Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7686/18.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÃ-FÉ DO TRABALHADOR
IGNORÂNCIA DA LEI
Nº do Documento: RP201907107686/18.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º296, FLS.251-259)
Área Temática: .
Sumário: I - A condenação do trabalhador como litigante de má-fé, só deverá ocorrer quando comprovado nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma reprovável.
II - A ordem jurídica disponibiliza a tutela jurisdicional a todos os titulares de direitos, não interessando que, no caso concreto, o litigante tenha ou não tenha razão. Mas introduz uma limitação de ordem moral: a de que o exercício dos direitos seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão, que esteja de boa fé, ou suponha ter razão.
III - A ignorância ou a má interpretação da lei laboral não justificam, por si só, a condenação do trabalhador como litigante de má fé.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 7686/18.8T8VNG.P1
Origem: Comarca Porto - VNGaia-Juízo Trabalho - J2
Relator - Domingos Morais - Registo 823
Adjuntos - Paula Leal Carvalho
Rui Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
IRelatório
1. – B… intentou acção com processo comum, na Comarca Porto - VNGaia -Juízo Trabalho-J2, contra C…, Ld.ª, ambos nos autos identificados, alegando, em resumo, que:
A A. foi contratada pela Ré em 01 de Julho de 2002, através de contrato de trabalho sem termo, para, sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré exercer as funções de Assistente de consultório de 2ª a 6ª feira, das 11 horas às 20 horas.
À data da celebração do contrato a A. auferia a retribuição mensal líquida de 388,54€.
Por força de sucessivas alterações e actualizações salariais, à data de Novembro de 2017 a A. auferia a retribuição mensal líquida de 755,00€.
A A. celebrou com a Ré acordo de revogação do contrato de trabalho acima identificado, no dia 07 Novembro de 2017.
Tendo a A. recebido a quantia aludida na cláusula 2ª do mencionado acordo.
Não obstante, a Ré não procedeu à liquidação de todos os direitos da A., desde logo, porque o vencimento aludido no acordo de revogação não corresponde ao salário real e efectivo da A.
Na verdade a Ré liquidava à A. para além do valor líquido de 505,00€, que fazia figurar no recibo, mais a quantia de 250,00€ auferindo, pois, a A. a quantia de 755,00€.
Pelo que a A. reclama da Ré o pagamento em falta, devido a diferenças salariais, no valor de 3.500,00€
A Ré aproveitando-se da situação de fragilidade da A., que denotava depressão, ansiedade e perturbação, pretendeu na realidade extinguir o posto de trabalho da A. E desse modo ver-se livre da mesma, o que conseguiu. Doc.2.
De facto a A. foi vista e consultada por diversas vezes pelo C…, o qual lhe receitou ansiolíticos e antidepressivos.
Não obstante, face à decisão da Ré em extinguir o posto de trabalho da A., a Ré não liquidou à A. a compensação prevista nos artigos 372º e 366º do Código Trabalho, o que atendendo à antiguidade da A. ascende á quantia de 4.530,00€, que esta reclama da Ré (755,00€ : 30 = 25,16 X 12= 302,00€ X 15 = 4.530,00€).
A Ré, como se constata, não procedeu aos descontos para a Segurança Social com base no salário real que a A. efectivamente auferia.
A conduta da Ré causou graves danos não patrimoniais à A., pois, a mesma, sentiu-se vexada e humilhada com a conduta da Ré, uma vez que a A. foi sempre uma funcionária, ao longo de todo o tempo de duração do contrato, leal, zelosa e cumpridora, trabalhando inclusivamente sempre que solicitada para o efeito, para além do seu horário normal.
Terminou, pedindo: “deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser a Ré condenada:
a) No pagamento à A. da quantia de 3.500,00€, devido a diferenças salariais, face ao vencimento efectivo da A.;
b) No pagamento à A. da quantia de 4.530,00€ a titulo de compensação devida e prevista nos artigos 372º e 366º do C.T., pela extinção do posto trabalho;
c) No pagamento da quantia que vier a ser liquidada, resultante dos pagamentos a realizar à Segurança Social, com vista à reposição integral dos direitos da A. mormente, subsidio e reforma.
d) No pagamento da quantia de 5.500,00€, a título de compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela A.”.
2. - Frustrada a conciliação na audiência de partes, a ré contestou, impugnando os factos essenciais da causa de pedir, concluindo:
“a) deve a acção ser julgada não provada e improcedente absolvendo-se a Ré do pedido;
b) deve a Autora ser condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização;”.
3. – No despacho saneador, a Mma Juiz pronunciou-se, além do mais, nos seguintes termos:
Do pedido formulado b) – pagamento da quantia de €4350,00 a título de compensação prevista nos artigos 372º e 366º do CT, por extinção do posto de trabalho:
(…).
Assim, o pedido de condenação da Ré no pagamento de uma compensação nos termos do artigo 366º do CT mostra-se em contradição com a causa de pedir apresentada nos autos, pelo que tal pedido é inepto nos termos 186º, nº 2, al. b) do CPC, o que determina a nulidade do pedido formulado com a consequente absolvição da Ré nesta parte, nos termos do artigo 577º, al. b) e 576º, nº 2 do mesmo diploma, o que se determina.
(…).
Do pedido formulado em c):
A A pede a condenação da Ré no pagamento da quantia que vier a ser liquidada resultante dos pagamentos a realizar à Segurança Social, com vista à reposição integral dos direitos da A. mormente, subsidio e reforma.
O pedido formulado, sendo genérico mostra-se, nessa medida, inadmissível porque não se enquadrar em nenhuma das situações elencadas no artigo 556º, nº 1 do CPC.
Por outro lado, não tem a A. qualquer legitimidade em exigir, nesta acção, da Ré o pagamento de contribuições à Segurança Social. Essa legitimidade pertence a esta entidade.
Pelo exposto, absolvo a Ré da Instância relativamente a este pedido.
(…).
Ao abrigo dos artigos 299º, nº 1 e 306º, nº 2 do NCPC, fixo o valor da causa no valor do pedido formulado pelo Autor: €13.550,00.”.
4. - Realizada a audiência de julgamento, a Mma Juiz proferiu decisão:
“I. Julgo a ação totalmente improcedente porque não provada e absolvo a Ré C…, Lda dos pedidos contra si formulados.
II. Condeno a A. B… como litigante de má fé na multa de 3 Ucs.
Custas a cargo da A. sem prejuízo do apoio judiciário concedido..
5. – A autora, inconformada, apresentou recurso de apelação,
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6. – A ré contra - alegou,
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7. - O M. Público, junto deste Tribunal, pronunciou-se pela improcedência do recurso de apelação.
8. - Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. - Fundamentação de facto
1. - Na 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão de facto:
“Factos provados
Realizada a audiência de julgamento, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. A Autora foi contratada pela Ré em 01 de julho de 2002, através de contrato de trabalho sem termo para, sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré exercer as funções de assistente de consultório de 2º a sexta (artigo 1º da p.i. e 6º da contestação).
2. A A. trabalhava pelo menos entre as 14 horas e as 19.30 (artigo 7º da contestação).
3. À data da celebração do contrato, a A. auferia uma retribuição mensal líquida de €388,54 (artigo 2º da p.i. e 1º da contestação).
4. A A. a partir de janeiro de 2017 passou a auferir o vencimento mensal de €567,42 (artigo 8º da contestação).
5. No dia 07 de novembro de 2017, A. celebrou com a Ré o acordo de revogação do contrato de trabalho conforme teor de doc. nº 1 junto com a p.i que se dá por integralmente reproduzido (artigo 4º da p.i. e 17º da contestação).
6. Tendo a A. recebido a quantia aludida na cláusula 2º do mencionado acordo no montante de €9.000,00, o vencimento relativo aos 7 dias de trabalho de novembro de 2017, os proporcionais de férias, subsídio de férias e de natal relativos ao ano de cessação do contrato num total líquido de €10,386,47 (artigo 5º da p.i. e 18º e 19º da contestação).
7. A Autora mostra-se ansiosa, perturbada e deprimida (artigo 9º da p.i.).
8. Ao longo do contrato, a Ré sempre pagou os subsídios de férias e de natal à A., nomeadamente, desde 2008 nas datas do respectivo vencimento e pelos valores equivalentes à respectiva retribuição auferida, por cheque e a partir de 2014 para o IBAN PT .. …. …. ….. ….. ….. . (artigo 25º e 27º da contestação).
9. A Ré sempre declarou todas as retribuições efectivamente processadas e pagas à trabalhadora, pagando as respectivas contribuições e cotizações conforme doc. 16 a 135, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 26º da contestação).
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2. - Atento o seu interesse para a apreciação do recurso, transcrevemos o teor do doc. n.º 1, junto com a p.i., assinado pelas partes – ponto 5.º:
“Acordo de revogação de contrato de trabalho
Entre:
C…, Lda., pessoa colectiva ns ……….., com sede na Rua …, …, …. - … Porto, como Empregadora ou Primeira Contraente; e B…, residente na Rua …, n.º .., …, …, …. - … Vila Nova de Gaia, com o NIF ………., e Cartão de Cidadão ns …….., adiante designada como Trabalhadora ou Segunda Contraente; Conjuntamente designados como Partes.
É celebrado o presente Acordo de Revogação de Contrato de Trabalho, o qual se rege pelos termos e condições seguintes:
Cláusula 1.ª
1. A trabalhadora tem categoria profissional de Assistente de consultório ao abrigo de contrato de trabalho a tempo parcial, cumprindo o horário semanal de 2.ª a 6.ª feira, das 14:00 às 19:30 e auferindo a quantia mensal ilíquida de 567,42€.
2. Pelo presente as Partes acordam fazer cessar por mútuo acordo o contrato de trabalho sem termo, em vigor entre ambas desde 01 de Julho de 2002.
3. Este Acordo é celebrado ao abrigo do disposto no artigo 349e do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro.
Cláusula 2.ª
1. Como compensação pecuniária pela cessação do contrato de trabalho, mencionado no ne L da cláusula anterior, a Primeira Contraente paga à Segunda Contraente a quantia ilíquida total de €9.000.00 (nove mil euros), à qual serão deduzidos os encargos legais que forem devidos.
2. Ao valor referido no número anterior, acrescem ainda os valores referentes aos proporcionais de remuneração, férias, subsídios de férias e Natal.
3. O pagamento das quantias aludidas é efectuado nesta data, por chegue n.º …………, sacado S/ o D…
Cláusula 3.ª
A cessação do Contrato de Trabalho ora acordada produzirá os seus efeitos em 07-11- 2017, data em que se consideram cessados todos os direitos, deveres e garantias existentes entre as Partes, emergentes do referido Contrato.
Cláusula 4.ª
A Segunda Contraente declara que com o pagamento das quantias referidas nos números 1 e 2 da Cláusula 2.ª supra, estão incluídos e ficam liquidados todos e quaisquer números 1 e 2 da Cláusula 2.ª supra, estão incluídos e ficam liquidados todos e quaisquer créditos vencidos que tivesse a receber à data da cessação do contrato de trabalho revogado ou exigíveis em virtude dessa cessação, designada mas não exclusivamente, a título de retribuição, prestações complementares destas, férias, subsídio de férias, subsídio de Natal, bónus, créditos por formação, ajudas de custo e pagamentos a qualquer outro título, com ou sem natureza retributiva, pelo que nada mais tem a receber e ou reclamar da Primeira Contraente, seja a que título for, conferindo, assim, integral quitação.
Cláusula 5.ª
1. A Trabalhadora declara que na presente data, não conserva em suporte digital ou disco quaisquer ficheiros, ou informação relativa à sociedade, aos seus sócios ou pacientes, nem os facultou a terceiros.
2. Após a cessação do contrato de trabalho, a Segunda Contraente compromete-se a manter estrita confidencialidade e a não divulgar por qualquer meio e perante quaisquer pessoas ou entidades, qualquer informação comercial ou privada relativa a Primeira Contraente, aos seus sócios, familiares e pacientes, independentemente da natureza confidencial.
3. A violação do dever de estrita confidencialidade ou manutenção em arquivo físico ou digital de qualquer informação ou ficheiro, nos termos dos números anteriores, fara a Trabalhadora incorrer em responsabilidade civil pelos prejuízos causados, além da responsabilidade penal.
Cláusula 6.ª
A Trabalhadora declara, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do art.º 2 do CIRS que não beneficiou, nos últimos 5 anos, da não tributação total ou parcial prevista no n.º 4 do citado preceito legal.
Cláusula 7.ª
A Primeira Contraente declara expressamente nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Decreto-Lei 220/2006, de 3 de Novembro, que não ultrapassou os limites legais estabelecidos no n.º 4 do artigo 10.º do mesmo diploma.
Este acordo é feito em duplicado e vai ser assinado por ambas as Contraentes, constituindo a expressão fiel da sua vontade, ficando o original em poder da Primeira Contraente e o duplicado em poder da Segunda Contraente.
Porto, 07 de Novembro de 2017
A PRIMEIRA CONTRAENTE A SEGUNDA CONTRAENTE”.
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2. - Objecto do recurso
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- A litigância de má fé.
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4. - Da litigância de má fé.
4.1. - Na sentença recorrida foi consignado:
“A Ré pede a condenação da A. como litigante de má fé.
A A. alega que a compensação que lhe foi paga no montante de €9.000 destinou-se ao pagamento dos subsídios de férias e de natal desde 2008 que estavam em dívida, peticionando na al. b) o pagamento da quantia de €4.350,00 a título de compensação pela extinção do posto de trabalho.
Não obstante este último pedido em causa ter sido considerado inepto, não podemos deixar de realçar o comportamento de má fé processual da A. a pretender convencer o Tribunal que nenhuma quantia recebeu pela cessação do contrato a título de compensação, tendo o valor entregue pela Ré se destinado ao pagamento de créditos salariais vencidos, nomeadamente, subsidio de férias e de natal.
Não só não ficou provado tal versão, como a Ré demonstrou que os subsídios de férias e de natal vencidos desde 2008 foram integralmente liquidados ao longo da relação laboral e nos respectivos períodos a que diziam respeito.
É evidente a falsidade dos factos invocados com a intenção de obter por parte da Ré o pagamento de valores monetários, a qual evidentemente, não tem direito.
É manifesta a litigância de má fé daquele, nos termos do artigo 542º, nº 2, al. a) e b) do Código Processo Civil, sendo certo que se tratou da alegação de factos estritamente pessoais e que, obviamente, sabia serem falsos.
Pelo exposto e ao abrigo do nº 1 daquele normativo e do disposto no artigo 27º, nº 3 do RCP, condeno a Autora como litigante de má fé na multa de 3 Ucs nos termos do artigo 542º, nº 1 do Código de Processo Civil.”.
Neste particular, a recorrente alegou nas conclusões de recurso:
6. Nunca foi sua pretensão receber indevidamente qualquer quantia, foi antes reclamar o reflexo das diferenças salariais nos subsídios devidos parcialmente pagos.
7. O que, conjugado com o seu estado de saúde, revela inexistir dolo ou negligência grave – não devendo ter aplicação o artigo 542º do CPC.
4.2. – Apreciemos.
4.2.1. - O artigo 542.º do CPC - Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé -, dispõe:
“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz -se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”.
Face a tal normativo, quando se pode, então, dizer que a parte agiu de má fé, para que o tribunal esteja legitimado a condená-la em multa?
Em nosso entender, sempre que a sua conduta assuma o aspecto de conduta ilícita. E assim sucederá sempre que a parte saiba que não tem razão, isto é, sempre que litiga em estado psicológico de consciência de não ter razão, ou quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido, facilmente, dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um.
Assim, a condenação da parte como litigante de má-fé apenas deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
A ordem jurídica disponibiliza a tutela jurisdicional a todos os titulares de direitos, não interessando que, no caso concreto, o litigante tenha ou não tenha razão. Mas introduz uma limitação de ordem moral: a de que o exercício dos direitos seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão, que esteja de boa fé, ou suponha ter razão.
Quando falta esse requisito, o acto passa a ter o carácter de ilícito e a parte pode, e deve, ser condenada em multa, sempre que as circunstâncias do caso induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão (ou oposição), conscientemente infundada, ou alterou a verdade dos factos, ou protelou, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como resulta do teor das conclusões de recurso, a autora/recorrente alega que “Nunca foi sua pretensão receber indevidamente qualquer quantia, foi antes reclamar o reflexo das diferenças salariais nos subsídios devidos parcialmente pagos.”.
4.2.2. – Vejamos.
A causa de pedir da presente acção foi suportada em dois argumentos: (i) a retribuição mensal da autora era de €755,00 – cf. artigos 3.º e 7.º da p.i. – e não de €567,42 – cf. artigo 8º da contestação e ponto 4.º dos factos provados –, valor este que serviu de base ao cálculo da “compensação pecuniária” pela cessação do contrato de trabalho e (ii) o que a ré, verdadeiramente, prendeu foi “extinguir o posto de trabalho da A. e desse modo ver-se livre da mesma, o que conseguiu. Doc. 2.” – cf. artigo 9.º da p.i.
Ora, o “Doc. 2”, junto com a petição inicial, é uma “Declaração nos termos e para os efeitos do Artigo 73.º e 74.º do Decreto-Lei 22012006, de 3 de Novembro”, do seguinte teor:
“Para os efeitos tidos por convenientes, descrevemos em seguida as circunstâncias determinantes do acordo de cessação de contrato de trabalho celebrado, nesta data, com a Senhora B…, portadora do Cartão de Cidadão n.º …, Contribuinte Fiscal n.º …, residente na Rua …, Vila Nova de Gaia.
(…).
Em consequência foi extinto o posto de trabalho ocupado pela Trabalhadora.
Na resolução da situação criada com a referida extinção do posto de trabalho, a sociedade empregadora privilegiou a abordagem negocial, tendo sido possível chegar a acordo com a Senhora B… para a cessação, nesta data, do respectivo contrato de trabalho.
Não existindo, na empresa, qualquer outro contrato ou posto de trabalho, resulta não ser possível manter a presente relação laboral, o que a Trabalhadora reconheceu.
Reitera-se, por isso, que o acordo de cessação do contrato de trabalho celebrado com a Senhora B… não foi determinado por conduta culposa da trabalhadora ou da empresa, mas sim pelos motivos estruturais supra referidos, enquadrando-se, por isso, na previsão do n.º 4 do artigo 10.º do DL 22012006 de 3 de Novembro.
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 74.º do DL 220/2006, de 3 de Novembro, declara-se ainda que a presente cessação de contrato de trabalho se encontra compreendida nos limites estabelecidos no n.º 4 do artigo 10.º, tendo o trabalhador sido informado desse facto.
Porto, 7 de Novembro de 2017
A gerência”. (negrito nosso)
Em conformidade com o segundo argumento invocado, a autora alegou no artigo 11.º da petição inicial:
11º - Não obstante, face à decisão da Ré em extinguir o posto de trabalho da A., a Ré não liquidou à A. a compensação prevista nos artigos 372º e 366º do Código Trabalho, o que atendendo à antiguidade da A. ascende á quantia de 4.530,00€, que esta reclama da Ré (755,00€ : 30 = 25,16 X 12= 302,00€ X 15 = 4.530,00€)”.
Ou seja, a autora entendeu que, tratando-se de um caso de extinção do posto de trabalho, a compensação a receber deveria ser calculada nos termos do artigo 366.º, n.º 1, e não nos termos do artigo 349.º, n.º 5, ambos do CT, como foi o caso dos autos.
Ora, se assim estava convencida de duas, uma: (i) não assinava o acordo de revogação, ou, assinando-o, a autora poderia ter comunicado à ré, por escrito, a cessação desse acordo, nos termos do artigo 350.º do CT. Não tendo feito cessar o acordo de revogação, nos termos legais, nem tendo alegado qualquer vício da vontade ou coacção aquando da sua celebração, esta acção comum, juridicamente falando, estava condenada ao insucesso, precisamente, pela existência válida desse acordo de revogação do contrato de trabalho, salvo se a autora, eventualmente, provasse que a retribuição mensal era o alegado valor de €755,00, o que não provou.
Mas esse “insucesso” implicaria, forçosamente, uma litigância de má fé?
Com todo o respeito, entendemos que não.
Atenta a estrutura da petição inicial, o que ressalta é o desconhecimento legal das formas de cessação do contrato de trabalho e suas consequências.
Na verdade, a autora não nega que celebrou com a ré um acordo de revogação do contrato de trabalho, recebendo a “compensação pecuniária” acordada. O que autora alega é que a ré extinguiu o seu posto de trabalho de forma ilícita e, desse modo, considera-se com direito a auferir uma compensação diferente daquela que recebeu, tanto mais que o valor da retribuição mensal alegado era superior ao pago pela ré.
Concedemos que a petição inicial é um pouco “confusa”, com aparência de “habilidosa”, mas facilmente se percebe a sua inconsistência jurídica, precisamente, pelo desconhecimento legal das várias formas de cessação do contrato de trabalho e respectivas consequências, incluindo, a da cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo.
Mas se a ignorância ou a má interpretação da lei laboral não aproveitam à autora – cf. artigo 6.º do C. Civil -, justificam a sua condenação por litigância de má fé?
Com todo o respeito, entendemos que não.
Admitimos que uma leitura literal da petição inicial indicie dedução de pretensão, cuja falta de fundamento a autora não poderia ignorar.
No entanto, tomando em consideração o teor do “Doc. 2” percebe-se que a autora se arroga a uma compensação e créditos salariais diferentes daqueles que constam do acordo de revogação, isto é, em bom rigor, a autora não altera a “verdade dos factos”, procura é enquadrá-los noutro regime jurídico – o da extinção do posto de trabalho -, atento o contexto factual do “Doc. 2”.
Acontece, porém, que a cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo é uma das modalidades de cessação do contrato de trabalho (incluindo em situações de extinção do posto de trabalho), previstas no artigo 340.º do CT, com regras próprias, regras essas que, a avaliar pela estrutura da petição inicial, a autora não considerou.
A autora exerceu o direito de peticionar créditos laborais, sem sustentação jurídica consistente, face à validade do acordo de revogação, mas convencida de ter razão, face ao teor do “Doc. 2”.
No caso concreto dos autos, o desconhecimento do regime legal da cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo sobrepôs-se a qualquer actuação processual menos cuidada da autora, não atingido o grau do dolo ou da negligência grave para efeitos de condenação como litigante de má fé.
Assim sendo, o alegado pela autora na petição inicial não constitui conduta ilícita, merecedora de censura nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC.
Nesta parte, procede o recurso da autora.
IVDecisão
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto julgar o recurso da autora parcialmente procedente, e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à condenação da autora como litigância de má fé, mantendo-a quanto ao demais.
As custas são a cargo da autora e da ré, na proporção de metade, sem prejuízo de eventual isenção ou benefício de apoio judiciário da autora.
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Porto, 2019.07.10
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha