Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3875/15.5T8MAI-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
INFORMAÇÃO INCOMPLETA OU INEXACTA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
REGIME DE ARGUIÇÃO DA NULIDADE
Nº do Documento: RP202202083875/15.5T8MAI-C.P1
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC, dirigida à secretaria judicial mas de natureza sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.
II - Ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, é de admitir que o tribunal levou a que as partes razoavelmente se convencessem de que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e qualidade adequada à sua ulterior utilização processual.
III - Nestas circunstâncias, se só em momento ulterior uma das partes detectou a inexistência de gravação, deve contar-se desde então o prazo para arguição da correspondente nulidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 3875/15.5T8MAI-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução da Maia - Juiz 2

REL. N.º 654
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


1- RELATÓRIO

No âmbito de uns autos de embargos de executado opostos por K..., S.A. à execução que lhe é movida por J..., S.A., após ter sido proferida sentença que julgou procedentes os embargos e extinta a execução, veio a embargada interpor recurso de apelação.
Então, alegando pretender responder e requerer a ampliação do âmbito do recurso, para o que requereu ao tribunal a entrega de cópia dos registos áudio dos depoimentos das testemunhas ouvidas, verificou a embargante estarem imprestáveis as gravações dos depoimentos de duas delas, numa das sessões da audiência de julgamento, o que a impedia de exercer aquele seu direito. Mais invocou que, relativamente à mesma sessão, o próprio tribunal verificara a deficiência de gravação do depoimento de uma outra testemunha, que, por isso, tratara de repetir. Porém, com isso, gerou a confiança de que a gravação dos outros depoimentos estaria em boas condições, o que a inibiu de, no prazo de 10 dias disposto no art. 155º , nº 4 do CPC, invocar tal deficiência.
Com tais fundamentos, arguiu a nulidade dos actos em questão, bem como da sentença que sobreveio à audiência de julgamento, requerendo a sua repetição.
Ouvida, a embargada opôs-se ao deferimento da nulidade arguida.
O tribunal proferiu então a decisão recorrida, que compreende o seguinte trecho:
“As testemunhas em causa foram ouvidas na sessão da audiência final que se realizou em 26/4/2021.
Por outro lado, a Secretaria informou, em 30/9/2021, que, no final de cada diligência, o registo áudio fica disponível para ser entregue aos i. mandatários, logo que estes o solicitem – o que significa que, logo em 26/4/2021, houve disponibilização da gravação nos termos e para os efeitos do art. 155º nº3 e 4 do Código de Processo Civil (cfr. Ac. RE de 12/10/2017, proc. 1382/14, disponível em http://www.dgsi.pt).
De acordo com aquele art. 155º nº4 do Código de Processo Civil, o prazo para arguir a falta ou deficiência da gravação é de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
Assim, constata-se que o prazo para arguir a deficiência da gravação do depoimento daquelas testemunhas terminou em 6/5/2021, tendo o 3º dia útil posterior ocorrido em 11/5/2021, pelo que a arguição de nulidade agora apresentada é intempestiva.
No entanto, prevê o art. 9º do DL 39/95 de 15-2 que se o tribunal, em qualquer momento, verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.
Examinada a gravação, constata-se que, efectivamente, não é perceptível parte dos depoimentos das testemunhas em causa.
Porém, o certo é que a M.ma Juíza que presidiu à audiência apenas ordenou a repetição de um depoimento prestado na mesma sessão aqui em causa e elaborou a sentença sem que tenha mandado repetir qualquer outro, o que significa que, forçosamente, entendeu que a repetição não era essencial ao apuramento da verdade, pelo que não nos cabe a nós contrariar agora esse juízo de valor [que apenas poderá ser sindicado em sede de recurso].
Pelo exposto:
a) Por intempestividade da arguição, não se conhece da nulidade processual suscitada;
b) Por tal questão já ter sido sujeita a ponderação da M.ma Juíza que presidiu à audiência e elaborou a sentença, não se ordena a repetição do depoimento.”
É desta decisão que vem interposto recurso, pela embargante, que o termina formulando as seguintes conclusões:
A – Com a expressa ressalva do maior respeito pelo Tribunal a quo, o douto Despacho recorrido aplica erradamente o Direito relativamente à factualidade vertida nos autos, para além de incorrer em alguns equívocos;
B – Em 30/08/2021, a ora Recorrente veio deduzir e apresentar reclamação tendo por objecto a nulidade decorrente da falta ou deficiência nas gravações áudio dos depoimentos prestados por duas testemunhas ali identificadas (a fls. com a Ref.ª Citius 29775420), mais requerendo que os mesmos fossem repetidos e, desta feita, efectiva e integralmente gravados sem vícios que impeçam a sua correcta e completa audição, com as consequências legais, designadamente determinando-se a repetição do julgamento e a nulidade da douta Sentença entretanto proferida.
C – A falta ou deficiência nas gravações áudio dos depoimentos prestados por aquelas duas testemunhas constitui impedimento a que a ora Recorrente possa exercer o seu direito legal de requerer a ampliação do âmbito de recurso interposto pela ora Recorrida da douta Sentença proferida nos autos e, nessa sede, impugnar a decisão relativa à matéria de facto (pois obsta à posterior reapreciação pelo Tribunal ad quem da prova testemunhal gravada);
D – O Tribunal a quo não conheceu da nulidade processual suscitada pela ora Recorrente, considerando-a intempestiva; por considerar que o prazo para arguir a deficiência da gravação do depoimento daquelas testemunhas era o previsto no artigo 155.º n.º 4 do Código de Processo Civil; e que havia terminado em 06/05/2021.
E – No entanto, tal douta Decisão não é compatível com o douto Despacho de fls. com a Ref.ª Citius 424261608, proferido em 30/04/2021; do ponto em que este anterior Despacho declara que “Após audição das gravações da última sessão de julgamento constata-se que, lamentavelmente, o depoimento da testemunha ouvida sob indicação de ambas as partes na sessão do passado dia 26 de Abril, o Sr. AA, é inaudível. Não obstante terem sido colhidos apontamentos que sumariam o teor do depoimento e que permitem que este, oportunamente, seja considerado pelo tribunal em sede de motivação da sua convicção, a circunstância de o referido depoimento não se encontrar gravado inviabiliza a sua utilização em caso de recurso da matéria de facto. Assim, de modo a evitar que as partes sejam surpreendidas com a deficiência do registo áudio e a permitir que, querendo, possam reagir à irregularidade em momento anterior ao encerramento da audiência de julgamento, notifique o teor do presente despacho.”
F – Bem como, com o douto Despacho lavrado em acta a fls. com a Ref.ª Citius 424589619, proferido em 10/05/2021: que por sua vez declara que “ (…) será necessário repetir o depoimento da testemunha AA, prestado no passado dia 26 de abril e inaudível por deficiência do sistema de gravação, o que traduz uma irregularidade que se impõe sanar (…)” (sublinhados nossos);
G – O douto Despacho de fls. com a Ref.ª Citius 424261608 foi proferido no decurso do prazo a que alude o n.º 4 do artigo 155.º do Código de Processo Civil; de onde resultou que, de todas as gravações dos depoimentos prestados pelas cinco testemunhas na sessão da audiência de julgamento realizada em 26/04/2021, após a sua posterior audição pelo Exmo. Tribunal, apenas uma era inaudível.
H – Não fazendo aquele douto Despacho de fls. com a Ref.ª Citius 424261608 qualquer referência aos depoimentos das testemunhas BB e/ou a CC, prestados na mesma sessão de 26/04/2021 e também gravados – e que, legitimamente, se presumiram audíveis.
I – Deste modo, o douto Despacho de fls. com a Ref.ª Citius 424261608, proferido em 30/04/2021, foi de molde a criar nas partes, legitimamente, a confiança de que todos os demais depoimentos estavam audíveis e perceptíveis,
J – Sendo que, tal confiança não resultou apenas de uma leviana convicção da ora Recorrente, mas de pressupostos que foram exteriorizados pelo Tribunal e que justificam, senão mesmo exigem essa confiança.
K – O princípio da protecção da confiança legítima é um dos corolários do princípio da boa-fé, um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico – e que é transversal à sua dimensão adjectiva – sendo a exigência da protecção da confiança também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito.
L – Existia, pois, uma situação de confiança das partes relativamente ao teor do douto Despacho de fls. proferido em 30/04/2021; confiança que estava plenamente justificada pela boa-fé com que pleitearam nos presentes autos e com base na qual adequaram a sua conduta processual, praticando apenas os actos que, face àquele douto Despacho, consideraram úteis ou necessários tomando como único critério a descoberta da verdade, a boa decisão da causa e a realização da Justiça.
M – Em face daquele douto Despacho proferido em 30/04/2021, tornou-se desnecessário, e até inútil, que qualquer das partes requeresse fosse o que fosse no prazo a que se refere o artigo 155.º n.º 4 do Código de Processo Civil,
N – Pois aquele douto Despacho tornou assente, com segurança e sem margem para qualquer dúvida, que – com excepção do depoimento da testemunha AA – não se verificava a falta nem qualquer deficiência da gravação dos demais depoimentos, de que o Tribunal tinha procedido entretanto à sua audição.
O – O prazo a que alude o artigo 155.º n.º 4 do Código de Processo Civil tornou-se irrelevante pois, em momento anterior havia sido proferido, em 30/04/2021, o douto Despacho de fls. com a Ref.ª Citius 424261608.
P – Jamais poderá subsistir a dúvida de que os Tribunais actuam de acordo com a Lei, neste caso, procedendo às gravações que lhes estão cometidas e não fornecendo informações que induzam as partes litigantes em erro.
Q – Assim, em face do exposto, não poderia a arguição desta nulidade deixar de ser atendida, o que se impunha à luz dos princípios da cooperação, da protecção da confiança legítima, da boa-fé e da segurança jurídica.
R – Por outro lado, decidiu ainda o Tribunal a quo não ordenar a repetição do depoimento daquelas duas testemunhas – por tal questão já ter sido sujeita a ponderação da MM.ª Juíza que presidiu à audiência e elaborou a Sentença.
S – Sucede que, sempre com o mais elevado respeito, a douta Decisão ora recorrida incorre, também neste ponto, em manifesto equívoco.
T – Com efeito, se é certo que a MM.ª Juíza que presidiu à audiência apenas ordenou a repetição de um depoimento prestado na mesma sessão aqui em causa, e elaborou a sentença sem que tenha mandado repetir qualquer outro, tal não significa que tenha entendido que a repetição não era essencial à descoberta da verdade.
U – Aliás: com excepção de ter atestado que procedeu “à audição das gravações da última sessão de julgamento” (referindo-se a “gravações”, no plural), o douto Despacho de 30/04/2021 apenas alude ao depoimento de AA, afirmando que os “apontamentos” tomados permitiriam que, oportunamente, este fosse considerando pelo Tribunal em sede de motivação da sua convicção.
V – O que não impediu o Tribunal de considerar que, independentemente deste facto, “a circunstância de o referido depoimento não se encontrar gravado inviabiliza a sua utilização em caso de recurso da matéria de facto”.
W – Despacho que foi proferido, como resulta da sua própria motivação, “de modo a evitar que as partes sejam surpreendidas com a deficiência do registo áudio e a permitir que, querendo, possam reagir à irregularidade em momento anterior ao encerramento da audiência de julgamento”.
X – O que, a final, não foi possível – mas tal não se deveu a qualquer facto, acto ou omissão da ora Recorrente; muito pelo contrário!
Y – Insiste-se: o douto Despacho proferido em 30/04/2021 nada revelou quanto ao eventual conhecimento de qualquer irregularidade sobre as gravações dois depoimentos das testemunhas BB e CC,
Z – E, por isso, não se pronunciou sobre a sua repetição, muito menos se esta seria, ou não, essencial ao apuramento da verdade.
AA – Os doutos Despachos de 30/04/2021 e de 10/05/2021 foram proferidos no sentido de proteger os direitos e interesses processuais, legítimos e atendíveis, das partes em caso de eventual recurso quanto à matéria de facto,
AB – A gravação da audiência final é da responsabilidade do Tribunal, e não das partes, sendo regra geral efectuada em sistema sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o Tribunal possa dispor, com equipamento ali existente, e executada por funcionários de Justiça.
AC – Cabe ao Tribunal, desde logo, em respeito ao princípio da cooperação e, bem assim, no disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro, alertar as partes para a deficiência do registo áudio.
AD – E, relativamente a eventuais anomalias que venham a ocorrer na gravação da audiência final, dispõe o mesmo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro que “ se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
AE – Como é o caso – o próprio Tribunal a quo reconhece na douta Decisão recorrida que “examinada a gravação, constata-se que, efectivamente, não é perceptível parte dos depoimentos das testemunhas em causa”.
AF – Só que a “verdade” a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro não pode ser restritivamente interpretada ao ponto de ser confundida com a interpretada pelo Julgador na “decisão da causa”.
AG – A decisão da causa em primeira instância apenas fornece a versão dos factos que o Julgador considerou plausível, ou a mais plausível, em face de todos os elementos de prova que considerou relevantes – mas que pode estar longe de ser a verdade; que não está imune a erros de julgamento.
AH – Por isso é que a lei processual atribui às partes o direito a impugnar, por via recursória da decisão proferida os pontos da matéria de facto que considere incorrectamente julgados em face da prova testemunhal produzida; impugnação que se destina, precisamente, ao apuramento da verdade, mas desta vez pela instância de recurso – que vai sindicar os juízos probatórios formulados pela primeira instância, e fundamentadamente impugnados pelo recorrente; tendo a instância de recurso o poder de modificar a decisão de facto.
AI – No entanto, o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto tem a seu cargo o ónus de especificar, entre outros, os concretos meios probatórios constantes da gravação realizada no processo, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; incumbindo-lhe, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
AJ – Para o que se revela essencial a gravação da prova – sem vícios e/ou deficiências que impeçam o seu uso pelas partes processuais que dela pretendam socorrer-se no exercício dos direitos processuais que lhes assistem.
AK – O apuramento da verdade o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro abrange, assim, todas aquelas situações em que a parte processual interessada pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
AL – No caso concreto, a repetição do julgamento é essencial ao apuramento da verdade – uma vez que, no julgamento realizado, os depoimentos em causa assumiram enorme relevância para a decisão, tendo sido considerados muito credíveis e com elevado contributo para a formação da convicção do Tribunal.
AM – E, não tendo a MM.ª Juíza que presidiu à audiência e elaborou a Sentença realizado qualquer ponderação sobre a repetição destes depoimentos, o Tribunal a quo não poderia abster-se de decidir sobre a arguida nulidade,
AN - Tratando-se de nulidade de que o Tribunal a quo até pode conhecer oficiosamente, nos termos das disposições conjugadas do artigo 196.º do Código de Processo Civil e do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro.
AO – O douto Despacho viola, entre outros, o disposto nos artigos 7.º, 155.º, 195.º, 196.º, 638.º n.º 5, 636.º n.ºs 1 e 2 e 640.º do Código de Processo Civil; nos artigos 3.º n.ºs 1 e 4, 6.º n.ºs 1 e 2, 7.º, 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro; no artigo 334.º do Código Civil; ofendendo ainda os princípios da cooperação, da protecção da confiança legítima, da boa-fé e da segurança jurídica.
AP - Por estes motivos, deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Despacho recorrido e substituindo-se o mesmo por outro que, conhecendo a nulidade processual suscitada, ou declarando-a oficiosamente, ordene a repetição dos dois depoimentos das testemunhas em causa, com as consequências legais, designadamente determinando-se a repetição do julgamento e a nulidade da douta Sentença entretanto proferida, como é de JUSTIÇA!”
A embargada apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida, por ser intempestiva a arguição da nulidade em causa, assinalando ainda que a impugnação da decisão que a indeferiu deveria ocorrer nas alegações de recurso da sentença e não em apelação autónoma.
O recurso interposto pela autora foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo. Entretanto, ainda no tribunal recorrido, foi suspensa a instância nos autos de embargos, em ordem à prévia decisão deste recurso.
Cumprirá, em todo o caso, decidir se deve conhecer-se do mérito do recurso interposto pela embargante, do que infra se tratará.
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2- FUNDAMENTAÇÃO:

O objecto do recurso, definido a partir das conclusões enunciadas, consiste em apreciar se, nas circunstâncias do caso, deve ter-se por tempestiva a arguição da inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso constitui nulidade que implique a anulação do julgamento e da sentença, bem como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos e dos deles dependentes.
Porém, antes disso, importa decidir se o presente recurso deve ser admitido, pois que a apelada/embargada alega que a impugnação da decisão em causa não deveria ter ocorrido em apelação autónoma, mas no âmbito do recurso que viesse a ser interposto, designadamente no âmbito da pretensão de ampliação do objecto do recurso que a embargante viesse a deduzir em sede de resposta ao recurso de apelação da sentença oferecido por si própria, embargada, aqui apelada. E acrescenta ter já decorrido o prazo para esse efeito, pelo que jamais poderá ser conhecida, em sede de recurso, a questão colocada.
A este propósito, importa considerar que não oferece dúvida a recorribilidade intrínseca da decisão em questão: é desfavorável para a embargante e priva-a de um direito processual: o de reagir, através do expediente de ampliação do âmbito do recurso, a uma decisão judicial que, quanto a alguns dos seus pressupostos de facto, lhe foi adversa em termos que podem ser consequentes, caso proceda o recurso da parte contrária. Para além disso, a causa tem valor que torna admissível o recurso e este foi intentado em prazo, por referência à data da decisão recorrida.
Por outro lado, à embargante jamais poderia exigir-se que suscitasse a questão num recurso de apelação interposto da própria sentença. Nesta obtivera ganho de causa, pelo que não se lhe reconheceria legitimidade para recorrer.
Daí que, para impugnar a sentença, designadamente quanto aos pressupostos de facto cujo julgamento lhe foi desfavorável, lhe restasse o expediente referido, da ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do CPC.
Porém, em concreto, a embargante estava impedida de se socorrer deste expediente processual, pois que, para apresentar essa pretensão, teria de impugnar a decisão da matéria de facto em relação a alguns pontos. Porém, não o poderia fazer por não existirem as gravações dos depoimentos de duas testemunhas tidas por relevantes para esse efeito.
Nestes termos, a reacção contra a decisão que rejeitou o conhecimento da nulidade proveniente da falta de gravação de dois depoimentos, com efeitos extensíveis ao julgamento e sentença, tem de ter lugar fora das soluções de impugnação da própria sentença, sob pena de se coarctar à embargante a hipótese dessa reacção.
Acresce que, no caso, o incidente acabou por ter um processamento autónomo, tendo este ocorrido já após a prolação da sentença: ao requerimento de arguição da nulidade do julgamento e da sentença sobreveio uma actividade instrutória, através da intervenção da secretaria, bem como uma ulterior fase de contraditório, que culminou na decisão recorrida.
Assim, nos termos do art. 644º, nº 1, al. a) do CPC, deve admitir-se e conhecer-se do mérito do presente recurso.
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Resolvida esta questão, cumpre decidir se deve ter-se por tempestiva a arguição da nulidade relativa à inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso deve determinar a anulação do julgamento e da sentença, como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos.
Em primeiro lugar, entendemos ser incontroversa a conclusão de que a falta ou deficiência que torne imprestáveis as gravações de dois depoimentos testemunhais constitui nulidade susceptível de influir na decisão da causa. Com efeito, consubstancia a omissão de uma formalidade que a lei prescreve (art. 155º, nº 1 do CPC) e, não havendo qualquer juízo definitivo sobre a irrelevância dos depoimentos das testemunhas BB e CC, sendo mesmo de sinal contrário a tese da apelante, será impossível sustentar, como se faz na decisão recorrida, que o respectivo teor não é, ou pode presumir-se não ser, essencial para o “apuramento da verdade”, isto é, para a fixação do substrato factual da sentença.
Por consequência, a impossibilidade de usar o registo desses depoimentos para instruir a pretensão de ampliação do âmbito do recurso, em resposta ao recurso da embargada, tem de admitir-se como sendo uma circunstância susceptível de vir a influenciar a decisão da causa, por não poder excluir-se a hipótese de procedência desse recurso e, nesse caso, da pertinência da ampliação do âmbito do recurso e a utilidade desses depoimentos. Verifica-se, pois, a nulidade invocada.
Cabe, subsequentemente, decidir se a arguição desta nulidade se pode ter por tempestiva, porquanto a decisão sob recurso rejeitou a sua apreciação por a considerar extemporânea.
Tem-se presente o regime constante do art. 155º, nº s 3 e 4 do CPC: a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, sendo que, ocorrendo no sistema Citius, essa disponibilidade se verifica de imediato, após o encerramento do acto. E as partes têm o prazo de dez dias para invocar a falta ou deficiência da gravação, sob pena de preclusão desse poder. Isto sem prejuízo de o próprio tribunal, em qualquer momento, poder verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível e determinar a repetição do acto, sempre que for essencial ao apuramento da verdade (art. 9º do DL 39/95 de 15-2).
No caso a sessão da audiência em que foram ouvidas as duas testemunhas referidas ocorreu em 26/4/2021. Como se enuncia na decisão recorrida, logo nessa data se efectiva a disponibilização da gravação, nos termos e para os efeitos do art. 155º nº3 e 4 do Código de Processo Civil. O prazo de 10 dias previsto no nº 4 do art. 155º do CPC, para arguir a deficiência da gravação do depoimento daquelas testemunhas, terminaria, in casu, em 6/5/2021, sem prejuízo da ponderação de que o 3º dia útil posterior ocorreria em 11/5/2021, como se refere na decisão recorrida. A este propósito, a própria apelada recorre a diferentes datas, considerando não a data da sessão em causa, mas a da última sessão do julgamento, mas sem que isso altere o resultado, pois que, à semelhança do tribunal recorrido, acaba por considerar a arguição extemporânea.
Com efeito, o que aconteceu foi que a ora apelante só em 5/8/2021 pediu e obteve uma cópia da gravação dos dois depoimentos, só então tendo constatado a sua deficiência e imprestabilidade. Por isso, só depois (em 30/8/2021), isto é, muito depois daquela data de 11/5/2021, veio reclamar da deficiência das gravações.
Foi por isso que o tribunal a quo concluiu dever ser recusada, por extemporânea, a sua reclamação, isto é, a arguição da nulidade decorrente daquela deficiência de gravação.
Porém, algo se verificou, que deve ponderar-se a este propósito.
Como refere a apelante, em 30/4/2021, ou seja, dentro do prazo disponível para a embargante aceder e verificar a qualidade das gravações e disso reclamar, se para isso detectasse razões, o próprio tribunal proferiu o seguinte despacho: “Após audição das gravações da última sessão de julgamento constata-se que, lamentavelmente, o depoimento da testemunha ouvida sob indicação de ambas as partes na sessão do passado dia 26 de Abril, o Sr. AA, é inaudível.
Não obstante terem sido colhidos apontamentos que sumariam o teor do depoimento e que permitem que este, oportunamente, seja considerado pelo tribunal em sede de motivação da sua convicção, a circunstância de o referido depoimento não se encontrar gravado inviabiliza a sua utilização em caso de recurso da matéria de facto.
Assim, de modo a evitar que as partes sejam surpreendidas com a deficiência do registo áudio e a permitir que, querendo, possam reagir à irregularidade em momento anterior ao encerramento da audiência de julgamento, notifique o teor do presente despacho.”. Na sequência deste despacho, a prestação do depoimento daquela testemunha foi repetido e regravado.
Porém, perante o respectivo teor, alega a apelante ter adquirido a convicção de que, se um dos depoimentos estava mal gravado ou por gravar, referindo o tribunal que ouvira “as gravações da última sessão de julgamento”, os demais só poderiam estar bem gravados [als. G) a J)], não podendo considerar-se leviana a sua confiança sobre que assim acontecesse. E, nestas circunstâncias, deverá admitir-se que só em 5/8/2021 teve conhecimento da deficiência de gravação dos depoimentos de testemunhas BB e CC, pelo que arguiu atempadamente a nulidade daí decorrente.
É impossível deixar de concordar com a tese da apelante.
Com efeito, segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC (6- Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.), dirigida à secretaria judicial, mas de natureza obviamente sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.
É o que se conclui ter acontecido no caso em apreço.
É de admitir que o tribunal, ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, tenha levado as partes a convencerem-se, razoavelmente, que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e com a qualidade necessária à sua ulterior utilização processual.
Tendo o tribunal verificado a qualidade, ou falta dela, das gravações a que aparentemente se refere – i. é, não só a do depoimento da testemunha AA, mas também a dos depoimentos das demais – é de considerar que as partes se tenham conformado com essa verificação, não tratando de ir reverificar aquilo que o tribunal anunciava ter analisado, designadamente a falta de qualidade daquela gravação, a par da qualidade pressuposta das restantes.
Assim sendo, é de considerar que, no caso concreto, e por a tal ter sido induzido pela actuação do próprio tribunal, a ora apelante só em 5/8/2021 teve conhecimento, por então lhe ter sido disponibilizada a gravação dos respectivos depoimentos, da imprestabilidade das gravações dos depoimentos de BB e CC.
Por tal motivo, só a partir de então deverá contar-se o prazo previsto no art. 155º4, nº 4 do CPC.
Esta conclusão acarreta a conclusão pela tempestividade da arguição da nulidade decorrente da deficiência e inerente ausência de gravação dos depoimentos de BB e CC, circunstâncias estas que, como supra se justificou, se constata integrarem uma efectiva nulidade, nos termos do art. 195º, nº 1 do CPC
Nos termos do nº 2 do art. 195º do CPC, a nulidade da recolha dos depoimentos em questão (BB e CC) acarreta a nulidade do julgamento e da subsequente sentença.
Assim, anulando-se os actos de produção de prova constituídos pelos depoimentos testemunhais de BB e CC, haverão estes de ser repetidos. O julgamento e sentença relativamente aos quais esses actos constituíram uma actividade instrutória são necessária e igualmente anulados.
Nos termos do art. 605º, nº 3 do CPC, a repetição desses actos competirá à Sra. Juiz que presidiu ao julgamento, assim se salvaguardando os demais actos de produção de prova não anulados. Concluirá assim o julgamento, com a prolação da sentença pertinente.
Isso só não haverá de acontecer se, conforme dispõe o art. 605º nº 3 cit., se vier a concluir, em sede de 1ª instância, ser preferível a repetição dos demais actos já praticados em julgamento.
Procederá, pois, nestes termos, a presente apelação, revogando-se a decisão recorrida.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que integram esta 2ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida, que substituem por outra nos termos da qual, concluindo pela tempestividade da respectiva arguição, declaram verificada a nulidade decorrente da deficiência e inerente ausência de gravação dos depoimentos de BB e CC. Assim, anulando os actos de produção de prova constituídos pelos depoimentos destas testemunhas, determinam que eles sejam repetidos.
O julgamento e sentença relativamente aos quais esses actos constituíram uma actividade instrutória vão necessária e igualmente anulados.
Mais acordam em afirmar que, nos termos do art. 605º, nº 3 do CPC, a repetição desses actos é da competência da Sra. Juiz que presidiu ao julgamento, assim se salvaguardando os demais actos de produção de prova não anulados. A referida Sra. Juiz concluirá, por isso, o julgamento, com a prolação da sentença pertinente.
Isso só não haverá de acontecer se, conforme dispõe o art. 605º nº 3 cit., se vier a concluir, em sede de 1ª instância, ser preferível a repetição dos demais actos já praticados em julgamento.

Custas pela apelante.

Registe e notifique.

Porto, 8 /2/2022
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda