Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1147/21.5T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000T
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
INÍCIO DA FASE CONTENCIOSA
MEIO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP202205041147/21.5T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Incidindo a discordância do sinistrado, na tentativa de conciliação, apenas sobre a IPP que lhe foi atribuída no exame singular, a fase contenciosa inicia-se mediante a tramitação simplificada a que alude a alínea b) do artigo 117º do CPT, e não através da apresentação da petição inicial, a que se reporta a alínea a). do mesmo normativo.
II - Ao ter a sinistrada iniciado a fase contenciosa, no caso mencionado em I, através da apresentação de petição inicial e ao mesmo tempo do requerimento a que alude a alínea b) do artigo 117º do CPT, ocorrendo uma situação de erro na forma de processo quanto à apresentação daquela petição inicial, de que o tribunal pode/deve conhecer oficiosamente, justifica-se que, sendo essa indeferida liminarmente, seja determinado, pois que a sinistrada apresentou requerimento para junta médica nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 117º do CPT, que os autos prossigam os seus termos em conformidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1147/21.5T8VLG-A.P1

Sinistrado: AA
Entidade responsável: R..., Lda.

Nélson Fernandes (relator)
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. Na fase conciliatória, em processo especial por acidente de trabalho, realizada a tentativa de conciliação, do respetivo auto resulta nomeadamente o seguinte:
“(...)
PRESENTES
Sinistrado: AA, filha de BB e de CC, divorciada nascida em .../.../1974, NIF - ..., BI - ..., Segurança social - ..., residente na ... Gondomar, acompanhada da sua Mandatária Dr.ª DD Ilustre Advogada, conforme procuração já consta a fls 33 dos autos.
COMPROMETE-SE A FACULTAR O IBAN DE CONTA DE QUE SEJA TITULAR.
Entidade Responsável: R..., Lda., NIF - ..., com sede na Rua ..., ..., ... ..., representada pelo Exmo. Dr. EE, llustre Advogado conforme procuração que neste acto apresenta e é mandada juntar autos.
Iniciada a diligência o sinistrado, a instância daquele Magistrado, declarou:
A SINISTRADA:
Que no dia 07/02/21 cerca das 9,30 horas, em ..., foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia funções de copeira, sob as ordens, direcção e fiscalização de R..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., mediante a retribuição de €665,00€ x 14 meses (total anual €9.310,00),
O acidente ocorreu quando ao pegar num tacho de comida, escorregou e queimou-se na mão, antebraço direito e coxa direita.
Submetida a exame no Instituto Médico-Legal foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 3% e fixada a data da alta em 8/05/21 cujo resultado, quanto à incapacidade, declara não aceitar.
Reclama o capital de remição da pensão anual de €195,51 devida a partir de 8/05/21 calculada na com base na retribuição anual x 70 x IPP de 3%, nos termos do disposto no art.º 48º, nº3 ai. c) e nºl do art.º 75º da Lei 98/2009 de 04/09, e a quantia de €15,00 de deslocações ao INML do Porto e a este Tribunal.
Reclama ainda a quantia de €1.107,00 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.
O LEGAL REPRESENTANTE DA ENTIDADE EMPREGADORA.
À data de 7/02/21 a sinistrada, auferia a retribuição €665,00€ x 14 meses(€9.310,00).
Aceita que a sinistrada sofreu o descrito acidente e como tal aceita a sua existência e a sua caracterização como acidente de trabalho, aceita o nexo causal entre tal acidente e as lesões, aceita a retribuição reclamada e o grau de desvalorização atribuído pelo INML do Porto.
Aceita por isso pagar à sinistrada o capital de remição anual de €195,51 devida desde 8/05/21 Aceita pagar os transportes.
Aceita pagar a quantia de €1.107,00 de indemnização pelos períodos de incapacidades temporária sofridos.
Requer que o pagamento dos transportes seja efectuado aquando do pagamento o capital de remição.
**
Face ao exposto, deu o Procurador da República as partes por não conciliadas, determinando-se que:
Face ao que consta do auto, dá-se as partes por não conciliadas e determina-se que a sinistrada seja notificada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 117º do CPT
Do despacho acabado de proferir, logo os presentes foram notificados, declarando ficar cientes.
Para constar se lavrou o presente auto que lido e achado conforme, vai ser devidamente assinado. (…)”

2. A Sinistrada, dando início à fase contenciosa, apresentou a petição inicial a que alude o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo do Trabalho (PCT), mas, também, o requerimento referido na alínea b) do nº 1 desse mesmo normativo (ou seja, o requerimento a que alude o artigo 138.º, n.º 2, do mesmo diploma).

2.1. Conclusos os autos, foi proferido despacho em 1.ª instância, do qual resulta designadamente o seguinte:
“(…) Sucede que esses dois procedimentos são processualmente incompatíveis, na medida em que a petição inicial a que alude a alínea a), do nº 1, do artigo 117º do Código de Processo Civil está prevista para as situações em que o desacordo entre as partes não se resume à discordância quanto à questão da incapacidade, e, por sua vez, o requerimento previsto na alínea b) do nº 1 desse mesmo preceito está previsto para as situações em que apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade.
Ora, se analisarmos o auto de não conciliação refª citius 426870656 (fls. 52 a 53), salvo o devido respeito por opinião diversa, verificamos que a divergência entre as partes se reconduzia apenas à questão da incapacidade da sinistrada, na medida em que esta declarou não aceitar o resultado do INML quanto à incapacidade.
As quantias aí reclamadas pela sinistrada foram apenas o capital de remição, os transportes e a indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, que também não foram questionados.
A entidade empregadora aceitou o acidente invocado, a responsabilidade pela reparação do mesmo nos termos reclamados.
Por essa razão, é que a sinistrada foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 117º do Código de Processo do Trabalho.
A sinistrada apresentou o requerimento a que alude este normativo, mas simultaneamente apresentou a petição inicial a que alude a alínea a) do nº 1 do mesmo preceito!
Assim, e antes de mais, em obediência ao princípio do contraditório, com cópia do presente despacho, notifique a sinistrada para, em 10 dias, esclarecer o que tiver por conveniente quanto à apresentação simultânea dos referidos procedimentos, esclarecendo o que tiver por conveniente já que na tentativa de conciliação apenas não aceitou a incapacidade, e requerendo em conformidade.”

2.2. Pronunciando-se, a Sinistrada deu entrada de requerimento com o teor seguinte:
“AA, A. nos autos à margem identificados, vem, face ao Douto Despacho de V. Exª de fls. dizer o seguinte:
- Nos termos do disposto no artº 117 do CPT nada impede que a A. deduza ao mesmo tempo o incidente referido na al. b) do citado artigo para apuramento da real incapacidade derivada do acidente dos autos e o pedido de indemnização resultante do mesmo acidente.
- Efectivamente, a A. apresentou 2 requerimentos nos autos, sendo 1 referente ao grau de incapacidade nos termos do disposto no nº 2 do artº 138 do CPT e outro a p.i. em que se formula o pedido de indemnização derivado do acidente, nos termos da al) a) do artº 117 do mesmo diploma.
- E fê-lo porque como indica o artº 118 do CPT o Processo desdobra-se em Processo Principal e Apenso para fixação da incapacidade para o trabalho.
- Na tentativa de conciliação a A. foi confrontada com o valor da incapacidade, com o qual não concordou, valor esse que tem reflexo na indemnização final a receber.
- Aliás, nos termos do disposto no artº 337 do Cod. Do Trabalho a A. tinha 1 ano para propor a acção de indemnização contra a R., sua anterior entidade patronal, mas optou por a intentar já na medida em que tem sérias necessidades económicas presentemente.
- Também dispõe o nº 3 do artº 117 do CPT que a fase contenciosa corre nos auto a em que se processou a fase conciliatória.
- À A. não pode NNCA ser vedado o direito a indemnização derivada do acidente de trabalho porque lhe estaria a ser vedado um direito fundamental de defesa do direito ao emprego.
- Nada no CPT diz que o pedido de revisão da taxa de incapacidade é incompatível com o pedido de indemnização, até porque a fixação da incapacidade corre por apenso ao processo principal que trata da indemnização.
- A não concordância pela A. da taxa de incapacidade acarreta, como é lógico, tudo o resto, ou seja, o montante da pensão, etc.
ASSIM, face a tudo o sucintamente acima exposto, devem prosseguir os autos com a citação da R. para contestar, querendo, o pedido de indemnização formulado, bem como ser marcada a perícia médica para estabelecimento da taxa de incapacidade e do tempo de baixa médica.”

2.3. Apreciando, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Analisados os autos verifica-se que a sinistrada apresentou a petição inicial a que alude o artigo 117º, nº 1, alínea a) do Código de Processo do Trabalho e, do mesmo passo, o requerimento referido na alínea b) do nº 1 desse mesmo normativo (ou seja, o requerimento a que alude o artigo 138º, nº 2, do citado diploma).
Sucede que esses dois procedimentos são processualmente incompatíveis, na medida em que a petição inicial a que alude a alínea a), do nº 1, do artigo 117º do Código de Processo Civil está prevista para as situações em que o desacordo entre as partes não se resume à discordância quanto à questão da incapacidade, e, por sua vez, o requerimento previsto na alínea b) do nº 1 desse mesmo preceito está previsto para as situações em que apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade.
Ora, se analisarmos o auto de não conciliação refª citius 426870656 (fls. 52 a 53), salvo o devido respeito por opinião diversa, verificamos que a divergência entre as partes se reconduzia apenas à questão da incapacidade da sinistrada, na medida em que esta declarou não aceitar o resultado do INML quanto à incapacidade, mais concretamente quanto à incapacidade permanente parcial de 3% que foi atribuída no relatório do INML.
A sinistrada mostrava-se representava por ilustre mandatária no auto de conciliação, tendo aí ficado a constar que a sinistrada declarou que auferia a retribuição de €665,00x14 meses (total annual de €9.310,00). As quantias aí reclamadas pela sinistrada foram apenas o capital de remição com base na referida retribuição com pensão devida a partir de 8-05-2021, os transportes e a indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, que também não foram questionados.
A entidade empregadora aceitou o acidente invocado, a responsabilidade pela reparação do mesmo nos termos reclamados.
Apenas não houve conciliação porque a sinistrada não aceitou a incapacidade de 3% que lhe foi atribuída no exame do INML.
Face ao exposto, e ressalvando sempre melhor opinião, a apresentação de petição inicial não é a forma processualmente idónea de fazer o processo avançar da fase conciliatória para a fase contenciosa.
Do auto de não conciliação consta, aliás, que o Ministério Público determinou que a sinistrada fosse notificada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 117º do Código de Processo do Trabalho.
Ora, o artigo 117º do Código de Processo do Trabalho, cuja epígrafe é Início da fase contenciosa, dispõe no seu nº 1:
“1 – A fase contenciosa tem por base:
a) A petição inicial, em que o sinistrado doente ou os respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos;
b) Requerimento, a que se refere o nº 2 do artigo 138.º, do interessado que não se conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação da incapacidade para o trabalho”. (sublinhado nosso).
Por sua vez, o nº 2 do artigo 138º do Código de Processo do Trabalho estabelece: “Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o nº 1 do artigo 119º; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no nº 3 do artigo 73º”.
A sinistrada apresentou o requerimento a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 117º do Código de Processo do Trabalho, mas simultaneamente apresentou a petição inicial a que alude a alínea a) do nº 1 do mesmo preceito!
Como decorre do atrás exposto, a apresentação de petição inicial não é a forma processualmente idónea a fazer avançar o presente processo da fase conciliatória para a fase contenciosa, sendo-o antes a apresentação do requerimento a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 117º do Código de Processo do Trabalho (requerimento que a sinistrada também apresentou).
Isto posto:
Indefere-se liminarmente a petição inicial apresentada pela autora (sem prejuízo da relevância do requerimento de junta médica, conforme despacho infra).
Considerando que a sinistrada apresentou requerimento para junta médica nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 117º do Código de Processo do Trabalho, os autos prosseguem em conformidade.
Notifique.”

3. Dizendo-se inconformada, a Sinistrada apresentou requerimento de interposição de recurso, finalizando as respetivas alegações com o que designou por conclusões, nos termos que seguidamente se transcrevem:
“EM CONCLUSÃO
Porque a p. i. é admissível nesta fase do Processo;
Porque a fase contenciosa no Processo de Acidente de trabalho se desdobra em duas, sendo uma o pedido de Junta médica e outra o pedido de indemnização pelo acidente;
Porque só depois de determinado o grau de incapacidade da sinistrada é que se pode estabelecer uma indemnização
Porque logo que esteja determinada a incapacidade pode, e deve, ser estabelecida uma pensão provisória à sinistrada;
Porque o Douto Despacho/Sentença ora em recurso violou frontalmente o artº 117, 119 e 138 do Cod. Proc. de Trabalho,
E, por tudo o mais que V. Exªs Doutamente suprirão de acordo com a lei, e a doutrina, mormente com os ensinamentos da Profª Paula Quintas, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e ser a p.i. apresentada pela Recorrente admitida para todos os devidos e legais efeitos.”

3.1. O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação autónoma, com efeito meramente devolutivo e subida em separado, tendo sido determinada, nos termos do artigo 641.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC), a citação da Ré, tanto para os termos do recurso como para os da causa.
Foi ainda fixado, face ao disposto no artigo 307.º, n.º 3, do CPC, como valor da causa o indicado pela autora, ou seja, € 47.956,99.

3.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. Subido o recurso a esta Relação, apresentados ao Ministério Público, foi exarada posição no sentido de que, no caso, está vedada a emissão do parecer a que alude o artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho (CPT).
*
Cumpre apreciar e decidir:
II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º/4 e 639.º/1/2 do CPC – aplicável “ex vi” do artigo 87.º/1 do CPT –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a única questão a decidir: saber se a decisão recorrida errou na aplicação da lei ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada, por entender que ocorre erro na forma do processo.
*
III - Fundamentação
A) Os factos relevantes para apreciação do recurso são exclusivamente os que resultam do relatório que se elaborou.
*
B) - Discussão
1. Saber se a decisão recorrida fez inadequada aplicação da lei, ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada, por entender que ocorre erro na forma do processo
Face às conclusões que apresenta, sustenta a Recorrente que, diversamente do decidido, é de admitir a apresentação da petição inicial, para o que refere, se bem percebemos os seus argumentos, que, desdobrando-se a fase contenciosa “em duas, sendo uma o pedido de Junta médica e outra o pedido de indemnização pelo acidente”, “porque só depois de determinado o grau de incapacidade da sinistrada é que se pode estabelecer uma indemnização”, “porque logo que esteja determinada a incapacidade pode, e deve, ser estabelecida uma pensão provisória à sinistrada”, a decisão recorrida “violou frontalmente o artº 117, 119 e 138 do Cod. Proc. de Trabalho”.
Pois bem, cumprindo apreciar, desde já avançamos que os argumentos da Recorrente não procedem em absoluto, como melhor esclareceremos de seguida.
Como é consabido, compreende o processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos artigos 99.º a 150.º do CPT, duas fases distintas, uma primeira denominada conciliatória[1], sob a direção do Ministério Público e obrigatória – através da qual, como aliás a sua própria denominação o indica, visa-se alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho através de uma composição amigável, muito embora sujeita necessariamente a regras legais imperativas, pela natureza indisponível dos direitos, atendendo aos interesses de ordem pública que estão envolvidos –, e uma segunda, por sua vez, contenciosa, esta não já obrigatória e que decorre perante o juiz/tribunal, a que voltaremos mais tarde.
Verificando da importância, face à sua finalidade, da tentativa de conciliação, constata-se que essa tanto pode vir a determinar o termo do processo, assim em caso de acordo – assim quanto à discussão do acidente de trabalho e ao reconhecimento dos direitos para a sua reparação, pois que, homologado o acordo o processo prossegue apenas a efetivação dos direitos aí reconhecidos, ou, diversamente, na falta desse acordo, o prosseguimento dos autos para a fase contenciosa, muito embora com limitação da discussão às questões sobre as quais tenha existido desacordo na tentativa de conciliação, razão pela qual, face ao regime assim estabelecido, o conteúdo do respetivo auto acaba por assumir importância determinante, o que, por sua vez, justifica a necessidade sentida pelo legislador de especificar os requisitos a que esse auto deve obedecer, num ou noutro dos casos, assim, nomeadamente, nos artigos 111.º e 112.º do CPT, resultando em particular, no que ao caso importa, do artigo 112.º do CPT que, na falta de acordo, (...) no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”.
Quanto à tramitação estabelecida no CPT para a fase contenciosa, como se viu justificada pela falta de acordo na fase anterior, é a mesma regulada desde logo pelo artigo 117.º, do qual consta, no que aqui importa, o seguinte:
1. A fase contenciosa tem por base:
a) Petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos;
b) Requerimento, a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º, do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.
2 - O requerimento referido na alínea b) do número anterior deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos.
3 - A fase contenciosa corre nos autos em que se processou a fase conciliatória.
Distinguindo ambas as situações, ou seja as duas vias processuais previstas na norma citada, escreveu-se no Acórdão desta Secção de 18 de Dezembro de 2018[2] o seguinte:
“(...) A apresentação da petição inicial é o acto processual próprio para dar início à fase contenciosa quando estejam em causa questões para além da previsão da alínea b), que implicam alegação de factos pelas partes nos respectivos articulados, saneamento do processo, indicação de meios de prova, julgamento com produção de prova, culminando na sentença. Em suma, observa uma tramitação próxima do processo comum, mas com algumas especialidades, sendo a mais notória a que respeita ao âmbito do despacho saneador (art.º 128º a 136.º, CPT), para além do mais, em razão de recair sobre o juiz o dever de “Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação (..) [art.º 131.º/1/c], o que vale por dizer não ser permitido às partes virem discutir nos articulados questões sobre as quais acordaram na tentativa de conciliação, em concreto, aquelas que constem especificadas no auto em conformidade com a exigência do art.º 122.º/1.
Quando a fase contenciosa deva iniciar-se através de petição inicial cabe ao sinistrado ou respectivos beneficiários apresentar a petição inicial, formulando os pedidos e expondo os seus fundamentos. A apresentação dessa peça no prazo legal de 20 dias (art.º 19.º1, CPT) é condição para o prosseguimento do processo para essa fase.
Caso o sinistrado – ou respectivos beneficiários legais - esteja a ser patrocinado pelo Ministério Público, decorrido o prazo legal sem que a petição inicial seja apresentada, o processo é concluso ao juiz, que declara a instância suspensa (art.º 119.º n.º 4, CPT). Mas se o sinistrado – ou os respectivos beneficiários legais - estiver patrocinado por advogado (constituído ou patrono nomeado), tem sido entendido que o juiz deve previamente convidá-lo a apresentar a petição inicial no prazo que lhe fixar, sob pena de a instância ficar suspensa, findo esse prazo.
Diferentemente ocorre nos casos em que a fase contenciosa deva iniciar-se mediante a apresentação de requerimento para realização de exame por junta médica, ou seja, quando o sinistrato – ou os respectivos beneficiários legais – ou a entidade ou entidades responsáveis, ou todos eles (interessados na expressão da lei), não se conformem com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória (alínea b), do n.º1, do art.º 117.º CPT). Neste caso, o ónus de apresentação do requerimento recai sobre a parte que na tentativa de conciliação discordou quanto à questão da incapacidade.
Mas pode acontecer que a parte que discordou não apresente o requerimento, ou por entretanto se ter conformado com o laudo do perito médico singular ou por ter deixado passar o prazo legal para a prática daquele acto. Para qualquer dessas hipóteses, conforme estabelece –sem distinção - o n.º2, do art.º 138.º (segunda parte) “se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º”.
Contudo, há casos em que a discordância incide não só sobre o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, mas abrange também outra ou outras questões, o que se traduz na coexistência das duas situações tipificadas em razão da natureza das questões sobre que recai o desacordo. Nesses casos, sublinha-se, sempre cumprirá ao sinistrado – ou respectivos beneficiários – apresentar a petição inicial, dando cumprimento ao n.º1, al. a) do art.º 117.º, independentemente de a discordância sobre essas outras questões ter sido sua ou da entidade ou entidades que sejam partes e de quem reclama a reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho.
E, se porventura o sinistrado também tiver discordado do resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória, então deverá concomitantemente requerer a realização de perícia por junta médica, o que terá lugar na petição inicial (n.º1, art.º 138.º), naturalmente, apresentando os respectivos fundamentos ou quesitos.
Por outro lado, na medida em que neste caso a fase contenciosa tem início mediante a apresentação da petição inicial, a que se seguirá a apresentação de contestação - ou contestações no caso de mais do que uma entidade demandada como responsáveis - se esta ré - ou rés- tiver discordado do resultado da perícia médica na fase conciliatória, cabe-lhe requerer o exame por junta médica, mas neste articulado em que exerce o contraditório (n.º1, do mesmo art.º 138.º) e não através do requerimento previsto no art.º 117.º/1/b.
Sendo que nestas situações, como determina o art.º 126.º/1, CPT, há lugar ao desdobramento do processo: “No processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso”. Cabendo ao Juiz, “ Ordenar o desdobramento do processo, se for caso disso”, na fase de saneamento [art.º 131.º /1 al. e), do CPT]. (...)”
Em face do regime que antes se mencionou, voltando ao caso, a verdade é que sequer a Recorrente, nas conclusões que apresentou no recurso, se preocupou por tentar evidenciar, como seria pressuposto, que no caso, diversamente do entendido na decisão recorrida – em que se afirmou designadamente que “se analisarmos o auto de não conciliação refª citius 426870656 (fls. 52 a 53), salvo o devido respeito por opinião diversa, verificamos que a divergência entre as partes se reconduzia apenas à questão da incapacidade da sinistrada, na medida em que esta declarou não aceitar o resultado do INML quanto à incapacidade, mais concretamente quanto à incapacidade permanente parcial de 3% que foi atribuída no relatório do INML” –, a divergência que se verificou, aquando da tentativa de conciliação realizada, estava para além da mera não aceitação do resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória (alínea b), do n.º1, do art.º 117.º CPT), sendo que, afinal, nos termos que antes se afirmaram, aí residiria o fundamento legal para que a fase contenciosa, como o defende, se pudesse iniciar com a apresentação da petição inicial. De resto, com salvaguarda do devido respeito, também não se percebe o argumento que apresenta no sentido de que “a fase contenciosa no Processo de Acidente de trabalho se desdobra em duas, sendo uma o pedido de Junta médica e outra o pedido de indemnização pelo acidente” e que “só depois de determinado o grau de incapacidade da sinistrada é que se pode estabelecer uma indemnização”, pois que, como o vimos antes, em termos expressamente previstos na lei, aquele desdobramento não ocorre nos casos em que a fase contenciosa se deva iniciar mediante a apresentação de requerimento para realização de exame por junta médica – ou seja, quando o sinistrato, ou os respetivos beneficiários legais, ou a entidade ou entidades responsáveis, ou todos eles (interessados na expressão da lei), não se conformem com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória (alínea b), do n.º1, do art.º 117.º CPT) –, estando apenas estabelecido, diversamente, para os casos em que a fase contenciosa tem início mediante a apresentação da petição inicial, situação em que, como determina o artigo 126.º, n.º 1, do CPT, há efetivamente lugar ao desdobramento do processo: “No processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso” – cabendo ao Juiz, “ Ordenar o desdobramento do processo, se for caso disso”, na fase de saneamento (artigo 131.º , n.º 1, al. e), do CPT).
Sendo assim, visto o conteúdo do auto de não conciliação, desse consta expressamente, de modo que não deixam dúvidas, que a Sinistrada / aqui recorrente declarou o seguinte: “Que no dia 07/02/21 cerca das 9,30 horas, em ..., foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia funções de copeira, sob as ordens, direcção e fiscalização de R..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., mediante a retribuição de €665,00€ x 14 meses (total anual €9.310,00)”; que “o acidente ocorreu quando ao pegar num tacho de comida, escorregou e queimou-se na mão, antebraço direito e coxa direita”; que, “submetida a exame no Instituto Médico-Legal foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 3% e fixada a data da alta em 8/05/21 cujo resultado, quanto à incapacidade, declara não aceitar”; que “reclama o capital de remição da pensão anual de € 195,51 devida a partir de 8/05/21 calculada na com base na retribuição anual x 70 x IPP de 3%, nos termos do disposto no art.º 48º, nº3 ai. c) e nºl do art.º 75º da Lei 98/2009 de 04/09, e a quantia de €15,00 de deslocações ao INML do Porto e a este Tribunal” e, “ainda a quantia de €1.107,00 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos”. Por sua vez, consta também que o legal representante da entidade empregadora declarou: que “à data de 7/02/21 a sinistrada, auferia a retribuição €665,00€ x 14 meses(€9.310,00)”; que “aceita que a sinistrada sofreu o descrito acidente e como tal aceita a sua existência e a sua caracterização como acidente de trabalho, aceita o nexo causal entre tal acidente e as lesões, aceita a retribuição reclamada e o grau de desvalorização atribuído pelo INML do Porto”; “aceita por isso pagar à sinistrada o capital de remição anual de €195,51 devida desde 8/05/21 Aceita pagar os transportes”, “aceita pagar a quantia de €1.107,00 de indemnização pelos períodos de incapacidades temporária sofridos” e que “requer que o pagamento dos transportes seja efectuado aquando do pagamento o capital de remição”. Ou seja, vistas as posições de ambas as partes, existindo aceitação / acordo no mais aí declarado, apenas se verificou divergência quanto à IPP atribuída, pois que, sendo essa IPP aceite pela entidade patronal, não o foi, no entanto, pela Sinistrada.
Daí que, não nos restem quaisquer dúvidas sobre afirmarmos que, tal como o Tribunal a quo o considerou, o meio processual adequado para se dar início no caso à fase contenciosa seja o previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 117.º do CPT, ou seja requerimento, a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º, do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho. Como se refere no Acórdão desta Relação e Secção de 21 de Setembro de 2015[3], “no caso de inexistência de acordo na tentativa de conciliação (na fase conciliatória), a fase contenciosa do processo é despoletada pelo requerimento de pedido de junta médica para fixação da incapacidade para o trabalho, caso a discordância esteja apenas ligada à questão da incapacidade”, “requerimento esse que tanto pode ser formulado pelo sinistrado, como pela entidade responsável”, sendo que, para os casos em que a discordância for além desse âmbito, então, sim, “a fase contenciosa terá de ter início obrigatoriamente com a apresentação da petição inicial por parte do sinistrado.”
Em face do exposto, claudicando os argumentos da Recorrente, improcede o presente recurso.
Sem prejuízo de benefício ou isenção de que beneficie, a responsabilidade pelas custas impende sobre a Recorrente (artigo 527.º do CPC).
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Sumário – artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
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IV. Decisão:
Em conformidade com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em declarar totalmente improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo de benefício ou isenção de que beneficie.

Porto, 4 de maio de 2022
(acórdão assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
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[1] A tramitação desta fase, tendo em vista alcançar tal objetivo, compreende três fases, a primeira de instrução (tendo em vista a recolha e fixação de todos os elementos necessários à definição do litígio, de modo a indagar sobre a “(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo suscetível de ser homologado – artigos 104.º, n.º 1, 109.º, e 114.º do CPT), uma segunda que se consubstancia na realização do exame médico singular (devendo o perito médico “indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” – artigos 105.º e 106.º do CPT) e, finalmente, uma última, com a realização da tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, com o objetivo primordial de ser obtido acordo suscetível de ser homologado depois pelo Juiz – artigo 109.º, do CPT) – Seguindo-se de muito perto o Acórdão desta Relação e Secção de 18 de Dezembro de 2018 (APELAÇÃO n.º 3992/16.4T8AVR.P1, relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção do aqui relator e 1.ª adjunta), que por sua vez faz apelo a João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts..
[2] Já antes identificado.
[3] Com exclusão de notas de rodapé - Relator Desembargador António Ascensão Ramos, in www.dgsi.pt.