Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
589/21.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARATERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ÓNUS DE PROVA
Nº do Documento: RP20230626589/21.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - Para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, da LAT, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
II - Concomitantemente, a descaracterização do acidente de trabalho, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei nº 98/2009, está dependente da demonstração de que essa conduta do sinistrado foi a causa exclusiva do acidente.
III - Compete à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os factos que a integram, bem assim a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, nos termos gerais da repartição do ónus de prova, por serem factos impeditivos do direito à reparação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 589/21.0T8VFR.P1
SECÇÃO SOCIAL


ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, AA, por si e na qualidade de representante legal de BB, respectivamente, mulher e filho de CC, falecido em consequência de acidente de trabalho ocorrido no dia 18/02/2021, intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra A..., S.A., e a empregadora B..., Lda., que veio a ser distribuída ao Juiz 1, pedindo a condenação das rés no pagamento do seguinte:
a) À autora:
i. da pensão anual e vitalícia de €5.434,68, correspondente a 30% da retribuição do sinistrado, devida desde o dia 19.02.2021, dia seguinte ao da morte; a qual, a partir do momento em que a autora atinja a idade da reforma por velhice ou venha a padecer de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, deverá corresponder a 40% da retribuição do sinistrado (€7.246,24);
ii. do montante de €2.896,15, a título de subsídio por morte;
iii. do montante de €1.930,76, a título de subsídio por despesas de funeral;
iv. da quantia de €30, a título de despesas de transporte.
b) Ao seu filho:
i. da pensão anual e vitalícia de €3.623,12, devida desde o dia 19.02.2021, dia seguinte ao da morte, até que complete 25 anos enquanto estiver a cumprir o respectivo processo de educação ou formação profissional;
ii. do montante de €2.896,15, a título de subsídio por morte.
c) Aos autores, uma indemnização no montante de €50.000,00, por dano morte;
d) O pagamento dos juros de mora, à taxa supletiva em vigor, calculados sobre todas as quantias, desde a data de vencimento de cada prestação até efectivo e integral pagamento.
Mais peticionou que o Fundo de Acidentes de Trabalho seja reembolsado dos valores adiantados aos autores a título de pensão provisória.
Para sustentar os pedidos alega, no essencial, que CC sofreu um acidente de trabalho, quando, sob as ordens, direcção e fiscalização do gerente da ré empregadora, acedeu ao telhado do armazém onde trabalhava, com a ajuda de um empilhador que se encontrava no local, manobrado por uma das pessoas que aí se encontrava presente. Uma vez no telhado, o trabalhador caiu para o interior do armazém, tendo falecido ainda no mesmo dia na sequência das lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas que sofreu com a queda.
O acidente que vitimou o de cujus é de trabalho, ocorreu no tempo e local de trabalho, o falecido não agiu espontaneamente e da sua actuação resulta claro proveito económico para a ré empregadora.
A morte de CC causou danos de índole não patrimonial aos seus familiares mais próximos, ora autores, que com ele mantinham uma forte relação de afectividade.
Regularmente citada, a ré B..., Lda. contestou, defendendo-se desde logo por excepção, arguindo a nulidade de todo o processado, com fundamento em ineptidão da petição inicial.
No mais, impugnou a factualidade alegada na petição inicial referente à dinâmica do acidente, por não corresponder à realidade, negando que o gerente da empregadora tenha indicado ao sinistrado a causa da inundação, que o problema seria resolvido por ambos no seu regresso ao armazém ou sequer que o sinistrado tenha acedido ao telhado por ordem directa ou indirecta sua. Além disso, das funções do sinistrado não faziam parte nenhuma tarefa em altura, tendo o acesso ao telhado partido da livre iniciativa do sinistrado.
Muito embora o acidente tenha ocorrido no horário e local de trabalho, o mesmo não se deveu a violação sua das regras de segurança no trabalho.
A violação das normas que lhe é imputada nos processos de contra-ordenação que se encontram pendentes na ACT não possui qualquer nexo de causalidade com o evento ocorrido.
O acidente ficou a dever-se a negligência grosseira do sinistrado, que agiu de forma imponderada, sem avaliar correctamente o risco a que se sujeitou e omitindo o cumprimento de regras de segurança básicas, que são do conhecimento comum.
Ainda que assim não se entenda, mantendo o acidente a sua caracterização como sendo de trabalho, a responsabilidade pela reparação compete à seguradora para quem, por contrato de seguro válido, transferiu integralmente a sua responsabilidade.
Contestou também a seguradora A..., S.A., invocando igualmente a ineptidão da petição inicial.
Não aceita a responsabilidade pela reparação do acidente, porquanto o mesmo ocorreu quando o sinistrado se encontrava no telhado, a uma altura de cerca de 6 metros e, ao colocar o pé numa telha translúcida de plástico, esta se partiu, o que originou a sua queda. Não foram implementadas quaisquer medidas de segurança para prevenir o risco de queda em altura, concretamente, o sinistrado não usava arnês e corda de segurança, equipamento mínimo para a realização do trabalho em causa. O sinistrado violou assim regras de segurança estabelecidas na lei.
Por outro lado, o acidente sempre se ficou a dever a negligência grosseira da sua parte, desde logo porque o sinistrado extravasou o conteúdo funcional da sua actividade profissional, bem sabendo que não tinha formação, competência e habilidade para subir a um telhado com aquela altura e deslocar-se sobre o mesmo sem qualquer protecção que prevenisse o risco de queda em altura, tanto mais que as telhas de plástico translúcidas não suportam o peso de um adulto.
Caso assim não se entenda, o acidente ficou a dever-se ao incumprimento de normas de segurança por parte da própria empregadora, que não implementou nenhum equipamento de protecção, não supervisionou a execução da tarefa nem avaliou os riscos inerentes à mesma, tendo o acidente ficado a dever-se à omissão destes deveres, pelo que deverá ser reconhecido o direito de regresso da seguradora sobre a empregadora.
A ré B... respondeu à contestação da seguradora, pugnando pela inadmissibilidade do pedido contra si deduzido por aquela de condenação na responsabilidade agravada e reconhecimento do direito de regresso.
Os autores pronunciaram-se relativamente à matéria de excepção, alegando, em suma, que os factos alegadamente omitidos ou estão assentes por acordo, nos termos exarados no auto de não conciliação, ou foram por si alegados na petição inicial.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador julgando-se improcedente a excepção dilatória arguida e como admissível a contestação da seguradora na parte relativa ao peticionado reconhecimento do direito de regresso contra a empregadora. Foram, ainda, seleccionados os factos assentes e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência de julgamento seguindo-se as formalidades legais.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
«Nestes termos e ao abrigo das disposições legais citadas, julgando a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada:
A) Condeno a ré seguradora A..., S.A. no pagamento:
a. À autora AA:
i. da quantia de €2.896,15 (dois mil oitocentos e noventa e seis euros e quinze cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde 09/09/2021 até efectivo e integral pagamento;
ii. da pensão anual e vitalícia no montante de €5.434,68 (cinco mil quatrocentos e trinta e quatro euros e sessenta e oito cêntimos), desde 19/02/2021 e até perfazer a idade da reforma por velhice e de €7.246,24 (sete mil duzentos e quarenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos) a partir daquela data ou no caso de verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, a ser paga na residência da beneficiária, em prestações mensais correspondentes a 1/14 da mesma, sendo nos meses de Junho e Novembro acrescidas de uma outra prestação também equivalente a 1/14 da pensão anual, pensão esta actualizável anualmente (fixando-se em 2022, no valor de €5.489,02), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o vencimento de cada mensalidade até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo do que foi pago a título de pensão provisória;
iii. da quantia de €30,00 (trinta euros), a título de reembolso de despesas de transporte, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde 09/09/2021 até efectivo e integral pagamento;
iv. da quantia de €1.930,76 (mil novecentos e trinta euros e setenta e seis cêntimos), a título de subsídio por despesas de funeral, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde 09/09/2021 até efectivo e integral pagamento.
b. Ao autor BB:
i. da quantia de €2.896,15 (dois mil oitocentos e noventa e seis euros e quinze cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde 09/09/2021 até efectivo e integral pagamento;
ii. da pensão anual e temporária no montante de €3.623,12 (três mil seiscentos e vinte e três euros e doze cêntimos), desde 19/02/2021 até à data em que completar 18 anos de idade ou até aos seus 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, a ser paga na residência do beneficiário ou dos seus familiares, em prestações mensais correspondentes a 1/14 da mesma, sendo nos meses de Junho e Novembro acrescidas de uma outra prestação também equivalente a 1/14 da pensão anual, pensão esta actualizável anualmente (fixando-se em 2022, no valor de €3.659,35), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o vencimento de cada mensalidade até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo do que foi pago a título de pensão provisória;
B) Condeno a ré seguradora A..., S.A. a reembolsar o Fundo de Acidentes de Trabalho das quantias por este liquidadas aos autores, a título de pensão provisória e que, até 28/10/2022, ascendeu ao valor total de €10.977,10 (dez mil novecentos e setenta e sete euros e dez cêntimos).
C) Absolvo a ré seguradora A..., S.A. do pedido de condenação no pagamento aos autores de uma indemnização no montante de €50.000,00 pelo dano morte.
D) Absolvo a ré B..., Lda. de todos os pedidos contra si deduzidos.
E) Condeno os autores e a ré seguradora no pagamento das custas processuais, na proporção do respectivo decaimento.
*
Valor da acção – €94.043,09 - artigo 120.º, do Código de Processo do Trabalho.
*
Após trânsito, remeta certidão desta decisão à Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões – artigo 137.º, do Código de Processo do Trabalho.
*
Registe e notifique.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença a Ré seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
a) Não considerou o Tribunal a quo que o comportamento do Sinistrado, embora altamente temerário no acto de subida para o telhado, tenha sido grosseiramente negligente ao ponto de se concluir pela descaracterização do acidente, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, al. b), da LAT, uma vez que a queda não ocorreu na subida, mas quando já se encontrava em cima do telhado, concluindo pela inexistência de nexo de causalidade entre o seu comportamento e a queda.
b) Acontece que, analisada a factualidade dada como provada, em particular os factos 26, 27, 28, 29, 30, 33, 34, 45, 46, 47, 54 e 55, entendemos que mal andou o Tribunal a quo na sua decisão, dado que o comportamento do Sinistrado sempre conduziria à descaracterização do acidente.
c) Na medida em que, encontrando-se o telhado do armazém molhado, após uma noite e madrugada de chuva intensa, sem qualquer formação para subida a telhados e autorização da entidade empregadora para o efeito, tendo, inclusive, sido advertido para nada fazer até à chegada do sócio-gerente às instalações, por livre iniciativa, decidiu subir ao telhado, suportando o seu peso em meras telhas de plástico que viriam a partir.
d) Sendo certo que tal acto não se integrava no exercício habitual das suas funções, nem se equipou devidamente com os equipamentos de protecção individual.
e) Nesta feita, o comportamento do Sinistrado não pode ser havido como uma simples imprudência, mas antes como negligência grosseira, nos moldes previstos no artigo 14.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, da LAT, na medida em que o acto de subir ao telhado, nas circunstâncias apuradas e dadas como provadas pelo Tribunal a quo, conduziu à sua queda e consequente morte, sendo irrelevante o desconhecimento do que o motivou a subir ao telhado ou o facto da queda não ter ocorrido na subida.
f) Termos em que, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que aplique o disposto no artigo 14.º, n.º 1, al. b), da LAT, mormente a descaracterização do acidente em apreço, com a inerente absolvição da Recorrente do pedido.
Conclui pugnando pela procedência do recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.
I.4 A recorrida A., por si e em representação de seu filho, apresentou contra-alegações, que encerrou com as conclusões seguintes:
I. No dia 18 de Fevereiro de 2021, o falecido-sinistrado encontrava-se no seu local de trabalho, cumprindo o seu horário de trabalho, pelo que o acidente que o vitimou ocorreu no tempo e no local de trabalho, tratando-se, por isso, de acidente de trabalho na acepção prevista no n.º 1 do art.º 8.º da LAT.
II. Os Autores alegaram e provaram o nexo de causalidade entre as lesões sofridas e o acidente (art.º 10.º, n.º 1 da LAT) sendo inexigível que provassem que o acidente que vitimou o falecido-sinistrado tivesse ocorrido no cumprimento de ordens da entidade empregadora, mas tão só que o falecido-sinistrado estivesse em situação de poder receber ordens, o que lograram provar.
III. Para que procedesse a descaracterização do acidente ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 14.º da LAT, incumbia à ora Recorrente o ónus de alegar e provar matéria de facto suficiente que permitisse concluir pela existência de negligência grosseira exclusiva do sinistrado e que tal conduta fora causa adequada e exclusiva do acidente, o que não fez, razão pela qual deverá o Tribunal ad quem manter a caracterização decidida pelo Tribunal a quo.
IV. O Tribunal a quo deu como provado tão só que no tempo e no local de trabalho o falecido-sinistrado acedeu ao telhado, tendo sofrido uma queda que o vitimou, não tendo a Recorrente provado circunstâncias (dinâmica do acidente, condições do telhado, tempo permanecido no telhado e motivação) que permitissem ao Tribunal a quo efectuar uma ajustada ponderação quanto à representação mental e/ou mediação do acto e das suas consequências, por parte do falecido-sinistrado.
V. A douta sentença recorrida fez correcto enquadramento do direito aplicável à situação sub judice, pelo que deve ser integralmente mantida.
I.5 O Digno Procurador Geral Adjunto junto desta Relação emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º n.º3, do CPT, tendo-se pronunciado pela improcedência do recurso, na consideração do seguinte:
-«[..]
-2. Descaracterização do acidente.
Conclui a recorrente que, o acidente se encontra descaracterizado, por ter sido consequência da negligência do sinistrado, pois entende que o acidente se deveu a culpa do sinistrado, que subiu ao telhado por iniciativa sua, sem condições de segurança.
Sob a epígrafe, “Descaracterização do acidente”, o artigo 14º da Lei 98/2009, de 4 de setembro – LAT – dispõe que:
“1 – O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão."
Este artigo prevê, assim, algumas situações em que o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente. O acidente, embora qualificável como de trabalho, não dá lugar à sua reparação, nos termos desta Lei.
O disposto na al. b) do número 1, deste artigo art.º 14º, da LAT, prevê a hipótese do acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Nesta hipótese prevista na al. b) do n.º 1 deste art.º 14º - acidente que provem exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado - exige, como previsto no n.º 3, … “o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiencia profissional ou dos usos da profissão.”
Neste caso, de negligência grosseira do sinistrado, que a recorrente aponta como causa do acidente dos autos, exige-se:
- (i)um comportamento, do sinistrado, temerário em alto e relevante grau, (e não uma qualquer actuação negligente), e,
- (ii)que não se trate de um acto ou omissão resultante:
- a)da habitualidade ao perigo do trabalho executado(1)
- b)da confiança na experiência profissional(2), ou,
- c)dos usos da profissão.
A descaracterização do acidente de trabalho constitui facto impeditivo do direito invocado pelo sinistrado, incumbindo àquele contra quem tal direito é invocado o ónus da prova correspondente (art.º 342º, do Cód. Civil)(3). Neste caso a seguradora, ora recorrente, para quem a entidade empregadora, por contrato de seguro, havia transferido a sua responsabilidade infortunística.
*
Com mais relevância para o caso dos autos, provaram-se os seguintes factos:
10) No dia 18/02/2021, pelas 16h30m, no armazém da entidade empregadora, sito na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, CC foi vítima de um acidente, que provocou a sua morte.
11) De acordo com o relatório de autópsia a que o sinistrado foi sujeito, a morte deste “foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e torácicas”.
24) No dia 18 de Fevereiro de 2021, o sinistrado encontrava-se no armazém de estacionamento dos camiões da ré empregadora, cumprindo o horário de trabalho das 09h00 às 12h30m e das 13h30m às 18h00.
25) Nesse dia, o sinistrado deslocou-se pelas 09h00 para o armazém da empregadora, uma vez que nesse dia não tinha carga definida.
26) Por volta das 09h00, o sinistrado constatou que as instalações do armazém se encontravam inundadas.
27) E reportou telefonicamente a situação ao sócio-gerente DD, que lhe transmitiu que as caleiras estariam entupidas, que se encontrava em viagem e que quando chegasse viam como resolver.
30) Uma vez no telhado, o sinistrado caiu para o interior do armazém.
*
Quando se fala em descaracterização do acidente, refere-se ao facto de o acidente ter sido consequência da subida ao telhado.
Eventualmente, este caso poderia cair na previsão do disposto na al. b) do n.º 1, do art.º 14º da LAT.
Porém, como já acima se disse, ninguém viu concretamente como o acidente ocorreu. Não se apuraram as concretas circunstâncias em que o mesmo aconteceu. Provou-se, apenas, que “30) Uma vez no telhado, o sinistrado caiu para o interior do armazém.”
Não se apurando as circunstâncias concretas em que o acidente ocorreu, não é possível descaracterizar o acidente nem desresponsabilizar a entidade empregadora ou seguradora pela reparação do acidente.
Além disso sempre este acto é compreensível, aceitável que um trabalhador ao ver as instalações do armazém onde trabalha inundadas de água, a limpe e tente saber a causa da entrada da água no armazém, e, concluindo que foi pelo telhado que entrou, tente remediar ou remover a situação.
Só demonstra, salvo melhor opinião, zelo e diligência da sua parte. Acresce que de tudo mantinha informado o sócio-gerente da Ré, com quem manteve alguns contactos telefónicos, como se deu como provado.
Ora de todo este trabalho realizado pelo trabalhador/sinistrado, foi realizado com conhecimento e aceitação da entidade empregadora, que estava a ser periodicamente informada, e só ela tirava proveito deste mesmo trabalho.
Assim, salvo melhor opinião, a actuação do sinistrado não pode qualificar-se de negligência grosseira, comportamento temerário em alto e relevante grau, nem altamente censurável, capaz de descaracterizar o acidente. Trata-se de trabalho acompanhado pela entidade empregadora.
Mas, repete-se não se apurando as circunstâncias concretas em que o acidente ocorreu, não é possível descaracterizar o acidente nem desresponsabilizar a entidade empregadora ou seguradora pela reparação do acidente.
Mesmo que se considerasse que havia “negligência grosseira” do sinistrado, havia ainda que dar-se como provado que o acidente se deveu a esta conduta negligente, o que não se provou.
E, assim, não é afastada a responsabilidade na reparação do acidente
[..]».
I.6 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão suscitada pela recorrente para apreciação consiste em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito aos factos por não ter concluído que o acidente teve como causa a actuação do sinistrado, em negligência grosseira, nos moldes previstos no artigo 14.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, da LAT.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que passa a transcrever:
II-A. FACTOS PROVADOS.
Com relevo para a decisão da presente causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1) CC nasceu no dia .../.../1977.
2) CC faleceu no dia 18/02/2021, no estado de casado com AA.
3) AA nasceu no dia .../.../1979.
4) CC e AA casaram um com o outro no dia 18/07/1998.
5) Do casamento entre ambos nasceu, em .../.../2006, BB.
6) O falecido sinistrado deixou como herdeiros únicos e universais, o cônjuge sobrevivo e o filho acima identificados.
7) A segunda ré/empregadora é uma sociedade por quotas, que tem como objecto social o exercício da actividade de transportes rodoviários de mercadorias nacional e internacional por conta de outrem.
8) O falecido sinistrado foi admitido ao serviço da segunda ré, em 24/05/2019, para “exercer por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da empregadora, as funções inerentes à categoria profissional de motorista de pesados afecto ao transporte internacional rodoviário de mercadorias, competindo-lhe, designadamente, conduzir, cuidar o camião que lhe for distribuído, sendo responsável pelas mercadorias que vier a transportar e respectiva distribuição” (cláusula 2.ª, n.º 1 do contrato de trabalho).
9) Consta da cláusula 2.ª, n.º 2 do contrato de trabalho, que: “O empregador poderá encarregar temporariamente o trabalhador de exercer funções não compreendidas na actividade contratada, de exercer funções no transporte nacional, internacional e em regime de «triângulo», que o trabalhador declara conhecer, dando o trabalhador, desde já, a sua concordância para tal”.
10) No dia 18/02/2021, pelas 16h30m, no armazém da entidade empregadora, sito na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, CC foi vítima de um acidente, que provocou a sua morte.
11) De acordo com o relatório de autópsia a que o sinistrado foi sujeito, a morte deste “foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e torácicas”.
12) Nessa altura, o sinistrado trabalhava com a categoria de motorista de veículos pesados de mercadorias, por ordem, direcção e fiscalização da entidade empregadora, B..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ..., ... Santa Maria da Feira.
13) À data do acidente, a responsabilidade infortunística por danos emergentes de acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a seguradora A..., S.A., através de contrato de seguro celebrado com a entidade empregadora, titulado pela apólice n.º ...53.
14) À data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição mensal de €815,00x14 de vencimento base, acrescida de €558,80x12 de outros subsídios, no total anual de €18.115,60.
15) Nas deslocações ao Tribunal, a autora despendeu em transportes a quantia de €30,00.
16) Em despesas com o funeral, a autora despendeu a quantia de €1.960,00.
17) Corre termos na 2.ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira o inquérito n.º 80/21.5GAVFR, do qual consta a resposta à realização do inquérito sumário e urgente elaborado pela ACT sobre as circunstâncias em que o acidente ocorreu, nela se referindo que: “... da matéria factual apurada e análise dos documentos remetidos pela empresa em causa, culminou no sancionamento da mesma, na matéria traduzida a seguir, situação que deu origem a um processo de contraordenação laboral a notificar assim que possível:
- Violação do n.º 1 e 3 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro uma vez que se encontravam em curso tarefas que implicam a realização de trabalhos temporários em altura, sem garantir a utilização de equipamentos apropriados para assegurar condições de trabalho seguras aos trabalhadores que os realizam;
- Violação da alínea a) do n.º 3 do Artigo 108.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, alterada pela Lei n. o 3/2014, de 28 de janeiro uma vez que não foram realizados os exames de saúde de admissão adequados a comprovar e avaliar a aptidão física e psíquica do trabalhador, antes do início da prestação de trabalho ou, se a urgência da admissão o justificar, nos 15 dias seguintes.
- Violação do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro com as alterações dadas pela Lei n.º 3/2014, de 28 de janeiro pela falta de formação adequada aos trabalhadores que naquele local prestam serviço no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercido de actividades de risco elevado” (cfr. documento de fls. 483 v.º e 484 dos autos).
18) Na sequência do referido em 17), foram instaurados pela ACT contra a segunda ré/empregadora três processos de contra-ordenação n.ºs 212100296, 212100297 e 212100298, nos quais a segunda ré apresentou resposta escrita.
19) À data dos factos, o autor BB tinha 15 anos de idade.
20) A morte de CC provocou nos autores grande dor, desgosto, angústia e ansiedade.
21) Era uma pessoa amada pela mulher, filho e demais familiares e amigos, muito alegre, comunicativo e com vontade de viver.
22) Entre os autores e CC existia uma forte relação de afectividade e cumplicidade.
23) Em consequência do seu falecimento, os autores procuraram ajuda psicológica, tendo a autora que socorrer-se de ansiolíticos, antidepressivos e fármacos para dormir.
24) No dia 18 de Fevereiro de 2021, o sinistrado encontrava-se no armazém de estacionamento dos camiões da ré empregadora, cumprindo o horário de trabalho das 09h00 às 12h30m e das 13h30m às 18h00.
25) Nesse dia, o sinistrado deslocou-se pelas 09h00 para o armazém da empregadora, uma vez que nesse dia não tinha carga definida.
26) Por volta das 09h00, o sinistrado constatou que as instalações do armazém se encontravam inundadas.
27) E reportou telefonicamente a situação ao sócio-gerente DD, que lhe transmitiu que as caleiras estariam entupidas, que se encontrava em viagem e que quando chegasse viam como resolver.
28) Ao longo do dia, o sinistrado ligou várias vezes ao sócio-gerente, a reportar-lhe a evolução da entrada da água e o que estava a fazer, nomeadamente a limpar a água em excesso.
29) Nesses contactos telefónicos, foi repetidamente transmitido ao sinistrado que devia aguardar o regresso de DD.
30) Uma vez no telhado, o sinistrado caiu para o interior do armazém.
31) Foi de imediato transportado para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE – ..., onde faleceu, no mesmo dia, pelas 21h43m,
32) Em virtude das lesões mencionadas em 11), resultantes da queda em altura e do embate contra o solo.
33) Não foi ministrada formação ao sinistrado em matéria de segurança no trabalho, designadamente para a execução de tarefas em altura e subir a telhados com cerca de 6 metros de altura.
34) Na noite do dia 17 e madrugada do dia 18, ambos do mês de Fevereiro de 2021, choveu intensamente em ....
35) A hora não concretamente apurada, mas entre as 16h00 e as 16h15m, o sócio-gerente DD chegou ao armazém.
36) Quando chegou ao armazém, o gerente da ré empregadora deparou-se com o mesmo vazio.
37) Estabeleceu contacto telefónico com o sinistrado, de quem ouviu que se achava no armazém adjacente a tomar café, juntamente com o seu colega de trabalho, EE, mas que regressaria às instalações da ré em escassos minutos.
38) O gerente da ré empregadora guardou uns papéis que consigo trazia e dirigiu-se à casa de banho da empresa.
39) Quando aí se encontrava ouviu um barulho seguido de gritos.
40) Saiu da casa de banho e procurou o local do ruído.
41) E deparou-se com o sinistrado caído no chão a sangrar.
42) O gerente da ré empregadora, segunda ou terceira pessoa a chegar ao local, inicialmente não percebeu o que tinha ocorrido, ainda que se tenha dado conta da gravidade da situação.
43) De imediato foi solicitada a comparência de meios de socorro.
44) Só depois é que os presentes viram a chapa transparente do telhado do armazém partida, concluindo que o sinistrado havia caído através dela.
45) A ré empregadora não deu nenhuma instrução ao sinistrado para que acedesse ao telhado do armazém.
46) Das funções do sinistrado não faziam parte trabalhos em altura.
47) O acesso ao telhado partiu da livre iniciativa do sinistrado.
48) O sinistrado actuou sem colaboração de terceiro.
49) O sinistrado era um trabalhador esforçado, diligente e cumpridor.
50) A ré empregadora nunca vira o sinistrado a actuar de tal maneira e nunca admitiu tal cenário como possível, razão pela qual não verbalizou que a tal estava proibido.
51) O sinistrado acedeu à cobertura do armazém com o auxílio de um empilhador de garfos e uma escada manual.
52) Quando o sinistrado se encontrava no telhado, uma telha translúcida partiu-se, resultando a sua queda no interior do edifício de uma altura de cerca de 6,5 metros.
53) A cobertura do armazém era composta por telhas de fibrocimento e por algumas telhas de plástico translúcidas.
54) E encontrava-se molhado.
55) As telhas de plástico translúcidas não suportam o peso de um adulto.
56) O sinistrado não usava arnês, corda de segurança/amarração ou qualquer outro sistema de retenção.
57) O sinistrado não usava capacete com francalete.
58) A ré empregadora não disponibilizou ao sinistrado nenhum dos equipamentos referidos em 56) e 57).
59) No momento do acidente e no local onde o mesmo ocorreu, não estava presente o superior hierárquico do sinistrado.
60) Por decisão proferida em 27/09/2021, foi provisoriamente fixada a favor dos autores AA e BB, a suportar pelo Fundo de Acidentes de Trabalho, as pensões anuais de €5.434,68 e €3.623,12, respectivamente, devidas a partir de 03 de Outubro de 2021, a serem pagas adiantadas e mensalmente no seu domicílio, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, igualmente no valor de 1/14 cada da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano.
61) Até 28/10/2022, o Fundo de Acidentes de Trabalho pagou aos autores a título de pensões provisórias a quantia total de €10.977,10.
*
II-B. FACTOS NÃO PROVADOS.
Com relevância para a decisão, não se consideram provados os seguintes factos:
62) No dia 18 de Fevereiro, à tarde, encontrava-se também no armazém o trabalhador EE.
63) Sob as ordens, direcção e fiscalização do referido sócio-gerente, o sinistrado foi alevantado através de um empilhador, marca Toyota, manobrado por uma das pessoas que se encontravam naquele momento no armazém, assim acedendo ao telhado.
64) Na sequência do contacto telefónico efectuado, o gerente da ré empregadora disse ao sinistrado que iria pessoalmente verificar a situação logo que chegasse ao armazém.
65) O sócio-gerente da ré empregadora DD chegou ao armazém pelas 15h00.
66) Ao deslocar-se sobre a cobertura, o sinistrado colocou o pé numa telha translúcida, partindo-a.
67) A cobertura do telhado era em plástico.
68) O sinistrado falecido era uma pessoa saudável e robusta.

II.2 MOTIVAÇÃO de DIREITO
A recorrente insurge-se contra a sentença por alegado erro na aplicação do direito aos factos, defendendo que face à factualidade dada como provada, em particular os factos 26, 27, 28, 29, 30, 33, 34, 45, 46, 47, 54 e 55, o Tribunal a quo deveria ter concluído pela descaracterização do acidente de trabalho, na consideração de que “o comportamento do Sinistrado não pode ser havido como uma simples imprudência, mas antes como negligência grosseira, nos moldes previstos no artigo 14.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, da LAT, na medida em que o acto de subir ao telhado, nas circunstâncias apuradas e dadas como provadas [..], conduziu à sua queda e consequente morte, sendo irrelevante o desconhecimento do que o motivou a subir ao telhado ou o facto da queda não ter ocorrido na subida na sua decisão [..]”.
Atentando na fundamentação da sentença, na vertente da aplicação do direito aos factos, no que releva para a questão em apreciação, o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:
Conforme decorre do auto de tentativa de conciliação e tendo em conta o teor das contestações, levantam-se nestes autos, antes de mais, quatro questões:
- a primeira, que se reconduz à caracterização do sinistro como acidente de trabalho, porquanto a ré empregadora entende que o mesmo ocorreu no âmbito de uma tarefa excluída do âmbito funcional do sinistrado e executada por decisão exclusiva sua;
- a segunda, que se prende com a dinâmica do acidente, defendendo as rés que o mesmo se deveu à violação pelo sinistrado, sem causa justificativa, das condições de segurança e a negligência grosseira sua;
- a terceira, em jeito subsidiário, relativa à falta de cumprimento pela empregadora das regras sobre segurança e saúde no trabalho;
- a quarta, referente à determinação da entidade responsável.
Na hipótese de se concluir que o sinistro em apreço configura um acidente de trabalho, importará determinar o quantum indemnizatório a que os autores têm direito.
*
- Da caracterização do sinistro como acidente de trabalho.
[..]
In casu, do que resultou apurado, a queda do sinistrado e que lhe provocou a morte, ocorreu no tempo e local de trabalho, quando o sinistrado estava a desempenhar actividade laboral, ainda que se não tenha provado que lhe tenham sido dado ordens para aceder ao telhado, pelo que não estando o autor subtraído à autoridade do empregador, o acidente deve ser qualificado como de trabalho, por se verificar o nexo entre o acidente e a relação laboral, já que a concreta queda lesiva que ocorreu não teria sucedido se o sinistrado não estivesse a trabalhar para o empregador no tempo e local de trabalho.
Concluímos, assim, que o sinistro em apreço constitui um acidente de trabalho.
*
- Da descaracterização do acidente de trabalho versus incumprimento pelo empregador das regras sobre segurança e saúde no trabalho.
Já quanto às segunda e terceira questões suscitadas, a alegação das rés reconduz-se ao disposto quer no artigo 14.º, quer ao que estatui o artigo 18.º, da Lei n.º 98/2009.
Dispõem tais normas o seguinte:
“Artigo 14.º
Descaracterização do acidente
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
[..]
Conforme resulta da epígrafe da primeira das normas vindas de transcrever, a procedência do alegado pelas rés levará à descaracterização do acidente, pelo que a conclusão seria a da sua desresponsabilização por não estarmos perante um acidente de trabalho reparável. Assim, deverá ser essa a primeira questão a abordar, pois da decisão a proferir sobre a mesma dependerá o direito de os autores receberem qualquer das quantias que aqui reclamam.
Face às regras do ónus da prova, cabia às rés a prova não apenas da existência de violação sem causa justificativa de regras de segurança ou de negligência grosseira por parte do sinistrado, mas também do nexo de causalidade entre essa violação ou negligência e a eclosão do acidente (“Cabe à entidade responsável pela reparação do acidente de trabalho, o ónus da prova dos factos donde se possa concluir pela descaracterização do acidente de trabalho, por se tratar de facto impeditivo do direito invocado” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2016, proc. n.º 568/10.3TTSTR.L1.S1,acessível in www.dgsi.pt).
A queda do sinistrado falecido deu-se do telhado do armazém da entidade empregadora aonde o mesmo, por motivos não concretamente apurados, subiu. Na verdade, apenas sabemos que tal terá acontecido porque aquelas instalações haviam sofrido uma inundação, supostamente em virtude de as caleiras estarem entupidas, desconhecendo-se, no entanto, o objectivo imediato da ida do sinistrado ao telhado.
Sabemos ainda que o telhado ficava a uma altura do chão de cerca de 6,5 metros, era composto por telhas de fibrocimento e por algumas telhas de plástico translúcidas, que não suportam o peso de um adulto, e encontrava-se molhado.
Vejamos.
[..]
Ficou demonstrado em juízo que o sinistrado não usava nem dispunha de arnês, corda de segurança/amarração ou qualquer outro sistema de retenção, nem usava capacete com francelete.
Contudo, não podemos olvidar e deixar de acolher a jurisprudência que julgamos ser pacífica a respeito da obrigatoriedade da implementação de medidas de protecção contra quedas em altura, no sentido de que essa obrigatoriedade só existe “quando esse risco efectivamente existir, face a um juízo de prognose a formular, no quadro do circunstancialismo existente aquando do acidente”, conforme se sintetiza no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04/02/2019, proc. n.º 1564/15.0Y2MTS.P1, acessível in www.dgsi.pt, mas cuja fundamentação, dada a sua exaustividade, aqui se transcreve:
[..]
Tal como no caso sujeito a apreciação neste aresto, também nos presentes autos, não está demonstrado (nem foi alegado) que o telhado estivesse em mau estado de conservação ou que a cobertura fosse frágil, pois que sabemos apenas que algumas telhas – as de plástico translúcidas – o eram; não ficou provado (nem foi alegado) que a inclinação do telhado fosse acentuada; sabemos apenas que o telhado era composto por telhas de fibrocimento, naturalmente mais resistentes, e por algumas de plástico, encontrando-se molhado.
Por outro lado, desconhecemos porque caiu o sinistrado, designadamente se escorregou por a cobertura estar molhada, se se desequilibrou ou sequer se chegou a pisar a telha de plástico que se partiu e por onde veio a cair.
Por isso, perante este quadro factual, ao que julgamos, nem está demonstrado que fosse exigível, em concreto, a implementação de medidas de segurança nem, consequentemente, que o sinistrado as tenha violado ou a ré empregadora faltado ao seu cumprimento.
Com efeito, “para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado artigo 14.º, n.º 1, alínea a), descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou prevista na lei; b) violação, por acção ou omissão, dessas condições, por parte da vítima; c) que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa; d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/07/2021, proc. n.º 507/16.8T8VLG.P1, acessível in www.dgsi.pt).
Primeiramente, não se verificava por parte do sinistrado qualquer acto voluntário de contrariedade ao cumprimento das condições de segurança. De facto, para se concluir que o sinistrado violara as condições de segurança, era necessário que se pudesse concluir que existiam regras de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei, o que, como se viu, não existia. E, mais, era preciso ter ficado demonstrado que o sinistrado actuou voluntariamente, de forma consciente, em relação à violação das regras de segurança.
A descaracterização do acidente, por via da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, será assim de afastar.
O mesmo se diga a respeito do fundamento de descaracterização do acidente consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º.
Assim, a negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
A negligência pode também assumir diferentes graus: será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido.
A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum, devendo ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.
O n.º 3 do artigo 14.º define a negligência grosseira como “o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”. Ou seja, não só não basta um comportamento temerário, como tem este de ser ainda de “alto e relevante grau” e não pode ser
resultante “da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”. Conforme se concretiza no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2014, proc. n.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, acessível in www.dgsi.pt, o comportamento temerário é aquele que se consubstancia num “actuação perigosa, audaciosa e inútil, reprovada por um elementar sentido de prudência”.
Assim, um comportamento imprudente do sinistrado não é suficiente para descaracterizar o acidente: “embora se considere que a actuação do sinistrado não foi sensata, sendo mesmo imprudente, isso não é suficiente para se considerar estar-se perante um comportamento temerário, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/10/2017, proc. n.º 586/12.7TTGDM.P1, acessível in www.dgsi.pt).
Por último, para excluir o direito à reparação nos termos da alínea b), do n.º 1, do citado artigo 14.º, é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção (“Para a verificação da causa de descaracterização do acidente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14 da Lei nº 98/2009, exige-se a demonstração de que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e, ainda, cumulativamente, que essa sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo acidente” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/10/2019, proc.º n.º 4859/16.1T8MTS.P1, acessível in www.dgsi.pt).
In casu, não se nos afigura que o comportamento do sinistrado possa qualificar-se como acto temerário em alto e relevante grau, nos termos delineados supra, já que não basta para assim se concluir a circunstância de o mesmo ter acedido a um telhado situado a uma altura de 6,5 metros. De facto, desconhece-se quanto tempo permaneceu o sinistrado no telhado, o que o levou a dirigir-se para o cume e a aproximar-se das telhas translúcidas, o que, em concreto, foi fazer no telhado e o motivo pelo qual caiu, pelo que “a factualidade comprovada não consente uma ajustada ponderação quanto à representação mental e/ou medição do ato e suas consequências, por parte do sinistrado, o que torna defesa a formulação de um juízo apodítico quanto a uma elevada reprovabilidade/indesculpabilidade e/ou elevado grau de censurabilidade ético-jurídica (dizer, culpa) que sobre o trabalhador haja de incidir” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/02/2021, proc. n.º 2577/18.5T8OAZ.P1, acessível in www.dgsi.pt).
Naturalmente que no presente caso não deixa de impressionar a forma escolhida pelo sinistrado para subir ao telhado, utilizando para o efeito um empilhador e uma escada. Dir-se-ia que foi altamente temerário nesse acto. Contudo, a sua queda não ocorreu na subida, mas quando já se encontrava em cima do telhado, pelo que inexiste o nexo de causalidade entre o comportamento do sinistrado e o evento lesivo (queda).
Conclui-se, face ao exposto, pela não descaracterização do acidente.
[..]».
Como primeira nota, importa sublinhar que a recorrente não põe em causa a sentença ao ter concluído pela verificação de um evento qualificável como acidente de trabalho, nem ao ter concluído que “A descaracterização do acidente, por via da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, será assim de afastar”, ou seja, excluindo a descaracterização do acidente por alegada violação de regras de segurança pelo sinistrado.
A discordância da recorrente incide exclusivamente sobre a conclusão do Tribunal a quo afastando igualmente a descaracterização do acidente nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º, da Lei 98/2009, na consideração de que os factos provados não levam a concluir que a conduta do sinistrado se subsume à noção de negligência grosseira, ou seja, “possa qualificar-se como acto temerário em alto e relevante grau”, nem tão pouco que exista o nexo de causalidade (exclusivo) entre o seu comportamento – ao subir ao telhado, utilizando para o efeito um empilhador e uma escada – e o evento lesivo (queda).
Dos factos a que a recorrente faz apelo consta o seguinte:
26) Por volta das 09h00, o sinistrado constatou que as instalações do armazém se encontravam inundadas.
27) E reportou telefonicamente a situação ao sócio-gerente DD, que lhe transmitiu que as caleiras estariam entupidas, que se encontrava em viagem e que quando chegasse viam como resolver.
28) Ao longo do dia, o sinistrado ligou várias vezes ao sócio-gerente, a reportar-lhe a evolução da entrada da água e o que estava a fazer, nomeadamente a limpar a água em excesso.
29) Nesses contactos telefónicos, foi repetidamente transmitido ao sinistrado que devia aguardar o regresso de DD.
30) Uma vez no telhado, o sinistrado caiu para o interior do armazém.
33) Não foi ministrada formação ao sinistrado em matéria de segurança no trabalho, designadamente para a execução de tarefas em altura e subir a telhados com cerca de 6 metros de altura.
34) Na noite do dia 17 e madrugada do dia 18, ambos do mês de Fevereiro de 2021, choveu intensamente em ....
45) A ré empregadora não deu nenhuma instrução ao sinistrado para que acedesse ao telhado do armazém.
46) Das funções do sinistrado não faziam parte trabalhos em altura.
47) O acesso ao telhado partiu da livre iniciativa do sinistrado.
54) E encontrava-se molhado.
55) As telhas de plástico translúcidas não suportam o peso de um adulto.
Adiantamos já concordarmos com a decisão recorrida, que em nosso entender fez a correcta aplicação do direito aos factos provados, entre os quais se incluem os invocados pela recorrente, dando a resposta adequada às questões colocadas pelas partes, designadamente à aqui de novo em discussão, com fundamentação elucidativa e criteriosamente sustentada na doutrina e jurisprudência que cita.
Importa, porém, que justifiquemos esta asserção.
II.2.1 O regime jurídico atendível é o que emerge da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro [Regulamenta o regime de reparação de acidente de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art.º 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro], que também se usa designar por NLAT (nova lei de acidentes de trabalho), entrada em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010, conforme resulta do seu art.º 188.º.
O art.º 2.º da Lei n.º 98/2009, consagra o direito do trabalhador e dos seus familiares à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, nos termos nela previstos.
Segundo o conceito dado pelo n.º1 do art.º 8.º, da mesma lei, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Casos há, porém, em que apesar de ter ocorrido um acidente de trabalho, a lei exclui o direito à reparação. Para tanto é necessário que se verifique uma causa excludente daquele direito, nos termos previstos taxativamente na lei, que conduz à denominada “Descaraterização do acidente”. Na actual lei ocupa-se desses casos o art.º 14.º, estabelecendo, no que aqui releva face à questão que persiste em discussão, o seguinte:
[1] O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) [..]
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) [..]
[2] [..]
[3] Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Para determinar o sentido e alcance destes normativos, mostra-se pertinente, senão mesmo indispensável, atentar nas correspondentes normas que nos anteriores regimes jurídicos de acidentes de trabalho, nomeadamente, a Lei nº 2127, de 8 de Agosto de 1965, e a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, antecederam as aqui em causa.
Uma nota antes de avançarmos, para referir que na fundamentação que segue acompanha-se de perto o Acórdão desta Relação de 26 de Outubro de 2017 [Proc.º 586/12.7TTGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt], um dos arestos citados na sentença recorrida, o qual foi relatado pelo também aqui relator e teve igualmente intervenção do exmo 1.º adjunto.
Debrucemo-nos, pois, sobre a causa de exclusão do direito à reparação, com a consequente exclusão do direito à reparação, que se verifica quando o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado [art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º 3, da Lei 98/2009].
Na Lei n.º 2127, a Base VI, com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, no que aqui interessa, dispunha o seguinte:
[1] Não dá direito a reparação o acidente:
a) (..)
b) Que provier exclusivamente da falta grave e indesculpável da vítima.
A propósito da parte final dessa norma, Cruz de Carvalho observa que a lei considera “(..) ”indemnizáveis os acidentes resultantes de negligência, imprudência, imprevidência, imperícia, distracção, esquecimento de uma ordem e comportamentos análogos, abrangidos na figura jurídica de culpa em sentido genérico, como a simples e involuntária inobservância daquele diligência que se deveria ter empregado, e que se tivesse sido empregada teria impedido a a realização do facto danoso”, defendendo que para aplicação dessa norma “(..) é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma impudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária embora não intencional, e além disso que tal comportamento seja a causa única do acidente, como resulta do advérbio «exclusivamente»; (..)”[Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, 2.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa, 1983, p. 51].
Releva assinalar, que o Decreto-lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, diploma que regulamentou aquela lei, veio estabelecer no art.º 18.º - reportando-se à Base VI n.º1 al. a) da Lei - o seguinte: ”Não se considera falta grave e indesculpável da vítima do acidente o acto ou a omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes das profissões”.
Face ao disposto na Base VI da Lei 2127 e no art.º 18.º do respectivo regulamento, era entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, exigir-se um comportamento temerário, que revestisse as características de indesculpabilidade e de inutilidade ou desnecessidade. Para que tal sucedesse, impunha-se o comportamento fosse reprovado por um elementar sentido de prudência, por evidenciar de forma manifesta uma temeridade voluntária, não necessariamente intencional, mas inútil e indesculpável. Para afastar o direito à reparação, não bastava, portanto, um acto de mera negligência ou imprudência, a culpa simples (leve ou levíssima), sendo necessário que a negligência revestisse a natureza de negligência grosseira [nesse sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 1-3-85, Ac. Doutr. n.º 282, p.749; de 24-01-85, BMJ n.º 361, p. 268; de 30-01-87, BMJ n.º 363, p. 378; de 19-06-87, Ac. Doutr. n.º 308/309, p. 1219; de 3-03-88, Ac. Doutr. 322, p. 1297; e de 20-09-88, Ac. Doutr. n.º 324, p. 1594].
Na Lei 100/97, de 13 de Setembro, usualmente designada por LAT, esta matéria constava regulada no art.º 7 [Descaracterização do acidente], com o texto seguinte:
[artigo 7.º ]
1 - Não dá direito a reparação o acidente:
(..)
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
(..)».
Por seu turno, o n.º 2 do art.º 8.º, do DL 143/99 de 30 de Abril, que regulamentou a LAT, veio estabelecer: “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Confrontando estas disposições com os correspondentes normativos do precedente regime de reparação dos acidentes de trabalho, constata-se que os mesmos não trouxeram qualquer alteração essencial, apenas procurando integrar, com novas redacções, aquele entendimento desenvolvida pela doutrina e pela jurisprudência.
Justamente por isso, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. b), do art.º 7.º da Lei n.º 100/97, aquela linha de entendimento afirmada desde a Lei 2127 manteve-se pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores. Elucidam-no os sumários dos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (disponíveis em www.dgsi.pt), que se passam a transcrever:
i) “I -Para que um acidente de trabalho provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, é necessário: (i) que se verifique uma acentuada e indesculpável falta de cuidados, diligência e zelo, face ao circunstancialismo rodeador da actuação, por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, se alcance um juízo segundo o qual um homem já dotado de boa diligência, se estivesse colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento; (ii) que o comportamento verificado seja causa adequada e exclusiva do sinistro. [Acórdão de 22-11-2007, Recurso n.º 3659/07, Conselheiro Bravo Serra].
ii) “ II - A negligência grosseira a que alude o art. 7.º, n.º 1, al. b) da LAT/97 e o n.º 2 do art.º 8º do RLAT traduz um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade” [Acórdão de 22-04-2009, proc.º 08S1901, Conselheiro Mário Pereira];
ii) “I- Para excluir o direito à reparação de acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril), o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
(..)
IV - O ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, recai, por serem factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada” [Ac. de 17-09-2009, proc.º n.º 451/05.4TTABT.S1, Conselheiro Vasques Dinis].
Avançando para a actual Lei 98/2009, sendo certo que as correspondentes disposições, acima transcritas, acolhem os normativos da Lei 100/97, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e actualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a Lei 2127.
Em suma, para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Concomitantemente, a descaracterização do acidente de trabalho, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei nº 98/2009, está dependente da demonstração de que essa conduta do sinistrado foi a causa exclusiva do acidente.
Compete à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os factos que a integram, bem assim a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, nos termos gerais da repartição do ónus de prova, por serem factos impeditivos do direito à reparação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Revertendo ao caso, contrariamente ao que pretende sustentar a recorrente, da matéria provada não resulta o necessário para se concluir estar-se perante uma conduta do sinistrado que se enquadre na noção de negligência grosseira. Como bem assinala o Tribunal a quo “[..] não basta para assim se concluir a circunstância de o mesmo ter acedido a um telhado situado a uma altura de 6,5 metros. De facto, desconhece-se quanto tempo permaneceu o sinistrado no telhado, o que o levou a dirigir-se para o cume e a aproximar-se das telhas translúcidas, o que, em concreto, foi fazer no telhado e o motivo pelo qual caiu, pelo que “a factualidade comprovada não consente uma ajustada ponderação quanto à representação mental e/ou medição do ato e suas consequências, por parte do sinistrado, o que torna defesa a formulação de um juízo apodítico quanto a uma elevada reprovabilidade/indesculpabilidade e/ou elevado grau de censurabilidade ético-jurídica (dizer, culpa) que sobre o trabalhador haja de incidir” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/02/2021, proc. n.º 2577/18.5T8OAZ.P1, acessível in www.dgsi.pt)”.
Embora não se saiba qual era o propósito concreto do sinistrado, os factos permitem deduzir que em coerência com o facto de ser um trabalhador esforçado, diligente e cumpridor [facto 49], por sua iniciativa, o sinistrado agiu com o propósito sério de acudir à situação das infiltrações de água que ao longo do dia inundaram as instalações da Ré. Não se sabe se pretendia tentar dar-lhe solução ou apenas avaliar qual era a causa e o que seria necessário fazer, mas é seguro concluir que o seu objectivo era ser útil à entidade empregadora, de algum modo contribuindo para perceber, minimizar ou resolver o problema.
Note-se, que não se sabe também em que termos pretendia mover-se no telhado, ou seja, os factos não permitem concluir que tivesse sequer concebido e aceite a possibilidade de andar sobre as telhas, máxime as translúcidas. De resto, não é despiciendo assinalar que o sócio-gerente da Ré lhe transmitira “que as caleiras estariam entupidas”, isto é, a causa das infiltrações de água de água seria essa e não qualquer deficiência nas telhas de cobertura.
É certo que o sinistrado, porventura fruto da sua atitude voluntariosa, não agiu com a diligência que seria exigível na avaliação do risco que a situação envolvia, mas apesar de tal consubstanciar um comportamento imprudente e censurável, não cremos que seja suficiente para o qualificar como temerário, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum, tanto mais que nem se sabe as circunstâncias concretas que determinaram a queda, nem tão pouco o que pretendia exactamente fazer, como e quais os limites de risco que estava disposto a assumir.
Desde logo, não pode excluir-se a hipótese de o sinistrado estar numa parte firme e ter escorregado, ou por alguma outra razão ter sofrido um desequilíbrio, por essa razão tendo acabado por pisar a chapa transparente do telhado do armazém que se verificou estar partida e permitiu deduzir ter sido o ponto em que ocorreu a sua queda [factos 30 e 44].
Neste quadro, com o devido respeito pela posição defendida pela recorrente, cremos não existirem elementos de facto suficientes que permitam concluir com segurança, como seria necessário, que a conduta do sinistrado se subsume à noção de negligência grosseira, nem tão pouco que essa conduta foi a causa exclusiva do acidente.
Por último relembra-se que o ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, recai, por serem factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada.
Concluindo, improcede o recurso, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo ou censura.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)


Porto, 26 de Junho de 2023
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes