Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8672/19.6T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
AUTOMÓVEL
VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
Nº do Documento: RP202310188672/19.6T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A venda de um automóvel, comprado com a cláusula de reserva de propriedade do dono anterior até integral pagamento do preço, antes desse pagamento se mostrar efectuado na sua totalidade, não integra a prática de um crime de abuso de confiança, consubstanciando apenas um incumprimento contratual;
II - Nestes casos, o automóvel é entregue no âmbito de uma relação contratual; não é “confiado” no âmbito de uma relação de fidúcia (confiança) que produza a obrigação de o devolver;
III - Mostra-se evidente possibilidade de se obter a reparação dos danos resultantes desse “negócio de automóveis”, exclusivamente, através dos meios civis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 8672/19.6T9PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - Juízo Inst. Criminal - Juiz 3



Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - Juízo Inst. Criminal - Juiz 3, no processo supra referenciado, em que são arguidos, AA e BB, e assistente CC, foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia com o seguinte teor:
“A lei define no art.º 283º, n.º2, do C.P.P., o que considera indícios suficientes, ou seja, o conjunto de elementos dos quais resulte a probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
A prova indiciária não conduz a um julgamento de certezas. A prova indiciária contém apenas, um conjunto de factos conhecidos que permitirão partir para a descoberta de outro/outros, que deixarão de se mover no campo das probabilidades para entrarem no domínio das certezas. Contudo, o indício é (em si) um facto certo, do qual, por interferência lógica baseada em regras de experiência, consolidadas e fiáveis, se chega á demonstração de um facto incerto, a provar segundo o esquema do chamado silogismo judiciário.
Por indiciação suficiente, entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova existentes, uma pena ou medida de segurança.
Conforme dispõe o artº 286º nº1 do C.P.P. “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Contudo, essa possibilidade, é uma certeza mais positiva do que negativa, sendo que o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
Do já citado artº 308º do C.P.P. conjugado com a noção de indícios suficientes dada pelo artº 283ºnº2 do C.P.P., resulta pois, que a lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena, ou uma medida de segurança, não impondo porém, a mesma exigência de verdade requerida no julgamento final.
Os arguidos encontram-se acusados pela prática dos seguintes factos:
1-O ofendido, CC, era proprietário do veículo automóvel de marca e modelo ... e de matrícula ..-SE-...
2-Em Agosto de 2017, o ofendido vendeu tal veículo automóvel ao arguido, BB, e a AA, que vivem em condições análogas à dos cônjuges, ficando acordado que o pagamento do preço seria liquidado em 60 prestações mensais e sucessivas e que tal veículo ficaria com reserva de propriedade, até ao valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), a favor do ofendido, para garantir o bom pagamento do preço.
3-Assim, no dia 18 de Agosto de 2017, com vista à formalização de tal contrato de compra e venda com reserva de propriedade, foram submetidos na plataforma, via online, na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ..., mediante a apresentação dos impressos de requerimento de registo automóvel juntos aos autos a fls. 211 e 212 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, requerimento de declaração de registo de propriedade a favor de AA, com reserva de propriedade a favor de CC.
4-A cláusula de reserva de propriedade implicaria que, por acordo entre o vendedor e os compradores, a transmissão da propriedade fosse diferida para o momento do pagamento integral do preço, funcionando como garantia do cumprimento do contrato.
5-Em Junho de 2018, o arguido, BB, decidiu vender o veículo automóvel de matrícula ..-SE-...
6-Uma vez que, em tal data, o preço de aquisição do veículo automóvel ainda não se encontrava totalmente liquidado e pendia sobre o mesmo a reserva de propriedade em nome de CC, o que impedia a sua livre comercialização no mercado, junto de terceiros, o arguido, BB, decidiu fazer extinguir a reserva de propriedade daquele veículo a favor do ofendido.
7-Pelo que, o arguido, BB, serviu-se de um requerimento de registo automóvel em branco, onde se fazia constar a extinção de reserva de propriedade, com aposição de uma cruz (X) no local indicado para a “extinção de registo”, fazendo constar, de forma manuscrita, a palavra “reserva”, e de forma dactilografada, a identificação do veículo automóvel “..-SE-..”, a marca “Fiat”, a identificação do ofendido, CC, com respectivo número fiscal e de cartão de cidadão e morada, fazendo assim crer que se tratava da vontade manifestada pelo ofendido, para a extinção da reserva de propriedade naquele veículo, sem que este tivesse conhecimento de tal facto (cf. se verifica do requerimento de registo automóvel junto aos autos a fls. 220 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos).
8-No verso desse requerimento, no ponto 8 dessa declaração de extinção de reserva de propriedade, o arguido apôs no local da assinatura, uma rubrica assemelhando-se ao nome de “CC” e os dizeres, de forma dactilografada, do número de identificação, data de emissão e entidade emissora.
9-Dessa forma, pretendeu o arguido, como conseguiu, atribuir a tal requerimento a aparência de total genuinidade, fazendo crer a quem o recebesse que o mesmo tinha sido efectivamente emitido por pessoa com legitimidade para o fazer.
10-No dia 13 de Junho de 2018, e na posse do requerimento preenchido e assinado da forma acima descrita, o arguido apresentou-o na 4.ª Conservatória do Registo Civil do Porto.
Crente que tal requerimento tinha sido efectivamente emitido e assinado pela pessoa que constava identificada no mesmo, designadamente CC, o/a funcionário/a daquela Conservatória que recebeu tal requerimento, assim induzido/a em erro, aceitou-o como genuíno e procedeu ao levantamento da extinção de reserva de propriedade a favor de CC.
11-De seguida, o arguido, BB, vendeu tal veículo automóvel a DD, pelo valor de €17,000,00 (dezassete mil euros), procedendo ainda ao registo da propriedade, com apresentação número ...93, de 29 de Junho de 2018, a favor da referida DD, agora sem quaisquer ónus ou encargos.
12-O arguido, BB, ao apor no requerimento para extinção de reserva de propriedade do veículo automóvel a assinatura como se tratasse da assinatura do ofendido, CC, forjando-a, com o desconhecimento e contra a vontade do mesmo, actuou com a perfeita consciência de que estava vedado a inscrever, em tal documento, uma assinatura que não lhe pertencia.
13-Com a sua actuação, o arguido fez constar nesse requerimento a vontade por parte do ofendido, CC, de extinguir a reserva de propriedade e transmitir assim a propriedade plena, sem ónus ou encargos, do veículo automóvel ..-SE-.., e a favor de terceiros, factos que bem sabia não corresponderem à realidade.
14-Ao actuar deste modo o arguido colocou em causa a fé pública e a veracidade dos elementos constantes do requerimento de cancelamento de registo de reserva de propriedade, ou seja, a assinatura utilizada, bem como a credibilidade que estes assumem perante terceiros, colocando em crise a confiança que os mesmos assumem perante a generalidade das pessoas, assim causando um prejuízo ao Estado e a terceiros.
15-Sabia ainda o arguido que, com a sua conduta, e na prossecução do seu plano, induziu em erro o/a funcionário/a da 4.ª Conservatória do Registo Civil do Porto, que recebeu o requerimento supra descrito, a aceitar e extinguir a reserva de propriedade titulada a favor de CC.
16-Agiu o arguido deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
17-Desde 1 de Janeiro de 2015 e, pelo menos, até ao dia 19 de Dezembro de 2019, a arguida, AA, foi a única sócia e gerente da sociedade A... Unipessoal, Lda.
18-No dia 22 de Fevereiro de 2019, a arguida, AA, na qualidade de representante da sociedade A... Unipessoal, Lda, preencheu e assinou o cheque n.º ...57,, no valor de € 1.490,00 (mil quatrocentos e noventa euros), à ordem de CC, relativo à conta bancária n.º ...01, titulada pela sociedade por si representada, sedeada no Banco 1..., SA, que foi entregue na mesma data, pela própria arguida, a CC.
19-Apresentado esse título a pagamento no dia 1 de Março de 2019, ao balcão do Banco 2..., na sucursal da ..., no Porto, foi o mesmo devolvido, por falta de provisão, em 4 de Março de 2019.
20-O cheque supra identificado destinavam-se ao pagamento parcial do preço de um veículo automóvel, de matrícula ..-SE-.., que a arguida e o companheiro, BB, tinham adquirido ao ofendido CC.
21-Até hoje, o montante nele titulado não foi pago.
22-A arguida AA, previu e quis preencher e assinar o cheque supra identificado, destinado ao pagamento de um bem adquirido ao ofendido, bem sabendo que a conta bancária a que o mesmo respeitava não dispunha de fundos monetários que garantissem o seu pagamento.
23-Sabia, também, que, sem que obtivesse qualquer contrapartida económica, o ofendido ficaria privada do montante titulado no referido cheque.
24-Agiu de forma consciente e voluntária, sabendo ser proibida a sua conduta e tendo a liberdade necessária para se determinar perante essa avaliação.
E por via dos mesmos :
- Pelo exposto, o arguido, BB, incorreu em autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, als. c), d), e e), e n.º 3, do Código Penal e a arguida, AA, incorreu, em autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1, al. a), do Decreto Lei nº 454/91, de 28/12 – Regime Jurídico dos Cheques sem Provisão.
Destes factos resulta que os arguidos, na vigência do contrato de compra e venda celebrado com o assistente, alienaram a terceiro a DD o veículo automóvel, não estando ainda extinta a cláusula de reserva de propriedade.
O assistente entende pois que estando em vigor tal cláusula os arguidos estavam impedidos de efetuar a alienação a terceiro do referido veículo, pois não eram proprietários do mesmo, pois tal propriedade mantinha-se no assistente pelo que ao procederem a alienação a favor da referida DD agiram como proprietários, que não o eram.
Da prova recolhida em sede de inquérito e referida na acusação publica resulta indiciado que os arguidos alienaram a terceiro o veiculo automóvel, sobre o qual recaia a reserva de propriedade a favor do assistente, facto que os arguidos conheciam.
Para alienarem tal veículo a terceiro teriam de: ou liquidar o restante preço ao assistente ou acordar com o mesmo a cessão da sua posição contratual para a referida DD.
Ao alienaram o veiculo à referida DD como descrito na acusação os mesmos sabiam que o não podiam fazer.
Cometeram assim os arguidos o crime de abuso de confiança, tal como o assistente refere?
Dispõe o art.º 205, n.º1 do C. Penal, que: “Quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe foi entregue por título não translativo de propriedade será punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa.
São assim elementos do tipo de crime de abuso de confiança a: apropriação ilegítima; de coisa móvel de valor consideravelmente elevado; entregue ou confiada por título não translativo de propriedade.
Este ultimo elemento verifica-se quando, o agente se constituiu na obrigação de dar à coisa um uso ou fim determinado e está investido de um poder sobre ela que lhe dá a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar ( V. C. Penal anotado, Leal Henriques e Lima Santos, 1996, 2.º Vol. 461).
O crime de abuso de confiança é um crime de apropriação, que no entanto não exige como elemento do tipo a subtracção; no abuso de confiança, há posse ou detenção legal da coisa por parte do agente e apropriação sucede a posse ou detenção, nisto consiste a apropriação ilegítima.
Conforme explicava o Prof. Cavaleiro Ferreira (in parecer publicado na revista de direito e justiça, pg. 239 e ss) no crime de abuso de confiança o agente tem, ele próprio,
a posse legítima do objecto material, ou seja do dinheiro ou coisa móvel.
No contrato de compra e venda com reserva de propriedade, como é dos autos o adquirente obtém a plena disponibilidade material da coisa, antes do pagamento integral do preço; por seu lado, o alienante, para se acautelar eficazmente contra o risco de incumprimento da parte do adquirente, conserva a propriedade da coisa. Os restantes efeitos obrigacionais do contrato de compra e venda, previstos no artigo 879º – a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço –, produzem-se normalmente.
A lei define a reserva de propriedade como o pacto através do qual as partes convencionam diferir o efeito translativo de um contrato de alienação para momento posterior e até ao cumprimento das obrigações da outra parte ou até à verificação de um qualquer outro evento.
A propriedade, quer do fiduciário, quer do vendedor com reserva de propriedade é uma propriedade limitada à função de garantia, não é uma propriedade plena que permita ao seu titular ter poderes de gozo.
Aliás, nem um nem outro têm a posse da coisa transmitida. A previsão típica do crime de abuso de confiança, exige que a coisa móvel tenha sido entregue por “título não translativo da propriedade”. Ora por título não translativo de propriedade deve entender-se qualquer entrega que não implique transferência da propriedade (e que acarrete, pois, a obrigação de restituir ou apresentar a coisa recebida ou um valor equivalente, ou dar-lhe determinada finalidade. Ex: aluguer de longa duração, comodato, empréstimo. Ora no caso dos autos os arguidos podiam vender o automóvel a terceiro desde que pagassem o restante preço ao assistente. Não está vedado ao adquirente de um automóvel, a venda de um bem com reserva de propriedade, implicando essa venda a participação do beneficiário da reserva de propriedade, que existe para garantir o pagamento do preço pelo qual foi o bem transacionado. Dúvidas não existem, pois que os arguidos ao não procederem desta forma violaram o contrato e praticaram um acto de disposição de um bem alheio. Porém, integra isso a prática de um crime de abuso de confiança? Neste ponto temos que e pelos fundamentos constantes do voto de vencido proferido pelo Sr Desembargador José Joaquim Aniceto Piedade no Proc. 1 358/09.1TAPVZ-A.P1 da Relação do Porto que aqui transcrevemos “Porém, integra isso a prática de um crime de abuso de confiança? E aqui tal como Afigura-se-me que a resposta nos é fornecida, através do recurso à genealogia histórico-dogmática do crime abuso de confiança: pratica o crime quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, abusando da confiança que nele foi depositada, ou, por outras palavras, violando o dever de confiança que lhe era exigível.
Assinala-o Figueiredo Dias (Dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 97: “(...) Neste sentido pode e deve dizer-se — com consciência das relevantíssimas consequências dogmáticas que a afirmação importa — que o abuso de confiança é um delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que o autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de restituição.”.” Regressando ao caso, o veículo automóvel, não foi “confiado” aos arguidos, foi-lhes entregue no âmbito de um contrato que implicava — conforme vimos — a transferência da propriedade, mas apenas após integral pagamento do preço. “Assim, ao dispor do bem, não houve abuso de confiança, houve incumprimento contratual, e disposição de um bem alheio. Aqui chegados, há que apelar ao princípio da subsidiariedade do Direito Penal: a intervenção do Direito Penal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos não puder ser garantida por outras vias com incidências menos drásticas para os direitos das pessoas, sejam elas estaduais ou privadas. Nomeadamente, não é aceitável o recurso, por parte dos particulares, à tutela do Direito Penal, para resolver questões decorrentes de negócios jurídicos regulados pela Lei Civil ou Comercial. Para que a intervenção do Direito Penal se mostre exigível — nestes casos limite — é necessário que a actividade em análise integre um dano social e não puramente individual; esse dano social decorrerá da existência de uma violação da Ordem Jurídica que pela sua intensidade e gravidade a única sanção seja uma pena; se para a debelação dessa violação da Ordem Jurídica bastarem as sanções atenuadas da indemnização, da execução forçada ou in natura, restituição à situação anterior ei ou anulação do acto, estaremos perante um ilícito meramente civil — cfr. AC. do STJ de 3/2/2005, citando Nelson Hungria. No caso, a possibilidade de reparação total dos danos, através dos meios civis colocados à disposição da lesada, é, parece-me, evidente. Sendo, deste modo a violação da Ordem Jurídica levada a cabo pela recorrente, reparável através dos meios civis e inexistindo razões de Ordem Colectiva que imponham a intervenção do Direito Penal para tutela dos bens jurídicos violados, tornando-se imperioso evitar a “colonização” do foro penal por causas de um cariz estritamente civil, voto — com estes fundamentos — o provimento do recurso, com a revogação do Despacho de Pronúncia, e a consequente não pronúncia da arguida, aqui recorrente, pela prática do crime de abuso de confiança.”
Analisado o tipo legal em causa, e face ao acima descrito entendemos que a apontada conduta dos arguidos não consubstancia a prática pelos mesmos do apontado crime de abuso de confiança, tal como requerido pelo assistente, por falta do elemento objectivo de tal ilícito “ausência do título não translativo de propriedade”.
Assim, porque os autos não fornecem indícios da prática pelos arguidos do crime referido no requerimento de abertura de instrução determino a não pronúncia de:
AA e BB pela prática de um crime de abuso de confiança agravado p.p. pelo artº 205º nº1/ 4 al b) do Cod. Penal.
Fixo em 2 UCs a taxa de justiça devida pela realização da instrução, a cargo do requerente, sem prejuízo da decisão sobre apoio judiciário.”
*
*
Desta Decisão Instrutória recorreu o assistente CC, formulando as seguintes conclusões:
“A. Não pode o Assistente, aqui Recorrente, conformar-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo no sentido da não pronúncia dos arguidos BB e AA pela prática, em co-autoria e na forma consumada, do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.°-4 do Código Penal.
B. Salvo o devido respeito não se compreende o raciocínio expendido pelo Tribunal a quo quanto ao (não) preenchimento do elemento objectivo do tipo, entendendo-se ser a decisão recorrida contraditória nos seus próprios termos.
C. Afinal, se como o próprio Tribunal bem reconhece, o veículo automóvel alienado pelos arguidos (com reserva de propriedade) constitui um bem alheio à luz da lei penal; e se o abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel ou animal alheios que o agente detém ou possui em nome alheio (cf. Comentário Conimbricense do CP, II, Art. 205.°, 2.a Ed, Gestlegal, pág. 111), então é evidente que a conduta dos arguidos preenche todos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) do ilícito de abuso de confiança.
D. Cumpre relembrar que, no presente caso, o Recorrente CC vendeu, em Agosto de 2017, aos arguidos BB e AA o veículo automóvel de marca e modelo ... com a matrícula ..-SE-.., de que era proprietário, E. tendo ficando acordado que o pagamento do preço total de €32.700,00 seria liquidado em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas de €545,00 cada uma, e que tal veículo ficaria com reserva de propriedade, até ao valor de €20.000,00, a favor do Recorrente, para garantir o bom pagamento do preço.
F. Não obstante, e antes de liquidado o valor de €20.000,00, decidiram os arguidos vender o sobredito veículo automóvel a DD pelo valor de €17.000,00, procedendo assim ao registo da propriedade, com apresentação número ...93, de 29 de Junho de 2018, a favor da referida compradora, sem quaisquer ónus ou encargos.
G. Assim, à data da aludida transmissão do veículo para a esfera de DD, os arguidos eram ainda devedores do montante de €22.890,00 ao Recorrente, correspondente ao remanescente do preço da viatura ainda em dívida. Pelo que, ao procederem do modo descrito, quiseram os arguidos apropriar-se ilegitimamente de coisa móvel que sabiam não lhes pertencer.
H. Aliás, sintomática da plena consciência da ausência de propriedade sobre o bem - e, consequentemente, da ilicitude do seu acto - é a circunstância de ter o arguido BB tido necessidade de falsificar o requerimento de registo automóvel, criando a aparência de que a extinção da reserva de propriedade naquele veículo decorria da vontade expressa do aqui Recorrente.
I. Sendo certo que, embora o veículo estivesse formalmente registado apenas em nome da arguida AA (com reserva de propriedade a favor do Assistente), é seguro afirmar que ambos os arguidos partilhavam o domínio factual sobre aquele bem móvel.
J. Tendo sido o aproveitamento desse domínio partilhado, e a adesão ao plano por parte da sua companheira AA, que permitiram ao arguido BB concretizar a transmissão do veículo para terceiro, recebendo, em contrapartida, a quantia de €17.000,00 - quantia essa que os arguidos integraram na sua esfera patrimonial (comum).
K. Certo é que, face aos termos acordados e aos pagamentos por si efectuados, não tinham os arguidos como não saber que, naquela data, ainda se encontrava em vigor a reserva de propriedade a favor do Assistente, não lhes sendo, por isso, permitida a alienação do dito automóvel.
L. Nesta senda, é incontestável que a coisa vendida com reserva de propriedade (cf. arts. 409.° e 934.° do Código Civil) constitui, à luz da lei penal, "coisa alheia" que como tal fundamenta, se e enquanto a reserva persistir, a possibilidade típica de um abuso de confiança por parte do comprador (Comentário Conimbricense do CP, Tomo II, Art. 205.°, 2.a Ed, Gestlegal, pág. 117).
M. É que, não há como descurar - sendo inclusive amplamente reconhecido quer na doutrina, quer na jurisprudência que num contrato de alienação com reserva de propriedade não há, como consequência da celebração do contrato, a imediata transferênciada propriedade da coisa alienada.
N. O que é o mesmo que dizer que na venda com reserva de propriedade, enquanto a condição se não verifica, o comprador não tem título translativo da propriedade ou outro que lhe permita dispor dela. Sendo essa, precisamente, a razão de ser da reserva de propriedade: visar assegurar que a transmissão da propriedade só se concretize após o cumprimento da condição subjacente à cláusula de reserva da propriedade.
O. Tudo o que impõe a necessária conclusão de que, enquanto vigorar a reserva, a propriedade da coisa não é transferida para o comprador, donde resulta que a entrega do veículo automóvel por parte do aqui Recorrente aos arguidos foi feita por título não translativo da propriedade.
P. Precisamente por isso, é incontornável que, ao venderem o automóvel de marca e modelo ... com a matrícula ..- SE-.., nas condições de modo, tempo e lugar melhor descritas supra, os arguidos se apropriaram ilegitimamente de coisa móvel alheia (isto é que lhes havia sido entregue por título não translativo da propriedade), com o propósito concretizado de fazerem sua a quantia resultante daquela venda.
Q. Pelo que, em face do exposto, não poderá deixar de se concluir que a conduta dos arguidos, para além dos ilícitos criminais imputados na acusação pública, integra ainda, em co-autoria, o crime de abuso de confiança agravado em função do valor consideravelmente elevado da coisa apropriada (art. 205.°, n.°s 1 e 4 al. b) do CP).
R. Devendo os mesmos ser pronunciados em conformidade.”
*
O MºPº em 1ª Instância pronunciou-se pela improcedência do recurso.
*
Em resposta ao recurso, o arguido BB pronunciou-se igualmente pela improcedência do recurso.
*
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, escrevendo que “deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que pronuncie os arguidos AA e BB pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal, por referência ao disposto na alínea b) do artigo 202.º do mesmo diploma legal”.
*
Em resposta ao parecer o arguido BB manteve a improcedência do recurso.
*
*
*
Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente CC, pretende a revogação da decisão de não pronúncia, e a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança agravado.
*
Em síntese, o que ocorre nos autos é o seguinte:
─ Efectuado Inquérito, pelo M.ºP.º foi proferido despacho de arquivamento quanto aos crimes de burla qualificada e falsificação do documento no respeitante à AA e quanto ao crime de burla qualificada, no respeitante ao BB, e proferida acusação contra o BB pela prática, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, e contra a AA pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão.
─ Pelo assistente CC foi requerida a abertura de Instrução, pretendendo a pronúncia dos arguidos ─ em concurso real com os acima referidos ─, não pela prática de um crime de burla qualificada, mas de um crime de abuso de confiança agravado p. e p. pelo art.205.º, n.º 1 e n.º 4, al. b) do C.P.
─ Efectuada a Instrução, foi proferida decisão de não pronúncia.
─ Apesar desta dupla conforme, pelo assistente foi interposto recurso pretendendo a pronúncia do BB e da AA pela prática do referenciado crime de abuso de confiança agravado.
*
Na decisão de não pronúncia, enunciam-se os factos constantes da acusação proferida pelo M.ºP.º, onde em resumo se descreve que o CC vendeu um “... 500” ao BB e à AA por 20.000€, em 60 prestações mensais, com reserva de propriedade, até pagamento integral do preço, ficando isso a constar da declaração de registo de propriedade do automóvel a favor da AA.
Sem o preço estar integralmente pago, o BB “serviu-se de um requerimento de registo automóvel em branco, onde se fazia constar a extinção de reserva de propriedade, com aposição de uma cruz (X) no local indicado para a “extinção de registo”, fazendo constar, de forma manuscrita, a palavra “reserva”, e de forma dactilografada, a identificação do veículo automóvel “..-SE-..”, a marca “Fiat”, a identificação do ofendido, CC, com respectivo número fiscal e de cartão de cidadão e morada, fazendo assim crer que se tratava da vontade manifestada pelo ofendido, para a extinção da reserva de propriedade naquele veículo, sem que este tivesse conhecimento de tal facto”.
No verso dessa declaração de extinção de reserva de propriedade, o BB “apôs no local da assinatura, uma rubrica assemelhando-se ao nome de “CC” e os dizeres, de forma dactilografada, do número de identificação, data de emissão e entidade emissora”, fazendo crer que o documento era genuíno, e levando a Conservatória a proceder “ao levantamento da extinção da reserva de propriedade”.
Após, vendeu o automóvel à DD por 17.000€.
Por sua vez, em data posterior, a AA passou um cheque no valor de 1490€ ao CC, destinado ao pagamento parcial do preço do “... 500”, cheque que apresentado a pagamento foi devolvido por falta de provisão, não tendo até à data o valor sido pago.
Aceitando-se como indiciados estes factos, considera-se que dos mesmos resulta que “os arguidos, na vigência do contrato de compra e venda celebrado com o assistente, alienaram a terceiro a DD o veículo automóvel, não estando ainda extinta a cláusula de reserva de propriedade”.
Reportando-se depois à lei civil refere-se que “define a reserva de propriedade como o pacto através do qual as partes convencionam diferir o efeito translativo de um contrato de alienação para momento posterior e até ao cumprimento das obrigações da outra parte ou até à verificação de um qualquer outro evento”.
Pormenoriza-se que a propriedade “do vendedor com reserva de propriedade é uma propriedade limitada à função de garantia, não é uma propriedade plena que permita ao seu titular ter poderes de gozo”, não tendo a posse da coisa transmitida.
Indo-se à previsão típica do abuso de confiança, esclarece-se que na mesma se exige que a coisa móvel tenha sido entregue por “título não translativo da propriedade”, sendo que no caso “os arguidos podiam vender o automóvel a terceiro desde que pagassem o restante preço ao assistente”, não lhes estando vedada a venda, mas “implicando essa venda a participação do beneficiário da reserva de propriedade, que existe para garantir o pagamento do preço pelo qual foi o bem transaccionado”.
Ao não procederem dessa forma, violaram o contrato e dispuseram de um bem alheio.
Não praticaram, porém, um crime de abuso de confiança, citando-se a argumentação do presente relator, no Proc. 1 358/09.1TAPVZ-A.P1 da Relação do Porto, em que a propósito de um caso semelhante de venda de um automóvel com reserva de propriedade, se entende ─ com recurso à genealogia histórico-dogmática do crime de abuso de confiança e à doutrina fixada por Figueiredo Dias ─ que o automóvel “não foi «confiado» aos arguidos, foi-lhes entregue no âmbito de um contrato que implicava a transferência de propriedade, mas apenas após integral pagamento do preço. Assim, ao dispor do bem, não houve abuso de confiança, houve incumprimento contratual, e disposição de um bem alheio”.
Com base na resumida argumentação, conclui-se na decisão recorrida: “a apontada conduta dos arguidos não consubstancia a prática pelos mesmos do apontado crime de abuso de confiança, tal como requerido pelo assistente, por falta do elemento objectivo de tal ilícito “ausência do título não translativo de propriedade”.
*
No recurso argumenta-se que “a coisa vendida com reserva de propriedade constitui à luz da lei penal «coisa alheia» que como tal fundamenta, se e enquanto a reserva persistir, a possibilidade típica de um abuso de confiança por parte do comprador”.
Acrescenta-se que “na venda com reserva de propriedade, enquanto a condição se não verifica, o comprador não tem título translativo da propriedade ou outro que lhe permita dispor dela. Sendo essa, precisamente, a razão de ser da reserva de propriedade: visar assegurar que a transmissão da propriedade só se concretize após o cumprimento da condição subjacente à cláusula de reserva da propriedade”.
*
Vejamos:
Antes de mais cumpre assinalar que no Inquérito ─ no que aqui interessa ─ investigou-se a prática de um crime de burla qualificada, e não de um crime de abuso de confiança.
Ou seja, no Inquérito a actuação dos arguidos foi analisada do ponto de vista do causar de um prejuízo, e obtenção de um enriquecimento, por meio de engano sobre factos astuciosamente provocados.
E o que se concluiu foi que relativamente ao “negócio” de venda do automóvel, “nada mais resulta do que uma vulgar situação de incumprimento contratual”.
Foi o assistente que, abandonando a imputação de um crime de burla, passou, no Requerimento de Abertura de Instrução, a imputar aos arguidos a prática de um crime de abuso de confiança.
E, a argumentação que no recurso formula, e acima se encontra resumida, melhor se enquadra na demonstração de que houve incumprimento contratual, do que na demonstração de que se verificou o preenchimento do tipo do crime de abuso de confiança, o que se compreende.
Com efeito, mostra-se inquestionável que o automóvel foi entregue aos arguidos no âmbito de uma relação contratual; não foi “confiado” aos arguidos no âmbito de uma relação de fidúcia (confiança) que produzisse a obrigação de o devolver.
Veja-se a esse respeito, para além da já referenciada doutrina fixada por Figueiredo Dias, o comentário ao artigo correspondente do Código Penal Espanhol (o art.º 252.º, “de la apropiación indebida”), constante da obra “Derecho Penal – Parte Especial” 3ª Ed., Vives Antón, González Cussac. Tirant Lo Blanch Libros. Pág. 469” que “(…) a apropriação indevida é, pois, um delito especial, de que só podem ser autores, aqueles que ostentam uma determinada posição de confiança, delimitada legalmente por um duplo requisito: a recepção da coisa e o título que produza a obrigação de a entregar ou devolver”.
Procurando uma fórmula que aproveite os ensinamentos das duas assinaladas posições doutrinárias: no caso, não se registou uma entrega do automóvel com obrigação de o devolver, comportando uma inversão do título da posse caso se não se verificasse essa devolução; o que se verificou foi a entrega do automóvel no âmbito de uma relação contratual, e o posterior incumprimento desse contrato (o abuso de confiança não pode ser confundido com o incumprimento do estipulado contratualmente, ou com a violação dos princípios contratuais da boa-fé e do cumprimento pontual).
Deste modo, perante a evidente possibilidade de se obter a reparação dos danos resultantes deste “negócio de automóveis”, exclusivamente, através dos meios civis, quase nem se mostra necessário invocar os princípios da subsidiariedade e da necessidade do Direito Penal.
Em conclusão, o recurso não merece provimento.
*
*
*
Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente CC, mantendo-se a decisão de não pronúncia recorrida.
*

Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3 UC’s.
*
Porto, 18/10/2023
José Piedade
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos