Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7639/21.9T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
MANDATO FORENSE
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO
PERDA DE CHANCE
Nº do Documento: RP202310107639/21.9T8VNG.P1
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A responsabilidade contratual resulta da violação de direitos de crédito ou obrigações em sentido técnico, emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei; dito de outro modo, resulta da violação de um dever jurídico específico de prestar.
II – A responsabilidade extracontratual resulta da violação de direitos absolutos (a que a nossa lei equipara a violação de normas destinadas a proteger interesses alheios, ainda que estas não confiram aos respectivos titulares um direito subjectivo); dito de outro modo, resulta da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, ou melhor, da violação do dever geral de abstenção próprio dos direitos absolutos.
III – As regras deontológicas impostas pelo Estatuto da Ordem dos Advogados configuram normas imperativas, que integram o contrato de mandato forense e que “conformam o próprio dever de prestar”, constituindo uma limitação à liberdade contratual dos particulares contemplada no artigo 405.º do CC.
IV – A responsabilidade civil do advogado pela violação dessas normas, no âmbito da sua relação com o cliente, tem natureza contratual, pois assenta na violação de uma obrigação em sentido técnico, ou seja, na violação de um dever específico de prestar (do mandatário) e do correspondente direito relativo à prestação debitória (do patrocinado).
V – A certeza do dano correspondente à perda de chance processual – decorrente do comportamento indevido do mandatário que impediu o desenrolar e o desfecho normal dum processo – não tem de ser absoluta, nem poderia sê-lo; tratando-se da certeza sobre uma realidade hipotética que não chegou a verificar-se, tem de se situar no domínio das probabilidades, das certezas relativas.
VI – Mas nem toda a chance ou oportunidade perdida traduz um dano certo, relevante enquanto fundamento da responsabilidade civil; para ser indemnizável, a chance perdida tem de ser consistente e séria, em conformidade com a jurisprudência uniforme do STJ.
VII – Esta certeza relativa deve ser apurada através de um juízo de prognose póstuma, isto é, um “julgamento dentro do julgamento” que permita reconstruir a situação hipotética que existiria se não tivesse ocorrido a falta do mandatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7639/21.9T8VNG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Rua ..., ... ..., Vila Nova de Gaia, intentou a presente acção declarativa comum contra BB, advogada, com domicílio profissional na Avenida ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 168.943,24 € a título de danos patrimoniais, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em essência, ter solicitado à ré que, em sua representação, propusesse uma acção judicial pedindo a declaração da sua insolvência, tendo como principal objectivo a obtenção da exoneração do passivo restante, mas que, em consequência do incumprimento, pela ré, das obrigações decorrentes do contrato de mandato, veio a ser proferida decisão de cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, o que lhe causou os prejuízos, que quantifica e cujo ressarcimento pretende obter.
A ré apresentou contestação, impugnando parcialmente os factos alegados pelo autor, imputando a este a responsabilidade exclusiva pelo incumprimento que deu causa à cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante e questionando a quantificação do dano operada pelo autor.
Mais deduziu incidente de intervenção principal provocada da seguradora para a qual havia transferido a sua responsabilidade civil profissional.
Admitida a intervenção de A... Company, SE, representada em Portugal por B..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., ... Lisboa, a mesma apresentou contestação, excepcionando o pré-conhecimento pela ré BB, em fase anterior ao início de vigência da apólice, dos factos geradores de responsabilidade, invocando a violação do prazo de comunicação do sinistro, impugnando os factos alegados pelo autor, imputando a este a responsabilidade pelas omissões que deram causa à cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante e questionando o critério utilizado pelo autor para cálculo dos danos.
Mediante convite do Tribunal a quo, o autor/recorrido veio aperfeiçoar o seu articulado inicial, concretizando a factualidade referente aos danos, que ali havia sido alegada de forma conclusiva, após o que foi assegurado às demandadas o exercício do contraditório, tendo o Tribunal a quo desconsiderado a “petição inicial aperfeiçoada” na parte em que extravasou o convite.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho que fixou o valor da acção, identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
Apreciados os requerimentos probatórios, foi designada data para audiência de julgamento, que veio a realizar-se, após o que foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, reconhecendo a responsabilidade civil profissional imputada à ré, condeno a chamada A... Company SE a pagar ao autor a quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a presente data até efectivo e integral pagamento, absolvendo a ré e a chamada do demais peticionado.
Custas a cargo do demandante e das demandadas na proporção quantitativa dos respectivos vencimentos (art.º 527º, nº1 e nº2 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o autor.
Registe e Notifique.»
*
Inconformada, a chamada A... Company SE apelou desta sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1- Conforme resulta da argumentação exposta o autor mandatou a ré para que dessa entrada de um pedido de insolvência pessoal com pedido de exoneração do passivo restante tendo sido proferida sentença de insolvência do autor em 17/01/2017.
2- Em julho de 2019 o autor foi notificado através de comunicação datada de 8 de julho de 2019 para, em 10 dias, remeter a fiduciaria documentos comprovativos de rendimentos auferidos entre os meses de abril de 2017 à março de 2019.
3- Em 24/07/2019 o autor enviou a Mensagem a Ré Advogada dando conta que havia deixado na sua caixa de correio cópias dos documentos relativos à apresentação de rendimentos requerida pela fiduciária.
4- Em 29/01/2020 foi proferido despacho julgando antecipadamente cessado o procedimento de exoneração do autor.
5- O tribunal a quo na sua fundamentação desconsiderou por completo a negligencia recorrente do Autor no processo de insolvência bem como a incapacidade de remissão da documentação requerida aquando do envio da mesma para a ré advogada.
6- De facto, em 24.07.2019 há muito havia passado o prazo para envio da documentação requerida, facto que não poderá ser imputado à ré advogada.
7- Face à argumentação superexposta não poderia o tribunal imputar à ré culpa quanto a privação a possibilidade de alcançar a exoneração do passivo restante quando a ré apenas teve conhecimento da notificação para junção dos documentos requeridos após o término do prazo definido para o efeito.
8- mal andou a sentença recorrida ao desconsiderar por completo a negligência contínua apresentada pelo autor Ao não remeter a documentação requerida Já em período anterior 2017.
9- De facto, bem andou a ré advogada ao recorrer do despacho Da decisão de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, num pleno cumprimento pelos deveres adstritos ao mandato que lhe havia sido conferido pelo autor.
10- Não poderá acolher a proteção formulada quanto ao dano de perda de chance por quanto, e tendo em conta a desconsideração dos deveres a este adstritos, não seria antecipar que a final fosse proferido despacho de exoneração do passivo restante.
11- Assim no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chance cumpre relembrar que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022, de 26 de janeiro, veio clarificar que: “O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.”
12- Concluindo, a Ré Advogada e Seguradora não estão obrigados a indemnizar a Autora por danos patrimoniais uma vez que não estão demonstrados todos os pressupostos da obrigação de indemnização!
13- Sempre se dirá que, no presente caso, o Direito e os institutos da responsabilidade civil contratual e do dano de perda de chance não podem, no presente caso, tutelar o interesse e expectativa do Autor que, durante anos se eximiu das suas responsabilidades.
14- Ou seja, se o Autora agiu, ao longo de todo este tempo, de modo negligente, não pode agora pretender, nestes autos, ser ressarcida por um alegado dano ou prejuízo que sempre teria de suportar, ainda que parcialmente.
15- Assim, o tribunal a quo andou mal quando considerou verificado o dano perda de chance, devendo a sentença recorrida ser revogada e o pedido ser julgado improcedente por não provado!
Concluindo, salvo o devido respeito não poderia nunca vingar a condenação, nos termos decididos, pelo Tribunal a quo, nomeadamente a título de perda de chance, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada, no sentido de julgar totalmente improcedente a ação por não provada.
Como tal, deverá ser revogada a douta Sentença proferida, na parte impugnada nos termos supras expostos, alterando-se a matéria de facto dada como provada em conformidade com o alegado, absolvendo-se os Réus da totalidade dos pedidos formulados.»
*
O autor respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela rejeição do recurso da matéria de facto, com fundamento no incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, e pela integral improcedência da apelação.
*
II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- A admissibilidade do recurso da matéria de facto;
- No caso afirmativo, o erro de julgamento quanto à matéria de facto;
- Em qualquer dos casos, o erro de julgamento quanto à matéria de direito, por não estarem verificados os pressupostos da responsabilidade civil da ré BB, nomeadamente a culpa da ré e o dano por perda de chance processual.
*
III. Fundamentação
A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
a) A ré é advogada.
b) Em finais de 2016 o autor contactou a ré, para que a mesma desse entrada a um pedido de insolvência pessoal, com pedido de exoneração do passivo restante.
c) O principal objectivo do autor era o de obter a exoneração do passivo restante cinco anos após o encerramento do processo de insolvência
d) Em 07 de Janeiro de 2017 a Ré, na qualidade de mandatária do Autor, deu entrada ao pedido de declaração de insolvência do Autor, com o respetivo pedido de exoneração do passivo restante.
e) Indicando na petição inicial que o Autor tinha como créditos vencidos o montante de € 43.068,60 à sociedade C..., Lda e o montante de € 125.874,64, à Banco 1....
f) À data da apresentação do requerimento de insolvência foi indicada a existência de um passivo no valor global de € 168.943,24
g) Tal passivo resultava, quase exclusivamente, da atividade profissional que o autor desenvolveu na sociedade “D..., Lda”, da qual era sócio e que foi declarada insolvente em 28-05-2014.
h) Tal passivo onerou o Autor em resultado de garantias pessoais concedidas aos credores.
i) Em 17 de Janeiro de 2017 foi proferida sentença de insolvência do autor.
j) Em 21 de Março de 2017, o Administrador de Insolvência nomeado (Dr. CC) juntou aos autos de Insolvência o seu relatório, nos termos do art.º 155º do CIRE.
k) Consta daquele relatório que o credor Autoridade Tributária e Aduaneira reclamou um crédito referente a coimas, custas e juros de mora no valor de 292,17 €.
l) Que a Banco 1..., S.A (NIF ...) reclamou e foi-lhe provisoriamente reconhecido, um crédito comum, com origem num aval, de 145.552,45 €.
m) Que o credor C..., L.da (NIF ...) reclamou e foi-lhe provisoriamente reconhecido, um crédito comum, com origem numa fiança de 43.759,73 €.
n) E que o credor Banco 2..., S.A (NIF ...) reclamou e foi-lhe provisoriamente reconhecido, um crédito comum, com origem num aval, de 239.024,06 €.
o) Refere-se no referido relatório que o A. não era proprietário de nenhum imóvel, automóvel ou quaisquer outros bens.
p) Em 31 de Março de 2017 realizou-se a assembleia de credores onde foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo formulado pelo Autor, sendo fixado em um salário mínimo nacional o respetivo rendimento disponível e ordenado que o devedor fosse expressamente advertido das obrigações a que fica sujeito “constantes do art.º 239º, nº4 e 240º, nº1 do CIRE”, nos termos constantes do documento nº3 anexo à petição inicial, cujo restante teor se tem por reproduzido.
q) Em Julho de 2019 o autor recebeu uma notificação do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 3, no identificado processo de insolvência, identificada com a data de envio (texto da carta e processo electrónico) de 08.07.2019, com o seguinte teor: “[F]ica notificado, na qualidade de Insolvente, relativamente ao processo supra identificado, do conteúdo da promoção ref.ª 404209730 e do despacho ref.ª404492967 de que se juntam cópias, designadamente para, em 10 dias, remeter à Sra. Fiduciária os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos nos meses de Abril de 2017 a Março de 2019, designadamente os recibos de vencimento e a declaração Modelo 3 – IRS apresentada em 2010 e 2019, ou outros documentos comprovativos de subsídios que eventualmente aufira, sob pena de, não o fazendo, poder vir a ser antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante, por violação dos deveres de informação/colaboração, cfr. artºs 243º nº 1 alínea a) e 239º, nº 4, alínea a), do CIRE”.
r) No dia 24 de Julho de 2019, pelas 11h15m o Autor enviou uma mensagem do seu telemóvel para o telemóvel da Ré informando-a de que tinha recebido a notificação referida em q) para apresentação dos rendimentos e que havia deixado cópias dos documentos na caixa de correio do escritório.
s) Pelas 14h09m do mesmo dia 24 de Julho de 2019, o A. enviou outra mensagem do seu telemóvel para o telemóvel da Ré com o seguinte teor: “Dra. BB já lhe liguei 4vx hoje, seria possível responder à mensagem para dar uma orientação de como proceder?”.
t) Pelas 14h49m a Ré enviou outra mensagem do seu telemóvel para o telemóvel do A. com o seguinte teor: “Estou de férias, durante a manhã não estou disponível estou a fazer tratamento. Cheguei agora ao escritório e já vi os documentos. Eu encaminho à administradora.
u) Apesar do referido em t), a Ré não enviou os documentos à Fiduciária.
v) Em 23-10-2019, o MP promoveu que se declarasse a cessação antecipada do procedimento.
w) Em 14-11-2019, o Ex.mo Senhor Juiz proferiu o seguinte despacho: “Fls. 97 e ss: visto o aí M.D. Promovido, ao Insolvente, Ex.mo Fiduciário, bem como a todos os credores relacionados, tudo com oportuna “cls” com vista a dirimir o aí pendente assunto”.
x) Em 20-11-2019 o autor e a Ré foram notificados do conteúdo da promoção do MP e do despacho referidos em v) e w).
y) Na sequência das notificações referidas em x), não foram encaminhados para a administradora ou para o processo os documentos comprovativos dos rendimentos do autor, por este ou pela ré.
z) Em 29-01-2020, foi proferido despacho onde foi julgado como antecipadamente cessado o procedimento de exoneração que fora admitido em relação ao Autor.
aa) Em 13.03.2020 a ré interpôs recurso dessa decisão, que não obteve provimento.
bb) Durante o ano de 2017, o A. declarou auferir o rendimento global de 208,87 €, pelo que o A. nada teria que entregar ao Fiduciário.
cc) Durante o ano de 2018, o A. declarou um rendimento colectável de 4.199,06 €, pelo que nada teria que entregar ao Fiduciário.
dd) No ano de 2019, o A. declarou auferir 2.100,00 € de rendimento de trabalho dependente e 5.620,62 € como trabalhador independente, sendo o rendimento colectável de 6.315,46 €.
ee) No ano de 2019, o A. nada teria que entregar ao Fiduciário.
ff) A fiduciária, através de requerimento entregue no processo de Insolvência em 11 de Julho de 2020, confirmou a inexistência de rendimento disponível aludida em bb) a ee).
gg) No ano de 2020, o A. declarou auferir a quantia de 8.698,79 € de rendimento de trabalho dependente, sendo nessa ocasião tido por rendimento indisponível o auferido acima de 7.620,00 €.
hh) No ano de 2020, o A. teria que entregar ao Fiduciário a quantia de 1.078,79 €.
ii) No ano de 2021, o A. declarou auferir a quantia de 9.280,15 €, sendo nesse ano indisponível o rendimento auferido acima de 7.980,00 €
jj) No ano de 2021, o A. teria que entregar ao Fiduciário a quantia de 1.300,15 €.
kk) Em Janeiro, Fevereiro e Março de 2022, o A. auferiu a quantia de 705,00 € por mês, de rendimento de trabalho dependente, que corresponde à remuneração mínima mensal vigente nesse ano.
ll) O autor, na sequência da cessação do benefício de exoneração do passivo restante, foi notificado para pagar as custas do processo, no montante de 3.480,86 €.
mm) Desde Dezembro de 2017 que o Autor trabalha para a empresa E..., Unipessoal, Lda.
nn) Nos primeiros meses como trabalhador independente e, a partir de outubro de 2019, como trabalhador dependente.
oo) Caso tivesse existido cumprimento de todas as condições impostas pelo despacho inicial de exoneração, haveria uma elevada probabilidade de o processo de insolvência prosseguir os seus trâmites normais e ser declarada a exoneração do passivo do autor em finais de Março de 2022.
pp) Por efeito da qual o Autor ficaria exonerado dos créditos que foram relacionados e reclamados no processo, com excepção do crédito da autoridade tributária, referido em k).
qq) Como assim não sucedeu, o A. continuará a poder ver o seu património penhorado pelos referidos credores para se fazerem pagar pelos créditos que não foram exonerados no processo de Insolvência.
rr) Uma terça parte do seu vencimento mensal, do seu subsídio de férias e do seu subsídio de Natal, poderá ser penhorado para ser entregue aos seus credores.
ss) Bem como fica o A. limitado na possibilidade de comprar quaisquer bens móveis ou imóveis, uma vez que os mesmos podem ser penhorados, vendidos judicialmente e o produto da respetiva venda ser entregue aos seus credores, para pagamento daqueles créditos que não foram exonerados.
tt) Quaisquer heranças ou doações podem vir a ser penhoradas.
uu) Durante o período de cessão, o A. exerceu uma profissão remunerada.
_
vv) No dia 27/02/2019, o Autor havia sido notificado pela Administradora Judicial – Dra. DD – para a informar e lhe remeter, no prazo de 8 dias, os comprovativos dos seus rendimentos durante o ano de 2018, a sua atividade profissional e os recibos de vencimento que auferiu mensalmente.
ww) O incumprimento do Autor para com a Administradora Judicial – Dra. DD – verificava-se, pelo menos, desde 17/04/2019, conforme informação prestada por aquela Administradora Judicial aos Autos, no contexto da qual a fiduciária, DD, refere que “(….) o insolvente não deu nenhuma informação dos seus rendimentos. Foi remetida carta ao insolvente a informar que substituí o Dr. CC falecido e para informar os seus rendimentos bem como email ao seu mandatário que não receberam qualquer resposta (…)”.
*
xx) A Ordem dos Advogados subscreveu do seguro de grupo com a apólice ... com a Seguradora chamada, A... SE, Sucursal en España, para os anos civis de 2021, 2022 e 2023, pelo montante de capital seguro de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
yy) A chamada “A... COMPANY SE, SUCURSAL EN ESPANA”, segura nos termos das Condições Particulares, Gerais e Especiais do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional celebrado com a Ordem dos Advogados (tomador do seguro) e designado Apólice n.º ..., o risco decorrente de acção ou omissão, dos Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, no exercício da sua profissão.
zz) Nos termos do Ponto 11 das Condições Particulares da Apólice em causa, ..., sob a epígrafe PERÍODO DE COBERTURA, a apólice em causa vigora pelo período de 12 meses, com data de início – ponto 12 - de 01.01.2021 às 00h e vencimento às 00h de 01.01.2022, correspondente ao contrato junto como doc. 1 à contestação da chamada, cujo teor não transcrito se tem por integralmente reproduzido.
aaa) A Apólice subscrita referida em xx) a zz) tem como limite de indemnização o capital total de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) por sinistro.
bbb) Tendo sido fixada uma franquia no montante global de € 5.000,00 (cinco mil euros) por sinistro, como resulta do Ponto 10 das Condições Particulares do contrato referido em zz), não oponível a terceiros lesados.
ccc) Por efeito de uma segunda apólice, a ré subscreveu com a chamada um reforço de capital no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), através da apólice nº ....
ddd) Nos termos da apólice ..., a ré transferiu a sua responsabilidade civil por actos e omissões resultantes da sua atividade profissional para a seguradora, designadamente, relativa à franquia no valor de € 5.000,00 constante daquela apólice da Seguradora XL bem como a eventual responsabilidade que venha a sofrer, superior a € 150.000,00.
eee) De acordo com o Ponto 4 das Condições Particulares da apólice de reforço: O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o Segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos durante vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo Segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente Apólice, e sem qualquer limitação temporal de retroatividade.
fff) Nos termos do Ponto 12 do Artigo 1º das Condições Especiais da Apólice em causa, considera-se como Reclamação: Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo Segurado e notificada oficiosamente por este ao SEGURADOR, de que possa: i) Derivar eventual responsabilidade abrangida pela APÓLICE, ii) Determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou, iii) Fazer funcionar as coberturas da APÓLICE.
ggg) Nos termos do artigo 3º das Condições Especiais da Apólice ... estabelece-se que ficam expressamente excluídas da cobertura da presente APÓLICE as RECLAMAÇÕES: a) Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido do SEGURADO à Data de Início do PERÍODO DE SEGURO, e que já tenha gerado ou possa razoavelmente vir a gerar RECLAMAÇÃO
hhh) Nos termos do Artigo 10º n.º 1 das Condições Especiais da Apólice em análise: O SEGURADO, nos termos definidos no ponto 1. do artigo 8º desta Condição Especial, deverá comunicar ao Corretor ou ao SEGURADOR, com a maior brevidade possível, o conhecimento de qualquer RECLAMAÇÃO efetuada contra ele ou de qualquer outro facto ou incidente que possa vir a dar lugar a uma reclamação. (…).
iii) A primeira Reclamação da activação do contrato seguro perante a chamada pelos factos em litígio consistiu na citação desta para os termos da presente ação, através da qual a mesma teve conhecimento dos alegados actos e omissões da Ré Segurada.
_
jjj) Tem-se por reproduzido o teor não transcrito do relatório apresentado pelo administrador de insolvência em 21.03.2017, no âmbito do processo de insolvência nº 192/17.0T8VNG, referente ao aqui autor, correspondente ao doc. nº6 anexo ao requerimento de 02.06.2022.
kkk) Por comunicação datada de 20 de Março de 2018, a ré remeteu a CC, então fiduciário no processo de insolvência do autor, uma comunicação que identifica o processo 192/17.0 no campo destinado ao assunto, de cujo teor consta, além do mais, o seguinte: “[V]enho por este e em nome do M/C Acusar recepção da V/carta datada de 15 de Fevereiro do corrente, anexar recibos verdes, referentes aos rendimentos auferidos em 2017 e 2018. No ano de 2017, o insolvente, apenas teve como rendimentos os constantes dos recibos ora junto”, conforme resulta do documento nº10, anexo ao articulado aperfeiçoado apresentado pelo autor em 02.06.2022, cujo restante teor se tem por reproduzido.
*
B. Factos Não Provados
O tribunal a quo julgou não provado que:
1) Ficou acordado entre o Autor e a Ré que esta daria o seu apoio durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência quanto aos contactos com o fiduciário nomeado.
2) E que a ré enviaria os documentos que o fiduciário solicitasse.
3) Até à data referida em q), nenhuma notificação havia sido enviada ao autor, que desconhecia que estivesse em incumprimento.
4) Pelo menos até 11 de Julho de 2020 o A. não ocultou nem dissimulou quaisquer rendimentos.
5) Durante os cinco anos do período de cessão o A. sempre residiu na Rua ..., ... ....
6) A notificação de Fevereiro de 2019, aludida em vv), foi remetida exclusivamente ao autor.
7) Os factos alegados pelo autor enquanto suporte da responsabilidade da ré terão sido consciencializados por esta em 23.10.2019, quando foi notificada do despacho onde foi declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, como potencialmente geradores da sua responsabilidade civil no âmbito do exercício da sua profissão de advogada.
*
C. O Direito
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no CPC actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º e 662.º.
Nos termos do n.º 1, deste artigo 662.º, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe, por sua vez, o n.º 1, do artigo 640.º, que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando estes ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Em coerência, o mesmo autor (cit., pp. 199 e 200), enuncia assim as situações que determinam a rejeição, total ou parcial do recurso:
- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC);
- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC);
- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou nele registados, em que o recorrente se baseia;
- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
As normas ínsitas nos artigos 640.º e 662.º do CPC, que vimos citando, concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos sobre a matéria facto.
Assim se compreendem as exigências em que se traduzem os ónus primários acima descritos, previstos no n.º 1, do artigo 640.º, do CPC, os quais devem ser interpretados à luz do aludido papel ou função. O mesmo sucede com o ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, sem perder de vista que este visa possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, isto é, a localização, no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados, das passagens da gravação em que se funda o recurso.
Como se escreve no ac. do STJ, de 28.04.2016 (proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. Abrantes Geraldes), estamos perante «um ónus multifacetado cujo cumprimento não se torna fácil, mas que encontra diversas justificações, entre as quais as seguintes:
- A Relação é um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;
- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais».
Deste modo, vem sendo reafirmado pela jurisprudência que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Como escreve Abrantes Geraldes (cit., p. 200), «[t]rata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo».
Mas, pelas mesmas razões, associadas à impossibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto (cfr. artigo 639.º, n.º 3, do CPC), o Supremo Tribunal de Justiça vem alertando para a necessidade de não se exponenciarem os apontados requisitos formais e de se compaginar a sua interpretação e aplicação com os princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
No caso concreto, é patente – e, por isso, dispensa grandes esforços argumentativos – que a recorrente não deu cumprimento aos referidos ónus.
Não apresentou, desde logo, conclusões sobre a impugnação da matéria de facto. Nenhuma das 15 conclusões apresentadas diz respeito à impugnação da matéria de facto, que apenas é aludida em termos genéricos depois dessas conclusões, quando a recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida «na parte impugnada nos termos supras expostos, alterando-se a matéria de facto dada como provada em conformidade com o alegado, absolvendo-se os Réus da totalidade dos pedidos formulados».
É, assim redundante afirmar que a recorrente não especificou, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nos termos impostos pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, o que é suficiente para justificar a rejeição da impugnação da matéria de facto.
Em sentido contrário, não se argumente que o teor das conclusões apresentadas é contrário ao teor de alguns dos factos provados, daí se inferindo a propósito claro de impugnar esses factos. Ainda que não se exija que os pontos de facto impugnados sejam identificados pela sua numeração, podendo sê-lo, por exemplo, por via da citação do seu teor, é inquestionável que essa indicação deve ser expressa e inequívoca, não podendo traduzir-se numa alusão genérica ou difusa, sob pena de se transferir para o próprio julgador a tarefa de definir ou escolher os factos abrangidos pela impugnação, em flagrante violação do princípio do dispositivo consagrado no artigo 3.º do CPC (e, no limite, ver reapreciados factos que o próprio recorrente não pretendeu impugnar).
De todo o modo, sempre se dirá que os demais ónus primários previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, também não foram cumpridos.
Analisada a motivação da alegação apresentada pela recorrente, verifica-se que aí apenas se afirma que «alguns dos factos dados como provados aqui elencados terão que ser considerados como não provados, em virtude da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e da prova documental junta aos autos», que «não deveria o Douto Tribunal a quo autonomizado a prova de facto kkk) fazendo subentender que o documento transcrito credibiliza a circunstância de a ré ter assumido, diligências de envio ao fiduciário, sem contudo constatar que tal entendimento perdurou até à data de julho de 2019» e que «os factos dados como provados nomeadamente no ponto oo) da sentença recorrida, deverão ser considerados como não provados, devendo, por conseguinte, integrarem o rol de factos dados como NÃO PROVADOS e, em consequência, deverá o pedido improceder na totalidade».
Por um lado, a não ser no que respeita ao ponto oo) – que, na verdade, não contém qualquer facto relevante para a discussão da causa, descrevendo apenas uma conclusão assente no próprio regime legal do instituto da exoneração do passivo restante, que analisaremos melhor infra, à semelhança do que sucede em grande medida com os pontos pp) a tt) –, desta alegação não resulta minimamente claro quais os factos julgados provados que, na tese da recorrente, devem considerar-se não provados, não sendo, sequer, claro que aquela considere que não se provou o teor do ponto kkk).
Por outro lado, para além da alusão genérica à prova produzida em audiência de discussão e julgamento e à prova documental junta aos autos, a recorrente não indica «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», não sendo feita qualquer análise crítica da prova produzida ou da apreciação que o Tribunal a quo fez da mesma.
Nestes termos, impõe-se rejeitar o recurso da matéria de facto, por não cumprimento dos ónus consagrados no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
*
2. Os pressupostos da responsabilidade civil
2.1. Como vimos, a recorrente pretende ser absolvida do pedido por entender que não estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil, nomeadamente a culpa da ré BB e o dano de perda de chance processual.
Tanto a responsabilidade civil contratual como a responsabilidade civil extracontratual são fontes do direito de indemnizar. Como ensina Antunes Varela, «[n]a rubrica da responsabilidade civil cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízos a outrem (responsabilidade extracontratual). (…) Apesar da nítida distinção conceitual existente entre as duas variantes da responsabilidade civil (uma, assente na violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência, correspondentes aos direitos absolutos; a outra resultante do não cumprimento, lato sensu, dos deveres relativos próprios das obrigações, incluindo os deveres acessórios de conduta, ainda que impostos por lei, no seio da complexa relação obrigacional), a verdade é que elas não constituem, sobretudo, na prática da vida, compartimentos estanques» (Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., pp. 519 e ss.).
Por isso mesmo, a doutrina vem repetidamente apontando a necessidade de ultrapassar esta distinção e as diferenças de regime, alertando para a natureza conjectural desta dicotomia. Contudo, tais diferenças mantêm-se no plano do direito positivo, com relevantes consequências práticas. Nuno Pinto de Oliveira (Ilicitude e culpa na responsabilidade médica, in (I) Materiais para o Direito da Saúde, n.º 1, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2019, p. 24) enuncia cinco diferenças: «a primeira relaciona-se com a ressarcibilidade dos danos patrimoniais primários (art. 483.º, n.º 1, vs. art. 798.º); a segunda, com o ónus da prova da culpa (art. 487.º, n.º 1, vs. art. 799.º, n.º 1); a terceira, com o regime da obrigação de indemnizar em caso de pluralidade de devedores (arts. 497.º e 507.º vs. art. 513.º); a quarta, com a responsabilidade por actos de auxiliares (art. 500.º vs. art. 800.º); e a quinta, com os prazos de prescrição (na responsabilidade contratual, o prazo de prescrição é em regra de vinte anos — art. 309.º —; na responsabilidade extracontratual, o prazo de prescrição é de três anos — art. 498.º do Código Civil)».
Para sabermos se estamos perante a violação de deveres especiais assentes numa relação creditícia ou de deveres gerais de conduta que a ordem jurídica impõe aos indivíduos com vista à protecção de direitos, importa caracterizar a concreta relação jurídica em que se inscreve tal violação, de modo a apurar se os factos praticados convocam o regime da responsabilidade contratual ou o regime da responsabilidade extracontratual (ou, eventualmente, ambos, caso em que importa igualmente definir os termos deste “concurso de títulos de aquisição da prestação”, na expressiva terminologia de Miguel Teixeira de Sousa).
Para o efeito, importa ter em consideração os factos que alicerçam a causa de pedir, ou seja, o facto jurídico de onde emerge a pretensão formulada no caso concreto pelo autor recorrido.
Já vimos que este fundamenta a sua pretensão de tutela jurisdicional no facto de a ré BB não ter cumprido os seus deveres profissionais, enquanto mandatária judicial por si constituída.
É incontroverso que o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mandato é susceptível de gerar a responsabilidade civil do advogado. Todavia, são muitas as questões suscitadas por esta problemática – tendo em conta as suas particularidades, designadamente o interesse público da profissão e o papel do advogado enquanto elemento indispensável na administração da justiça, cuja análise não convoca apenas as normas do código civil, mas também as normas reguladoras da profissão, maxime o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, que consagra um conjunto de deveres e princípios deontológicas que regulamentam o comportamento daqueles profissionais –, a começar pela natureza contratual ou extracontratual dessa responsabilidade.
O ac. do TRL, de 11.05.2023 (proc. n.º 12426/19.1T8LRS.L1-8, rel. Carla Sousa Oliveira, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode consultar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), para cuja leitura se remete, informa que, a este respeito, se formaram três teses no seio da doutrina portuguesa: a tese, defendida por António Arnaut, de que a responsabilidade civil do advogado para com o cliente tem natureza extracontratual, atento o interesse público da advocacia, em nome do qual são estabelecidos os deveres deontológicos dos advogados; a tese, sustentada por Moitinho de Almeida, do concurso da responsabilidade contratual e extracontratual, podendo o lesado optar pela invocação de uma ou de outra; e a tese, preconizada por Lebre de Freitas, Orlando Guedes da Costa, Abel Laureano e Vitor Manuel Furtado Sousa, de que a responsabilidade civil do advogado pela violação das normas deontológicas impostas pelo EOA, no âmbito da sua relação com o cliente, tem natureza contratual, pois estamos perante normas imperativas, que integram o contrato de mandato forense e que “conformam o próprio dever de prestar”, constituindo uma limitação à liberdade contratual dos particulares contemplada no artigo 405.º do CC.
O mesmo aresto cita diversa jurisprudência do STJ alinhada com esta última tese, designadamente o ac. de 29.04.2010 (proc. n.º 2622/07.0TBPNF.P1.S1, rel. Sebastião Póvoas), onde se afirma que «a responsabilidade do advogado para com o cliente é contratual desde que o ilícito se traduza no incumprimento do, especifica ou genericamente clausulado (aqui incluindo os deveres colaterais deontológicos), no mandato forense, só sendo extra contratual se o ilícito consistir em conduta violadora de outros deveres – ou normas legais – não precisamente contratuais». Conclui-se no mesmo acórdão que, «existindo uma relação contratual estabelecida entre o profissional e o cliente, a responsabilidade daquele, derivada do incumprimento negligente das obrigações do contrato de mandato, assume natureza contratual».
Esta tese, que cremos ser largamente maioritária na jurisprudência, merece a nossa adesão, pelas razões que passamos a expor.
Já antes referimos, citando Antunes Varela, que a responsabilidade contratual pode resultar da falta de cumprimento de obrigações emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei. No mesmo sentido se pronuncia Almeida e Costa (Direito das Obrigações, 6.ª ed., Coimbra 1994, p. 450), afirmando o seguinte: «A responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico. Verificamos, portanto, que o qualificativo corrente não se mostra rigoroso, dado que além dos contratos, existem outras fontes de tais vínculos, cujo incumprimento ocasiona essa espécie de responsabilidade civil. Podem eles, do mesmo modo, surgir de negócios jurídicos unilaterais e, inclusive, directamente da lei». Por este motivo, alguns autores preferem utilizar a expressão responsabilidade negocial – que tem a vantagem de aludir aos negócios unilaterais, mas nunca foi consagrada na nossa tradição jurídica – e outros a expressão responsabilidade obrigacional – que se revela demasiado ampla e equívoca (sobre este assunto vide também Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª ed., Coimbra 1989, p. 490, nota 1).
Esta categoria da responsabilidade civil surge, como vimos, em contraposição com a responsabilidade extracontratual, que deriva «da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos» (Almeida e Costa, loc. cit.).
Nestes termos, a responsabilidade civil será qualificada como contratual ou extracontratual consoante assente na violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico (por contraposição ao sentido lato deste termo, frequentemente usado com o alcance genérico de elemento passivo de qualquer relação jurídica, ou seja, como sinónimo de dever jurídico, ou, numa acepção ainda mais ampla, abrangendo também o ónus jurídico) ou na violação de um direito absoluto, a que a nossa lei civil equipara a violação de normas destinadas a proteger interesses alheios, ainda que estas não confiram aos respectivos titulares um direito subjectivo.
Nos termos do artigo 397.º do CC, obrigação em sentido técnico «é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação». Em consonância com esta definição legal, mas abordando a relação na perspectiva oposta, Antunes Varela (cit., p. 61) define obrigação como «a relação jurídica por virtude da qual uma (ou mais) pessoa pode exigir de outra (ou outras) a realização de uma prestação». Como refere o mesmo autor (cit., p. 63), «[o] termo obrigação abrange a relação no seu conjunto e não apenas, como sucede na linguagem comum, o seu lado passivo: compreende, portanto, o dever de prestar, que recai sobre uma das partes, bem como o poder de exigir a prestação conferido à outra». Assim, neste sentido técnico, a obrigação tem como elementos constitutivos (i) os sujeitos – o credor e o devedor; (ii) o objecto – a prestação debitória, que tanto pode ser positiva (de facere) ou negativa (de non facere) e que constitui o verdadeiro fulcro da obrigação e o seu alvo prático; (iii) o vínculo jurídico – que opera a relação entre os sujeitos e o objecto, ou seja, o enlace dos poderes conferidos ao credor com os correlativos deveres impostos ao devedor.
A prestação debitória distingue-se do dever geral de abstenção próprio dos direitos absolutos na medida em que o dever jurídico de prestar é um dever específico do devedor, enquanto o dever geral de abstenção é um dever genérico de todos os não titulares (cfr. Antunes Varela, cit., p. 80). No mesmo sentido, Almeida e Costa (cit., pp. 71 e 72) escreve o seguinte: «A relação obrigacional estabelece-se entre duas ou mais pessoas determinadas, pelo menos à data do cumprimento (Cód. Civ., arts. 459.º e 511.º). Para exprimir esta sua característica de vínculos particulares ou especiais, as obrigações são comummente integradas na categoria de direitos relativos.
Contrapõem-se-lhes os direitos absolutos ou erga omnes, nos quais se reconhece a existência de um vínculo universal ou geral, que liga o sujeito activo a todos os outros indivíduos (ex.: o direito de propriedade, os direitos sobre bens imateriais, os direitos de personalidade). Estes têm como correlato a chamada obrigação negativa ou passiva universal, que se traduz no dever que impende sobre as restantes pessoas de não perturbarem o exercício de tais direitos.
Pelo contrário, a referida relatividade dos direitos de crédito significa que valem apenas inter partes. Corresponde-lhes um dever particular ou especial, em regra, de conteúdo positivo, e não um dever universal ou geral».
Perante esta breve síntese da essência dos conceitos jurídicos pertinentes para a solução do nosso caso, cremos ser fácil concluir que a responsabilidade da 1.ª ré assenta na violação de uma obrigação em sentido técnico, ou seja, na violação de um dever específico de prestar (da mandatária constituída) e do correspondente direito relativo à prestação debitória (do patrocinado), não se vislumbrando qualquer dever geral de abstenção ou qualquer direito absoluto que a ré possa ter violado.
Dissemos anteriormente que os deveres deontológicos dos advogados integram o contrato de mandato forense e conformam o dever de prestar dele decorrente. Mas, nos termos acabados de expor, ainda que perspectivemos aqueles deveres como obrigações emergentes do EAO, a sua violação continua a ser fonte de responsabilidade contratual e não de responsabilidade extracontratual. De resto, é precisamente pelas mesmas razões que entendemos que também a responsabilidade do patrono nomeado tem natureza contratual.
Esta conclusão é corroborada pelos efeitos da violação de deveres associados a cada uma das categorias de responsabilidade civil, que podem servir de verdadeira “prova real” daquela conclusão.
Como escreve Antunes Varela (cit., pp. 490 e 491, nota 2), «[n]a responsabilidade contratual há uma simples modificação do objecto da prestação devida, que não prejudica, segundo a melhor doutrina, nem a continuidade nem a identidade da relação obrigacional. A obrigação, como relação complexa que é, continua a ser a mesma, após o não cumprimento do devedor. Esse facto reflecte-se com certa nitidez no regime privativo da responsabilidade contratual, nomeadamente nos artigos 809.º a 812.º. Na responsabilidade extracontratual, a obrigação de indemnizar nasce em regra da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é inteiramente distinto dela».
No caso em apreço, a obrigação da 1.ª ré não nasceu com a violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto. A obrigação de prestar já existia antes da sua violação, a qual deu apenas origem a uma modificação do objecto dessa prestação – na impossibilidade de exigir a prestação dos serviços de advocacia que eram devidos, o autor vem agora exigir uma indemnização pecuniária que compense os danos decorrentes dessa omissão.
Em suma, tem natureza contratual a responsabilidade civil que o autor pretende imputar à ré advogada.
2.2. Já vimos que, sem prejuízo das diferenças de regime antes elencadas, são os mesmos os pressupostos da responsabilidade civil contratual e extracontratual. Também já dissemos que o presente recurso tem em vista abalar a existência da culpa da ré advogada e do dano de perda de chance causado pelo seu comportamento.
Mas, ainda que as conclusões apresentadas pela recorrente pareçam cingir-se a estas duas questões, a motivação da sua alegação parece questionar igualmente a ilicitude do acto da ré, quando aí se afirma que «da prova produzida não ficou demonstrado o incumprimento do mandato» e que «não se verificou qualquer conduta ilícita por parte da Ré Advogada». Tais afirmações surgem na sequência da alegação (e, aparentemente, como consequência) da circunstância de, na data em que o autor enviou para a ré a documentação solicitada pela fiduciária já haver decorrido o prazo estipulado para apresentação dessa documentação. Esta argumentação fundamenta, igualmente, a alegação de que a ré advogada não agiu culposamente e de que a preclusão do direito o autor não teve como causa a conduta/omissão da referida ré.
Antes de mais, sem prejuízo do que diremos adiante a respeito da culpa e do dano de perda de chance processual, cingindo por ora a nossa análise à ilicitude enquanto pressuposto da responsabilidade civil, não podemos deixar manifestar a nossa concordância com a decisão recorrida quando aí se afirma que cabia nas obrigações da ré advogada, decorrentes do contrato de mandato que celebrou com o autor, tomar as providências necessárias e adequadas para que os documentos em causa fossem entregues à fiduciária ou ao Tribunal.
Como se afirma naquela decisão, «[s]em prejuízo de não existir prova de um acordo expresso no sentido de a ré dar apoio ao autor nos cinco anos posteriores do encerramento do processo de insolvência quanto aos contactos com o fiduciário, ou que esta enviaria os documentos que o fiduciário solicitasse, a procuração outorgada pelo autor à ré não foi por qualquer meio revogada, pelo que, por efeito da mera aplicação do disposto no art.º 44º, nº1 do Código de Processo Civil (aplicável ao processo de insolvência por força do disposto no art.º 17º, nº1 do CIRE), o mandato conferia poderes de representação à ré para praticar, em nome do autor, todos os actos do processo principal e seus incidentes, que não reclamassem poderes especiais. Ou seja, ao longo do período de cessão, cabia à ré a obrigação de dar apoio ao autor em todos os actos necessários à defesa dos interesses legítimos deste, seu cliente. (…) A mera resposta pela ré às comunicações da administradora ou às notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal corresponderia ao comportamento exigível à luz das obrigações que sobre si impendiam como mandatária, dado o maior e mais fundado conhecimento que também lhe era exigível que tivesse em relação às previsíveis consequências da persistência do comportamento omissivo».
Esta obrigação da ré encontra fundamento nas disposições do artigo 1161.º do CC e dos artigos 97.º, n.º 2, e 100.º, n.º 1, al. b), do EOA, por força dos quais, sem prejuízo da sua autonomia profissional e independência técnica, o mandatário forense fica adstrito a desenvolver uma determinada actividade jurídica, utilizando os seus conhecimentos técnico-jurídicos com a diligência e a perícia adequadas ao caso e aos interesses do seu cliente (sem, contudo, ficar vinculado à obtenção de um certo resultado, razão pela qual se considera que a sua prestação constitui essencialmente uma obrigação de meios, e não de resultado, como bem frisou a decisão recorrida).
Acresce que a declaração da 1.ª ré, em resposta às interpelações do autor, de que encaminharia para a administradora os documentos que este lhe entregou, nos termos descritos nas alíneas r) a t) dos factos provados, para além de traduzir um reconhecimento dessa obrigação e de gerar no autor uma legítima confiança no seu cumprimento, configura um verdadeiro acordo, por via do qual a ré, na qualidade de mandatária, se comprometeu a proceder ao anunciado encaminhamento dos documentos.
Violado este dever especial para com o autor, está verificada a ilicitude do comportamento omissivo da ré.
Tal ilicitude não é afastada ou excluída pelo alegado transcurso do prazo fixado para a apresentação dos documentos em questão.
Desde logo porque o prazo de 10 dias fixado pelo tribunal não configura um prazo peremptório, nos termos previstos no artigo 139.º, n.º 2, do CPC, como decorre da advertência contida na notificação referida na alínea q) dos factos provados. Por via dessa notificação, o tribunal determinou ao autor a entrega de determinados documentos no prazo de 10 dias, «sob pena de, não o fazendo, poder vir a ser antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante, por violação dos deveres de informação/colaboração, cfr. artºs 243º nº 1 alínea a) e 239º, nº 4, alínea a), do CIRE». O Tribunal não estabeleceu, assim, uma cominação inexorável de cessação, limitando-se a advertir que iria ponderar uma eventual falta de colaboração, à luz dos referidos normativos, nos quais se exige, para a cessação antecipada do procedimento, que o devedor tenha violado, dolosamente ou com grave negligência, as obrigações que lhe são impostas, e que prejudique por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Perante aquela advertência e este regime jurídico, o que se impunha a um mandatário judicial medianamente zeloso era que, mesmo que já tivesse decorrido o prazo fixado para a entrega dos documentos, os apresentasse e procurasse justificar o atraso, pelo menos para evitar a conclusão de que o mesmo era doloso ou gravemente negligente.
Mas ainda que se entendesse que o prazo fixado pelo tribunal era peremptório, conduzindo inevitavelmente o seu incumprimento à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, a ré advogada ainda estava em tempo para cumprir o que havia sido ordenado ao autor, pagamento a multa prevista no artigo 139.º, n.º 5, do CPC.
Na verdade, resulta dos factos provados que o autor foi notificado por carta enviada em 08.07.2019, pelo que a notificação se presume feita no dia 11.07.2019, por força do disposto no artigo 249.º, n.º 1, do CPC. O prazo de 10 dias fixado ao autor terminou, portanto, no dia 22.07.2019 (Segunda-feira). Deste modo, tanto no dia 24 como no dia 25 ainda era possível recorrer ao mecanismo previsto no citado artigo 139.º, n.º 5.
Num caso ou noutro, mantinha-se o dever da ré de diligenciar pela entrega dos documentos, pela justificação do atraso e/ou pelo pagamento da multa que fosse devida. Mas, como decorre da al. u) e y), a ré não o fez nesse momento nem posteriormente, o que conduz à conclusão da ilicitude desse comportamento omissivo. Como bem se assinala na decisão recorrida, «não restam dúvidas que a ré não cumpriu com as obrigações que para si emergiam do contrato de mandato, omitindo o seu dever contratual, deixando de praticar os actos compreendidos no mandato, não sendo esta omissão uma decisão passível de ser enquadrada no uso da discricionariedade técnica que assiste aos advogados no exercício das suas atribuições».
2.3. Atento o já exposto, sendo contratual a responsabilidade da ré advogada e estando verificada a prática, pela mesma, de um facto ilícito, por violação dos deveres decorrentes do contrato de mandato que celebrou com o autor e do seu estatuto profissional, presume-se a sua culpa, em conformidade com o disposto no artigo 799.º do CC. A este respeito, vide o ac. do TRL, de 07.05.2020 (proc. n.º 7848/17.5T8LSB.L1-6, rel. Ana de Azeredo Coelho).
O autor estava, assim, dispensado de provar a culpa da ré, cabendo a esta (ou à sua seguradora, aqui recorrente) o ónus de provar a ausência da sua culpa (cfr. artigo 350.º do CC). Ora, da análise dos factos julgados provados resulta, sem margem para dúvidas, que a ré não logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia. Mas, mais do que isso, resulta demonstrada a sua culpa efectiva.
Na verdade, não obstante ter sido informada pelo autor de que este havia sido notificado pelo tribunal para entregar determinados documentos à fiduciária, sob pena de poder vir a ser cessada antecipadamente a exoneração do passivo restante, e de que o autor havia deixado esses documentos na caixa de correio do seu escritório, e apesar de ter respondido que já tinha visto os documentos e de ter afirmado que os encaminharia para a administradora (querendo referir-se à fiduciária), a ré nunca o fez, nem justificou a sua omissão – cfr. alíneas q) a u) dos factos provados.
Acresce que, embora tenha sido notificada da promoção do Ministério Público no sentido de ser cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante, ré manteve a sua inércia, nada remetendo à fiduciária e não apresentado ao tribunal qualquer justificação ou pedido – cfr. alíneas v) a y).
Tais factos revelam, pelo menos, uma violação grosseira dos deveres da ré enquanto mandatária judicial do autor, mesmo tendo em conta que, sendo o direito uma ciência especulativa, o juízo de censura não pode repousar apenas na circunstância de o advogado não ter seguido o critério que veio a ser adoptado pelo juiz que elaborou a decisão.
É certo que o crivo deste juízo de censura não deve tão apertado que anule qualquer margem de liberdade na actuação do advogado e, com ela, a sua autonomia profissional e independência técnica; mas também não pode ser tão largo que deixe passar erros indesculpáveis, designadamente por falta de preparação, actualização ou ponderação.
Ora, cremos não suscitar dúvidas legítimas que a reiterada falta de entrega dos documentos em causa, solicitados pelo tribunal sob a advertência de ser ponderada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, que acabou por se concretrizar, configuram um erro – melhor dito, uma omissão – indesculpável. A ré não usou dos meios técnico-jurídicos adequados ao caso e que estavam ao seu alcance e, desse modo, não defendeu os interesses legítimos do seu cliente. Neste sentido, analisando uma situação distinta, mas equiparável à que aqui nos ocupa, vide o ac. do TRP, de 12.05.2015 (proc. n.º 2368/13.0T2AVR.P1, rel. Vieira e Cunha).
Já dissemos que, para contrariar esta conclusão, a recorrente veio alegar que, na data em que o autor enviou a documentação para a ré advogada, já havia expirado, há muito, o prazo fixado pelo tribunal para o envio dessa documentação à fiduciária, pelo que esse envio pela ré seria espúrio e, consequentemente, nenhuma culpa lhe pode ser assacada por não o ter feito, cabendo esta em exclusivo ao autor.
Mas também já vimos que o envio dos documentos pela ré não estava precludido nem era espúrio. Ao abster-se de diligenciar por esse envio, a ré incumpriu os deveres de zelo e de cuidado exigíveis a um mandatário judicial medianamente diligente.
O que ficou dito não obsta a que se considere igualmente negligente o comportamento do autor. Mas a culpa deste não anula a culpa da ré enquanto pressuposto da responsabilidade civil desta. E esta conclusão é válida tanto para a displicência com que o autor comunicou à ré a notificação que recebeu já depois de decorrido o prazo fixado nessa notificação, como para o incumprimento do autor para com a administradora judicial verificado desde 17.04.2019 – cfr. alínea ww) dos factos provados – e reiterado por via da sua inércia na sequência da notificação referida na al. x) dos factos provados. Se, como afirma a recorrente, nesta fase era exigível ao autor «a perceção de que a ré não havia diligenciado pela entrega dos documentos ou que alguma circunstância mantinha viva a ameaça de cessação antecipada, não resultando alegada ou provada qualquer atuação no sentido de a evitar», é igualmente verdade que a ré continuava adstrita ao dever de diligenciar pela referida entrega, mas conscientemente absteve-se de o fazer.
Diferente seria se a ré tivesse expressamente comunicado ao autor que deveria ser ele a proceder ao envio dos documentos e que ela não podia ou não o iria fazer. Mas nada disto se provou, até porque não foi alegado.
Assim, ainda que o comportamento negligente do autor tenha contribuído para o resultado danoso, é absolutamente claro que não afasta a culpa da ré (nem o nexo de causalidade entre o comportamento negligente desta e o dano, nos termos que melhor explicitaremos infra).
Acresce que, ao contrário do que afirma a recorrente, não corresponde à verdade que o tribunal a quo tenha desconsiderado por completo a negligência recorrente do Autor no processo de insolvência. Muito pelo contrário, essa negligência foi criteriosamente ponderada na – muito bem fundamentada – sentença recorrida, mais concretamente na determinação do quantum indemnizatório, em termos que, de resto, não mereceram qualquer impugnação das partes.
Em suma, para além da culpa presumida, os factos apurados permitem julgar verificada a culpa efectiva da 1.ª ré.
2.4. Estando assente, nos termos acabados de expor, a tipicidade, a ilicitude e a culpa, resta apreciar se os factos provados demonstram também a ocorrência de um dano e o nexo de causalidade entre aquele facto ilícito e culposo e este dano, o que nos remete para o dano de perda de chance processual em que se fundamenta a decisão recorrida e cuja verificação no caso concreto é refutada pela recorrente.
A análise que fizemos da culpa da ré já tem implícito que a factualidade apurada não afasta o nexo causal entre o comportamento omissivo daquela e a decisão de encerramento antecipado do procedimento de exoneração do passivo restante, que frustrou definitivamente o interesse do autor em obter tal exoneração no prazo de 5 anos. Como então dissemos, na data em que a ré recebeu do autor os documentos solicitados pela fiduciária e se comprometeu a remetê-los para esta última, ainda era possível, por via dessa remessa, obstar ao referido encerramento antecipado, ao contrário do que é afirmado pela recorrente.
Acrescenta, porém, a recorrente que não é possível afirmar-se o dano de perda de chance, pois o autor recorrido não logrou demonstrar que a entrega dos documentos culminaria necessariamente na obtenção do resultado pretendido, prova cujo ónus cabia àquele, em conformidade com o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022, de 26 de Janeiro.
Mais acrescentou que «não se compreende como poderia o autor alcançar o objetivo de concessão da exoneração do passivo restante quando o mesmo, desde o início do processo de insolvência, não demonstrou qualquer cooperação com o processo».
Não obstante o abundante tratamento doutrinal e jurisprudencial do tema, são muitas as dúvidas e reservas suscitadas a respeito da perda de chance, nomeadamente quanto à sua definição dogmática, ao seu acolhimento no nosso ordenamento jurídico e à sua aplicação concreta.
A este respeito destas questões, não podemos deixar de atentar no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 2/2022, de 05.06.2021, proferido pelo STJ no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A), não apenas no seu segmento final – que estabelece a seguinte jurisprudência uniforme: «O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade» – mas também na argumentação aí esgrimida, para cuja leitura integral remetemos e que, de todo o modo, aqui extractamos de forma justificadamente longa:
«Em face de tal incerteza sobre qual seria, sem as faltas dos advogados, o resultado dos processos, quer a doutrina, quer a jurisprudência, começaram por ir no sentido de recusar o ressarcimento do dano da perda de chance (da perda da oportunidade de ganhar um processo): para haver obrigação de indemnizar – argumentava-se e ainda se argumenta – o dano a ressarcir tem que ser certo, o que não acontece na perda de chance, que tem como característica essencial haver uma incerteza, também no futuro, sobre a existência do dano, na medida em que não é possível determinar com segurança qual seria a situação hipotética do lesado que existiria caso não se tivesse verificado o evento lesivo; por outro lado – argumentava-se e ainda se argumenta – tal incerteza também não permite que se possa dizer que existe nexo causal entre o facto lesivo (no caso, a falta do advogado) e o resultado final desfavorável do processo (não se pode dizer que sem o facto lesivo o resultado final desfavorável não teria ocorrido).
(…) Argumentos que conduziam a que um mandatário que não agisse com a devida diligência (que não intentou a ação, que não a contestou, que não apresentou o rol ou que não apresentou recurso) escapasse à responsabilidade e – é o aspeto que perturba o “sentido de justiça” – com o fundamento em se desconhecer (ser incerto) qual teria sido o desenrolar e o desfecho normal do processo caso ele tivesse tido o comportamento devido, sendo que foi exatamente a circunstância de ele ter tido tal comportamento indevido (a sua conduta ilícita) que impediu o desenrolar e o desfecho normal que determina a incerteza que agora se invoca para recusar o ressarcimento da perda de chance.
Justamente por isto – para repor a justiça – foram-se desenhando abordagens tendentes a evitar que tais eventos lesivos escapem, de todo, às malhas da responsabilidade civil, não obstante a incerteza sobre o que teria acontecido (depois de tais eventos lesivos).
(…) O que é imprescindível – face ao papel central que o mesmo desempenha na responsabilidade civil (como, entre nós, resulta dos arts. 483.º/1, 798.º, 227.º/1 e 562.º, todos do C. Civil) – é que haja dano, condição essencial, limite e escopo da obrigação de indemnizar, o que leva a que repetidamente se diga que a responsabilidade civil tem uma função essencialmente reparatória/ressarcitória (sendo acessória e subordinada a sua função preventiva ou sancionatória).
Dano que, não contendo a nossa lei uma noção ou definição legal, pode ser definido como toda a ofensa de bens ou de interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, como “a lesão ou prejuízo real, sob a forma de destruição, subtração ou deterioração de um certo bem, como a lesão de bens juridicamente protegidos do lesado, patrimoniais ou não, ou simplesmente como uma desvantagem de uma pessoa que é juridicamente relevante por ser tutelada pelo Direito”; pelo que, sendo assim, não existirá obstáculo a poder qualificar a perda de chance (a perda de oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo) como um dano suscetível de poder ser indemnizado (seja como elemento patrimonial pré-existente no património do lesado, o mesmo é dizer como dano autónomo e emergente, distinto do dano final, seja como uma antecipação do dano final e por isso um lucro cessante).
(…) Para um dano ser indemnizável, exige-se, concorda-se, que o mesmo seja certo e não meramente eventual, porém, observa-se, a certeza de que se fala e que deve ser exigida não é matemática ou absoluta, mas apenas uma certeza relativa, que se deve contentar com uma expetativa razoável.
Se, como é o caso, em razão do comportamento indevido dum mandatário, o desenrolar e o desfecho normal dum processo não aconteceu e nem alguma vez acontecerá, não pode exigir-se que o dano decorrente de tal comportamento indevido seja objeto de uma certeza absoluta, ou seja, a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (das certezas relativas).
(…) Enfim, as exigências colocadas, em termos de nexo causal e de causalidade adequada, podem ter, atentas as características dos danos que estiverem em causa, diferentes níveis de intensidade, bastando-se com uma possibilidade séria e significativa quando, como é o caso, está em causa a imputação dum resultado hipotético, ou seja, dum resultado que não aconteceu nem alguma vez acontecerá.
Como já é feito – sem que suscite críticas, por violação da teoria da causalidade adequada consagrada no referido art. 563.º do C. Civil – com certos danos que vêm sendo considerados como futuros, designadamente, quando se arbitra, a alguém que foi lesado na sua integridade física, indemnização pela frustração duma hipotética promoção profissional (que não aconteceu nem acontecerá, por causa da referida lesão), frustração/dano este baseado num juízo de probabilidade suficiente alicerçado nos atinentes indícios factuais.
(…) A verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a “chance”, para poder ser indemnizável, seja “consistente e séria” e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.
(…) Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar.
(…) Uma “chance” puramente abstrata e especulativa – isto é, independente da prova de qualquer concreta probabilidade – não é, de modo algum, um dano certo; assim como não atingirão a certeza exigível, não sendo indemnizáveis, as “perdas de chance” que correspondam a uma pequena probabilidade de sucesso da ação comprometida.
(…) Não se ignora que tal apuramento – tal “julgamento dentro do julgamento” – nem sempre será fácil, havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão recorrido) a falta do mandatário na não interposição de recurso de apelação, poderá ser relativamente acessível averiguar, com elevada probabilidade, o desfecho que o processo teria tido sem tal falta do mandatário; e havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão fundamento) a falta na não apresentação tempestiva do requerimento probatório, será bem menos acessível estabelecer o desfecho que o processo (dependente de prova que não foi produzida) teria tido sem a falta do advogado.
Tanto mais que, repete-se, no incidental “julgamento dentro do julgamento”, como juízo de prognose póstuma que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (tendo em vista reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), ou seja, o tribunal da ação de indemnização deve adotar a perspetiva do tribunal que teria que decidir o processo e não exatamente o seu prisma de decisão, uma vez que, insiste-se, o que está verdadeiramente em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/ facto lesivo (reconstituição de que a decisão hipotética do processo, na perspetiva do tribunal que teria decidido o processo, é instrumental).».
Voltando ao caso concreto, verificamos que o Tribunal a quo adoptou o entendimento e o método expostos no acórdão acabado de citar, que não podem deixar de merecer o nosso acolhimento.
Assim, com base no juízo de prognose póstuma em que se traduz o apelidado “julgamento dentro do julgamento”, aquele Tribunal concluiu ter sido feita prova de que, não fosse a omissão da ré que conduziu ao encerramento antecipado do procedimento de exoneração do passivo restante, havia uma probabilidade consistente e séria de o desfecho deste incidente ser favorável ao aqui autor, ou seja, de lhe ser concedida a exoneração do passivo restante, conclusão que merece igualmente o nosso aplauso, pelas razões que passamos a expor.
O instituto da exoneração do passivo restante – inspirado na discharge britânica e norte-americana, mas que chega a nós por influência do direito alemão e que tem paralelo em quase todas as leis de insolvência europeias – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo CIRE, que entrou em vigor em 2004.
Como ensina Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 610), à semelhança do alemão, «o regime português consiste, em traços gerais, na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período».
A lei portuguesa não seguiu, portanto, um modelo puro de fresh start, em que a liquidação do património e o pagamento das dívidas têm lugar no processo de insolvência, findo o qual o devedor é libertado das dívidas que não tiverem sido satisfeitas.
O regime legal português aproxima-se mais do modelo do earned start, em que o devedor, findo o processo de insolvência, passa ainda por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamentos das dívidas remanescentes, só então podendo beneficiar de um fresh start, se ficar demonstrado que o merece. Na súmula de Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O Fiduciário. Algumas Notas, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 197), a exoneração do passivo restante «vigente no nosso ordenamento jurídico tem como finalidade precípua facilitar a recuperação/integração socioeconómica do insolvente de boa fé (“honest but unfortunate debtor”), através de um procedimento que, em primeiro lugar, passa pela liquidação do seu acervo patrimonial (art. 156.º e ss), e em segundo lugar pressupõe a cessão ao fiduciário (art. 240.º) da parte considerada disponível do seu rendimento (art. 239.º) e, a final, se o insolvente tiver cumprido com as obrigações de conduta a que está adstrito [art. 239.º, n.º 4, alíneas a) a e)], é-lhe perdoado o remanescente da dívida que ainda subsistir (art. 245.º, n.º 1)». Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 401, «[a] exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência».
O aludido período de prova, que a nossa lei designa como período de cessão, tem início com a prolação do despacho inicial, isto é, o despacho em que, por não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz declara que esta será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE (cfr. artigo 237.º, al. b), do mesmo código).
Estas condições ou obrigações de conduta, de cujo cumprimento depende a concessão da exoneração do passivo restante, são assim enunciadas nas diversas alíneas, do n.º 4, do artigo 239.º, do CIRE:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
De harmonia com o disposto nos artigos 243.º e 244.º do CIRE, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nomeadamente quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Na matéria de facto apurada nestes autos não é feita qualquer alusão à existência, no processo em que foi declarada a insolvência do aqui autor, de elementos que revelem ou indiciem, ainda que de modo ténue, alguma das situações previstas nestas duas últimas alíneas, o que permite concluir com um grau de certeza muito elevado (senão mesmo quase absoluto) que o pedido de exoneração não viria a ser negado com algum destes fundamentos, os quais também não fundamentaram a cessação antecipada do respectivo procedimento.
No que respeita à al. a), do artigo 243.º, n.º 1, do CIRE, a probabilidade de cumprimento das obrigações aí aludidas foi apreciada pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
«Aquando da admissão liminar do procedimento de exoneração do passivo restante foi fixado em um salário mínimo o montante necessário ao sustento digno do insolvente que, por essa razão, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, correspondentes ao período de cessão, ficaria obrigado a ceder ao fiduciário o rendimento disponível, isto é, qualquer rendimento que ultrapassasse a retribuição mínima.
As declarações de rendimentos e recibos de vencimento constituíram os elementos atendíveis para que se calculasse a existência de rendimento disponível, resultando da prova produzida que, no período compreendido entre 2017 e 2019 o autor nada teria que entregar ao fiduciário, situação que apenas se alteraria no final do ano de 2020 e 2021, em que respectivamente teria que entregar as quantias de 1.078,79 e 1.300,15 €, concluindo-se o período de cessão no ano de 2022 sem qualquer rendimento disponível.
(…) Dado o baixo valor a entregar pelo autor ao longo do período de cessão e no confronto entre este e o valor global dos créditos de que seria exonerado, podemos facilmente antecipar que a entrega do rendimento disponível ao fiduciário não seria um obstáculo à obtenção, a final, da pretendida exoneração do passivo.
(…) Se não há dúvida que o insolvente incumpriu o dever de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, que é essencial à decisão de concessão da exoneração do passivo, por corresponder ao único meio ao dispor do tribunal e da fiduciária para apurarem a existência de rendimento disponível para entrega aos credores, sendo esse incumprimento o cerne da presente acção, dos demais deveres que cabiam ao insolvente este apenas incumpriu o dever informar o tribunal da sua mudança de domicílio, na ocasião em que terá passado a residir com a sua companheira.
Porém, sendo o referido dever algo que apenas se relaciona com a possibilidade de o tribunal poder manter os contactos atempados com o insolvente, evitando que o mesmo se furte a notificações, sendo certo que o autor não deixou de receber as notificações que lhe foram dirigidas em consequência da mudança em questão (o domicílio indicado no processo correspondia à casa de residência dos pais do autor, que, com toda a probabilidade, mantinham a entrega da correspondência que lhe era destinada), ainda que chegasse ao conhecimento do tribunal a mudança de domicílio, não se antevê fundamento para a omissão de cumprimento desse dever poder vir a dar causa à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo.
(…) Pelos motivos expostos, cremos ser de concluir que, caso a omissão de entrega dos documentos comprovativos de rendimentos não tivesse ocorrido na vertente reiterada e sucessiva em que se manifestou, não obstante as oportunidades concedidas pelo juiz titular do processo (fazendo antever a existência de uma prática comum no sentido de dar ao devedor todas as possibilidades de alcançar aquele que é o seu principal objectivo), o autor teria uma probabilidade consistente e séria de, no final do período de cessão, alcançar a concessão do benefício de exoneração do passivo que, nos termos previstos pelo art.º 245º do CIRE, importaria a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que fosse concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, permanecendo apenas o crédito da autoridade tributária (face à previsão d art.º 245º, nº2, al. d) do CIRE) que, como resulta da al. k) dos factos provados, ascendia à quantia de 292,17 €, irrisória quando comparada com os demais créditos».
Esta argumentação, bem como a conclusão a que conduziu, estão em total consonância com a lei aplicável e com jurisprudência prevalecente, pelo que merece a nossa inteira adesão. De resto, a própria recorrente limita-se a afirmar que, tendo em conta a desconsideração dos deveres do devedor aqui recorrido, «não seria antecipar que a final fosse proferido despacho de exoneração do passivo restante», sem apontar a violação de outros deveres que não o de entregar à fiduciária ou ao tribunal os documentos solicitados por aquela e que a própria ré estava obrigada a cumprir, por força do contrato de mandato que celebrou com o autor, nos termos já antes expostos. Dito de outro modo, a única razão apontada pela recorrente – e efectivamente apurada nestes autos – para o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante corresponde à violação dos deveres contratualmente assumidos pela ré advogada que fundamenta a responsabilidade civil desta. Ressalvando esta inobservância, tudo apontava no sentido do deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, pelo que bem andou o tribunal a quo ao considerar verificado o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo da referida ré e o dano de perda de chance processual sofrido pelo autor, traduzido na frustração de um elevadamente provável resultado favorável do pedido de exoneração do passivo restante, por si visado quando se apresentou à insolvência.
Em conclusão, pelos motivos expostos, improcedem totalmente as razões da recorrente, pelo que importa confirmar a decisão recorrida.
Importa ainda condenar a recorrente nas custas do recurso, dado o seu total decaimento, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
*
IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
Porto, 10 de Outubro de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Ana Lucinda Cabral
Alexandra Pelayo