Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
448/19.7GBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: NULIDADE
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO EM INSTRUÇÃO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
CRIME DE HOMICÍDIO NEGLIGENTE
Nº do Documento: RP20231011448/19.7GBOAZ.P1
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – A obrigatoriedade do interrogatório o arguido em instrução depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: que ele solicite tal diligência e que o Juiz a considere necessária.
II – A lei não proíbe necessariamente o rearranjo, numa estrutura sistemática mais perfeita, dos factos desgarrados, sistematicamente desprimorosos e desarmoniosos, contidos no requerimento de abertura de instrução; o que está proibido ao Tribunal é afastar-se da vinculação temática oferecida por tal requerimento; a decisão instrutória, para que se veja respeitado o princípio acusatório, não tem que ser um mero e anódino decalque desse requerimento.
III – No caso em apreço, não houve uma modificação estrutural dos factos descritos nesse requerimento, os que foram acrescentados inserem-se no itinere temático ao qual o Juiz se encontrava vinculado.
IV – No caso em apreço, pode ter-se por indiciado que o arguido (na altura presidente de junta de união de freguesias) não logrou evitar o acidente mortal em análise porque omitiu o dever de anunciar e sinalizar os obstáculos colocados na via pública utilizada pela vítima, cuidados prescritos nas regras plasmadas no Código da Estrada e no Regulamento de Sinalização do Trânsito; os indícios apontam para que a totalidade, ou parte, do resultado típico possa ser imputado ao comportamento negligente daquele.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n º 448/19.7GBOAZ.P1

Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjuntos: Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha



Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
AA, arguido, não se conformando com o despacho de pronúncia proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro- Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira-J2, que nos autos à margem referenciados decidiu pronunciar o arguido nos seguintes termos:

“Pelo exposto, incorreu o arguido na prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos arts. 15º/b) e 137º/1 do Código Penal.”, veio recorrer nos termos que constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)
“1. Vem o presente recurso da Decisão Instrutória de Pronúncia proferida em 27-10-2022 e notificada ao mandatário do arguido em 02-11-2022, com a qual não pode conformar-se.
2. Em causa nestes autos estão os factos ocorridos em 19 de julho de 2019, decorridos já mais de três anos desde o sucedido e findo um longo inquérito, veio o Ministério Público, e bem, proferir despacho de arquivamento dos autos.

3. Face ao Requerimento de abertura de instrução do Assistente, veio a Digna Magistrada de Instrução proferir Despacho Instrutório de procedência do referido requerimento e em consequência pronunciar o aqui recorrente pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos arts. 152/b) e 1372/1 do Código Penal.
4. E, nessa medida, não podemos deixar de fazer referência e elogiar o árduo trabalho desenvolvido pelo Ministério Público na condução desta investigação, que confrontado com a morte de um jovem- não baixou os braços, fazendo aquilo que se impõe ao titular da ação penal: procurou de facto saber o que sucedeu naquele fatídico dia, numa investigação que prima pelo rigor e eficiência na recolha da prova e que culmina, naturalmente, no arquivamento que V. Exas., não duvidamos, confirmarão!

5. Sendo a instrução requerida pelo assistente, como aqui é o caso o requerimento de abertura de instrução deve conter, para além dos requisitos plasmados nos art.º 287 n.º 2 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP, a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.

6. Tal descrição factual deverá conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o assistente considere preenchido.

7. No caso dos autos o assistente, ao contrário daquilo a que estava obrigado, não fez no requerimento de abertura de instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, nem indicou as normas alegadamente violadas.

8. (...) o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas al.ªs referidas no n.2 3 do art.2 283 do CPP. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória".

9. A não se entender assim violar-se-iam de modo desproporcionado as garantias de defesa do arguido e as regras dos art.gs 18 e 32 n.ºs 1 e 5 da CRP colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusador, o que a lei não permite."

10. Acontece, porém, no caso que nos ocupa, a Meritíssima Juiz substituiu-se ao acusador lançando mão do preceituado no art.º 303.º do CPP.

11. Ou seja, sem que tenham sido levadas a cabo diligências instrutórias que o justificasse, e uma vez que do emaranhado de conclusões e agentes visados no Requerimento de Abertura de Instrução não se vislumbrava a concreta imputação de factos, com o objeto fixado com rigor e precisão, e em clara violação dos direitos de defesa do arguido, foi notificado à boca do debate instrutório de uma verdadeira acusação.
12. O requerimento de abertura de instrução apresentado não contém uma qualificação jurídico-penal certa dos factos e não é seguro quanto à versão factual que no entender do Assistente se verificou, tal como necessariamente se teria de verificar numa acusação.

13. Em suma, quando o Assistente requer a abertura da instrução para a comprovação judicial da decisão de arquivamento, em ordem a submeter a causa a julgamento, deve indicar, não só as razões pelas quais entende que o Ministério Público não deveria ter arquivado o inquérito, mas, ainda, os termos em que deveria ter deduzido acusação, por crime público ou crime semi-público e não uma pesca por arrastão como fez nos presentes autos.

14. Assim, por violação de tal obrigação, a decisão por esta via é nula.

15. Acresce que, a alteração levada a cabo em concreto nos pontos, 1., 6., 7., 8., 9., 12., 13., 14., 15., 16. e 17. do Despacho de Pronuncia configuram uma alteração substancial dos factos descritos no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.

16. Nenhum destes factos e considerações jurídicas resultam do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO!!Tratando-se de um enquadramento fáctico e jurídico penal absolutamente novo levado aos autos por via do 303.2 do CPP que na verdade configura uma alteração substancial dos factos descritos no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.

17. Ora, sem necessidade de mais considerações resulta evidente que a alteração comunicada não configura uma "alteração não substancial", mas sim uma alteração substancial.

18. Foi em tempo e ao abrigo do preceituado no art.º 309.º do CPP arguida perante a Meritíssima JIC a nulidade que aqui se invoca. E reitera!

19. As correções e modificações feitas ao Requerimento de abertura de instrução não resultam, efetivamente, de novos indícios descobertos na instrução, pelo que não há lugar à aplicação do disposto no n.s 1 do artigo 303° do CPP;

20. Ou seja, a interpretação dos artigos ls, alínea f), 3039 do CPP de acordo com a qual é possível em fase de instrução o juiz proceder à sanação da ineptidão do Requerimento de Abertura de Instrução por omissão da narração de factos essenciais (em violação do disposto no artigo 283s do CPP] invocando uma "alteração não substancial dos factos" é inconstitucional por violação do disposto nos n.gs 1 e 5 do artigo 32Q da CRP;

21. As alterações comunicadas correspondem a uma global correção do Requerimento de Abertura de Instrução levado a cabo pela Meritíssima JIC, confundindo-se a função desta com a do MP, em desconformidade ao princípio do acusatório, violando-se o disposto no art.º 18º da CRP;

22. As alterações têm um impacto significativo no direito de defesa do arguido, sacrifício este que não é - no caso - justificado pelo interesse conflituante de prossecução penal, uma vez que o MP teve todas as mais justas e amplas oportunidades de deduzir uma acusação e não o fez, por considerar, e bem, que inexistiam indícios da prática do crime e que o mesmo não poderia ser imputado, ainda que a título de negligência, a ninguém;

23. A deficiência do requerimento de abertura de instrução não poderia ser suprida, na fase de instrução, com vista à prolação de despacho de pronúncia, nem sequer com recurso ao mecanismo previsto no art. 303.Q do CPP, pois que a alteração dos factos constantes desta que não constituíam crime, por falta de indicação de todos os seus elementos constitutivos, acrescentando-lhes outros que ali não se encontravam a fim de preencher os elementos em falta - assim transformando em típica uma conduta atípica -, teria forçosamente de ser considerada substancial, e, por isso, vedada, nos termos do disposto no n.º 3 daquele preceito, sob pena de nulidade.

24. O despacho de pronúncia é nulo nos termos do preceituado no art. 309º do CPP o que se requer seja reconhecido, apesar de já requerido e não ter merecido, ainda, despacho judicial.
Sem prescindir e, caso assim não se entenda, o que só por cautela académica se admite:

25. Da Decisão Instrutória de Pronúncia: Descrição indiciária que o Recorrente considera incorretamente indicados: 1., 6., 7., 8., 9., 12., 13., 14., 15., 16. e 17. do Despacho de Pronuncia;

26.A decisão que aqui se impugna começa logo com um erro inadmissível e só possível, porque tal como consta da gravação da inquirição da testemunha Presidente da Câmara Municipal ..., BB, ao minuto 3.33h, Meritíssima Juiz limitou-se a olhar para as fotografias sentindo até desnecessidade em se deslocar ao local.

27. Se o tivesse feito teria logo afastado a sua primeira conclusão de que não percebemos bem de onde provém, pois, a Rua ... é paralela à Rua ... e o caminho de terra batida que as une, tem origem na Travessa ... não é apto, há mais de 30 anos para a circulação automóvel.

28. A conclusão obvia de que se não trata de um caminho de acesso ao trânsito é dada pelo próprio Sr. Presidente da Câmara, que quando questionado pelo Digno mandatário do Assistente sobre de quem seria a legitimidade para fazer o corte no referido caminho, responde que a "legitimidade seria da Junta de Freguesia uma vez que se trata de um «caminho vicinal 15»"15 Vide depoimento em Instrução ao minuto 1.05 a 1.12H (na parte de respostas ao mandatário do Assistente)

29. Sendo um caminho vicinal, está exclusivamente destinado aos peões. Não se diga que se trata de um caminho público necessário para a passagem entre freguesias pois, basta atentar nos mapas da autarquia referentes ao respetivo PDM para se aferir que entre uma freguesia e a outra existem caminhos alcatroadas e de passagem permitida, o que não é de todo o caso do caminho ....

30. A ligação do caminho ... não é entre a Rua ... à Rua ... mas sim à Travessa ... e não é um caminho público destinado ao trânsito mas sim um caminho pedonal. Um mato, como bem disse o guarda CC quando inquirido.

31. Mal andou a decisão instrutória logo no artigo primeiro na descrição do local do acidente.

32. E consequentemente em toda a extensa análise do Código da estrada que a fundamenta e que não é aqui aplicável!

33. Resulta dos autos que é falso que a corrente quando foi colocada não tenha sido devidamente sinalizada e não se diga que é porque não foi requisitada à Câmara Municipal a aquisição de sinais de trânsito ou porque não foi reportada às autoridades policiais o furto da sinalização que a mesma não foi colocada.

34. Na foto 31 de folhas 204 logra-se perceber a existência de um cabo a meio da vedação donde resulta que já havia lá estado pendurado algo (naturalmente um sinal).

35. O arguido, enquanto testemunha, referiu o furto consecutivo de sinais mas nessa parte as suas declarações não foram tidas em conta, mas já na parte em que se autoincriminou dizendo de forma honesta e direta, que foi ele quem juntamente com dois funcionários da Junta se deslocou ao local para colocar a vedação, já serviram para o Tribunal.

36. E fê-lo por uma questão de saúde pública! Foi colocado sinal!

37. Note-se porque relevante do Despacho de Pronuncia resulta que o acidente ocorreu na hora da "ocorrência de crepúsculo".

38. Não era noite cerrada!

39. O que é contraditório com o que se diz em 9. "sendo o local especialmente escuro por não beneficiar de luz artificial, do que o arguido tinha conhecimento"

40. O arguido tinha conhecimento e pelo que resulta da Pronúncia a vítima também tinha, pois, conhecia "perfeitamente" o local!

41. A velocidade a que circulava não foi apurada, mas diz a pronúncia que se a sinalização lá estivesse teria "podido reduzir a velocidade e parar, evitando o embate ou, pelo menos, minimizando o impacto na corrente, e assim evitar a sua morte."

42. O arguido foi ouvido como testemunha! E não imaginava que os factos em investigação poderiam ser "virados" contra ele. Foi de peito aberto prestar declarações ao OPC, não se muniu previamente de documentos, não se fez acompanhar de advogado, em nenhum momento lhe passou pela cabeça que lhe iriam ser imputadas responsabilidades pelo acidente.

43. O relatório do NICAV mereceu a credibilidade do Tribunal e ao atentarmos na foto recolhida na manhã seguinte ao acidente de fls. 204 dos autos percebe-se que ao contrário do decidido ("Na verdade, não há nos autos evidência de ter alguma vez sido colocada sinalização na corrente metálica em questão."), a referida fotografia mostra um "gancho" em que é visível que algo existiu ali no centro da corrente.

44. Estamos a falar de um caminho vicinal como diz o Presidente da Câmara... Estamos a falar de "um mato" como diz o agente... Estamos a falar de "uma floresta" como diz o assistente...

45. Lamenta-se que sendo a interpretação do Tribunal no sentido de decidir que se tratava de uma via de circulação rodoviária não tenha cuidado de efetuar um Auto de Reconhecimento do Local ou, pelo menos, uma mera visita ao local.

46. Tanto mais que, desde que assumiu a qualidade de arguido, nunca foi instado para ser interrogado ou questionado sobre a sua vontade de prestar qualquer tipo de esclarecimento!

47. A falta de consciência do ilícito integra uma das questões de maior relevância nos presentes autos e consubstancia, na ótica do Recorrente, uma das problemáticas cujo tratamento jurídico oferecido pela JIC é merecedor de incontornáveis críticas, que aqui se clamam a V. Ex.as Senhores Desembargadores.

48. Impunha que o Tribunal tivesse dado como insuficientemente indiciada toda a factualidade constante do Requerimento de Abertura de Instrução, cuja alteração, com todos os efeitos legais, se reclama de V. Exas!

49. O artigo 283°, n.ºs 2, do citado diploma, formata normativamente o conceito de indícios suficientes: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

50. Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução], os quais, livremente analisados e apreciados,
criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.


51. Tendo presentes estes ensinamentos, lido o Despacho de Arquivamento e analisada toda a matéria probatória resultante do inquérito, verifica-se que inexistem indícios suficientes de que o arguido praticou os factos da forma como estão descritos, impondo-se a sua não pronúncia.

52Atua com negligência quem de forma flagrante e notória omite os cuidados mais elementares, mais básicos, que devem ser observados ou aquelas situações em que os agentes se comportam com elevado grau de imprudência revelando irreflexão e insensatez.

53. Ora, não foi esse manifestamente o caso dos autos. Devendo por isso substituir-se o Despacho de Pronúncia por outro que confirme o douto arquivamento do Ministério Público.

54. Concluindo, ao decidir como decidiu, que existiam indícios suficientes de o arguido praticou o crime em causa nestes autos, assim o pronunciando, a Decisão violou não só as referidas regras e princípios supra mencionados, como também o disposto nos artigos 137.2 1 e 15.2 1, ambos do Código Penal, e art. 127º, art.287º nº2 e 283º nº 3 al.s b) e c), 303º e 308º, todos do CPPenal.

Termos em que, e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve a decisão instrutória ser revogada e substituída por outra que, atendendo ao supra exposto, não pronuncie o arguido pela prática de qualquer crime.”

Também nesta sede, o arguido recorreu de despacho que indeferiu a Reclamação apresentada sobre nulidades, concluindo desta forma:

“1. Vem o presente recurso do despacho proferido em 27 de janeiro do presente ano, que decidiu pela não admissão da arguição de nulidade do arguido por considerar que a mesma é extemporânea, alegando-se que o termo do prazo ocorreu no dia 09 de Novembro de 2022. (contando os três dias de multa a que se refere o n.º 5 do art. 145, do CPC e 107.º A do CPP)
2. Salvo o devido respeito, não pode o recorrente conformar-se com o teor do despacho supra mencionado.
3. Compulsados os autos, verifica-se o arguido só velo a ter acesso ao texto da decisão proferida no dia 2 de novembro de 2022, em consequência, e tendo em consideração que os presentes autos respeitam a instrução ao abrigo do preceituado no art. 309º do CPP teria oito dias para arguir a nulidade.

4. Diz a Lei: "no prazo de oito dias contados da notificação da decisão."

5. Ou seja, a mera leitura de uma decisão totalmente nova não pode considerar-se notificação, sem a disponibilização do texto decisório.

6. Até se admite que se possa considerar a notificação na leitura da decisão quando esta pronúncia nos exatos termos da acusação e do requerimento de abertura de instrução.

7. É, salvo o devido respeito, inadmissível considerar que o arguido está notificado pela leitura de uma decisão, sem acesso ao conteúdo do respetivo texto decisório, quando o mesmo passa a estar pronunciado por factos, e em moldes, aos quais teve acesso durante 35 minutos antes da prolação da decisão.

8. A Plataforma Citius em processos-crime não está acessível a mandatários.

9. Ainda que a decisão tenha sido assinada e depositada na Plataforma Citius no dia 27 de outubro, o arguido só teve acesso à plenitude da mesma, e por isso dela se pode considerar notificado na data em que o texto decisório é disponibilizado ao mandatário do arguido, ou seja no dia 02 de novembro de 2022, data do envio do email.

10. A arguição de nulidade da decisão instrutória, ao abrigo do previsto no art. 309º do CPP, enviada via email dia 11 de novembro acompanhada do pagamento da respetiva multa de 1.º dia útil após o termo do prazo tem necessariamente que se considerar em prazo.

11. O Despacho de indeferimento por extemporaneidade viola o direito de defesa do arguido e viola o preceituado no art. 32.º da CRP.

12. Pois nenhuma dúvida existe que o direito de defesa do arguido, nomeadamente o seu direito ao recurso, só pode ser devidamente praticado com o acesso ao teor do texto decisório e por isso, e bem, só se inicia a contagem do prazo com o depósito.

13. Depósito este que confere ao arguido o acesso ao texto da decisão.

14. Considerar que o prazo se inicia só porque o texto da decisão instrutória está depositado em plataforma em relação à qual o arguido, naturalmente por intermédio do seu mandatário, não tem acesso, é violar de forma flagrante o seu direito ao recurso e in casu à arguição da nulidade que é patente na decisão de que se reclama.

15. No que à condenação em custas concerne, diga-se ademais, que as pretensões do recorrente encontram claro suporte na lei, pelo que não existe qualquer fundamento válido que sustente tal condenação, que vai além dos limites do razoável.

Termos em que e nos melhores de Direito que V. Exas, doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder, porque legítima e tempestivamente apresentado, revogando-se em conformidade o Despacho proferido em 27-01-2023, e substituindo-o por outro que determine a admissão do requerido e reconheça as nulidades invocadas pelo arguido, pelo que farão V. Ex. s inteira Justiça.”

O assistente respondeu concluindo pela improcedência dos recursos.

O M.P. a quo respondeu ao recurso principal sobre a pronúncia do arguido concluindo:
III. CONCLUSÕES:
1. Não se encontra vedado ao Juiz de Instrução, por observância do princípio acusatório, o rearranjo, numa estrutura sistemática mais perfeita, dos factos desgarrados, sistematicamente desprimorosos e desarmoniosos, contidos no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, ainda que decorrente de uma alteração não substancial dos factos. Apenas, que se afaste da vinculação temática oferecida pelo REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, se no caso deduzido pelo Assistente em reacção ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, ou que reconduza a conduta naturalística nele descrita e num desvio das balizas ontológicas por ele fornecidas.
2. No caso dos autos, esse rearranjo era até imposto, visto que ocorreu parcial rejeição do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, e a alteração não substancial dos factos foi oportunamente comunicada, sem violação desse dever de vinculação do Tribunal ao acervo factual contido no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO. Mas o defeito originário que levou à rejeição parcial do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO não se verificou no caso do ora Recorrente, encontrando-se suficientemente descritos no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime por que foi pronunciado.
3. Comunicada ainda essa alteração nos termos do disposto pelo art. 303.º, n.º 3 e 5 do Código de Proc. Penal, a qual passou também pela precisão da norma penal convocada, e sempre sem beliscar a conduta naturalística que lhe foi imputada no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, conforme deflui da acta do dia 27/10/2022 nada foi requerido, incluindo a prestação de declarações pelo arguido. Não incumbe ao Tribunal impor ao arguido que preste declarações, como não o poderia fazer, nem impor qualquer estratégia defensiva.
4. Se o Recorrente é pelo menos assertivo no enquadramento jurídico-processual abstracto, já não foi capaz de demonstrar em concreto como ocorreu a violação do princípio do acusatório, nem sequer que teria ocorrido uma alteração substancial dos factos, bastando-se a mencionar genericamente como o despacho de pronúncia inovou, ancorado nessa sua promoção da decisão de pronúncia como um mero e literal decalque do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.
*
Termos em que, procedendo parcialmente o recurso em apreço, nos termos defendidos, V. Exas. farão a já costumada JUSTIÇA.”
O M.P. a quo respondeu à alegada nulidade por indeferimento da reclamação apresentada, concluindo:

1. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 307.º, n.º 1, e 309.º, n.º 2, do Código de Proc. Penal, tinha o Recorrente o prazo de 8 dias desde o dia 27/10/2022 (data em que foi lida a decisão instrutória) para arguir, entendendo, a nulidade da decisão instrutória por alteração substancial dos factos.
2. A alteração que o Recorrente entende constituir uma alteração substancial – embora, sem razão como se tentou evidenciar na resposta ao recurso interposto da decisão instrutória -, foi dada a conhecer ao arguido a 27/10/2022, tendo prescindido do prazo de vista e da apresentação de quaisquer requerimentos.
3. Do que se pode concluir, estava o arguido habilitado, nesse mesmo dia 27/10/2022, ou nos 8 subsequentes, a arguir a nulidade que só depois veio a arguir com a junção de substabelecimento a favor do Ilustre Mandatário que subscreveu a peça. Mas a violação desse prazo só a ele poderá ser imputada, pelo que o despacho recorrido não nos merece qualquer censura.
4. A interpretação que quer fazer vingar o arguido, apelando à lei fundamental, esvaziaria de conteúdo útil, sem justificação suficiente – relevando uma posição diferente na sequência da “alteração” de mandatário, desnecessitada de interpretação conforme - o prazo legalmente previsto pelo art. 309.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal.
*
Termos em que, improcedendo na íntegra o recurso em apreço, V. Exas. farão a já costumada JUSTIÇA. “

Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal recorrido e recorrente responderam.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
Admissibilidade de reclamação.
Erro do julgamento indiciário da matéria fáctica por deficiente apreciação e valoração das provas.
Do enquadramento dos factos.
1. Decisão instrutória.

ATA DE LEITURA DA DECISÃO INSTRUTÓRIA
Data: 27-10-2022 pelas 11h30m (sala 4)
Juíza de Instrução Criminal: Dr.ª Ana Cláudia Nogueira
Procurador da República: Dr.ª Celso Alexandre Sousa e Rocha
Escrivã Auxiliar: Andreia F Silva
Sendo a hora marcada, publicamente e de viva voz, identifiquei os presentes autos de Instrução e de imediato procedi à chamada de todas as pessoas que nele devem intervir, após o que comuniquei verbalmente à Mm.ª Juíza de Instrução Criminal o rol dos presentes e dos faltosos, a saber:
PRESENTES:
- o assistente DD e o seu ilustre Mandatário, Dr. EE;
- o arguido AA e o seu ilustre Mandatário, Dr. FF.
*
Quando eram 11 horas e 30 minutos, pela Mm.ª Juíza foi determinado fosse fornecida uma cópia a cada um dos mandatários intervenientes e ao Sr. Procurador da República, do texto que segue, iniciando entretanto primeiro interrogatório judicial de arguido detido no processo 700/22.4GBVFR.
Comunicação dos seguintes factos e qualificação jurídico-penal, para efeitos do disposto no art. 303º/1 e 5 do Código de Processo Penal:
1. No dia 19 de julho de 2019, pelas 21h10, na Rua ..., em ..., ..., mais concretamente na ligação entre aquela Rua e a Rua ..., provindo do caminho público com o número ..., circulava GG, conduzindo o quadriciclo de matrícula ..-AV-...
2. O estado do tempo era bom, o piso encontrava-se seco e a visibilidade era condicionada pelo cair da noite e a ocorrência de crepúsculo.
3. O local tinha uma inclinação ascendente atento o sentido de marcha de GG (2%) e não beneficiava de iluminação pública.
4. GG estava habilitado para a condução daquele tipo de veículos, e tinha vários anos de experiência nessa condução; circulava com capacete e com a luz dianteira do quadriciclo ligada.
5. GG conhecia o local, fazendo regularmente o mesmo percurso, mais concretamente às sextas-feiras, quando se deslocava do ginásio para casa.
6. Porém, no dia 19 de julho de 2019, sem que nada o fizesse prever, a estrada encontrava-se vedada, concretamente, com uma rede malhasol que, na zona de circulação da via, era interrompida passando a vedação a ser efectuada por meio de uma corrente metálica presa nas suas extremidades àquela rede malhasol, corrente essa colocada a uma altura de 1,40m do solo.
7. Essas vedação e corrente foram colocadas no local pelo arguido, AA, à altura Presidente da União de Freguesias ... e ..., em data não exactamente apurada, mas entre 26 de Março de 2019 e o dia 16 de Julho de 2019, fornecendo a chave do cadeado que permitia abri-la, aos funcionários da empresa A... para que acedessem ao terreno onde efectuavam deposição de terras.
8. Fê-lo sem que tivesse tido o cuidado de publicitar e sinalizar a existência da corrente a impedir a circulação naquela via, conforme estava obrigado nos termos previstos nos arts. 5º/2, 8º e 9º, do Código da Estrada.
9. Inexistindo sinalização, quer da corrente, quer da aproximação a esta, sendo o local especialmente escuro por não beneficiar de luz artificial, do que o arguido tinha conhecimento, GG veio a embater com a face na referida corrente, na sua extremidade mais à direita atento o seu sentido de marcha, vindo a ser projectado para a rectaguarda, caindo de costas e embatendo com o capacete, parte de trás, no solo, derivando o quadriciclo por ele tripulado, após isso, para a direita até colidir com um talude, aí se imobilizando.
10. Nessa sequência, GG ainda se levantou, caminhando alguns metros no sentido ascendente em que seguia, após o que caiu no solo em posição de decúbito ventral.
11. Como consequência directa e necessária do referido embate, GG sofreu lesões traumáticas meningiais e da face, associadas com asfixia por aspiração de sangue, que vieram a determinar a sua morte.
12. Se a suspensão da circulação naquela via tivesse sido publicitada e a referida corrente estivesse sinalizada, GG teria podido tomar conhecimento da primeira e visualizar a segunda, e nessa conformidade, teria podido reduzir a velocidade e parar, evitando o embate ou, pelo menos, minimizando o impacto na corrente, e assim evitar a sua morte.
13. A Rua ... faz a ligação à Rua ... através do caminho público ..., podendo ali circular veículos provindos dessa Rua ..., passando pela Rua ..., onde ocorreu o acidente, sendo que no percurso efectuado por GG desde a entrada naquele caminho público a partir da Travessa ... não era visível qualquer sinalização.
14. O arguido tendo disso conhecimento, colocou a referida vedação sem a publicitar nem sinalizar por forma a ser conhecida e visível para todos os condutores que utilizassem essa via.
15. O arguido colocou no local a referida vedação para impedir que o terreno contíguo ao campo de futebol do ..., lado norte, onde eram depositadas as terras sobrantes de obras da rede de saneamento a ser executada pela empresa “A..., S.A.”, fosse utilizado por desconhecidos para depositar lixo, sem atentar no perigo que desse modo criava para a circulação rodoviária no local.
16. Ao não publicitar a suspensão da circulação naquela via e ao não colocar a devida sinalização na vedação que instalou na Rua ..., que impedia a circulação na mesma, o arguido agiu voluntária e conscientemente, não actuando com a diligência e cuidado que lhe competiam e lhe era exigível para evitar acidentes como o descrito, como deveria saber, atendendo além do mais a que exercia as funções de Presidente da União de Freguesias ... e ....
17. O arguido sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Incorreu o arguido na prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto no art. 15º/b) e 137º/1, do Código Penal.
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Pelas 12:05h, findo entretanto o interrogatório judicial realizado no processo 700/22.4GBVFR pela Mm.ª Juíza, e concluída a análise da comunicação escrita entregue aos sujeitos processuais, foi pela Mm.ª Juíza declarado reaberto o debate instrutório e dada a palavra ao Digno Procurador da República e aos ilustres Mandatários para que requeressem o que tivessem por pertinente ante tal comunicação, tendo por todos sido declarado nada terem a requer, prescindindo do prazo de vista.
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Assim, a Mm.ª Juíza proferiu a seguinte:
DECISÃO
Declaro encerrada a instrução.
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I - Relatório

O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento quanto aos factos denunciados contra, entre outros, o arguido AA que consubstanciariam a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137º/1 do Código Penal.
Nessa sequência veio o assistente DD, imputando-lhe a prática dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução de fls. 335 e sgs., e consequentemente, em autoria material, na forma consumada, um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137º/1 do Código Penal.
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Declarada aberta a instrução, designou-se data para inquirição das testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução.
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Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efetuou-se o debate instrutório, o qual decorreu na presença do arguido e do assistente, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respetiva ata, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal.
Previamente à leitura da decisão instrutória, efectuou-se comunicação à defesa de alteração não substancial de factos em relação aos que vinham descritos no requerimento de abertura de instrução, bem como comunicação relativa à qualificação jurídica dos factos.
Cumpre agora, nos termos do art. 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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II - Saneamento

O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, outras exceções, questões prévias ou incidentais que obstem a uma decisão de mérito.
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III - Fundamentação

A) Critérios legais da decisão

A instrução visa, segundo o que nos diz o art. 286º/1 do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Configura-se, assim, como fase processual facultativa destinada a questionar a decisão com a qual o Ministério Público, titular da ação penal, encerra o inquérito, seja de arquivamento, seja de acusação – nº 2 do citado art. 286º.
Compreende-se, pois, na instrução toda a atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito, visando tendencialmente um apuramento mais aprofundado dos factos, bem como da sua imputação ao agente, e a definição do respetivo enquadramento jurídico-penal.
Pelo que, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do art. 308º/1 do Código de Processo Penal, «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.».
Na base da não pronúncia do arguido poderão estar a insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de prova bastante dos factos alegados, a eventual não punibilidade desses factos ou a verificação de causa de isenção de responsabilidade penal, mas também motivos de ordem processual, como sejam a inadmissibilidade legal do procedimento ou qualquer vício formal que inquine o processo, pondo em causa o seu prosseguimento para a fase de julgamento, tout court, ou nos termos em que na acusação estava fixado o respetivo objeto.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, deverá o mesmo fundar-se na suficiência dos indícios de suporte à narração factual constante da acusação ou do requerimento de abertura de instrução, em caso de arquivamento do inquérito, sendo como tal considerados todas as causas ou consequências, imateriais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente, que sejam captadas durante a investigação.
«Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.» (negrito nosso) – art. 283º/2 do Código de Processo Penal ex vi do nº 2, do art. 308º.
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a verificação de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória e apreciação da mesma não constitui pressuposto da decisão de mérito final, tratando-se, pois, de decisão processual que visa apenas determinar, ou não, o prosseguimento do processo para a fase subsequente, do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um ato em si mesmo neutro, acarretando sempre, ainda que a decisão final seja de absolvição, além de incómodos e gastos vários, consequências a nível pessoal e social (veja-se, por exemplo, a limitação decorrente da aplicação de medidas de coação), entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando se puder concluir pela possibilidade razoável de condenação.
Em consonância, não sendo necessária a prova cabal da infração penal para fundar uma decisão de pronúncia, importa que da lógica conjugação e relacionação de todos os indícios recolhidos no processo, se possa ajuizar da probabilidade da ocorrência dos factos que a integram e sua imputação, objetiva e subjetiva, ao agente acusado, bem assim como da sua punibilidade.
Esse o sentido da expressão legal “possibilidade razoável” de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, reportada à suficiência dos indícios; os indícios serão, pois, suficientes, quando haja uma maior probabilidade de futura condenação do arguido do que de absolvição.
Neste sentido se pronunciou o Professor Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, págs. 38 e 39, propugnando que na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final», apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação, acrescentando nós, ou para a pronúncia.
Fixadas as diretrizes que de acordo com a lei nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido requerido dos factos que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam as imputações jurídico-criminais efetuadas nesse articulado.

B) Do requerimento de abertura de instrução

a. Da suficiência dos indícios

Finda a instrução, tendo em conta o objecto do requerimento de abertura de instrução, julgamos suficientemente indiciados os seguintes factos:
1. No dia 19 de julho de 2019, pelas 21h10, na Rua ..., em ..., ..., mais concretamente na ligação entre aquela Rua e a Rua ..., provindo do caminho público com o número ..., circulava GG, conduzindo o quadriciclo de matrícula ..-AV-...
2. O estado do tempo era bom, o piso encontrava-se seco e a visibilidade era condicionada pelo cair da noite e a ocorrência de crepúsculo.
3. O local tinha uma inclinação ascendente atento o sentido de marcha de GG (2%) e não beneficiava de iluminação pública.
4. GG estava habilitado para a condução daquele tipo de veículos, e tinha vários anos de experiência nessa condução; circulava com capacete e com a luz dianteira do quadriciclo ligada.
5. GG conhecia o local, fazendo regularmente o mesmo percurso, mais concretamente às sextas-feiras, quando se deslocava do ginásio para casa.
6. Porém, no dia 19 de julho de 2019, sem que nada o fizesse prever, a estrada encontrava-se vedada, concretamente, com uma rede malhasol que, na zona de circulação da via, era interrompida passando a vedação a ser efectuada por meio de uma corrente metálica presa nas suas extremidades àquela rede malhasol, corrente essa colocada a uma altura de 1,40m do solo.
7. Essas vedação e corrente foram colocadas no local pelo arguido, AA, à altura Presidente da União de Freguesias ... e ..., em data não exactamente apurada, mas entre 26 de Março de 2019 e o dia 16 de Julho de 2019, fornecendo a chave do cadeado que permitia abri-la, aos funcionários da empresa A... para que acedessem ao terreno onde efectuavam deposição de terras.
8. Fê-lo sem que tivesse tido o cuidado de publicitar e sinalizar a existência da corrente a impedir a circulação naquela via, conforme estava obrigado nos termos previstos nos arts. 5º/2, 8º e 9º, do Código da Estrada.
9. Inexistindo sinalização, quer da corrente, quer da aproximação a esta, sendo o local especialmente escuro por não beneficiar de luz artificial, do que o arguido tinha conhecimento, GG veio a embater com a face na referida corrente, na sua extremidade mais à direita atento o seu sentido de marcha, vindo a ser projectado para a rectaguarda, caindo de costas e embatendo com o capacete, parte de trás, no solo, derivando o quadriciclo por ele tripulado, após isso, para a direita até colidir com um talude, aí se imobilizando.
10. Nessa sequência, GG ainda se levantou, caminhando alguns metros no sentido ascendente em que seguia, após o que caiu no solo em posição de decúbito ventral.
11. Como consequência directa e necessária do referido embate, GG sofreu lesões traumáticas meningiais e da face, associadas com asfixia por aspiração de sangue, que vieram a determinar a sua morte.
12. Se a suspensão da circulação naquela via tivesse sido publicitada e a referida corrente estivesse sinalizada, GG teria podido tomar conhecimento da primeira e visualizar a segunda, e nessa conformidade, teria podido reduzir a velocidade e parar, evitando o embate ou, pelo menos, minimizando o impacto na corrente, e assim evitar a sua morte.
13. A Rua ... faz a ligação à Rua ... através do caminho público ..., podendo ali circular veículos provindos dessa Rua ..., passando pela Rua ..., onde ocorreu o acidente, sendo que no percurso efectuado por GG desde a entrada naquele caminho público a partir da Travessa ... não era visível qualquer sinalização.
14. O arguido tendo disso conhecimento, colocou a referida vedação sem a publicitar nem sinalizar por forma a ser conhecida e visível para todos os condutores que utilizassem essa via.
15. O arguido colocou no local a referida vedação para impedir que o terreno contíguo ao campo de futebol do ..., lado norte, onde eram depositadas as terras sobrantes de obras da rede de saneamento a ser executada pela empresa “A..., S.A.”, fosse utilizado por desconhecidos para depositar lixo, sem atentar no perigo que desse modo criava para a circulação rodoviária no local.
16. Ao não publicitar a suspensão da circulação naquela via e ao não colocar a devida sinalização na vedação que instalou na Rua ..., que impedia a circulação na mesma, o arguido agiu voluntária e conscientemente, não actuando com a diligência e cuidado que lhe competiam e lhe era exigível para evitar acidentes como o descrito, como deveria saber, atendendo além do mais a que exercia as funções de Presidente da União de Freguesias ... e ....
17.O arguido sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
*
b. Da Motivação

O Ministério Público arquivou o inquérito, após enunciação dos elementos de prova, seguida de considerações teóricas de direito, com a seguinte fundamentação:
«(…)
Compulsada toda a prova recolhida conclui-se que o acidente teve a sua possível causa na ausência, à data, de sinalização na corrente ou na aproximação desta, em virtude do alegado furto da referida sinalização.
No entanto, não podemos deixar de questionar se, caso tivesse colocada no local a referida sinalização se o acidente não se produzia, visto que o condutor GG seguia em sentido contrário ao da sinalização, de noite, no meio da vegetação, sem a existência de luz artificial. Crermos que, ao aproximar-se da corrente, o condutor apenas veria uma placa, visto que a sinalização estaria virada para a frente e, uma vez que se desconhece a velocidade a que seguia o condutor, questiona-se se este teria tempo de travar perante tal obstáculo.
Acresce que, como acima se referiu, de acordo com as regras da experiência e no âmbito da circulação rodoviária, impõe-se ao condutor tomar especiais cautelas e um acrescido dever de cuidado no cumprimento das regras estradais na realização de manobras. A medida do cuidado exigível coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico.».
Pois bem.
Se somos concordantes quanto à causa do acidente, não podemos já de modo algum subscrever as dúvidas e o demais argumentado pela Sra. Procuradora do Ministério Público, anotando-se que tal argumentação aparece até desgarrada da prova produzida no inquérito.
Vejamos porquê.
Quanto às circunstâncias do acidente e sua causa – a corrente metálica que vedava a circulação na estrada por onde circulava GG sem estar sinalizada -, cremos não se colocarem grandes dúvidas, como efectivamente não se colocaram ao Ministério Público no despacho final de encerramento do inquérito.
É assaz elucidativo o relatório do Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação, da GNR – NICAV – que, após inspecção do local no próprio dia do acidente, estabeleceu pontos de referência, designadamente o ponto de conflito, situando-o em plena via pública, numa corrente não sinalizada; aí também se concluiu serem as lesões apresentadas por GG resultantes de embate com a face nessa corrente junto da extremidade mais à direita, onde tinha uma altura de 1,40m – cfr. fls. 173 e sgs..
Desse embate resultariam as lesões traumáticas meningiais e da face, associadas a asfixia por aspiração de sangue, que levariam à morte de GG, conforme relatório de autópsia médico-legal, a fls. 33 e sgs..
Ainda naquele referido relatório do NICAV concluiu-se que: «(…) a ausência de sinalização na corrente ou na aproximação desta, contribuiu, decisivamente, para a materialização do acidente», constituindo-se como «causa principal ou eficiente que esteve na origem do acidente».
Note-se que para apuramento desta causa contribuiu o facto de o militar da GNR responsável por tomar conta da ocorrência, CC (fls. 131 e sg.), quando ali se encontrava a aguardar os meios de socorro, ter-se apercebido da aproximação de um veículo automóvel vindo do caminho percorrido por GG (que desconhecia ter saída), ouvindo, já muito próximo da posição em que se encontrava, um grande estrondo, como se tivessem rebentado os pneus do veículo; o referido veículo era conduzido pelo pai de GG, DD, e o estrondo fora originado pelo embate do mesmo na referida corrente.
Em sede de instrução, reinquirido este militar, confirmaria esta sua versão – “Eu só dei conta quando o pai chegou …” -, esclarecendo que “se [a corrente no meio da via] estivesse sinalizada, nós de cá de cima teríamos visto”, sendo que era noite, estava escuro e não havia ali luz artificial; mas disse mais: “Se estivesse lá colocado o sinal tê-lo-ia visto”, explicando que tinha o carro da patrulha com os faróis ligados voltados para o caminho por onde a vítima teria passado na direcção do local onde se encontrava nesse momento.
O instrutor do relatório do NICAV que na noite do acidente se deslocou ao local, confirma no seu relatório, apoiado em fotografias tiradas nessa ocasião, que não existia na corrente qualquer sinalização, tão pouco no percurso efectuado até aí por GG era visível qualquer sinalização – cfr. reportagem fotográfica de fls. 190 a 193.
Já em inquérito, DD (fls. 116 e sgs.), pai da vítima mortal, foi contundente em afirmar que só se apercebeu do cadeado quando estava a chegar junto do mesmo, agarrando-se então ao volante e sentindo um estrondo; referiu ainda conhecer aquele caminho como público há 43 anos, ali passando com frequência, a pé, de jipe e de moto, a última vez aproximadamente um mês antes, nunca lá tendo visto uma corrente.
Inquirida a este propósito, nesta sede, a testemunha HH, que prestou à vítima os primeiros socorros no local, e que, desde finais de 2005 mora na Urbanização ..., ali próxima, sendo conhecedor da rua que dá acesso ao campo de futebol, diria não saber da vedação, por não costumar passar naquele local (“é um bocado isolado”).
Confirmou, com relevo, tal como a testemunha CC, que a Moto 4 conduzida pela vítima tinha a luz dianteira ligada; assim, referindo-se à testemunha II, quem primeiramente se deparou com o acidente e foi pedir a sua ajuda: “Ela viu uma luz virada para ela e viu um vulto no chão e assustou-se”.
Em suma: são muito fortes os indícios de que não existia qualquer sinalização da corrente metálica a vedar a passagem naquela via, tão pouco no percurso realizado por GG havia qualquer sinalização que o alertasse para tal.
Assim, a questão que verdadeiramente se coloca é a de saber se o arguido AA, responsável pela colocação daquela vedação e corrente metálica que impediam a circulação na via, como de resto assumiu ouvido na qualidade de testemunha – cfr. fls. 167 e sgs. –, ali colocou também, nessa ocasião, sinalização adequada e adoptou as providências necessárias à divulgação daquele corte de estrada, como lhe era imposto pelo Código da Estrada; apurando-se que não o fez, como podia e devia, e que desse modo deu causa ao acidente, estão verificados os elementos objectivos da negligência.
Ora, é aqui que o Ministério Público coloca dúvidas que, para nós, e com todo o devido respeito, não são compreensíveis.
Em primeiro lugar, dando crédito ao declarado pelo agora arguido, AA, ainda em sede de depoimento testemunhal, pressupõe o Ministério Público que este colocou ali um sinal na corrente e que o mesmo não estaria ali colocado por ter sido furtado.
Ora, o Posto Territorial ..., competente territorialmente, solicitado pelo Ministério Público a este propósito informou os autos que "não há qualquer registo de qualquer ocorrência na Rua ... - ...” - cfr. fls. 290 a 304.
Nenhuma outra diligência tendente a averiguar da verosimilhança daquela afirmação seria realizada; não foi a ... instada a juntar, por exemplo, comprovativos da aquisição desses sinais de trânsito que AA diz terem sido colocados e furtados, tão pouco de uma sua requisição aos Serviços Camarários, conforme será também comum, segundo o depoimento prestado nesta sede por BB, Presidente da Câmara Municipal ....
Segundo esta testemunha, as Juntas de Freguesia podem comprar os sinais a empresas da especialidade; mas a Câmara Municipal ... também fornece as Juntas de Freguesia com este tipo de sinais, a sua solicitação; esses fornecimentos ficam documentados com uma guia de transporte, para justificar a saída do armazém.
Note-se que consta dos autos uma fotografia do local datada de 16/07/2019, retratando o local do acidente tal como se encontrava três dias antes da sua ocorrência, da autoria dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal ..., na qual é visível a inexistência de qualquer sinal na corrente metálica aí colocada de um lado ao outro da via – cfr. fls. 267.
Por outro lado, como referido, segundo a testemunha DD, pai da vítima, cerca de um mês antes não existia ali sequer essa corrente.
Na verdade, não há nos autos evidência de ter alguma vez sido colocada sinalização na corrente metálica em questão.
Além disso, não foi possível situar temporalmente com rigor a colocação da corrente metálica.
Sabe-se apenas que a acta nº 84 , da Reunião do Executivo da União de Freguesias ... e ... datada de 26/03/2019, foi aprovada a colocação de uma “vedação sinalizada, evitando a colocação de mais lixo”, sendo o respectivo ponto da ordem de trabalhos designado de “fecho da lixeira”.
Admitindo que se trata da vedação aqui em causa, pese embora solicitações várias à Câmara Municipal e à União de Freguesias, não foi junto qualquer documento relativo à efectiva colocação da dita vedação e bem assim da corrente metálica.
Existem outrossim comunicações internas dos Serviços do Núcleo Ambiental da Câmara Municipal ... que, em 23/04/2019, dão nota da solicitação à Junta de Freguesia da colocação da vedação – cfr. fls. 263 -, tudo indicando que por esta altura não haveria ainda vedação, estando União de Freguesias e Câmara Municipal a determinar qual das duas entidades procederia à mesma.
Em 21/06/2019, o aqui arguido remete um email a JJ da Câmara Municipal ..., com o assunto: “Lixeira junto ao campo de futebol”, no qual não alude a qualquer vedação, antes pressupondo que o problema continua por resolver – “Actualmente este local serve para todo o tipo de lixo sem que possamos controlar, pois já tivemos esta entrada bloqueada”, reclamando que seja a A... a tratar da limpeza – cfr. fls. 265.
No início de Julho de 2019 a Câmara Municipal desenvolvia diligências de remoção dos lixos ali depositados – cfr. fls. 270 e sgs., com especial relevo para o email de 10/07/2019, a fls. 271 verso.
Segundo AA a vedação teria sido colocada em meados de Março de 2019, antes mesmo da aprovação em sede de Executivo, situada no final de Março, em 26/03/2019 – fls. 168; junta, porém, a fls. 171, email por si remetido ao arquitecto KK, da Câmara Municipal ..., datado de 14/05/2019, no qual parece ser dado o problema ainda por resolver.
DD, pai da vítima afirma que o filho fazia aquele percurso semanalmente e ele próprio ali havia passado pela última vez cerca de um mês antes.
Neste quadro e na ausência de outros elementos, remanescem como pontos de referência tempoRequerimento de Abertura de Instruçãos seguros para este efeito a data da acta de aprovação da colocação da vedação e a já referida data de 16/07/2019, documentada na fotografia do local a fls. 267.
Isto, sem perder de vista que a dita corrente metálica constitui um elemento móvel, detendo a empresa “A..., S.A.” as chaves que permitiam a sua abertura para passagem da circulação decorrente nomeadamente da deposição de terras, o que, aparentemente, ocorria sem qualquer tipo de registo ou controlo, pelo que os seus funcionários tanto podiam deixar a corrente presa como solta.
O certo é que na noite dos factos a corrente estava colocada - segundo AA foi ali colocada por si próprio, juntamente com dois funcionários da Junta de Freguesia – cfr. fls. 218.
Certo é também que estaria ali colocada sem sinalização, sendo que, apesar da alegação de AA de que os sinais ali colocados eram furtados, não existe qualquer elemento nos autos que a corrobore.
Não podemos, assim, acompanhar a premissa adoptada pelo Ministério Público de que a ausência de sinalização se terá ficado a dever a furto.
Em segundo lugar, cremos que o Ministério Público labora em equívoco quando parte do pressuposto de que o arguido apenas tinha que sinalizar a corrente metálica do lado da circulação provinda de ..., para estar visível a quem se deslocasse da Rua ... para a Rua ..., mas não no sentido inverso, não lhe cabendo tomar qualquer outra diligência.
Expliquemos porquê.
Desde logo, segundo o disposto no art. 9º do Código da Estrada:
«1 - A suspensão ou condicionamento do trânsito só podem ser ordenados por motivos de segurança, de emergência grave ou de obras ou com o fim de prover à conservação dos pavimentos, instalações e obras de arte e podem respeitar apenas a parte da via ou a veículos de certa espécie, peso ou dimensões.
2 - A suspensão ou condicionamento de trânsito podem, ainda, ser ordenados sempre que exista motivo justificado e desde que fiquem devidamente asseguradas as comunicações entre os locais servidos pela via.
3 - Salvo casos de emergência grave ou de obras urgentes, o condicionamento ou suspensão do trânsito são publicitados com a antecedência fixada em regulamento.».
Não consta que a suspensão do trânsito pelo caminho público nº ... e Rua ... haja sido publicitada.
Acresce que, atendendo a que, na prática, se interrompeu a circulação nessas vias, colocando um obstáculo nas mesmas, cumpria proceder à sua sinalização conveniente, por forma a que fosse visível e inteligível por todos e quaisquer condutores ou peões que por ela circulassem, num ou noutro sentido de trânsito, visto que o obstáculo abrangia a totalidade da via, e não apenas a faixa da direita atento o sentido Rua .../Rua ...; neste caso, de suspensão da hemifaixa da direita, sim, justificar-se-ia o sinal voltado somente para quem proviesse da Rua ..., posto que quem circulasse no sentido contrário, o utilizado pela vítima GG, teria essa hemifaixa desobstruída.
Estatui a este propósito o art. 5º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Sinalização”, o seguinte:
«1 - Nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis, devem ser utilizados os respetivos sinais de trânsito.
2 - Os obstáculos eventuais devem ser sinalizados por aquele que lhes der causa, por forma bem visível e a uma distância que permita aos demais utentes da via tomar as precauções necessárias para evitar acidentes.
(…)».
Nos termos do disposto no art. 1º do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10:
«1 — Nos locais da via pública que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este esteja sujeito a precauções ou restrições especiais e sempre que se mostre aconselhável dar aos utentes quaisquer indicações úteis, são utilizados os sinais de trânsito constantes do presente Regulamento.
(…)
3 — Sobre os sinais de trânsito ou na sua proximidade não podem ser colocados quadros, painéis, cartazes ou outros objectos que possam confundir-se com os sinais de trânsito ou prejudicar a sua visibilidade ou reconhecimento, ou ainda perturbar a atenção do condutor.»
Prescreve o art. 13º/1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito que «Os sinais devem ser colocados de forma a garantir boas condições de legibilidade das mensagens neles contidas e a acautelar a normal circulação e segurança dos utentes das vias.».
Ainda, segundo o preceituado no art. 8º/1 do Código da Estrada:
«1 - A realização de obras nas vias públicas e a sua utilização para a realização de atividades de caráter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal ou colocar restrições ao trânsito dos peões nos passeios só é permitida desde que autorizada pelas entidades competentes, e com a correspondente aplicação local de sinalização temporária e identificação de obstáculos.
(…)».
Ora, a considerarmos que estamos perante um obstáculo na via a carecer de sinalização temporária, então teremos um conjunto de procedimentos necessários visando a segurança dos seus utilizadores, previstos no art. 83º e sgs. do Regulamento de Sinalização do Trânsito, que vão desde a sinalização de aproximação, passando pela pré-sinalização e acabando na sinalização final, sem olvidar a utilização de sinalização luminosa ou material reflector tendo em vista assegurar a visibilidade do obstáculo em período noturno.
De todo este quadro legal decorre que o legislador revela, como não poderia deixar de ser, um enorme cuidado com a visibilidade da sinalização e a compreensão pelos condutores da mensagem que transmite, especialmente quando se trata de obstáculos sobre a via.
Vistos os elementos nos autos, verificamos que, tendo sido suspensa a circulação na via pública aqui em causa, nenhum destes procedimentos terá sido cumprido, nomeadamente por quem a tal estava obrigado, o aqui arguido, por ter sido o autor da colocação dos obstáculos que passaram a impedir essa circulação.
E assim sendo, entendemos, ao contrário do Ministério Público, que a obrigação de sinalização não se restringia a um dos dois sentidos de trânsito da via, mas obviamente a ambos, visto que o obstáculo aí colocado abrangia-a na sua totalidade, suspendendo por completo a circulação pela mesma, devendo, por isso, ser também sinalizado para quem nela circulasse provindo da Rua ... para a Rua ....
Além disso, nenhum dos procedimentos legalmente previstos no Código da Estrada e no Regulamento da Sinalização do Trânsito tendentes a evitar precisamente o resultado ocorrido – um acidente, com embate de um veículo no obstáculo colocado sobre a via – foi no caso adoptado.
Em terceiro lugar, parece-nos especulativo e destituído de valor para efeitos de fundamentação indiciária a elocubração acerca do que veria o condutor da Moto 4 ao aproximar-se da corrente metálica caso ali estivesse uma placa em que fosse apenas visível a parte de trás da mesma.
A verdade é que o Ministério Público, podendo, não realizou ao longo destes quase 3 anos de investigação qualquer ensaio no local por forma a percepcionar o que era visível nesse caso e a que distância, mantendo-se no domínio puramente especulativo.
Além disso e no que toca à velocidade a que seguia o condutor da Moto 4, o relatório do NICAV é assertivo quando, com base nas marcas dos rodados no piso, conclui que a passagem do veículo na zona da corrente metálica “não terá sido realizada em grande aceleração”, sendo certo que estamos a falar de uma estrada em terra batida, em sentido ascendente, e de um veículo que não é conhecido por velocidades muito elevadas.
Quanto à possibilidade ou probabilidade que teria de avistar uma placa colocada no centro da corrente metálica, mesmo que correspondendo apenas à parte de trás de um sinal de trânsito, parece-nos evidente que seria necessariamente maior do que inexistindo lá colocado qualquer sinal; veja-se que o militar da GNR no local, com as luzes apontadas para a via (no sentido contrário ao da circulação do veículo sinistrado), não deu conta da existência no local da referida corrente metálica o que, dificilmente seria possível se ali estivesse colocada, ao centro, uma placa, mesmo que com a informação sinalética voltada para o outro lado.
Dizem-nos as regras da experiência que encontrar-se um elemento sólido com a dimensão de uma placa de trânsito, mesmo que voltada de costas, no meio de uma corrente metálica que veda a circulação, não é, nem pode ser o mesmo que nada lá se encontrar, sendo, pois, de admitir que pudesse ter sido vista pelo condutor da Moto 4 que trazia as luzes dianteiras ligadas e não circulava em grande aceleração, permitindo-lhe, senão travar a tempo de evitar o embate, pelo menos reduzir a velocidade por forma a minimizar o impacto.
E tal é tanto mais relevante quanto no domínio da negligência, como veremos infra, o comportamento há-de considerar-se objectivamente negligente sempre que o cumprimento do dever de cuidado tivesse o efeito de aumentar as probabilidades de evitar uma determinada lesão, não tendo obviamente que ter-se por certo que evitasse efectivamente essa lesão (como parece ter sido pressuposto no raciocínio expresso no despacho de arquivamento).
Ademais, questionar se o condutor teria tido tempo de parar ao ver essa sinalização por se desconhecer a velocidade a que seguia, para depois genericamente concluir que “impõe-se ao condutor tomar especiais cautelas e um acrescido dever de cuidado no cumprimento das regras estradais na realização de manobras. A medida do cuidado exigível coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico.”, parece-nos um verdadeiro contrassenso em si mesmo, mas também contrasta com a afirmação de partida do Ministério Público: “conclui-se que o acidente teve a sua possível causa na ausência, à data, de sinalização na corrente ou na aproximação desta.”.
Em boa verdade, não vemos nos autos um único indício que nos permita concluir ter a vítima mortal, GG, contribuído para a produção do resultado típico, a sua morte.
Segundo se averiguou com base nas marcas existentes no solo, GG não efectuou uma passagem no local em grande aceleração, podendo concluir-se que seguia a uma velocidade moderada e adequada às condições da via; era portador de habilitação legal para a condução daquele veículo, e seria já experiente nessa condução, assim como utilizador habitual daquele percurso estradal; circularia com a luz dianteira desse veículo ligada.
Além disso, no percurso que efectuou não encontrou qualquer sinalização indicativa dos obstáculos na via colocados pelo arguido.
GG teria, assim, todas as razões para confiar que a via se encontrava desimpedida e em condições de ser utilizada sem restricções.
De harmonia com o chamado princípio da confiança1 não seria exigível que GG previsse estar a circulação interrompida naquele local, com uma rede malhasol e uma corrente metálica em toda a sua extensão.
1 Veja-se a este propósito Figueiredo Dias, in ob. e loc. cit..
Em suma: não colhe a argumentação vertida no despacho de arquivamento, secundada pela defesa em sede de debate instrutório, tendendo à responsabilização exclusiva da vítima mortal do acidente objecto dos autos pela sua ocorrência quando nesse mesmo despacho se reconhece ser a falta de sinalização do obstáculo na via uma causa possível do acidente e todos os dados nos autos apontam para que tenha sido de facto essa a causa do acidente, como concluiu o NICAV; sendo que não há nos autos indícios que apontem para uma qualquer contribuição da vítima mortal para a produção do resultado típico.
Mais: dada a profusão de elementos de prova reunidos no inquérito, entendemos também que não se trata de um caso em que faltem as provas para esclarecer o que de facto terá ocorrido, como ficou, cremos, demonstrado na decisão supra.

c. Da imputação criminal

Ao arguido vem imputado no requerimento de abertura de instrução a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto no art. 137º/1 do Código Penal, nos termos do qual quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
A negligência, como forma de imputação subjectiva, encontra-se prevista no artigo 15º, do Código Penal, segundo o qual, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;
b) não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto.
Na primeira hipótese, estamos no domínio da negligência consciente, enquanto na segunda, está caracterizada a negligência inconsciente.
Esta distinção, porém, e pelo menos por agora, não nos interessa, importando sim, e de imediato, apurar em primeira linha se a conduta do arguido se enquadra no conceito de negligência, expresso no corpo do aludido artigo 15º.
Assim, e em linhas gerais, diremos que a negligência consubstancia a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, consiste na omissão ou no esquecimento de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime2.
2 Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, vol. III, pg. 150.
Para a negligência sobrevir é, pois, necessário que se esteja perante uma situação em que é objectivamente previsível o perigo para determinado bem jurídico de uma determinada acção ou omissão.
De facto, apenas a previsibilidade objectiva do perigo da acção ou da omissão, pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster, ou seja, é necessário que uma pessoa de capacidade média, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada acção ou omissão assim como a sua evitabilidade em concreto.
Mas tal não basta para existir negligência porquanto esta, ademais, pressupõe, como já vimos, a inobservância, o incumprimento do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.
Ou seja, a conduta negligente tem na sua essência a ausência (a omissão) do cuidado que, efectivamente, poderia impedir o evento que a própria norma pretende prevenir.
Existirá, pois, comportamento negligente, numa perspectiva objectiva, quando o cumprimento do dever de cuidado teria, com efeito, aumentado as probabilidades de evitar uma determinada lesão3.
3 Neste sentido, Fernanda Palma, Os Crimes Contra As Pessoas, pág. 100.
4 Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 70.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias4, é a capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado o mais autêntico elemento configurador da censurabilidade da negligência e, assim, do seu conteúdo de culpa e que se traduz no elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever-ser jurídico-penal.
E no que respeita a essa capacidade de cumprimento do dever salienta o referido mestre que há hoje uma grande unanimidade de pontos de vista (mesmo entre aqueles para quem a culpa é capacidade de motivação pela norma) em que não está aqui em causa o indescernível poder de agir de outra maneira na situação, e portanto uma tentativa de resposta à questão do concreto livre-arbítrio; mas também em que não será lícito ficar-se por uma resposta meramente objectiva, que fosse buscar para padrão a capacidade normal ou do homem médio. Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição5.
5 Ob. cit., pág. 71.
Das considerações expendidas, resulta que, em termos basilares, são duas as circunstâncias que enformam a negligência: a previsibilidade objectiva do perigo, por um lado, e a omissão do cuidado objectivamente adequado a evitá-lo, por outro.
Todavia, para o preenchimento do tipo objectivo de crime que versamos nos presentes autos, e como já anteriormente se referenciou, é ainda indispensável a verificação de um outro elemento: a imputação objectiva do resultado típico à acção violadora do dever objectivo de cuidado.
Significa isto que a omissão do dever de cuidado tem de ser a causa directa e imediata do evento que se pretendia evitar com a imposição do mencionado dever de conduta.
É, por conseguinte, imperioso que o resultado típico, isto é, o evento, seja objectivamente imputável, não só ao agente, como também à sua própria acção violadora do dever objectivo de cuidado, ou seja, à acção negligente deste.
E para existir a imputação objectiva é fundamental, desde logo, que se possa afirmar, com razoável probabilidade, que o resultado ocorrido teria sido evitado, contanto que o agente tivesse procedido com o cuidado objectivamente exigível, e ainda, além disso, que o cuidado omitido visava impedir a verificação de resultados da espécie do efectivamente produzido.
Em conclusão, dir-se-á que a culpabilidade negligente, elemento essencial ao preenchimento do tipo de crime, é um juízo de imputação, ao agente, de uma atitude ético-pessoal de descuido, perante o dever ser jurídico-penal, apenas existindo quando se encontrarem preenchidos todos os seus pressupostos que passamos esquematicamente a enunciar como elementos estruturantes da negligência:
- a omissão de um dever objectivo de cuidado adequado a evitar o resultado típico;
- a previsibilidade da produção do evento;
- a possibilidade de o agente, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, prever ou prever correctamente a realização do tipo legal;
- a verificação do resultado típico e o nexo de causalidade entre este e a omissão do dever de cuidado (cfr. art. 10º do Código Penal e acórdão do STJ de 5/11/97 in C.J. STJ, tomo III, pág. 227).

Tendo presentes todas estas coordenadas jurídicas essenciais na averiguação de comportamentos negligentes, volvemos a nossa atenção para o caso sub iudice.
Ora, considerando os factos indiciados, não temos dúvidas que a provarem-se em julgamento, permitirão levar à condenação do arguido por actuação negligente causadora do resultado típico morte, no sentido atrás preconizado.
Com efeito, o arguido, a exercer funções de Presidente da União de Freguesias onde se inseria o local do acidente, terá colocado em plena via pública uma vedação, com uma corrente, que impedia a circulação rodoviária pela mesma, sem cuidar de anunciar a suspensão dessa circulação ou de a sinalizar.
Deste modo, o arguido infringiu o disposto nos arts. 5º/2, 8º e 9º do Código da Estrada, mas também e ainda o estatuído nos arts. 2º e 13º/1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito, conforme acima se expôs.
Aí temos, pois, consubstanciada a omissão do dever objectivo de cuidado que passava por ter o arguido publicitado aquela suspensão da circulação na via em causa, e sinalizado os obstáculos ali colocados em toda a sua extensão, por forma a evitar que, por desconhecimento e falta de visibilidade desses obstáculos, especialmente à noite, visto que o local não tinha iluminação artificial, os condutores fossem surpreendidos pelos mesmos e viessem a embater neles, com perigo para sua integridade física e vida.
Como consequência directa desta conduta ocorreu o embate acima descrito e do mesmo resultou a morte de GG.
A conduta do arguido não anunciando nem sinalizando devidamente os obstáculos colocados na via, é, em abstracto, idónea a causar mortes, pois que destinando-se o anúncio e a sinalização a dar conhecimento aos utentes da via da existência de tais obstáculos, para que adequem a sua condução em conformidade e em segurança, a sua falta impede-os ou dificulta muito que realizem essa adequação e circulem em segurança.
E assim se perfila o nexo causal entre a omissão de dever de cuidado do arguido e o resultado típico produzido.
Assim, podemos ter por indiciado que o arguido não logrou evitar o acidente mortal em análise porque omitiu o dever de anunciar e sinalizar os obstáculos colocados na via pública utilizada por GG, cuidados elementares prescritos, aliás, nas regras plasmadas no Código da Estrada e no Regulamento de Sinalização do Trânsito.
Tudo visto e pesado, é nosso entendimento que, os indícios apontam para que a totalidade do resultado típico possa ser imputada ao comportamento negligente do arguido.
E se é assim do ponto de vista do preenchimento do tipo objectivo, do ponto de vista da tipicidade subjectiva, estão reunidos os elementos para concluirmos pela verificação de uma actuação imbuída de negligência inconsciente.
Na verdade, se o requerimento de abertura de instrução não continha a alegação factual correspondente à negligência consciente, por um lado, por outro, não se logrou apurar nesta sede indiciária factualidade que permitisse com segurança concluir nesse sentido.
Assim, embora consideremos indiciado que o arguido soubesse que lhe era legalmente imposto o dever de sinalizar os obstáculos colocados na via – como, de resto, diz ter feito, tratando-se além do mais de uma regra estradal elementar -, não pudemos considerar indiciado que soubesse igualmente que, não o fazendo, podia vir a ocorrer uma morte por embate de um veículo na mesma.
Nesta conformidade, os indícios apontam para que tenha actuado com negligência inconsciente.
Tudo visto, resulta suficientemente indiciado que o arguido cometeu o crime de homicídio por negligência, previsto no art. 137º/1 do Código Penal, sendo a negligência inconsciente nos termos previstos no citado art. 15º/b) do Código Penal.
*

Em suma:
Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser procedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na parte respeitante ao aqui arguido AA, havendo nos autos indícios suficientes da prática pelo mesmo dos factos aí descritos e dos que resultaram da alteração introduzida nesta sede, os quais o fazem incorrer no crime de homicídio por negligência ali lhe vem imputado, sendo provável que pelo mesmo venha a ser condenado em sede de julgamento.


IV - Decisão

Nestes termos, decide-se julgar totalmente procedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, pronunciar:
AA, filho de LL e de MM, nascido em .../.../1957, em ..., casado, residente na Rua ..., ..., ...;
Para julgamento em processo comum, por Tribunal Singular, pela prática dos seguintes factos:
1. No dia 19 de julho de 2019, pelas 21h10, na Rua ..., em ..., ..., mais concretamente na ligação entre aquela Rua e a Rua ..., provindo do caminho público com o número ..., circulava GG, conduzindo o quadriciclo de matrícula ..-AV-...
2. O estado do tempo era bom, o piso encontrava-se seco e a visibilidade era condicionada pelo cair da noite e a ocorrência de crepúsculo.
3. O local tinha uma inclinação ascendente atento o sentido de marcha de GG (2%) e não beneficiava de iluminação pública.
4. GG estava habilitado para a condução daquele tipo de veículos, e tinha vários anos de experiência nessa condução; circulava com capacete e com a luz dianteira do quadriciclo ligada.
5. GG conhecia o local, fazendo regularmente o mesmo percurso, mais concretamente às sextas-feiras, quando se deslocava do ginásio para casa.
6. Porém, no dia 19 de julho de 2019, sem que nada o fizesse prever, a estrada encontrava-se vedada, concretamente, com uma rede malhasol que, na zona de circulação da via, era interrompida passando a vedação a ser efectuada por meio de uma corrente metálica presa nas suas extremidades àquela rede malhasol, corrente essa colocada a uma altura de 1,40m do solo.
7. Essas vedação e corrente foram colocadas no local pelo arguido, AA, à altura Presidente da União de Freguesias ... e ..., em data não exactamente apurada, mas entre 26 de Março de 2019 e o dia 16 de Julho de 2019, fornecendo a chave do cadeado que permitia abri-la, aos funcionários da empresa A... para que acedessem ao terreno onde efectuavam deposição de terras.
8. Fê-lo sem que tivesse tido o cuidado de publicitar e sinalizar a existência da corrente a impedir a circulação naquela via, conforme estava obrigado nos termos previstos nos arts. 5º/2, 8º e 9º, do Código da Estrada.
9. Inexistindo sinalização, quer da corrente, quer da aproximação a esta, sendo o local especialmente escuro por não beneficiar de luz artificial, do que o arguido tinha conhecimento, GG veio a embater com a face na referida corrente, na sua extremidade mais à direita atento o seu sentido de marcha, vindo a ser projectado para a rectaguarda, caindo de costas e embatendo com o capacete, parte de trás, no solo,
derivando o quadriciclo por ele tripulado, após isso, para a direita até colidir com um talude, aí se imobilizando.
10. Nessa sequência, GG ainda se levantou, caminhando alguns metros no sentido ascendente em que seguia, após o que caiu no solo em posição de decúbito ventral.
11. Como consequência directa e necessária do referido embate, GG sofreu lesões traumáticas meningiais e da face, associadas com asfixia por aspiração de sangue, que vieram a determinar a sua morte.
12. Se a suspensão da circulação naquela via tivesse sido publicitada e a referida corrente estivesse sinalizada, GG teria podido tomar conhecimento da primeira e visualizar a segunda, e nessa conformidade, teria podido reduzir a velocidade e parar, evitando o embate ou, pelo menos, minimizando o impacto na corrente, e assim evitar a sua morte.
13. A Rua ... faz a ligação à Rua ... através do caminho público ..., podendo ali circular veículos provindos dessa Rua ..., passando pela Rua ..., onde ocorreu o acidente, sendo que no percurso efectuado por GG desde a entrada naquele caminho público a partir da Travessa ... não era visível qualquer sinalização.
14. O arguido tendo disso conhecimento, colocou a referida vedação sem a publicitar nem sinalizar por forma a ser conhecida e visível para todos os condutores que utilizassem essa via.
15. O arguido colocou no local a referida vedação para impedir que o terreno contíguo ao campo de futebol do ..., lado norte, onde eram depositadas as terras sobrantes de obras da rede de saneamento a ser executada pela empresa “A..., S.A.”, fosse utilizado por desconhecidos para depositar lixo, sem atentar no perigo que desse modo criava para a circulação rodoviária no local.
16. Ao não publicitar a suspensão da circulação naquela via e ao não colocar a devida sinalização na vedação que instalou na Rua ..., que impedia a circulação na mesma, o arguido agiu voluntária e conscientemente, não actuando com a diligência e cuidado que lhe competiam e lhe era exigível para evitar acidentes como o descrito, como deveria saber, atendendo além do mais a que exercia as funções de Presidente da União de Freguesias ... e ....
17. O arguido sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Pelo exposto, incorreu o arguido na prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos arts. 15º/b) e 137º/1 do Código Penal.

PROVA

1.Pericial
- Relatório de autópsia médico-legal de fls. 147 e sgs..

2.Documental
Todos os documentos nos autos, com especial relevo para:
- o relatório do NICAV de fls. 173 e sgs.;
- os documentos – actas e emails - juntos pela União de Freguesias ... e ..., a fls. 222 e sgs.;
- os documentos juntos pela Câmara Municipal ... a fls. 227 e sgs., com especial destaque para a fotografia e auto onde está inserida, a fls. 267.

3.Testemunhal:
- DD, fls. 116-118;
- II, fls. 101-103;
- HH, fls. 106-108;
- CC, fls. 130-132;
*
Estatuto coactivo:
Uma vez que não estão reunidos os pressupostos do artigo 204.º do Código de Processo Penal, o arguido aguardará os ulteriores termos deste processo sujeito apenas a termo de identidade e residência, já prestado a fls. 391, por ser a medida de coacção que se reputa mais adequada e proporcional às exigências cautelares da presente situação, bem como à sua gravidade – arts. 191.º, 193.º e 196.º, todos do Código de Processo Penal.
***
Sem custas – art. 515º do Código de Processo Penal “a contrario”.
*
Notifique.
*
Registe a decisão em pasta própria.
*
Remeta oportunamente, após trânsito, à distribuição para julgamento.
*
Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a audiência sido declarada encerrada quando eram 12 horas e 25 minutos.
A presente ata foi integralmente revista e por mim, Andreia F Silva, elaborada. “

2. Despacho de indeferimento da reclamação.

Instrução

Veio o arguido reclamar da decisão que indeferiu por extemporânea a arguição de nulidade da decisão instrutória.
Discorda, no essencial, da forma como foi ali contado o prazo legal de 8 dias previsto no art. 309º/2 do Código de Processo Penal, nomeadamente quanto ao seu termo inicial, visto que não terá tido acesso ao conteúdo global da decisão no momento em que a mesma foi lida, tendo esse acesso sido concretizado apenas no dia 02/11/2022, através de email remetido para o seu mandatário.
Conferido o contraditório, veio o Ministério Público pugnar pelo indeferimento da reclamação nos termos da douta promoção de fls. 625, na qual considera que o arguido teve pleno conhecimento do conteúdo da decisão instrutória no dia 27/10/2022, por lhe ter inclusivamente sido entregue, por escrito, o texto com os factos considerados indiciados e sua qualificação jurídica, a fim de ser exercida a faculdade prevista no art. 303º/1 e 5 do Código de Processo Penal, comunicando-se depois ao arguido que seriam esses os factos e crime pelos quais seria pronunciado, sendo, portanto, esse o termo inicial da contagem do prazo de arguição de nulidade da decisão instrutória.
Cumpre decidir.
Efetivamente, não vemos qualquer razão para alterar o já decidido a fls. 547, com base nos elementos constantes dos autos, que sustentam a corretíssima informação prestada a fls. 546, segundo a qual o requerimento de arguição de nulidade da decisão instrutória foi remetido aos autos fora do prazo legalmente estabelecido, mesmo considerando a extensão prevista no art. 107º-A do Código de Processo Penal.
Na verdade, o facto de ter sido enviada por email cópia da ata de leitura da decisão instrutória, uma cortesia da Secção por serem conhecidas as dificuldades de acesso dos Senhores Advogados ao sistema CITIUS na fase de instrução, em nada contende com as regras processuais relativas à notificação da decisão instrutória.
Como expressamente prevê o disposto no art. 307º/1 do Código de Processo Penal:
«Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.» (negrito nosso).
Cremos, pois, não poderem subsistir dúvidas de que no dia 27/10/2022 o arguido ficou notificado da decisão instrutória que, de resto, lhe foi explicada de forma assaz detalhada.
Mas mais: como referido no parecer do Ministério Público, porque se introduziram alterações ao que vinha alegado no requerimento de abertura de instrução, houve o cuidado de entregar, por escrito, o elenco dos factos considerados suficientemente indiciados e sua qualificação jurídica, por forma a permitir o exercício da faculdade prevista no art. 303º/1 e 5 do Código de Processo Penal, texto que ficou até consignado na ata, dirimindo qualquer dúvida a este propósito – cfr. fls. 434 e sgs..
Passados 35 minutos, em que o arguido pôde ler e analisar esse texto com o seu mandatário à altura, foi pelo mesmo dito nada ter a requerer.
E só então se procedeu à leitura da decisão que, diga-se, incorporou ipsis verbis aquele texto anteriormente comunicado por escrito.
A referida ata, na qual ficou exarada também a decisão instrutória, lida pelas 12:05h, foi assinada e disponibilizada no sistema CITIUS às 14:12h desse mesmo dia 27/10/2023.
Neste quadro, a invocação de que apenas em 02/11/2022 o arguido teve acesso à decisão instrutória para a poder impugnar, sendo essa impugnação precisamente atinente ao elenco dos factos indiciados por se considerar existir alteração substancial em relação aos indicados no requerimento de abertura de instrução, elenco esse que foi entregue por escrito (e não tinha que o ser) ao mesmo arguido no dia 27/10/2022, afigura-se-nos abusivo e censurável, mesmo considerando que tal requerimento surge subscrito por mandatário distinto daquele que interveio no debate instrutório e leitura da decisão, mas que não pode deixar de ter conhecimento do que consta da já mencionada ata, disponibilizada no próprio dia e em seguida à leitura da decisão, e bem assim da gravação da diligência no sistema CITIUS.
Nos termos do estatuído no art. 521º/1 do Código de Processo Penal, «À prática de quaisquer actos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quanto à condenação no pagamento de taxa sancionatória excepcional.».
Preceitua, por sua vez o art. 531º do Código de Processo Civil que, «Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.
Como decorre da fundamentação da decisão acabada de proferir, a presente reclamação é manifestamente infundada e improcedente considerando os dados do processo, apenas se podendo atribuir a falta de prudência do arguido que, tem inclusivamente já pendente recurso, oportunamente admitido, em que suscita a questão da nulidade que pretende ver apreciada.
Tal conduta merece, a nosso ver, censura, pelo que, nos termos dos dispositivos legais que começamos por indicar, se condenará o arguido em taxa sancionatória excecional.
Nos termos do art. 27º do Regulamento das Custas Processuais:
«1 - Sempre que na lei processual for prevista a condenação em multa ou penalidade de algumas das partes ou outros intervenientes sem que se indique o respectivo montante, este pode ser fixado numa quantia entre 0,5 UC e 5 UC.
2 - Nos casos excepcionalmente graves, salvo se for outra a disposição legal, a multa ou penalidade pode ascender a uma quantia máxima de 10 UC.
(…)
4 - O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.».
Atendendo a que o andamento do processo não resultou particularmente penalizado mercê da reclamação apresentada, fixar-se-á a taxa sancionatória em valor pouco acima do mínimo – uma U.C. e meia.
*
Nestes termos e em face de tudo o exposto, nada havendo, pois, a acrescentar ao que ficou já decidido no nosso despacho de indeferimento por extemporâneo do requerimento de arguição de nulidade da decisão instrutória, ao abrigo do disposto nos arts. 521º/1 do Código de Processo Penal, 531º do Código de Processo Civil, e 27º/1,2 e 4, do Regulamento das Custas Processuais, decide-se:
indeferir por manifesta improcedência a reclamação em apreço;
condenar o arguido reclamante em taxa sancionatória excecional de 1 (uma) U.C. e meia.
*
Notifique, sendo o reclamante com cópia do parecer do Ministério Público de fls. 625.
*
Fls. 621 e sgs.:
Dê conhecimento ao recorrente e ao assistente.
*
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto.
*
Notifique.”

3. Decisão que indeferiu por extemporânea a arguição de nulidade da decisão instrutória.

“Fls. 482 e sgs:
Veio o arguido invocar nulidade da decisão instrutória nos termos do art. 309º do Código de Processo Penal.
Tal arguição, nos termos do nº 2 desse preceito legal, deve ocorrer no prazo de oito dias contados da notificação da decisão.
Ora, a decisão instrutória foi lida e comunicada ao arguido no dia 27 de Outubro de 2022, conforme acta de fls. 434, pelo que, o prazo de 8 dias findou no dia 4 de Novembro, sendo ainda possível praticar o acto, mediante pagamento de multa, até ao terceiro dia útil seguinte, ou seja, até dia 9 de Novembro - art. 107º-A do Código de Processo Penal.
Como consta da conclusão que antecede, o requerimento de arguição de nulidade foi enviado via email e via CTT no dia 11 de Novembro - cfr. fls. 482 e 545 -, portanto, fora de prazo.
Nestes termos, por intempestivo, indefere-se o requerimento em apreço.
Notifique, com cópia da conclusão.

Conhecendo.

Da tempestividade da reclamação.

Posição do arguido.
O arguido só teve acesso ao texto da decisão de pronúncia no dia 02/11/2022, não no acto da leitura de 27/10/2022, pelo que a mera leitura de uma decisão totalmente nova não pode considerar-se notificação;
O despacho recorrido viola o direito de defesa do arguido (art. 32.º da CRP).
O recorrente apresentou requerimento com alegação de nulidade da decisão instrutória nos termos do disposto pelo art. 303.º, n.º 3, e 309.º da CRP, o qual foi indeferido, por a nulidade ter sido arguida extemporaneamente.
Não foi interposto recurso de tal decisão, mas antes, apresentada uma reclamação a 06/01/2022, igualmente alvo de indeferimento, e é deste despacho, de 27/01/2023, que o arguido recorre.


No dia 27/10/2022, conforme ata de fls. 434 e ss., o Tribunal procedeu à comunicação de factos e qualificação jurídico-penal nos termos e para os efeitos do disposto pelo art. 303.º, n.º 1 e 5 do Código de Proc. Penal, seguindo-se a leitura da decisão.
Ora, o Recorrente pretendeu, com a arguição de nulidade, demonstrar como a alteração foi substancial, ferindo de nulidade a própria decisão instrutória.
E tinha 8 dias para o fazer contados desde a notificação da decisão, cfr. art. 309º do CPP. Prevê o art. 307.º, n.º 1 do Código de Proc. Penal: “Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.”.
No dia 27/10/2022, o arguido AA, ali representado pelo então Ilustre Mandatário Dr. FF, e conforme ficou expressamente indicado em ata, foi entregue uma cópia dessa articulação factual e qualificação jurídica. O arguido nada requereu e prescindiu do prazo de vista.
A partir do minuto 12:40, de resto, consultado no MEDIA STUDIO, o Tribunal foi claríssimo em indicar que a decisão era de pronúncia para julgamento do arguido AA por referência a esses factos e qualificação jurídica indicados e apreciados com apresentação do documento escrito. Resulta claro, não tendo sido levantada a falsidade da ata, que de facto todos os presentes estavam cientes dessa fixação do objeto do processo.
A ata foi assinada eletronicamente no dia 27/10/2022, às 14:12.
Entretanto, com a alegação de nulidade nos termos do disposto pelo art. 309.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal, é junto substabelecimento a favor do Ilustre Mandatário que em representação do arguido veio arguir essa nulidade, procuração essa de 10/11/2022 (fls. 514).
De maneira que, neste caso específico, a questão da remessa do e-mail (fls. 615) não é relevante nos termos pretendidos pela defesa, porquanto os factos e qualificação jurídica contra a qual se insurgiram já eram conhecidos plenamente desde o dia 27/10/2022, formal e substancialmente.
Estava o arguido habilitado, nesse mesmo dia, ou nos 8 subsequentes, a arguir a nulidade que só depois veio arguir. E essa falta só a ele poderá ser imputada.
A interpretação que quer fazer vingar o arguido, apelando à lei fundamental, esvaziaria de conteúdo útil, sem justificação suficiente - relevando uma posição diferente na sequência da “alteração” de mandatário, desnecessitada de interpretação conforme - o prazo legalmente previsto pelo art. 309.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal.
Ora a nulidade em questão é uma nulidade sanável, sempre dependente de arguição, estando estipulado um prazo específico para este tipo de nulidade em contraponto ao prazo geral de 10 dias do art. 105º, n º 1 do CPP, cabendo recurso da decisão que indefira esta concreta alegação de nulidade.
O arguido optou por reclamar e não recorrer.
Recorre no caso da decisão que decidiu não conhecer o pedido de nulidade, em sede de reclamação, por extemporaneidade. Donde resulta que o arguido recorrente, e bem, arguiu a nulidade como tinha de ser perante o juiz de instrução, donde resulta que o pressuposto para o conhecimento da mesma em sede de recurso depende de prévia arguição e conhecimento do JIC.
Estipula o art 303º, n º 1 do CPP: “1 - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.
2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução.
3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.”
Foi respeitado o nº 1 conforme resulta da ata.
Por sua vez o art. 307º do CPP refere que o despacho de pronúncia ou de não pronúncia é logo ditado para a ata, considerando-se notificado aos presentes. O que significa que o legislador não exigiu que a notificação fosse escrita, sendo certo que não estaria vedado ao arguido requerer no ato a decisão escrita ou até solicitar dentro do prazo legal se achasse haver alguma nulidade, que o tribunal lhe remetesse ou facultasse o documento escrito. De todo o modo que resulta da ata que a comunicação dos factos que o recorrente considera serem uma alteração substancial de factos e portanto geradora da nulidade prevista no art. 309º do CPP, foi feita de forma escrita e entregue aos sujeitos processuais no ato, pelo que não pode o recorrente dizer que não teve acesso aos factos que no entender do tribunal a quo eram de natureza não substancial e com base nos quais o tribunal entendeu pronunciar o arguido.
Em face do exposto, o prazo previsto no art. 309º, n º 2 do CPP a partir daquela comunicação ocorrida no dia 27.10.22.
Desta interpretação não decorre nenhuma violação de natureza constitucional, na medida que em que o arguido e seu defensor tiveram conhecimento escrito dos factos considerados indiciados pelo JIC e podiam ter reagido no ato ou pedido tempo para o fazer no exercício do seu direito de defesa, a que acrescia ainda a possibilidade de reagir após a decisão de pronúncia invocando a sua nulidade como decorre do art. 309º do CPP.
Em face do exposto, os factos eventualmente geradores de nulidade foram comunicados por escrito ao arguido e seu defensor e a decisão instrutória foi lida e comunicada ao arguido no dia 27.10.22, cfr. ata de fls. 434, pelo que o prazo de 08 dias findou no dia 04.11.22, sendo possível praticar o ato com pagamento de multa até ao dia 09.11.22-art. 107º-A do CPP.
A arguição da nulidade foi enviada por e mail e CTT no dia 11.11.22, cfr. fls. 482 e 545 e portanto, fora de prazo.
De facto,
No dia 27/10/2022, conforme ata de fls. 434 e ss., o Tribunal de Instrução Criminal procedeu à comunicação de factos e qualificação jurídico-penal nos termos e para os efeitos do disposto pelo art. 303.º, n.º 1 e 5 do Código de Proc. Penal, seguindo-se a leitura da decisão.
Mas mais, ao arguido AA, ali representado pelo então Ilustre Mandatário Dr. FF, e conforme ficou expressamente indicado em ata, foi entregue uma cópia dessa articulação factual e qualificação jurídica. O arguido nada requereu; prescindiu do prazo de vista.
A partir do minuto 12:40, de resto, o Tribunal foi claríssimo em indicar que a decisão era de pronúncia para julgamento do arguido AA por referência a esses factos e qualificação jurídica indicados e apreciados com apresentação do documento escrito.
A ata foi assinada eletronicamente no dia 27/10/2022, às 14:12.
Entretanto, com a alegação de nulidade nos termos do disposto pelo art. 309.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal, é junto substabelecimento a favor do Ilustre Mandatário que em representação do arguido veio arguir essa nulidade, procuração essa de 10/11/2022 (fls. 514).
De maneira que, neste caso específico, a questão da remessa do e-mail (fls. 615) não é relevante nos termos pretendidos pela defesa e em nada contende com as regras processuais relativas à notificação da decisão instrutória porquanto os factos e qualificação jurídica contra a qual se insurgiram já eram conhecidos plenamente desde o dia 27/10/2022, formal e substancialmente.

Neste quadro, a invocação de que apenas em 02/11/2022 o arguido teve acesso à decisão instrutória para a poder impugnar, sendo essa impugnação precisamente atinente ao elenco dos factos indiciados por se considerar existir alteração substancial em relação aos indicados no requerimento de abertura de instrução, elenco esse que foi entregue por escrito ao mesmo arguido no dia 27/10/2022, afigura-se-nos abusivo e censurável, mesmo considerando que tal requerimento surge subscrito por mandatário distinto daquele que interveio no debate instrutório e leitura da decisão, mas que não pode deixar de ter conhecimento do que consta da já mencionada ata, disponibilizada no próprio dia e em seguida à leitura da decisão, e bem assim da gravação da diligência no sistema CITIUS.
Em face do exposto decidiu bem o tribunal em sede de reclamação quer no que diz respeito à extemporaneidade da alegada nulidade, considerando-se a mesma devidamente sanada quer no que diz respeito à taxa sancionatória excecional que lhe foi fixada.
Palavra final para referir que este tribunal pode conhecer deste recurso, na medida em que em que também o deve poder fazer em caso de recurso do despacho judicial que indefira a nulidade, art. 310º, n º 3 do CPP, caso em que sobe com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo ao processo, art. 407º, n º 3 do CPP.
Improcede, pois este recurso.
Do recurso principal.
O arguido AA recorre da douta decisão instrutória que o pronunciou pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos arts. 15.º/b) e 137.º/1 do Código Penal.
Entende em suma que a decisão instrutória é nula por violação do disposto pelo art. 303.º do Código de Proc. Penal, e que a interpretação do Tribunal a quo de que pode livremente formular uma acusação não constante do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO na sequência da comunicação de alteração não substancial dos factos por entender que tal cabe na sua jurisdição, é inconstitucional por violação do disposto pelo art. 32.º, n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Suscita a questão da nulidade do requerimento de abertura de instrução por ausência de uma estrutura de acusação.
Questiona ainda a matéria indiciária aceite pelo tribunal a quo.

Para suportar a sua tese, entende o Recorrente que o Tribunal a quo, citando, fez o que se pode chamar de “pesca de arrastão”. E que essa operação foi violadora do princípio acusatório, estando vedada ao Tribunal.
Sucede que a lei não proíbe necessariamente o que se entende por “pesca de arrastão”, ou seja, o rearranjo, numa estrutura sistemática mais perfeita, dos factos desgarrados, sistematicamente desprimorosos e desarmoniosos, contidos no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, ainda que decorrente de uma alteração não substancial dos factos.
Com efeito, o que está proibido ao Tribunal a quo é afastar-se da vinculação temática oferecida pelo REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO do Assistente, conduzir a conduta naturalística desviando-a das balizas ontológicas fornecidas pelo REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, não que se coíba de selecionar de entre os factos nele insertos aqueles jurídico-penalmente relevantes para incluir num despacho, se for como foi o caso, de pronúncia. A decisão instrutória, para a lei, e para que se veja respeitado o princípio acusatório, não tem que ser um mero e anódino decalque do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.

No caso esse rearranjo até era imposto, porque ocorreu parcial rejeição do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.
De facto o despacho de pronúncia em causa não tem factos novos essenciais diferentes dos mencionados no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO.
Não houve uma modificação estrutural dos factos sobre os quais incidiu a pronúncia. Os que surgiram inserem-se no itinere temático sujeito ao juiz ao qual se encontra vinculado. O JIC pode não só alargar ou ampliar a pronúncia a factos que não estejam descritos na acusação ou no requerimento do assistente para abertura da instrução, as também pode proceder à supressão de factos constantes daquelas peças, caso os considere não indiciados, desde que a alteração não seja substancial. E pode igualmente proceder à alteração da qualificação jurídica.
O despacho de pronúncia questionado deste ponto de vista não viola o princípio da acusatoriedade e o direito do arguido a uma defesa eficaz.

De todo o modo, ainda a propósito de uma eventual nulidade por violação do disposto no art. 303º, n º 3 do CPP. Como já tivemos oportunidade de referir não pode a mesma ser conhecida em sede deste recurso, porquanto, pelas razões supraexpostas, encontra-se sanada pelo decurso do tempo útil para a sua invocação.

E sempre se dirá que a invocação da nulidade do requerimento de abertura da instrução por ausência ou deficiente de narração de factos, que não se concede como supradito, só poderia ser feita em sede de instrução até ao encerramento do debate instrutório, para que o tribunal a quo que proferiu despacho de pronúncia dela conhecesse e não ex nuovo em sede de recurso para o tribunal da Relação.
O despacho instrutório deve conhecer de nulidades, irregularidades e questões prévias ou incidentais que obstem ao prosseguimento dos autos.

Já se o Tribunal, tivesse proferido despacho de pronúncia contra outros possíveis responsáveis, teria então se afastado do teor do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, pelo menos, do teor do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO que é capaz de fornecer a descrição fáctica com os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal convocado. É que o Tribunal a quo saneou em primeiro despacho, deixando apenas prosseguir o que era possível aproveitar desse mesmo REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO. O defeito originário que levou à rejeição parcial do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO não se verificou no caso do ora Recorrente.
Como impressivamente já decidido pelos Tribunais Superiores, e a título de exemplo: “I – A decisão de pronúncia há-de conter-se dentro dos elementos factuais que constituem o acervo investigatório e probatório do processo, podendo o juiz de instrução proceder à correcção dos lapsos de que padeça a acusação e à integração das lacunas que a dita peça processual revele, desde que não seja alterada a estrutura ontológica essencial do libelo acusatório e se mostrem observados os procedimentos impostos no artigo 303.º, 1, do CPP. II – Esta interpretação normativa não viola o preceito inserto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.” – Acórdão do TRC de 20/03/2018, acessível in www.dgsi.pt.
Não se concorda com a ideia de que ocorreu uma imputação ex novo ao arguido no decurso da instrução pois o arguido defende-se primacialmente de factos, não da qualificação jurídico-penal que de resto se manteve, mesmo que os autos prossigam, não vincula o Tribunal do julgamento. Esse acervo factual está exposto, ainda que de um modo sistematicamente desarmonioso no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO. Mas isso não é o mesmo que afirmar a sua inexistência, e em consequência, não é o mesmo que votar o Tribunal a quo ao papel formalista de rejeitar sem mais o texto acusatório que lhe é fornecido. O princípio acusatório impõe exigência.
Alega o recorrente que não foi interrogado. Se o arguido não foi interrogado, também não o requereu. Encontrando-se, como tinha que ser, assistido por Advogado. Não incumbiria seguramente ao Tribunal impor esse interrogatório, nem se substituir ao arguido na delineação da sua estratégia defensiva.
O recorrente adquiriu a qualidade de arguido com o requerimento de abertura de instrução, art. 57º, n º 1 do CPP, tendo formalizado tal situação após recebimento do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, cfr. fls. 389 e ss
E, comunicada essa alteração nos termos do disposto pelo art. 303.º, n.º 3 e 5 do Código de Proc. Penal, a qual passou também por indicar a norma penal convocada, e sempre sem beliscar a conduta naturalística que lhe foi imputada no REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, conforme deflui da acta do dia 27/10/2022 ficou consignado: “Pelas 12:05h, findo entretanto o interrogatório judicial realizado no processo 700/22.4GBVFR pela Mm.ª Juíza, e concluída a análise da comunicação escrita entregue aos sujeitos processuais, foi pela Mm.ª Juíza declarado reaberto o debate instrutório e dada a palavra ao Digno Procurador da República e aos ilustres Mandatários para que requeressem o que tivessem por pertinente ante tal comunicação, tendo por todos sido declarado nada terem a requer, prescindindo do prazo de vista.”.
Isto é, não foi requerida a audição do arguido, que não é, pelo seu estatuto, obrigado a prestar declarações, presumindo-se que essa omissão equivale à declaração de rejeição de prestar declarações e de ser interrogado.
É um facto que o Ac do STJ nº 1/2006, de 23/11/2005 firmou doutrina obrigatória no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui nulidade prevista no art 120, nº 2, al d) do CPP”. Mas tal aplica-se apenas na fase de inquérito a suspeito conhecido, não na fase de instrução, sendo certo que na fase de inquérito o processo corria contra desconhecidos e que o arguido, já nessa qualidade, foi confrontado com o teor do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO e, em sede de debate quando lhe foi comunicada por escrito, a alteração não substancial de factos e sua imputação.
Dispõe o artº 292°, n° 2 do C.P.P. que o Juiz de Instrução interroga o arguido quando julgar necessário e sempre que este o solicitar. Significa isto que a obrigação de tal interrogatório depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: o arguido solicitar a diligência e o Juiz considerá-la necessária.
O que significa que nos termos das disposições conjugadas dos art.°s 292.°, n.° 2 e 120.ºn.ºs 2 al. d) e 3, al. c), ambos do Código de Processo Penal, só se verifica a nulidade da insuficiência da instrução (por falta de realização do interrogatório do arguido por este requerido, na fase de instrução) que teria de ser arguida até ao encerramento do debate instrutório. Ora não foi requerido nem arguida a nulidade no decurso do debate instrutório em que esteve presente o arguido, pelo que sempre se encontraria sanada.
Em suma não se mostram violados os direitos de defesa do arguido respeitando-se o artigo 32º, nº. 1 segundo o qual “Ninguém deve ser surpreendido por uma acusação sem que antes lhe seja concedido tomar posição, defendendo-se, se e como entender, dos factos imputados”.

Passemos agora à análise dos factos indiciários constantes da pronúncia e seu enquadramento legal.
Uma primeira observação para referir que esta Instância superior atentou em toda a documentação e depoimentos prestados.
Estabelece o art. 308.°, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02]. O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23].
Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20).
Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.

Está em causa um crime de homicídio negligente.

Conforme do Ac. da RP de 09.05.2018 (proc. nº 20/15.0GTPNF.P2; rel. Exmº Desembargador JORGE LANGWEG) “São elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência:
- conduta humana traduzida numa acção ou omissão;
- infracção do dever objectivo de cuidado;
- possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever;
- ausência de causas de justificação da conduta;
- autor imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido.
Verifica-se a negligência sempre que o agente, ao actuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos. Nessa medida, os resultados só se verificam por o agente não tomar as precauções adequadas a evitá-las e, como tal, não prevê ou não prevê com exactidão esse resultado como consequência normal e adequada da sua conduta.
E os cuidados reclamados são tanto maiores quanto maior for a perigosidade decorrente do exercício de uma actividade para com terceiros, maxime, o tráfego rodoviário.
Mas para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que o agente possa e seja capaz de, face às circunstâncias, conhecer delas e tomar as precauções devidas e idóneas para evitar o resultado. É preciso lançar mão do critério do homem concreto “individualizado”, no sentido de se saber se outra pessoa, com as mesmas qualidades do agente, não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e, como tal, actuado de modo diverso.(…)
(…)Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (in Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354), a opinião largamente maioritária da dogmática do crime negligente é a chamada doutrina do “duplo escalão”, que se exprime: a) Pelo tipo de ilícito do facto negligente: “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para desse modo se evitar uma violação juridicamente indesejada. (...) Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente; b) Pelo tipo de culpa do facto negligente: que se considera preenchido quando se conclui que “(...) o mandato geral de cuidado e previsão podia também ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades “individuais”, isto é, rigorosamente, da inteligência, da formação e da experiência de vida dos homens como agente agindo na circunstância”.
É exactamente esse posicionamento perante o risco que surge como critério separador entre figuras que detêm uma topografia próxima. Assim, o conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque, em virtude de uma violação do cuidado devido em relação à valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades, nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo.
É sabido que num âmbito de dinâmica social existem condutas especialmente aptas para produzir determinados resultados. A regra nestes casos é simples: quando um sujeito leva a cabo uma conduta especialmente apta para produzir um determinado resultado lesivo e o faz sendo conhecedor da perigosidade abstracta de tal conduta e contando com um perfeito «conhecimento situacional» entende-se, num ponto de vista social, que necessariamente avaliou que a sua conduta era apta para produzir o citado resultado lesivo naquela especifica situação.
A negligência é por natureza o campo onde a conduta se traduz na omissão de dever objectivo de cuidado ou de atenção, que o agente, dentro das suas possibilidades e de acordo com as circunstâncias do caso, deveria ter actuado, não o fazendo ou fazendo-o imperfeitamente, assim originando a produção de um resultado que deveria e poderia, também de acordo com as circunstâncias concretas, ter previsto.
Assim, a verificação do tipo de ilícito inerente à negligência estrutura-se a partir de três elementos: a omissão de um dever objectivo de cuidado que ainda não pertence à culpa já que tal elemento intervém no que respeita à adequação causal da conduta a criar o risco de produção de resultados que a lei visa evitar (juízo normativo); possibilidade de prever o perigo de realização do tipo (previsibilidade objectiva); e, finalmente, já dentro da culpa, exigir-se que o agente possa e seja capaz de prever ou de prever correctamente a produção do resultado típico (culpabilidade).
Antes do mais interessa averiguar se o arguido deixou de cumprir os deveres de cuidado a que se encontrava adstrito (conceito de cuidado objectivo e normativo).
A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida da relação social relativamente ao comportamento em causa.
Na verdade, a manifestação mais evidente da falta de cuidado consiste na violação de normas estradais que pautam o exercício da condução rodoviária, que sem ser ilícita- por se reconhecer a sua utilidade social- apresenta riscos que lhe são inerentes.
É evidente que a circulação rodoviária é uma actividade que envolve um especial risco e, como tal, deverá qualquer condutor ter presentes os cuidados impostos pelas regras de trânsito destinados a esbater tais riscos, e circular com atenção.
Ora, para que haja negligência, além de uma actividade que viole normas de conduta, é necessário que o evento seja previsível, e só a omissão desse dever impeça a sua previsão (objectiva). Daqui resulta que torna-se necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, seja adequado a evitá-lo, como se constatou nos presentes autos.
A previsibilidade e o dever de prever, que assim objectivamente limitam a negligência é determinada de acordo com as regras gerais de experiência dos homens ou de certo tipo de homem.
Neste momento importa averiguar se o nexo de causalidade se encontra estabelecido, já que deste modo se fixa objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência.
A este respeito, escreveu o Prof. Eduardo Correia (in Direito Criminal, I, p. 421 ss.,) quando abordou a causalidade nas acções por negligência, que a adequação não consiste unicamente na previsibilidade do resultado inevitável, mas antes na sua previsibilidade como consequência normal, típica de uma certa conduta, e que a mera omissão de um dever jurídico não implica desde logo a possibilidade objectiva de negligência. É necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, que seja adequado a evitá-lo.
De qualquer modo, a adequação da acção deverá referir-se a todo o processo causal e não só ao evento, o não quer dizer que a actuação de um terceiro interrompa necessariamente o nexo causal, pois tal actuação pode ser previsível pelo agente, e neste caso o resultado continuará a ser imputável
Acresce que, o que é relevante para o direito é que exista previsibilidade objectiva, senão muitas condutas negligentes só conduziriam ao evento em casos raros.
Importa salientar que, se as condutas do agente e da vítima se revelam como favorecedoras do resultado, haverá lugar à imputação deste ao primeiro, desde que, com a sua acção imprudente e violadora de regras estradais, foi maior a eficácia causal da sua intervenção.
Assim, mesmo que a acção da vítima concorra com o comportamento do agente, enquanto comportamento negligente, o resultado é ainda imputado ao agente, visto que no direito penal, onde se lida com interesses públicos, não é admissível uma compensação de negligências, que o direito civil admite com base num critério patrimonial. Por outro lado, revestindo o concurso negligente importância mínima, a pena deverá ser atenuada, uma vez que é mínimo o contributo causal.
Finalmente, é ainda necessário que o agente possa prever ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de representar ou de os representar correctamente a realização do tipo legal de crime.
São duas as formas de aparecimento da conduta negligente criminalmente punível a saber: a negligência consciente e a negligência inconsciente que se encontram delimitadas no art. 15º do C. Penal.
Em qualquer destas categorias se exige a capacidade do agente para proceder com os cuidados que, segundo as circunstâncias, seriam os indicados.
Não está aqui em causa o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, mas um critério subjectivo e concreto que deve partir do que seria razoavelmente esperar do homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição.

Diz a Srª JIC em sede de motivação para a pronúncia que fez e transcreve-se em parte:
b. Da Motivação
O Ministério Público arquivou o inquérito, após enunciação dos elementos de prova, seguida de considerações teóricas de direito, com a seguinte fundamentação:
«(…)
Compulsada toda a prova recolhida conclui-se que o acidente teve a sua possível causa na ausência, à data, de sinalização na corrente ou na aproximação desta, em virtude do alegado furto da referida sinalização.
No entanto, não podemos deixar de questionar se, caso tivesse colocada no local a referida sinalização se o acidente não se produzia, visto que o condutor GG seguia em sentido contrário ao da sinalização, de noite, no meio da vegetação, sem a existência de luz artificial. Crermos que, ao aproximar-se da corrente, o condutor apenas veria uma placa, visto que a sinalização estaria virada para a frente e, uma vez que se desconhece a velocidade a que seguia o condutor, questiona-se se este teria tempo de travar perante tal obstáculo.
Acresce que, como acima se referiu, de acordo com as regras da experiência e no âmbito da circulação rodoviária, impõe-se ao condutor tomar especiais cautelas e um acrescido dever de cuidado no cumprimento das regras estradais na realização de manobras. A medida do cuidado exigível coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico.».
Pois bem.
Se somos concordantes quanto à causa do acidente, não podemos já de modo algum subscrever as dúvidas e o demais argumentado pela Sra. Procuradora do Ministério Público, anotando-se que tal argumentação aparece até desgarrada da prova produzida no inquérito.
Vejamos porquê.
Quanto às circunstâncias do acidente e sua causa – a corrente metálica que vedava a circulação na estrada por onde circulava GG sem estar sinalizada -, cremos não se colocarem grandes dúvidas, como efectivamente não se colocaram ao Ministério Público no despacho final de encerramento do inquérito. É assaz elucidativo o relatório do Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação, da GNR – NICAV – que, após inspecção do local no próprio dia do acidente, estabeleceu pontos de referência, designadamente o ponto de conflito, situando-o em plena via pública, numa corrente não sinalizada; aí também se concluiu serem as lesões apresentadas por GG resultantes de embate com a face nessa corrente junto da extremidade mais à direita, onde tinha uma altura de 1,40m – cfr. fls. 173 e sgs..
Desse embate resultariam as lesões traumáticas meningiais e da face, associadas a asfixia por aspiração de sangue, que levariam à morte de GG, conforme relatório de autópsia médico-legal, a fls. 33 e sgs..
Ainda naquele referido relatório do NICAV concluiu-se que: «(…) a ausência de sinalização na corrente ou na aproximação desta, contribuiu, decisivamente, para a materialização do acidente», constituindo-se como «causa principal ou eficiente que esteve na origem do acidente».
Note-se que para apuramento desta causa contribuiu o facto de o militar da GNR responsável por tomar conta da ocorrência, CC (fls. 131 e sg.), quando ali se encontrava a aguardar os meios de socorro, ter-se apercebido da aproximação de um veículo automóvel vindo do caminho percorrido por GG (que desconhecia ter saída), ouvindo, já muito próximo da posição em que se encontrava, um grande estrondo, como se tivessem rebentado os pneus do veículo; o referido veículo era conduzido pelo pai de GG, DD, e o estrondo fora originado pelo embate do mesmo na referida corrente.
Em sede de instrução, reinquirido este militar, confirmaria esta sua versão – “Eu só dei conta quando o pai chegou …” -, esclarecendo que “se [a corrente no meio da via] estivesse sinalizada, nós de cá de cima teríamos visto”, sendo que era noite, estava escuro e não havia ali luz artificial; mas disse mais: “Se estivesse lá colocado o sinal tê-lo-ia visto”, explicando que tinha o carro da patrulha com os faróis ligados voltados para o caminho por onde a vítima teria passado na direcção do local onde se encontrava nesse momento.
O instrutor do relatório do NICAV que na noite do acidente se deslocou ao local, confirma no seu relatório, apoiado em fotografias tiradas nessa ocasião, que não existia na corrente qualquer sinalização, tão pouco no percurso efectuado até aí por GG era visível qualquer sinalização – cfr. reportagem fotográfica de fls. 190 a 193.
Já em inquérito, DD (fls. 116 e sgs.), pai da vítima mortal, foi contundente em afirmar que só se apercebeu do cadeado quando estava a chegar junto do mesmo, agarrando-se então ao volante e sentindo um estrondo; referiu ainda conhecer aquele caminho como público há 43 anos, ali passando com frequência, a pé, de jipe e de moto, a última vez aproximadamente um mês antes, nunca lá tendo visto uma corrente.
Inquirida a este propósito, nesta sede, a testemunha HH, que prestou à vítima os primeiros socorros no local, e que, desde finais de 2005 mora na Urbanização ..., ali próxima, sendo conhecedor da rua que dá acesso ao campo de futebol, diria não saber da vedação, por não costumar passar naquele local (“é um bocado isolado”).
Confirmou, com relevo, tal como a testemunha CC, que a Moto 4 conduzida pela vítima tinha a luz dianteira ligada; assim, referindo-se à testemunha II, quem primeiramente se deparou com o acidente e foi pedir a sua ajuda: “Ela viu uma luz virada para ela e viu um vulto no chão e assustou-se”.
Em suma: são muito fortes os indícios de que não existia qualquer sinalização da corrente metálica a vedar a passagem naquela via, tão pouco no percurso realizado por GG havia qualquer sinalização que o alertasse para tal.
Assim, a questão que verdadeiramente se coloca é a de saber se o arguido AA, responsável pela colocação daquela vedação e corrente metálica que impediam a circulação na via, como de resto assumiu ouvido na qualidade de testemunha – cfr. fls. 167 e sgs. –, ali colocou também, nessa ocasião, sinalização adequada e adoptou as providências necessárias à divulgação daquele corte de estrada, como lhe era imposto pelo Código da Estrada; apurando-se que não o fez, como podia e devia, e que desse modo deu causa ao acidente, estão verificados os elementos objectivos da negligência.
Ora, é aqui que o Ministério Público coloca dúvidas que, para nós, e com todo o devido respeito, não são compreensíveis.
Em primeiro lugar, dando crédito ao declarado pelo agora arguido, AA, ainda em sede de depoimento testemunhal, pressupõe o Ministério Público que este colocou ali um sinal na corrente e que o mesmo não estaria ali colocado por ter sido furtado.
Ora, o Posto Territorial ..., competente territorialmente, solicitado pelo Ministério Público a este propósito informou os autos que "não há qualquer registo de qualquer ocorrência na Rua ... - ...” - cfr. fls. 290 a 304.
Nenhuma outra diligência tendente a averiguar da verosimilhança daquela afirmação seria realizada; não foi a ... instada a juntar, por exemplo, comprovativos da aquisição desses sinais de trânsito que AA diz terem sido colocados e furtados, tão pouco de uma sua requisição aos Serviços Camarários, conforme será também comum, segundo o depoimento prestado nesta sede por BB, Presidente da Câmara Municipal ....
Segundo esta testemunha, as Juntas de Freguesia podem comprar os sinais a empresas da especialidade; mas a Câmara Municipal ... também fornece as Juntas de Freguesia com este tipo de sinais, a sua solicitação; esses fornecimentos ficam documentados com uma guia de transporte, para justificar a saída do armazém.
Note-se que consta dos autos uma fotografia do local datada de 16/07/2019, retratando o local do acidente tal como se encontrava três dias antes da sua ocorrência, da autoria dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal ..., na qual é visível a inexistência de qualquer sinal na corrente metálica aí colocada de um lado ao outro da via – cfr. fls. 267.
Por outro lado, como referido, segundo a testemunha DD, pai da vítima, cerca de um mês antes não existia ali sequer essa corrente. Na verdade, não há nos autos evidência de ter alguma vez sido colocada sinalização na corrente metálica em questão.
Além disso, não foi possível situar temporalmente com rigor a colocação da corrente metálica.
Sabe-se apenas que a acta nº 84 , da Reunião do Executivo da União de Freguesias ... e ... datada de 26/03/2019, foi aprovada a colocação de uma “vedação sinalizada, evitando a colocação de mais lixo”, sendo o respectivo ponto da ordem de trabalhos designado de “fecho da lixeira”.
Admitindo que se trata da vedação aqui em causa, pese embora solicitações várias à Câmara Municipal e à União de Freguesias, não foi junto qualquer documento relativo à efectiva colocação da dita vedação e bem assim da corrente metálica.
Existem outrossim comunicações internas dos Serviços do Núcleo Ambiental da Câmara Municipal ... que, em 23/04/2019, dão nota da solicitação à Junta de Freguesia da colocação da vedação – cfr. fls. 263 -, tudo indicando que por esta altura não haveria ainda vedação, estando União de Freguesias e Câmara Municipal a determinar qual das duas entidades procederia à mesma.
Em 21/06/2019, o aqui arguido remete um email a JJ da Câmara Municipal ..., com o assunto: “Lixeira junto ao campo de futebol”, no qual não alude a qualquer vedação, antes pressupondo que o problema continua por resolver – “Actualmente este local serve para todo o tipo de lixo sem que possamos controlar, pois já tivemos esta entrada bloqueada”, reclamando que seja a A... a tratar da limpeza – cfr. fls. 265.
No início de Julho de 2019 a Câmara Municipal desenvolvia diligências de remoção dos lixos ali depositados – cfr. fls. 270 e sgs., com especial relevo para o email de 10/07/2019, a fls. 271 verso.
Segundo AA a vedação teria sido colocada em meados de Março de 2019, antes mesmo da aprovação em sede de Executivo, situada no final de Março, em 26/03/2019 – fls. 168; junta, porém, a fls. 171, email por si remetido ao arquitecto KK, da Câmara Municipal ..., datado de 14/05/2019, no qual parece ser dado o problema ainda por resolver.
DD, pai da vítima afirma que o filho fazia aquele percurso semanalmente e ele próprio ali havia passado pela última vez cerca de um mês antes.
Neste quadro e na ausência de outros elementos, remanescem como pontos de referência tempo seguros para este efeito a data da acta de aprovação da colocação da vedação e a já referida data de 16/07/2019, documentada na fotografia do local a fls. 267.
Isto, sem perder de vista que a dita corrente metálica constitui um elemento móvel, detendo a empresa “A..., S.A.” as chaves que permitiam a sua abertura para passagem da circulação decorrente nomeadamente da deposição de terras, o que, aparentemente, ocorria sem qualquer tipo de registo ou controlo, pelo que os seus funcionários tanto podiam deixar a corrente presa como solta.
O certo é que na noite dos factos a corrente estava colocada - segundo AA foi ali colocada por si próprio, juntamente com dois funcionários da Junta de Freguesia – cfr. fls. 218.
Certo é também que estaria ali colocada sem sinalização, sendo que, apesar da alegação de AA de que os sinais ali colocados eram furtados, não existe qualquer elemento nos autos que a corrobore.
Não podemos, assim, acompanhar a premissa adoptada pelo Ministério Público de que a ausência de sinalização se terá ficado a dever a furto.
Em segundo lugar, cremos que o Ministério Público labora em equívoco quando parte do pressuposto de que o arguido apenas tinha que sinalizar a corrente metálica do lado da circulação provinda de ..., para estar visível a quem se deslocasse da Rua ... para a Rua ..., mas não no sentido inverso, não lhe cabendo tomar qualquer outra diligência.
Expliquemos porquê.
Desde logo, segundo o disposto no art. 9º do Código da Estrada:
«1 - A suspensão ou condicionamento do trânsito só podem ser ordenados por motivos de segurança, de emergência grave ou de obras ou com o fim de prover à conservação dos pavimentos, instalações e obras de arte e podem respeitar apenas a parte da via ou a veículos de certa espécie, peso ou dimensões.
2 - A suspensão ou condicionamento de trânsito podem, ainda, ser ordenados sempre que exista motivo justificado e desde que fiquem devidamente asseguradas as comunicações entre os locais servidos pela via.
3 - Salvo casos de emergência grave ou de obras urgentes, o condicionamento ou suspensão do trânsito são publicitados com a antecedência fixada em regulamento.».
Não consta que a suspensão do trânsito pelo caminho público nº ... e Rua ... haja sido publicitada.
Acresce que, atendendo a que, na prática, se interrompeu a circulação nessas vias, colocando um obstáculo nas mesmas, cumpria proceder à sua sinalização conveniente, por forma a que fosse visível e inteligível por todos e quaisquer condutores ou peões que por ela circulassem, num ou noutro sentido de trânsito, visto que o obstáculo abrangia a totalidade da via, e não apenas a faixa da direita atento o sentido Rua .../Rua ...; neste caso, de suspensão da hemifaixa da direita, sim, justificar-se-ia o sinal voltado somente para quem proviesse da Rua ..., posto que quem circulasse no sentido contrário, o utilizado pela vítima GG, teria essa hemifaixa desobstruída.
Estatui a este propósito o art. 5º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Sinalização”, o seguinte:
«1 - Nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis, devem ser utilizados os respetivos sinais de trânsito.
2 - Os obstáculos eventuais devem ser sinalizados por aquele que lhes der causa, por forma bem visível e a uma distância que permita aos demais utentes da via tomar as precauções necessárias para evitar acidentes.
(…)».
Nos termos do disposto no art. 1º do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10:
«1 — Nos locais da via pública que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este esteja sujeito a precauções ou restrições especiais e sempre que se mostre aconselhável dar aos utentes quaisquer indicações úteis, são utilizados os sinais de trânsito constantes do presente Regulamento.
(…)
3 — Sobre os sinais de trânsito ou na sua proximidade não podem ser colocados quadros, painéis, cartazes ou outros objectos que possam confundir-se com os sinais de trânsito ou prejudicar a sua visibilidade ou reconhecimento, ou ainda perturbar a atenção do condutor.»
Prescreve o art. 13º/1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito que «Os sinais devem ser colocados de forma a garantir boas condições de legibilidade das mensagens neles contidas e a acautelar a normal circulação e segurança dos utentes das vias.».
Ainda, segundo o preceituado no art. 8º/1 do Código da Estrada:
«1 - A realização de obras nas vias públicas e a sua utilização para a realização de atividades de caráter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal ou colocar restrições ao trânsito dos peões nos passeios só é permitida desde que autorizada pelas entidades competentes, e com a correspondente aplicação local de sinalização temporária e identificação de obstáculos.
(…)».
Ora, a considerarmos que estamos perante um obstáculo na via a carecer de sinalização temporária, então teremos um conjunto de procedimentos necessários visando a segurança dos seus utilizadores, previstos no art. 83º e sgs. do Regulamento de Sinalização do Trânsito, que vão desde a sinalização de aproximação, passando pela pré-sinalização e acabando na sinalização final, sem olvidar a utilização de sinalização luminosa ou material reflector tendo em vista assegurar a visibilidade do obstáculo em período noturno.
De todo este quadro legal decorre que o legislador revela, como não poderia deixar de ser, um enorme cuidado com a visibilidade da sinalização e a compreensão pelos condutores da mensagem que transmite, especialmente quando se trata de obstáculos sobre a via.
Vistos os elementos nos autos, verificamos que, tendo sido suspensa a circulação na via pública aqui em causa, nenhum destes procedimentos terá sido cumprido, nomeadamente por quem a tal estava obrigado, o aqui arguido, por ter sido o autor da colocação dos obstáculos que passaram a impedir essa circulação.
E assim sendo, entendemos, ao contrário do Ministério Público, que a obrigação de sinalização não se restringia a um dos dois sentidos de trânsito da via, mas obviamente a ambos, visto que o obstáculo aí colocado abrangia-a na sua totalidade, suspendendo por completo a circulação pela mesma, devendo, por isso, ser também sinalizado para quem nela circulasse provindo da Rua ... para a Rua ....
Além disso, nenhum dos procedimentos legalmente previstos no Código da Estrada e no Regulamento da Sinalização do Trânsito tendentes a evitar precisamente o resultado ocorrido – um acidente, com embate de um veículo no obstáculo colocado sobre a via – foi no caso adoptado.
Em terceiro lugar, parece-nos especulativo e destituído de valor para efeitos de fundamentação indiciária a elocubração acerca do que veria o condutor da Moto 4 ao aproximar-se da corrente metálica caso ali estivesse uma placa em que fosse apenas visível a parte de trás da mesma.
A verdade é que o Ministério Público, podendo, não realizou ao longo destes quase 3 anos de investigação qualquer ensaio no local por forma a percepcionar o que era visível nesse caso e a que distância, mantendo-se no domínio puramente especulativo.
Além disso e no que toca à velocidade a que seguia o condutor da Moto 4, o relatório do NICAV é assertivo quando, com base nas marcas dos rodados no piso, conclui que a passagem do veículo na zona da corrente metálica “não terá sido realizada em grande aceleração”, sendo certo que estamos a falar de uma estrada em terra batida, em sentido ascendente, e de um veículo que não é conhecido por velocidades muito elevadas.
Quanto à possibilidade ou probabilidade que teria de avistar uma placa colocada no centro da corrente metálica, mesmo que correspondendo apenas à parte de trás de um sinal de trânsito, parece-nos evidente que seria necessariamente maior do que inexistindo lá colocado qualquer sinal; veja-se que o militar da GNR no local, com as luzes apontadas para a via (no sentido contrário ao da circulação do veículo sinistrado), não deu conta da existência no local da referida corrente metálica o que, dificilmente seria possível se ali estivesse colocada, ao centro, uma placa, mesmo que com a informação sinalética voltada para o outro lado.
Dizem-nos as regras da experiência que encontrar-se um elemento sólido com a dimensão de uma placa de trânsito, mesmo que voltada de costas, no meio de uma corrente metálica que veda a circulação, não é, nem pode ser o mesmo que nada lá se encontrar, sendo, pois, de admitir que pudesse ter sido vista pelo condutor da Moto 4 que trazia as luzes dianteiras ligadas e não circulava em grande aceleração, permitindo-lhe, senão travar a tempo de evitar o embate, pelo menos reduzir a velocidade por forma a minimizar o impacto.
E tal é tanto mais relevante quanto no domínio da negligência, como veremos infra, o comportamento há-de considerar-se objectivamente negligente sempre que o cumprimento do dever de cuidado tivesse o efeito de aumentar as probabilidades de evitar uma determinada lesão, não tendo obviamente que ter-se por certo que evitasse efectivamente essa lesão (como parece ter sido pressuposto no raciocínio expresso no despacho de arquivamento).
Ademais, questionar se o condutor teria tido tempo de parar ao ver essa sinalização por se desconhecer a velocidade a que seguia, para depois genericamente concluir que “impõe-se ao condutor tomar especiais cautelas e um acrescido dever de cuidado no cumprimento das regras estradais na realização de manobras. A medida do cuidado exigível coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico.”, parece-nos um verdadeiro contrassenso em si mesmo, mas também contrasta com a afirmação de partida do Ministério Público: “conclui-se que o acidente teve a sua possível causa na ausência, à data, de sinalização na corrente ou na aproximação desta.”.
Em boa verdade, não vemos nos autos um único indício que nos permita concluir ter a vítima mortal, GG, contribuído para a produção do resultado típico, a sua morte.
Segundo se averiguou com base nas marcas existentes no solo, GG não efectuou uma passagem no local em grande aceleração, podendo concluir-se que seguia a uma velocidade moderada e adequada às condições da via; era portador de habilitação legal para a condução daquele veículo, e seria já experiente nessa condução, assim como utilizador habitual daquele percurso estradal; circularia com a luz dianteira desse veículo ligada.
Além disso, no percurso que efectuou não encontrou qualquer sinalização indicativa dos obstáculos na via colocados pelo arguido.
GG teria, assim, todas as razões para confiar que a via se encontrava desimpedida e em condições de ser utilizada sem restricções.
De harmonia com o chamado princípio da confiança1 não seria exigível que GG previsse estar a circulação interrompida naquele local, com uma rede malhasol e uma corrente metálica em toda a sua extensão.
1 Veja-se a este propósito Figueiredo Dias, in ob. e loc. cit..
Em suma: não colhe a argumentação vertida no despacho de arquivamento, secundada pela defesa em sede de debate instrutório, tendendo à responsabilização exclusiva da vítima mortal do acidente objecto dos autos pela sua ocorrência quando nesse mesmo despacho se reconhece ser a falta de sinalização do obstáculo na via uma causa possível do acidente e todos os dados nos autos apontam para que tenha sido de facto essa a causa do acidente, como concluiu o NICAV; sendo que não há nos autos indícios que apontem para uma qualquer contribuição da vítima mortal para a produção do resultado típico.
Mais: dada a profusão de elementos de prova reunidos no inquérito, entendemos também que não se trata de um caso em que faltem as provas para esclarecer o que de facto terá ocorrido, como ficou, cremos, demonstrado na decisão supra.

c. Da imputação criminal

(…)

Tendo presentes todas estas coordenadas jurídicas essenciais na averiguação de comportamentos negligentes, volvemos a nossa atenção para o caso sub iudice.
Ora, considerando os factos indiciados, não temos dúvidas que a provarem-se em julgamento, permitirão levar à condenação do arguido por actuação negligente causadora do resultado típico morte, no sentido atrás preconizado.
Com efeito, o arguido, a exercer funções de Presidente da União de Freguesias onde se inseria o local do acidente, terá colocado em plena via pública uma vedação, com uma corrente, que impedia a circulação rodoviária pela mesma, sem cuidar de anunciar a suspensão dessa circulação ou de a sinalizar.
Deste modo, o arguido infringiu o disposto nos arts. 5º/2, 8º e 9º do Código da Estrada, mas também e ainda o estatuído nos arts. 2º e 13º/1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito, conforme acima se expôs.
Aí temos, pois, consubstanciada a omissão do dever objectivo de cuidado que passava por ter o arguido publicitado aquela suspensão da circulação na via em causa, e sinalizado os obstáculos ali colocados em toda a sua extensão, por forma a evitar que, por desconhecimento e falta de visibilidade desses obstáculos, especialmente à noite, visto que o local não tinha iluminação artificial, os condutores fossem surpreendidos pelos mesmos e viessem a embater neles, com perigo para sua integridade física e vida.
Como consequência directa desta conduta ocorreu o embate acima descrito e do mesmo resultou a morte de GG.
A conduta do arguido não anunciando nem sinalizando devidamente os obstáculos colocados na via, é, em abstracto, idónea a causar mortes, pois que destinando-se o anúncio e a sinalização a dar conhecimento aos utentes da via da existência de tais obstáculos, para que adequem a sua condução em conformidade e em segurança, a sua falta impede-os ou dificulta muito que realizem essa adequação e circulem em segurança.
E assim se perfila o nexo causal entre a omissão de dever de cuidado do arguido e o resultado típico produzido.
Assim, podemos ter por indiciado que o arguido não logrou evitar o acidente mortal em análise porque omitiu o dever de anunciar e sinalizar os obstáculos colocados na via pública utilizada por GG, cuidados elementares prescritos, aliás, nas regras plasmadas no Código da Estrada e no Regulamento de Sinalização do Trânsito.
Tudo visto e pesado, é nosso entendimento que, os indícios apontam para que a totalidade do resultado típico possa ser imputada ao comportamento negligente do arguido.
E se é assim do ponto de vista do preenchimento do tipo objectivo, do ponto de vista da tipicidade subjectiva, estão reunidos os elementos para concluirmos pela verificação de uma actuação imbuída de negligência inconsciente.
Na verdade, se o requerimento de abertura de instrução não continha a alegação factual correspondente à negligência consciente, por um lado, por outro, não se logrou apurar nesta sede indiciária factualidade que permitisse com segurança concluir nesse sentido.
Assim, embora consideremos indiciado que o arguido soubesse que lhe era legalmente imposto o dever de sinalizar os obstáculos colocados na via – como, de resto, diz ter feito, tratando-se além do mais de uma regra estradal elementar -, não pudemos considerar indiciado que soubesse igualmente que, não o fazendo, podia vir a ocorrer uma morte por embate de um veículo na mesma.
Nesta conformidade, os indícios apontam para que tenha actuado com negligência inconsciente.
Tudo visto, resulta suficientemente indiciado que o arguido cometeu o crime de homicídio por negligência, previsto no art. 137º/1 do Código Penal, sendo a negligência inconsciente nos termos previstos no citado art. 15º/b) do Código Penal.”

Tendo presente a prova indiciária produzida, não há dúvidas que foi colocada uma corrente numa rua pública. O obstáculo ali colocado pela Junta d e freguesia situa-se numa rua e não num caminho vicinal. A infeliz vítima provinha da Rua ..., passou pela Travessa ..., entrou num caminho vicinal e daí provindo entrou na Rua ... onde se deparou com o obstáculo que a vitimou, cfr. resulta claramente da fotografia de fls. 190.Portanto a corrente não estava um caminho vicinal. Aliás a própria autoridade policial dá disso conta no relatório que elaborou de fls 174 e ss. Sendo assim concordamos com o tribunal a quo quando afirma que era necessária a devida sinalização da presença de tal obstáculo para quem viesse do lado da vítima, sinalização que se imponha em plena rua pública tanto de um lado como do outro. E não havia avisos nem qualquer tipo de sinalética para esse efeito, apenas existindo do lado oposto para quem vem da Rua ....
Relativamente à placa, também não temos dúvidas que ela não estava colocada na corrente à data do acidente e parece-nos que ela existiu como parece atestar a fotografia junta com o recurso. O facto de não haver participações de furto da mesma, não significa poder concluir-se que ela nunca ali foi colocada. E nesta parte discordamos das conclusões tiradas pelo tribunal a quo.
Pode efetivamente ter sido furtada e o arguido desconhecer que a mesma já ali não se encontrava. Mas tal não o desresponsabilizava da necessária sinalização para quem vinha do lado da Rua ....
O tribunal a quo também aborda a questão da hipótese de ali haver uma placa e de poder ser vista no seu verso.
A análise dos factos permite concluir que ainda não seria completamente de noite quanto o acidente se deu. Estaríamos no período do lusco-fusco. E que, portanto, a vítima ainda poderia ter visto, nessas condições a placa e a corrente ali colocada.
Contudo, concorda-se com a argumentação do tribunal a quo, tendo presente a prova recolhida quanto à conduta da vítima, tipo de veículo em causa, conhecimento do local por onde circulava e a ausência de qualquer outro tipo de sinalização, atento o seu sentido de marcha e falta de iluminação.

Posto isto, a considerarmos que estamos perante um obstáculo na via a carecer de sinalização temporária, haveria que tomar um conjunto de procedimentos necessários visando a segurança dos seus utilizadores, previstos no art. 83º e sgs. do Regulamento de Sinalização do Trânsito, que vão desde a sinalização de aproximação, passando pela pré-sinalização e acabando na sinalização final, sem olvidar a utilização de sinalização luminosa ou material refletor tendo em vista assegurar a visibilidade do obstáculo em período noturno.
De todo este quadro legal decorre que o legislador revela, como não poderia deixar de ser, um enorme cuidado com a visibilidade da sinalização e a compreensão pelos condutores da mensagem que transmite, especialmente quando se trata de obstáculos sobre a via.
Vistos os elementos nos autos, verificamos que, tendo sido suspensa a circulação na via pública aqui em causa, nenhum destes procedimentos terá sido cumprido, nomeadamente por quem a tal estava obrigado, o aqui arguido, por ter sido o autor da colocação dos obstáculos que passaram a impedir essa circulação.
E assim sendo, concorda-se com o tribunal a quo que a obrigação de sinalização não se restringia a um dos dois sentidos de trânsito da via, mas obviamente a ambos, visto que o obstáculo aí colocado abrangia-a na sua totalidade, suspendendo por completo a circulação pela mesma, devendo, por isso, ser também sinalizado para quem nela circulasse provindo da Rua ... para a Rua ....

Quanto à possibilidade ou probabilidade que teria de avistar uma placa colocada no centro da corrente metálica, mesmo que correspondendo apenas à parte de trás de um sinal de trânsito, parece-nos evidente que seria necessariamente maior do que inexistindo lá colocado qualquer sinal; veja-se que o militar da GNR no local, com as luzes apontadas para a via (no sentido contrário ao da circulação do veículo sinistrado), não deu conta da existência no local da referida corrente metálica o que, dificilmente seria possível se ali estivesse colocada, ao centro, uma placa, mesmo que com a informação sinalética voltada para o outro lado.
Dizem-nos as regras da experiência que encontrar-se um elemento sólido com a dimensão de uma placa de trânsito, mesmo que voltada de costas, no meio de uma corrente metálica que veda a circulação, não é, nem pode ser o mesmo que nada lá se encontrar, sendo, pois, de admitir que pudesse ter sido vista pelo condutor da Moto 4 que trazia as luzes dianteiras ligadas e não circulava em grande aceleração, permitindo-lhe, senão travar a tempo de evitar o embate, pelo menos reduzir a velocidade por forma a minimizar o impacto.
E tal é tanto mais relevante quanto no domínio da negligência, como veremos infra, o comportamento há de considerar-se objetivamente negligente sempre que o cumprimento do dever de cuidado tivesse o efeito de aumentar as probabilidades de evitar uma determinada lesão, não tendo obviamente que ter-se por certo que evitasse efetivamente essa lesão.
Não vemos nos autos um único indício que nos permita concluir ter a vítima mortal, GG, contribuído para a produção do resultado típico, a sua morte.
Segundo se averiguou com base nas marcas existentes no solo, GG não efetuou uma passagem no local em grande aceleração, podendo concluir-se que seguia a uma velocidade moderada e adequada às condições da via; era portador de habilitação legal para a condução daquele veículo, e seria já experiente nessa condução, assim como utilizador habitual daquele percurso estradal; circularia com a luz dianteira desse veículo ligada.
Além disso, no percurso que efetuou não encontrou qualquer sinalização indicativa dos obstáculos na via colocados pelo arguido.
GG teria, assim, todas as razões para confiar que a via se encontrava desimpedida e em condições de ser utilizada sem restrições.
De harmonia com o chamado princípio da confiança não seria exigível que GG previsse estar a circulação interrompida naquele local, com uma rede malhasol e uma corrente metálica em toda a sua extensão.
Mas ainda que se pudesse admitir não saber o arguido do furto da placa e que o lado do verso da placa pudesse, de alguma forma, diminuir a probabilidade do acidente, tal não iliba parte da responsabilidade do arguido que não terá cumprido com toda a diligência devida consubstanciada na falta de sinalização do obstáculo em ambos os lados da via, uma causa possível do acidente e todos os dados nos autos apontam para que tenha sido de facto essa a causa do acidente, como concluiu o NICAV; sendo que não há nos autos indícios que apontem para uma qualquer contribuição da vítima mortal para a produção do resultado típico.

Considerando os factos indiciados, não temos dúvidas que a provarem-se em julgamento, permitirão levar à condenação do arguido por atuação negligente causadora do resultado típico morte, no sentido atrás preconizado.
Com efeito, o arguido, a exercer funções de Presidente da União de Freguesias onde se inseria o local do acidente, terá colocado em plena via pública uma vedação, com uma corrente, que impedia a circulação rodoviária pela mesma, sem cuidar de anunciar a suspensão dessa circulação ou de a sinalizar devidamente.
Deste modo, o arguido infringiu o disposto nos arts. 5º/2, 8º e 9º do Código da Estrada, mas também e ainda o estatuído nos arts. 2º e 13º/1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito, conforme acima se expôs.
Aí temos, pois, consubstanciada a omissão do dever objetivo de cuidado que passava por ter o arguido publicitado aquela suspensão da circulação na via em causa, e sinalizado os obstáculos ali colocados em toda a sua extensão, por forma a evitar que, por desconhecimento e falta de visibilidade desses obstáculos, especialmente à noite, visto que o local não tinha iluminação artificial, os condutores fossem surpreendidos pelos mesmos e viessem a embater neles, com perigo para sua integridade física e vida.
Como consequência direta desta conduta ocorreu o embate acima descrito e do mesmo resultou a morte de GG.
A conduta do arguido não anunciando nem sinalizando devidamente os obstáculos colocados na via, é, em abstrato, idónea a causar mortes, pois que destinando-se o anúncio e a sinalização a dar conhecimento aos utentes da via da existência de tais obstáculos, para que adequem a sua condução em conformidade e em segurança, a sua falta impede-os ou dificulta muito que realizem essa adequação e circulem em segurança.
E assim se perfila o nexo causal entre a omissão de dever de cuidado do arguido e o resultado típico produzido.
Concordando com o tribunal a quo em parte substancial dos seus argumentos, podemos ter por indiciado que o arguido não logrou evitar o acidente mortal em análise porque omitiu o dever de anunciar e sinalizar os obstáculos colocados na via pública utilizada por GG, cuidados elementares prescritos, aliás, nas regras plasmadas no Código da Estrada e no Regulamento de Sinalização do Trânsito.
Tudo visto e pesado, é nosso entendimento que, os indícios apontam para que a totalidade ou parte do resultado típico possa ser imputado ao comportamento negligente do arguido.
E se é assim do ponto de vista do preenchimento do tipo objetivo, do ponto de vista da tipicidade subjetiva, estão reunidos os elementos para concluirmos pela verificação de uma atuação imbuída de negligência inconsciente.
Tudo visto, resulta suficientemente indiciado que o arguido cometeu o crime de homicídio por negligência, previsto no art. 137º/1 do Código Penal, sendo a negligência inconsciente nos termos previstos no citado art. 15º/b) do Código Penal.

Prevê o artigo 137°, n° 1, do Código Penal que "quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa".
Pressupostos da afirmação da tipicidade nos crimes negligentes materiais ou de resultado são a violação de um dever objetivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objetiva desse mesmo resultado típico.
A imputação objetiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objetiva, de acordo com um critério de "causalidade adequada" (art. 10° do Código Penal).


Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelo arguido a propósito das nulidades invocadas, confirmando-se ainda o despacho de pronúncia proferido no tribunal a quo.

Custas a cargo do arguido que fixo em 4 Ucs.
Notifique.

Sumário:
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(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)


Porto 11/10/2023
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha