivo.
III - A prescrição não alcança o direito, mas sim a pretensão, ou seja, a etapa da exigibilidade. O direito existe mas fica desarmado.
IV - O legislador entendeu que amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição - artigo e) do artigo 310 do C. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3790/16.5T8OAZ-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
B… e C…, executados nos autos principais, vieram deduzir os presentes embargos de executado contra, D…, SA, ali exequente, comunicando, como questão prévia o falecimento do executado C…, e peticionando a extinção da instância executiva por se encontrar prescrito o direito do exequente ou, caso assim não se entenda, por inexigibilidade da obrigação exequenda e por abuso do preenchimento da livrança dada à execução.
Para tanto, alegam, em suma, o seguinte: o contrato subjacente à livrança exequenda data de 02.10.2007 e a última prestação foi paga em 02.11.2008, pelo que à data da instauração da execução, os créditos reclamados pela exequente encontravam-se prescritos, prescrição essa já anteriormente invocada pelo executado C… por carta dirigida ao exequente de 04.08.2016. Por outro lado, a livrança foi entregue em branco, com excepção da identificação da beneficiária, local e data de emissão e assinatura do subscritor. A data aposta para o vencimento da livrança foi fixada arbitrariamente pela exequente e não foi comunicada ao executado, em momento prévio à instauração da execução. A livrança foi, pois, preenchida abusivamente, estando também os juros indevidamente calculados e o capital em dívida não se mostra correcto.
Terminam peticionando o seguinte: “deve a presente oposição ser considerada procedente por provada, considerando-se prescrito o direito de reclamação de créditos invocado pela exequente e, em consequência extinta a presente execução e, se assim não se entender, considerar-se a dívida não exigível e a livrança preenchida abusivamente, não podendo produzir efeitos como tal e como título executivo, absolvendo-se, em ambos os casos, os executados/oponentes e avalistas da execução.”

Notificado, o exequente apresentou contestação, comunicando já ter instaurado o incidente de habilitação de herdeiros em razão do falecimento do executado. Defende ainda que, à data da constituição em mora por parte dos embargantes, se venceu a totalidade da dívida, pelo que o prazo de prescrição é o do artigo o 309º do Código Civil e não o do artigo 310º do CC. Inexiste ainda qualquer preenchimento abusivo da livrança exequenda, tendo sido os embargantes devidamente notificados da denúncia do contrato e do preenchimento da livrança, bem como dos valores que estiveram na base de tal preenchimento. Por outro lado, invoca que os embargantes, ao arguirem a seu favor a prescrição decorridos dez anos, incorrem em manifesto abuso de direito.

Responderam os embargantes à invocada excepção de abuso de direito, defendendo que não se verificam os seus pressupostos.

Foi realizada a audiência prévia, elaborando-se despacho de saneador.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:” Pelo exposto, julgo procedente a invocada exceção de prescrição da obrigação exequenda e, nessa sequência, julgo os presentes embargos totalmente procedentes, determinando-se, nesta sequência, a extinção da execução em conformidade.”

O D…, S.A. veio interpor recurso, concluindo:
1 - No caso em apreço está em causa um mútuo bancário, e a restituição por parte de quem está obrigado, do capital mutuado acrescidos dos juros, sendo que o referido mútuo se encontrava garantido por livrança que foi entregue ao Recorrente/ exequente na data da celebração do contrato, em branco, a título de garantia, tendo sido acordado que a mesma poderia ser preenchida pela exequente, pelo montante que compreenderia o saldo em dívida e juros.
2 - Livrança essa preenchida e dada á execução por via dos presentes autos.
3 - Do capital mutuado, apenas foram liquidadas 13 prestações das 120 a que estavam obrigados, sendo que a última prestação paga foi a referente a 02/11/2008.
4 - A livrança dada á execução tem como data de vencimento 12-08-2016.
5 - Por se tratar de um mútuo bancário e independentemente da forma que possa revestir e das condições de reembolso está o mesmo sempre sujeito ao prazo de prescrição de 20 anos previsto no artº 309 do Código Civil.
6 - E não ao prazo de 5 anos previsto no artº 310 alíneas d) e e) do Código Civil, como foi decidido na douta sentença ora em crise.
7 - Isto porque, tratando-se de uma dívida liquidável em prestações a falta do pagamento de uma delas, implica o vencimento de todas as outras como decorre do disposto no artº 781 do Código Civil
8 - Ficando sem efeito o plano de pagamentos inicialmente acordado, os valores em dívida passam a ser consolidados num único pagamento que englobará a totalidade de capital e juros calculados sobre esse montante, perdendo a sua autonomia como prestações periódicas.
9 - E subsumível ao artigo 309º e 311 do C.C e não á alínea e) do artigo 310º do Código Civil conforme decidido na douta sentença ora em crise.
10 - Pelo que não se mostra ainda decorrido o prazo prescricional.
11 - Também os juros peticionados e englobados no valor da dívida pelo qual foi preenchida a livrança dada á execução, não se encontram prescritos.
12 - Isto porque no comércio bancário a capitalização de juros é admissível nos termos do disposto no artigo 7º, nº 3 do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17/11, sem prejuízo do disposto no artigo 5º, nº 6 do mesmo diploma legal – regras especiais relativamente ao artigo 560º do Código Civil
13 - Encontrando-se tal situação prevista por convenção das partes no contrato de mútuo que suporta a emissão e preenchimento da livrança dada á execução
14 - Pelo que também aos juros é aplicável o prazo de ordinário de prescrição previsto no artº 309 e 311 do CC , não tendo ainda decorrido o prazo prescricional.
15 - Por último não podemos deixar de fazer notar o facto de ter sido contratualizado que o capital mutuado seria reembolsado no em 120 meses com início em 24-09-2007 e termino em 24-09-2017.
16 - Logo e contrariamente ao decidido na douta sentença ora em crise, mesmo a seguir-se o entendimento defendido na douta sentença ora em crise nunca poderia ter-se considerado pela prescrição da dívida
17 - Apenas estariam prescritas as quotas referentes ás prestações do ano de 2008 a 2012.
18 - Devendo pois ser revogada a decisão proferida na douta sentença ora em crise.
Termos em que, se deverá dar provimento ao recurso interposto pela Agravante, revogando a douta sentença ora em crise, fazendo-se desta forma a inteira e costumada JUSTIÇA!!!

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em apurar qual o prazo prescricional a aplicar no caso: o prazo ordinário de 20 anos ou o prazo de 5 anos previsto na alínea e) do artigo 310.º do C. Civil.
II - Fundamentação de Facto:
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. O exequente intentou ação executiva apresentando à execução uma livrança, subscrita por C… e avalizada por E… e B…, no valor de €31.899,68, emitida a 2007.09.24 e vencida a 2016.08.12. - documento junto aos autos principais a fls. 10 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. Na base da livrança referida no ponto 1 está o denominado acordo “crédito ao consumo F…”, celebrado em 24.09.2007, entre o banco exequente e o executado C…, mediante o qual o exequente entregou ao executado, a quantia de €14.591,23, conforme doc. junto a fls. 42 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Decorre do aludido acordo que o reembolso seria efetuado em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros.
4. A livrança, dada à execução, foi entregue à exequente na data da celebração do contrato, em branco, a título de garantia, tendo sido acordado que a mesma poderia ser preenchida pela exequente, pelo montante que compreenderia o saldo em dívida e juros.
5. Do capital mutuado, o executado pagou à exequente 13 prestações, sendo que a última prestação paga foi a referente a 02/11/2008, e desde então que o executado C… nada mais pagou por conta daquele mútuo.
6. Com data de 04/08/2016, o executado C… invocou perante o exequente a prescrição dos créditos, quer do capital, quer dos juros, conforme carta junta sob o doc. de fls. 30v, que na íntegra se dá aqui por reproduzido.
7. O exequente remeteu ao executado C… a carta junta sob o doc. de fls. 33v, que na íntegra se dá aqui por reproduzido.
8. O exequente remeteu aos executados as cartas juntas os documentos de fls. 43 a 44 , que na íntegra se dão aqui por reproduzidos.
9. A 29.09.2016, o exequente intentou, contra os ora embargantes e o falecido executado E…, a ação executiva que corre sob o n.º 3790/16.5T8OAZ, apensa a estes autos.
10. Nestes autos executivos principais, os executados foram citados a 18.01.2017.
III – Fundamentação de direito
Sabe-se que o tempo afecta o exercício dos direitos, o que vale dizer que os direitos têm de ser exercidos em tempo razoável, especialmente quando se tratar de bens económicos. A sociedade é dinâmica e quem deixa inerte o seu direito compromete sua inerente função social. O direito não existe de forma isolada, sem relação, sem consideração com o meio social pelo que não pode relegar-se indefinidamente o seu exercício sem que haja consequências. Por isso, a ordem jurídica fixa prazos que considera adequados, dentro dos quais o titular do direito deve exercê-lo, sob pena de ficar impedido de fazê-lo ou até mesmo de perdê-lo definitivamente, por exigência da segurança do tráfico jurídico, da certeza nas relações jurídicas e da paz social.
O direito brasileiro contrapõe a prescrição à figura da decadência em que é o próprio direito que deixa de existir.
Entende-se neste ordenamento jurídico que a decadência respeita aos direitos potestativos, ou direitos formativos (expressão da doutrina alemã) que não são susceptíveis de violação e não são exigíveis, daí não terem pretensão. Devem, porém, ser exercidos dentro de prazos razoáveis, sob pena de caírem.
Esta distinção faz sentido porque, em bom rigor, a prescrição não extingue o direito pois o que prescreve é o seu exercício, ou seja, a pretensão e a acção ficam impedidas de ser exercidas. A prescrição pode ser renunciada porque o direito permanece.
Nesta óptica estabelece o artigo 304º do C. Civil que:”Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito”. (nº 1) e “ Não pode, contudo, ser repetida a prestação realizada espontâneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda quando feita com ignorância da prescrição; este regime é aplicável a quaisquer formas de satisfação do direito prescrito, bem como ao seu reconhecimento ou à prestação de garantias.”
Tudo conflui no sentido de que a prescrição não alcança o direito, mas sim a pretensão, ou seja, a etapa da exigibilidade. O direito existe mas fica desarmado.
A prescrição assim caracterizada é a prescrição extintiva que, do ponto de vista processual, é uma excepção peremptória de tipo extintivo.
Mas o efeito do decurso do tempo pode também ter outra consequência e entramos no campo das prescrições presuntivas. Na verdade, nas situações tipificadas nos artigos 316.º e 317.º, o decurso dos prazos neles previstos presume o cumprimento, não necessitando o devedor de provar o facto extintivo. “A «técnica» da prescrição presuntiva, verdadeiro favor debitoris, não se baseia, como a prescrição extintiva, na inércia do credor e, em rigor, em razões de certeza jurídica, mas no pressuposto de que, em atenção à conformação (binómio sujeitos-conteúdo) de certas obrigações e aos usos do tráfico jurídico, o credor é célere na reclamação do crédito e o devedor cumpre num prazo breve, sem exigir ou, pelo menos, guardar por muito tempo o respectivo documento de quitação” - José Brandão Proença in Comentário ao Código Civil – Parte Geral - Universidade Católica Editora, 2014, pág. 759.
A questão que nos ocupa centra-se na prescrição extintiva e o que se discute é qual o prazo que deve considerado: se o prazo ordinário de 20 anos (artigo 309º do C. Civil) ou prazo de cinco anos, previsto no artigo 310º al. e) do mesmo diploma, referente às quotas de amortização do capital pagáveis com os juro.
Entre a exequente e executado foi celebrado, em 24.09.2007, um acordo “crédito ao consumo F…”, mediante o qual a exequente entregou ao executado, a quantia de €14.591,23. O reembolso seria efectuado em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros.
Do capital mutuado, o executado pagou à exequente 13 prestações, sendo que a última prestação paga foi a referente a 02/11/2008, e desde então, o executado C… nada mais pagou por conta daquele mútuo, tendo em 04/08/2016 invocado perante a exequente a prescrição dos créditos, quer do capital, quer dos juros.
A obrigação assumida pelo executado no dito contrato de mútuo é uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou parcelado num número fixado de prestações mensais. É certo que não estamos aqui perante uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao longo do tempo, como é típico das prestações periodicamente renováveis, mas antes perante uma obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fraccionado em prestações.
As obrigações de prestação fraccionada ou repartida não se confundem com as chamadas obrigações duradouras. Nas obrigações duradouras a prestação é satisfeita ou continuadamente (v.g. fornecimento de electricidade) ou renova-se em prestações sucessivas ou parcelares (v.g. obrigações do locatário).
As obrigações de prestação fraccionada ou repartida são aquelas em que “apesar do seu cumprimento se prolongar no tempo, não podem ser consideradas obrigações duradouras. Com efeito, a obrigação de pagar o preço a prestações cumpre-se em fracções sucessivas durante um certo período de tempo, mas o tempo não exerce influência no seu montante - o que é nota característica das obrigações duradouras” (Teoria Geral do Direito Civil, Mota Pinto, 3ª edição, Coimbra Editora, pág 638).
No caso, tendo em conta que a obrigação engloba a restituição do capital mutuado e os juros e demais encargos, as prestações em que as partes fraccionaram tal obrigação configuram a restituição fraccionada do capital, acrescido dos juros pelo que se mostra preenchida a previsão da citada alínea e) do artigo 310.º, relativa a quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
É que o legislador entendeu que, neste caso peculiar, o regime prescricional do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser também um prazo mais curto.
Tem sido este o entendimento do STJ – v.g. Ac. de 29-09-2016, proc. 201/13.1TBMIR-A.C1.S1, in www.dgsi.pt – onde se consignou:”Porém, o reconhecimento desta específica natureza jurídica da obrigação de restituição do capital mutuado não preclude, sem mais, a aplicabilidade do regime contido no citado art. 310º, já que – por explicita opção legislativa - esta situação foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis, ao considerar a citada al. e) que a amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição.
Ou seja, o legislador entendeu que, neste caso peculiar, o regime prescricional do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo, consequentemente, valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido art. 310º.”
Este entendimento foi também seguido no acórdão desta Relação do Porto, de 26-01-2016, proc. 191273/12.6YIPRT.P1, in www.dgsi.pt.
Nesta decorrência, não pode deixar de concluir-se como na sentença:” Por conseguinte, considerando a data de incumprimento – 02.12.2008 –, tendo a execução sido instaurada em 29.09.2016 e inexistindo qualquer causa interruptiva ou suspensiva, o prazo prescricional de 5 anos foi atingido em 02.12.2013, pelo que é forçoso concluir que a obrigação exequenda se mostra prescrita.”
E esta natureza peculiar da obrigação em causa implica que o início do prazo da prescrição é o mesmo para todas as fracções.
Pelo exposto delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Porto, 11 de Abril de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingos
Maria Cecília Agante